Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
117/13.1TBPNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
LEI APLICÁVEL
Nº do Documento: RP20140616117/13.1TBPNF.P1
Data do Acordão: 06/16/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O instituto da litigância de má fé tem em certa medida uma natureza bifronte porquanto tem uma vertente sancionatória, disciplinadora da conduta das partes e dos seus patronos e uma vertente ressarcitória geradora da obrigação de indemnizar com base na prática de facto ilícito.
II - Em qualquer das vertentes por que se considere o instituto da litigância de má fé, afigura-se-nos que a lei aplicável será a que vigorava na data da prática dos factos e não aquela que exista à data da prolação da decisão e ainda que a lei nova seja eventualmente mais favorável.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 117/13.1TBPNF.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 117/13.1TBPNF.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
1. O instituto da litigância de má fé tem em certa medida uma natureza bifronte porquanto tem uma vertente sancionatória, disciplinadora da conduta das partes e dos seus patronos e uma vertente ressarcitória geradora da obrigação de indemnizar com base na prática de facto ilícito.
2. Em qualquer das vertentes por que se considere o instituto da litigância de má fé, afigura-se-nos que a lei aplicável será a que vigorava na data da prática dos factos e não aquela que exista à data da prolação da decisão e ainda que a lei nova seja eventualmente mais favorável.
***
Acordam, em audiência, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
1. Relatório[1]
A 11 de Janeiro de 2013, no Tribunal Judicial da Comarca de Penafiel, B…, S.A. instaurou a presente acção declarativa, com processo comum na forma ordinária, contra C…, Lda. pedindo a condenação desta a pagar-lhe:
- a) a quantia de 39.975,00 euros, a título de capital em dívida, acrescida de 2.830,01 euros de juros de mora vencidos até à data da propositura da presente acção;
- b) juros vincendos, contados à taxa de juros comerciais em cada momento em vigor, até integral e efectivo pagamento;
- c) sanção pecuniária compulsória que se mostre adequada a assegurar a efectividade da sentença, em valor diário, atentos os montantes em causa, nunca inferior a 1.000,00 euros.
Para tanto alega, em síntese, dedicar-se à organização e realização de leilões no âmbito judicial e extrajudicial, bem como à avaliação de bens e que no âmbito dessa sua actividade, em 29 de Março de 2011, após ter sido nomeada nos autos para proceder à venda em estabelecimento de leilão público, realizou, na D…, um leilão público com vista à venda dos bens apreendidos no âmbito da massa insolvente da sociedade “E…, S.A.”, no processo de insolvência que correu termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Paredes, sob o n.º 2710/09.8TBPRD. Com vista à obtenção do melhor resultado de venda possível, a autora desenvolveu diversos procedimentos de divulgação dos bens em causa, nomeadamente, enviou cartas a habituais e potenciais clientes, publicitou o leilão no F…, na internet, por contacto telefónico e e-mail marketing. No dia da realização do leilão, as condições gerais de venda foram lidas a todos os presentes, a quem foi explicado que pelos serviços prestados pela autora, ao valor da venda acrescia 5% no caso dos imóveis e IVA respectivo; que o arrematante e promitente-comprador pagará, com a arrematação e assinatura do contrato de compra e venda, 10% do valor proposto, a título de sinal e princípio de pagamento, bem como o valor correspondente pelos serviços prestados pela autora. O preço mínimo fixado pela senhora administradora de insolvência para os bens a vender foi de 750.000,00 euros, mas colocado o lote de bens em leilão para recepção de propostas, nenhum dos presentes mostrou interesse em apresentar propostas por esse valor. Então o pregoeiro informou os presentes que estava disponível para aceitar ofertas de montante inferior àquele valor, a título de “registo de oferta”, salientando que as mesmas não seriam vinculativas para a massa insolvente, uma vez que o negócio ficaria dependente da aceitação pela senhora administradora de insolvência, tendo então sido efectuada uma proposta de 600.000,00 euros, que foi apresentada pela sociedade “G…, Lda”, que a autora comunicou à administradora de insolvência. Nos dias seguintes à realização daquele leilão, a autora continuou as suas diligências, enquanto encarregada de venda, no sentido de maximizar a valorização do referido lote de bens imóveis a vender, tendo, através do gerente da “G…”, senhor H…, estabelecido contactos com a ré, dando-lhe conhecimento dos imóveis para licitação e negociação. Nessa data, o gerente da “G…” informou a ré que nestas negociações através de leiloeiras é condição essencial do negócio que o adquirente suporte os serviços prestados pela autora na venda do imóvel. Na sequência desse contacto, autora e ré estabeleceram negociações para aquisição pela ré dos imóveis em causa, na sequência do que a autora realizou várias reuniões com os representantes da última, nas quais ficaram devidamente estabelecidos todos os termos e condições para a realização do negócio, nomeadamente o pagamento do preço, a data para a realização das escrituras, sujeitas a aprovação da senhora administradora da insolvência, e o valor dos honorários a pagar à autora. Nessas reuniões, a autora explicou à ré que é prática da realização dos negócios através de uma leiloeira que o valor dos serviços por esta prestados, na qualidade de encarregada de venda da massa insolvente, sejam debitados e pagos pela adquirente dos bens, tendo a ré expressamente concordado com o pagamento desses honorários. A ré apresentou então uma proposta para a aquisição do referido lote de bens imóveis pelo valor de 650.000,00 euros, que uma vez apresentada à senhora administradora de insolvência, foi por ela aceite. A ré foi, de imediato, informada de que a sua proposta tinha sido aceite, tendo-lhe sido referido que além do pagamento do preço, lhe caberia ainda o pagamento dos serviços prestados pela autora, correspondente a 5% do valor da venda do imóvel, que a ré aceitou pagar-lhe. No dia 01 de Agosto de 2011, foi celebrado contrato-promessa de compra e venda do referido lote de bens entre a massa insolvente e a ré. Nessa mesma data, foi entregue um cheque à autora, no montante de 130.000,00, emitido a favor da massa insolvente, a título de sinal e antecipação parcial do pagamento e correspondente a 20% do valor integral do preço acordado na promessa de compra e venda. A autora emitiu, com a mesma data, declaração em como recebeu da ré o cheque e ficou responsável pela entrega do contrato-promessa devidamente assinado pela senhora administradora de insolvência e recibo de quitação do valor entregue. No acto da celebração daquele contrato-promessa, a funcionária da autora informou a ré que iria ser emitida factura referente aos serviços prestados pela primeira no âmbito da negociação para a celebração do negócio de compra e venda do lote dos bens imóveis, no valor de 32.500,00 euros, acrescido de IVA à taxa legal. Em 30 de Janeiro de 2012, foi celebrada a escritura de compra e venda dos bens imóveis entre a ré e a senhora administradora da massa insolvente. Nessa sequência e conforme havia sido combinado, a autora entregou à ré a factura n.º 12, datada de 30 de Janeiro de 2012, com vencimento na mesma data, referente à prestação dos serviços prestados, no valor de 32.500,00 euros, acrescido de IVA. Os legais representantes da ré aceitaram a factura em causa, tendo sido referido que a mesma seria regularizada prontamente. Porém, a ré não procedeu ao pagamento daquela factura, que se mantém em dívida.
Efectuada a citação da ré, esta contestou invocando a excepção dilatória da ilegitimidade passiva, sustentando não ter celebrado com a autora qualquer acordo em que esta se tivesse obrigado perante si a executar os serviços que por ela vêm invocados, não tendo a autora prestado àquela quaisquer serviços e impugnou parte da matéria alegada pela autora, afirmando que esta não lhe prestou os serviços que invoca, nem a ré se obrigou a pagar-lhe qualquer quantia como contrapartida dos serviços prestados pela autora à massa insolvente, tendo devolvido a factura emitida pela autora para titular a alegada prestação de serviços. A ré termina a contestação pedindo que seja julgada procedente a excepção de ilegitimidade passiva da ré para a presente demanda, e, caso assim se não entenda, que seja absolvida do pedido, pedindo ainda a condenação da autora como litigante de má-fé no pagamento de 7.475,00 euros, alegando que esta invoca factos manifestamente falsos e infundados, além de imputar à ré um comportamento fiscal para obter um benefício (dedução de IVA) que esta não praticou, pelo que deverá ser condenada em montante igual ao valor a título de IVA em que acusou a ré. Requereu ainda a intervenção acessória da massa insolvente da sociedade “E…, S.A.”, sustentando que ao intentar a presente acção contra a ré, a autora tenta receber daquela o que não lhe foi pago por quem a nomeou, ou seja, a interveniente, pelo que caso ela, ré, venha a ser condenada no âmbito da presente acção, irá intentar acção de regresso contra a massa insolvente da “E…”.
A autora replicou pugnando pela improcedência da excepção dilatória da ilegitimidade passiva da ré, bem como do pedido de condenação daquela como litigante de má fé, pronunciando-se ainda pela inadmissibilidade legal do incidente de intervenção acessória que foi requerido pela ré, reiterando o peticionado na petição inicial e pedindo a condenação da ré como litigante de má fé em multa e em indemnização a liquidar ulteriormente, sustentando para tanto que esta afirma factos cuja falsidade conhece, para além de fazer um uso manifestamente reprovável do processo.
O incidente de intervenção acessória deduzido pela ré foi indeferido, dispensou-se a realização de audiência preliminar, proferiu-se despacho saneador, em que se julgou improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva e procedeu-se à condensação da factualidade considerada relevante para a boa decisão da causa, fixando-se os factos assentes e organizando-se a base instrutória.
A autora reclamou quer contra a factualidade assente, quer contra a base instrutória, em ambos os casos por omissão de factualidade que reputa relevante para a boa decisão da causa, reclamação que foi deferida.
Ambas as partes ofereceram as suas provas e requereram a gravação da audiência final.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento respondendo-se à matéria vertida na base instrutória.
Seguidamente foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente por provada e, em consequência, foi a ré condenada a pagar à autora a quantia de € 39.975,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, a calcular sobre a referida quantia de capital em dívida, às taxas de juros comerciais antes indicadas, a partir de 30 de Janeiro de 2012, até integral e efectivo pagamento e a sobretaxa de 5% ao ano desde a data do trânsito em julgado da sentença, a título de sanção pecuniária compulsória, a calcular sobre o montante de € 39.975,00, que acrescerá aos juros de mora, destinando-se o montante de tal sobretaxa, em partes iguais, para a autora e para o Estado, sendo ainda a ré condenada como litigante de má fé, na multa de cinco unidades de conta e indemnização a favor da autora, a liquidar em momento ulterior.
Inconformada com a sentença, a ré interpôs recurso de apelação, requerendo a atribuição de efeito suspensivo ao recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. A massa insolvente da sociedade “E…, S.A.” representada pela sua administradora de insolvência celebrou um contrato de mandato com a Autora, B…, S.A., para a venda em estabelecimento de leilão público dos bens apreendidos a favor daquela;
2. A massa insolvente referida, como mandante, obrigou-se pelo referido contrato, oneroso, a pagar à autora B…, Mandatária, a retribuição acordada, praticando esta os atos necessários para o efeito pretendido no âmbito do exercício normal da sua actividade profissional (artº 1.167º, al.b), do C.Civil;
3. Mandatada para o efeito, a autora realizou em 29/03/2011, um leilão público na D…, tendo divulgado o mesmo por mailings dirigidos aos seus clientes, carta e anúncios em jornais;
4. Na abertura do leilão foram lidas as todos os presentes as condições gerais de venda e a quem foi explicado que pelos serviços prestados pela autora, ao valor da venda acrescida 5% no caso dos imóveis e IVA respectivo, que o arrematante e promitente-comprador deveria pagar com essa arrematação e assinatura do contrato-promessa.
5.A título de sinal e princípio de pagamento, 10% do valor proposto bem como o valor correspondente pelos serviços prestados pela Autora.
6. Foi igualmente comunicado aos presentes que os bens imóveis colocados à venda e que constituíam o denominado “I…”, seriam vendidos livres de pessoas e bens, ónus e encargos, sendo despejo dos arrendatários existentes da responsabilidade da administradora da massa insolvente (vd. Depoimento da testemunha H…);
7. A Ré não esteve presente nem se fez representar no referido leilão, desconhecendo em absoluto as condições gerais de venda acima referidas;
8. O valor mínimo de licitação dos bens imóveis era de 750.000 € (setecentos e cinquenta mil euros), que não foi atingido, sendo a única proposta apresentada pela empresa G…, Lda, representada pelo sócio-gerente H…, no valor de 600.000 € (seiscentos mil euros);
9. A comissão de credores da massa insolvente não aceitou a proposta que lhe foi remetida pela administradora da massa insolvente, comunicando esta tal facto à Autora e mandatária B…;
10. Esta contactou o sócio-gerente da sociedade proponente G…, H…, no sentido de contactar potenciais interessados nos referidos bens imóveis mas por um valor superior ao por si proposto;
11. O H… contactou vários potenciais interessados, entre os quais a Ré;
12. A esta referiu que os bens imóveis que compunham o “I…” estavam para venda desde que aparecesse uma proposta de valor superior a 600.000 € (seiscentos mil euros), sendo pago um sinal de vinte por cento do valor proposto e que os imóveis estariam livres de pessoas e bens, ónus e encargos no ato da escritura pública, sendo a responsabilidade pelo despejo dos arrendatários da responsabilidade da administradora da massa insolvente;
13. Tendo em consideração o exposto, a Ré apresentou à administradora de insolvência uma proposta de compra no valor de 650.000 € (seiscentos e cinquenta mil euros), que foi por esta apresentada à Comissão de Credores da massa insolvente e que a aceitou;
14. A Ré após ter conhecimento da aceitação da proposta teve uma única reunião com o H… a quem transmitiu tal facto, não tendo aqui sido discutido nem poderia ser, porque não era da competência de ambos, a data da marcação da escritura;
15. Como reconhece H… no seu depoimento transcrito, nunca pediu nenhuma comissão sobre este negócio aos C…, aqui Ré, já que a mesma lhe seria paga pela Autora;
16. A Administradora de Insolvência enviou à Ré a minuta de contrato-promessa de compra e venda, para sua análise e sugestão de alterações, constando expressamente do mesmo a obrigatoriedade da entrega dos bens imóveis pela administradora da insolvência livres de pessoas e bens, ónus e encargos;
17. Acordada a redação, foi o contrato-promessa assinado pela Ré no dia 1 de Agosto de 2011, sendo o mesmo entregue bem como o cheque no valor de 130.000 € (cento e trinta mil euros), a título de sinal, a colaboradoras da Autora que se deslocaram às instalações da Ré a mando da administradora da insolvência;
18. A Autora emitiu uma declaração comprovativa de que naquela data tinha levantado o referido cheque da Ré, a título de sinal e princípio de pagamento;
19. A Administradora de Insolvência marcou e comunicou à Ré a data da realização da escritura de compra e venda para o dia 31 de Outubro de 2011, pelas 14 horas, na Anadia;
20.Tendo ali comparecido naquele dia e hora os legais representantes da Ré, a escritura de compra e venda não se realizou porque a administradora de insolvência não tinha conseguido até àquela data proceder ao despejo dos arrendatários dos bens imóveis, em clara violação do pressuposto inicial da aquisição e em incumprimento contratual com a Ré;
21. A Ré aceitou conceder à Administradora de Insolvência uma prorrogação por 90 dias do prazo para a outorga da escritura, tendo-se efetuado o respetivo aditamento ao contrato-promessa, junto aos autos;
22. Em 31 de Janeiro de 2012, a Administradora de Insolvência não tinha conseguido nem sequer intentado a ação de despejo de um dos arrendatários, tendo o outro já abandonado os imóveis;
23. Para evitar a não realização do negócio, com as consequências para a massa insolvente de devolução do sinal prestado pela Ré, aceitaram esta e a administradora da Insolvência, em incluir uma cláusula na escritura de compra e venda junta aos autos, que o incumprimento verificado era da responsabilidade do arrendatário que não abandonava os imóveis;
24. Para surpresa da Ré, passados alguns dias da escritura, recebe da Autora uma fatura referente a serviços prestados no valor de 39.975 € (trinta e nove mil novecentos e setenta e cinco euros), junta aos autos, que de imediato lhe devolveu;
25. Resulta de todo o exposto, que nunca foi apresentada pela Autora à Ré qualquer proposta, orçamento ou contrato de prestação de serviços para a aquisição dos bens imóveis em causa;
26. A Autora/Mandatária intervém neste processo, única e exclusivamente porque para tal foi contratada pela Mandante, a Administradora da massa insolvente, mediante uma remuneração que a Ré desconhece e não é obrigada a conhecer, no âmbito de um contrato de mandato, oneroso, entre aquelas estabelecido;
27. É o próprio interlocutor da Autora/Mandatária, a testemunha H… quem, repete-se, no seu depoimento transcrito nas presentes alegações, que nunca pediu qualquer comissão à ré,
28. JÁ QUE ESTA LHE SERIA PAGA PELA AUTORA/MANDATÁRIA, B…,
29. PELO QUE, UMA VEZ MAIS, PELO EXPOSTO, NÃO PODE A RÉ SER CONDENADA POR TAL FACTO QUANTO À CONDENAÇÃO EM LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ:
30. Não existe qualquer motivo para condenar a Ré/Recorrente como litigante de má-fé.
31. O Tribunal “a quo” não declarou nem fundamentou na sentença se o comportamento da Recorrente, para além de ilícito é doloso ou gravemente negligente, e só assim ser-lhe-ia permitida a prolação da condenação, já que se houvesse apenas uma mera culpa ou negligência inconsciente tal não constituiria fundamento de condenação por litigância de má-fé.
32. Só o comportamento doloso releva para efeitos de condenação por litigante de má fé.
33. A sentença está por isso ferida de nulidade nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea b) do CPC.
34. Embora o Tribunal deva indicar quem tem razão, não deverá fazê-lo em termos que transmitam a ideia de que uns são os bons e outros os maus, uns contam a verdade, outros alteram a verdade, ideia esta que é transmitida na sentença recorrida com a condenação da Recorrente como litigante de má fé.
35. A versão dos factos que foi apresentada pela Recorrente não era destituída de fundamento, existia era uma visão do problema diferente da Autora, que foi julgada improcedente, sendo certo que a consequência disso só podia ser a de perder a acção.
36. O facto da Recorrente, segundo a fundamentação do Tribunal a quo, não ter conseguido fazer prova da sua versão dos factos não o pode condenar, sem mais, como litigante de má fé.
37. A Recorrente agiu sempre com verdade e probidade, não formulou pedidos ilegais, não articulou factos contrários à verdade, nem requereu diligências dilatórias, com vista a entorpecer a justiça.
38. Só a violação deste dever de verdade e probidade constitui litigância de má fé.
39. A Recorrente ao contestar a ação interposta pela Autora não atuou com má fé no processo, nem fez dele uma “utilização maliciosa e abusiva”.
40. Assim, a aqui Recorrente ao ter narrado a sua versão dos factos mais não fez do que exercer um direito que lhe assistia, pois utilizou o processo próprio, não esquecendo que a igualdade das partes é um princípio processual com expressão no artigo 4º do CPC, devendo ser assumida como uma concretização do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.
41. Ora, para que ocorra condenação como litigante de má fé necessária uma actuação com intenção, com consciência de deduzir uma pretensão absurda ou infundada, cuja falta de fundamento não se ignora ou não se deva ignorar; o que in casu não sucedeu.
42. O julgador deve ter uma atitude prudente e cuidadosa, só deve proferir decisão condenatória por litigância de má fé no caso de se estar perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte.
43. O Tribunal a quo considerou, erradamente, com o devido respeito, encontrarem-se preenchidas as alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 542º do CPC.
44. Para que possa ocorrer condenação como litigante de má fé, é crucial que os factos apurados permitam a conclusão de que aquele que é condenado como tal, teve pessoalmente na causa, uma conduta reprovável, enquadrável normativamente na disposição do artigo 542º do C.P.C.
45. Dos factos dados como provados, não resulta qualquer actuação pessoal na causa por parte do recorrente e que se traduza numa sua atuação censurável.
46. Para além de que, é sempre preciso salvaguardar, que pode ser verdadeiro, um facto julgado não provado.
47. Não colhe, pelas razões expostas, a fundamentação do Tribunal a quo para condenar a Recorrente como litigante de má fé.
48. O exercício do direito da Recorrente era sincero, pois sempre esteve convencida da justiça da sua pretensão.
49. A multa por litigância de má-fé via garantir a lisura das partes intervenientes, sendo unânime a nossa jurisprudência em assentar que não existe litigância de má fé sempre que as partes, entre outros fundamentos, agirem: na defesa concreta da sua posição jurídico processual, contanto que não se altere a verdade ou não se faça do processo uso manifestamente reprovável; na invocação inadequada de uma norma jurídica; na má interpretação das regras de direito; na defesa de determinada posição alicerçada em documentos juntos aos autos, a que se deu uma significado diferente e coincidente com aquele que lhes foi dado pelo tribunal; quando não logre provar os factos provados…
50. No caso sub Júdice a Recorrente limitou-se a pretender defender a sua versão dos factos e narrando-a, e fê-lo com toda a transparência, juntando aos autos todos os elementos que para ela o podiam demonstrar, alegando o modus operandi do negócio.
51. Face ao exposto, deve a sentença recorrida, e no que toca, por ora, à condenação da Recorrente como litigante de má fé e no pagamento de indemnização à Autora/Recorrida ser revogada, com a consequente absolvição da Recorrente quanto à condenação como litigante de má fé.
52. Sem prescindir, no caso de esse Tribunal Superior não atender às razões supra alegadas pela Recorrente, importa ainda ponderar sobre o valor da multa de 5 UC´s que sempre se dirá que, em qualquer caso, é manifestamente excessivo e, como tal, indevido.
53. A fixação do montante da multa por litigância de má fé depende do prudente arbítrio do julgador, entre os limites estabelecidos no RCP tendo em consideração a maior ou menor intensidade do dolo com que tenha agido a parte, entendido este como a consciência da sua falta de razão e da gravidade das consequências prováveis da sua conduta.
54. O montante de 5 UC´s, atendendo aos argumentos explanados nas alíneas anteriores e aos factos considerados provados nos autos, não pode deixar de se considerar manifestamente elevado e desproporcional à intensidade do dolo (o que só por mera hipótese se coloca).
55. Também se atendermos à projeção das consequências danosas da “alegada” actuação da Recorrente podemos concluir, salvo melhor opinião, que essa multa é manifestamente elevada.
56. Ao que acresce que a multa por litigância de má fé tem um valor pedagógico, resultante da necessidade de desincentivar à prática de actos pouco consentâneos com a ilicitude, pelo que o valor fixado em 5UC´s ultrapassa o seu valor simbólico e por isso torna-se numa sanção, unilateralmente fixada sem oportunidade de contraditório.
A recorrente termina pedindo:
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE V. EXAS. MUI DOUTAMENTE SUFREGARÃO, DEVE EM CONFORMIDADE COM AS RAZÕES EXPOSTAS CONCEDER-SE PROVIMENTO À APELAÇÃO, JULGANDO-SE PROVADO E PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA SER REVOGADA A SENTENÇA PROFERIDA PELO TRIBUNAL A QUO POR OUTRA QUE DETERMINE A IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO E A ABSOLVIÇÃO DA RÉ.”
A recorrida contra-alegou pugnando pelo indeferimento da requerida atribuição de efeito suspensivo ao recurso, por falta de alegação de factos integradores do perigo que justifica a fixação de tal efeito, alegou que a não se entender assim, sempre a caução a prestar deverá abarcar tanto a condenação já líquida, como a ilíquida, pugnou por que a recorrente fosse convidada a esclarecer e sintetizar as suas conclusões, sob pena de não se conhecer do recurso e, a não se entender assim, apesar do prejuízo que daí deriva para o exercício do seu direito de defesa, sustentou a total improcedência da impugnação da decisão da matéria de facto, tal como das arguições de nulidade da sentença recorrida e bem assim da invocada inexistência de litigância de má fé.
O tribunal a quo indeferiu o efeito suspensivo requerido pela recorrente, sendo o recurso admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e no efeito meramente devolutivo, não se tendo procedido à liquidação da indemnização por litigância de má fé.
Proferiu-se despacho convidando a recorrente a aperfeiçoar as suas conclusões das alegações em sede de impugnação da decisão da matéria de facto e ainda para sintetizar as conclusões oferecidas, tudo sob pena de não conhecimento do objecto do recurso, ouvindo-se ainda as partes sobre a eventual atribuição de efeito suspensivo ao recurso no segmento relativo à litigância de má fé.
A recorrida pronunciou-se pela inverificação das condições legais para atribuição de efeito suspensivo ao recurso no segmento relativo à litigância de má fé, informando que no dia 12 de Fevereiro de 2014 a recorrente entregou à recorrida o cheque nº ………., no montante de € 46.303,09, relativo ao capital em dívida e juros vencidos até aquela data, entendendo a recorrida aguardar pelo trânsito em julgado do acórdão a proferir nestes autos para reclamar da recorrente a condenação em sanção pecuniária compulsória, a condenação em multa por litigância de má fé[2], a condenação no pagamento de indemnização em consequência das despesas acrescidas suportadas em consequência da litigância de má fé, que deverão ser alegadas no prazo de dez dias após o trânsito.
A recorrente veio oferecer novas conclusões do recurso que interpôs e informou não possuir qualquer registo da devolução à recorrida da factura ou cópia da factura nº 12, de 30 de Janeiro de 2012.
A recorrida, em resposta ao convite que lhe foi endereçado por este tribunal, veio oferecer a factura emitida a 01 de Agosto de 2011 e anulada, a factura emitida a 30 de Janeiro de 2012, cópias das cartas de interpelação da ré para pagamento da factura de 30 de Janeiro de 2012 e respectivos registos postais, datadas de 24 de Abril de 2012 e 09 de Julho de 2012 e ainda cópia de carta endereçada à recorrente e datada de 23 de Julho de 2012.
Observado o contraditório, foram admitidas as novas conclusões do recurso de apelação interposto por C…, Lda., admitiram-se parte dos documentos oferecidos pela recorrida, notificou-se a recorrente para, querendo, se pronunciar sobre a existência de obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso em consequência do pagamento efectuado na pendência do recurso, sendo ambas as partes convidadas a, querendo, se pronunciarem sobre a legalidade da condenação de sociedade comercial como litigante de má fé no domínio de vigência do anterior Código de Processo Civil.
Decidiu-se que o recurso apenas prosseguia para conhecimento da questão da litigância de má fé e alterou-se o efeito do recurso.
Com a concordância dos Excelentíssimos Juízes-adjuntos dispensaram-se os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre agora apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações[3] (artigos 635º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos[4]), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da Litigância de má fé da recorrente.
3.1 Fundamentos de facto[5] exarados na sentença sob censura e que se mantêm pelos fundamentos que precedem, não se divisando qualquer razão para a sua reapreciação oficiosa
3.1
No dia 01 de Agosto de 2011 foi celebrado acordo escrito denominado “contrato-promessa” entre a Ré e a administradora da insolvência da massa insolvente de E…, SA (alínea A dos factos assentes).
3.2
Nessa mesma data foi entregue à Autora o cheque nº ………., no montante de 130.000,00 euros, emitido a favor da massa insolvente de E…, SA, correspondente a 20% do preço acordado em A) (alínea B dos factos assentes).
3.3
A Autora emitiu uma declaração, com a mesma data, na qual atesta que recebeu da Ré o cheque e que fica responsável pela entrega do acordo escrito assinado pela administradora da insolvência e recibo de quitação do valor entregue (alínea C dos factos assentes).
3.4
No dia 30 de Janeiro de 2012, na Conservatória do Registo Predial de Anadia, foi celebrada escritura pública de compra e venda dos bens imóveis nos termos da qual a Massa Insolvente de E…, S.A. na qualidade de vendedora, declarou vender a “C…, Lda., pelo preço global de seiscentos e cinquenta mil euros, os imóveis inscritos nas matrizes urbanas sob os artigos 1660 e 1506 e rústica sob o artigo 414 e descritos, respectivamente, sob os nºs 1601, 1602 e 2051, na Conservatória do Registo Predial de Paredes, freguesia … (alínea D dos factos assentes).
3.5
Autora tem por fim a organização e realização de leilões, quer no âmbito judicial, quer no âmbito extrajudicial, bem como a avaliação de bens (resposta ao ponto 1º da base instrutória).
3.6
No dia 29 de Março de 2011 a Autora, nomeada nos autos para proceder à venda em estabelecimento de leilão público, realizou, na D…, um leilão público (resposta ao ponto 2º da base instrutória).
3.7
Esse leilão destinou-se à venda dos bens apreendidos a favor da massa insolvente da sociedade E…, SA, ao abrigo do processo de insolvência que correu no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Paredes, sob o nº 2710/09.8TBPRD (resposta ao ponto 3º da base instrutória).
3.8
A Autora, com vista à obtenção do melhor resultado possível, divulgou os bens em causa através de envio de cartas a habituais e potenciais clientes (resposta ao ponto 4º da base instrutória).
3.9
Bem como publicitou o leilão na internet, em www.B....pt (resposta ao ponto 5º da base instrutória).
3.10
A Autora publicitou o leilão no F… dos dias 05, 12, 19 e 26 de Março de 2011 (resposta ao ponto 6º da base instrutória).
3.11
A Autora publicitou o leilão por contactos telefónicos e e-mail marketing enviado a um número não concretamente apurado de potenciais clientes, enviando a documentação respeitante aos imóveis a quem o solicitou (resposta ao ponto 7º da base instrutória).
3.12
Mostrou-os e acompanhou a visita (resposta ao ponto 8º da base instrutória).
3.13
No dia da realização do leilão, as condições gerais de venda foram lidas a todos os presentes (resposta ao ponto 9º da base instrutória).
3.14
Foi lido e explicado que, pelos serviços prestados pela Autora, ao valor da venda acresce 5% no caso de imóveis e IVA respectivo (resposta ao ponto 10º da base instrutória).
3.15
E que o arrematante e promitente-comprador pagará, com a arrematação e assinatura do contrato de compra e venda, 10% do valor proposto, a título de sinal e princípio de pagamento, bem como o valor correspondente pelos serviços prestados pela leiloeira (resposta ao ponto 11º da base instrutória).
3.16
O leilão em causa teve um único lote, composto por três bens imóveis: a) terreno de cultura com 20 videiras, situado em …, inscrito na matriz sob o art. 414 da freguesia …; b) parcela de terreno destinada a complexo desportivo motorizado, sito no …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº 1601/2000921 - … e inscrito na matriz sob o art. 1660º; c) complexo desportivo constituído por pista …, bar, instalações sanitárias, descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes sob o nº 1602/2000921 … e inscrito na matriz sob o art. 1506º, da mesma freguesia … (resposta ao ponto 12º da base instrutória).
3.17
Não havendo nenhum interessado em apresentar propostas pelo valor base pelo qual o lote identificado em P) [ponto 3.2.16 destes fundamentos de facto] foi colocado em leilão, foi obtida uma proposta de 600.000,00 euros, que veio a não ser aceite pela comissão de credores, tendo a Autora continuado as diligências, enquanto encarregada da venda, no sentido de obter melhor proposta (resposta ao ponto 13º da base instrutória).
3.18
Efectuou vários contactos com clientes habituais, bem como [com] aqueles que estiveram presentes no leilão, com vista a obter valor mais elevado (resposta ao ponto 14º da base instrutória).
3.19
Através do sócio-gerente da empresa G…, Lda., que apresentou a proposta pelos 600.000,00 euros, a Ré veio a contactar a Autora, que na sequência desse contacto, deu conhecimento à Ré dos imóveis para licitação e negociação (resposta ao ponto 15º da base instrutória).
3.20
Autora e Ré iniciaram negociações com vista à aquisição, por parte da Ré, dos imóveis (resposta ao ponto 17º da base instrutória).
3.21
A Autora realizou uma reunião com a Ré, estabelecendo os vários termos do negócio, nomeadamente pagamento do preço, data da escritura e o valor dos honorários a pagar à Autora (resposta ao ponto 18º da base instrutória).
3.22
Nessa reunião, explicado pela Autora à Ré que seria esta a suportar o valor dos serviços prestados pela Autora, a Ré expressamente concordou com o pagamento desses honorários, no montante de 5% do valor do preço acordado para a compra pela Ré do autódromo, caso essa transmissão não pagasse IMT, e no valor de 3% caso pagasse IMT (resposta ao ponto 19º da base instrutória).
3.23
Aceite a proposta da Ré de 650.000,00 euros pela administradora de insolvência, a Ré foi informada de tal facto, tendo a Autora no dia da celebração da escritura referida em D), apresentado à Ré a factura de fls. 33, que não a aceitou receber, dizendo “depois trata-se disso” (resposta aos pontos 22º e 23º da base instrutória).
3.24
A Autora pagou à Autoridade Tributária a quantia de 7.475,00 euros de IVA referente à dita factura, que incorporou na sua contabilidade (resposta ao ponto 24º da base instrutória).
3.25
A Ré não procedeu ao pagamento da referida factura (resposta ao ponto 28º da base instrutória).
4. Fundamentos de direito
4.1 Da Litigância de má fé da recorrente
A recorrente pugna pela revogação da sua condenação como litigante de má fé pelas seguintes razões:
- a simples circunstância da versão da recorrente ter sido julgado improcedente não basta para firmar uma condenação como litigante de má fé;
- não resulta da factualidade provada matéria de facto que permita a imputação de uma conduta dolosa ou gravemente negligente integradora de litigância de má fé;
- em todo o caso o montante da multa aplicada é excessivo, atenta a intensidade do dolo, que só por mera hipótese se admite e às consequências prováveis da sua conduta, traduzindo-se, pelo seu montante, numa sanção, ultrapassando o valor simbólico e o valor pedagógico que lhe deve estar inerente.
Cumpre apreciar e decidir.
Antes de mais, importa determinar se o regime da litigância de má fé constante do Código de Processo Civil que vigora presentemente é aplicável a condutas praticadas na vigência do anterior diploma processual civil.
Não obstante a aplicação imediata em regra do novo Código de Processo Civil, na nossa perspectiva, isso não significa que seja aplicável a condutas ocorridas em data anterior à sua vigência.
Importa distinguir aplicação imediata e aplicação retroactiva, ou seja, aplicação a factos ocorridos sob o império da nova lei e aplicação a factos praticados antes da vigência da nova lei de aplicação imediata[6].
Ora, o instituto da litigância de má fé tem em certa medida uma natureza bifronte porquanto tem uma vertente sancionatória, disciplinadora da conduta das partes e dos seus patronos e uma vertente ressarcitória geradora da obrigação de indemnizar com base na prática de facto ilícito.
Em qualquer das vertentes por que se considere o instituto da litigância de má fé, afigura-se-nos que a lei aplicável será a que vigorava na data da prática dos factos e não aquela que exista à data da prolação da decisão e ainda que a lei nova seja eventualmente mais favorável[7].
“Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão” (artigo 456º, nº 2, do Código de Processo Civil).
O instituto da litigância de má fé visa que a conduta dos litigantes se afira por padrões de probidade, verdade, cooperação e lealdade.
A concretização das situações de litigância de má fé exige alguma flexibilidade por parte do intérprete, o qual deverá estar atento a que está em causa o exercício do direito fundamental de acesso ao direito (artigo 20º da Constituição da República Portuguesa), não podendo aquele instituto traduzir-se numa restrição injustificada e desproporcionada daquele direito fundamental.
Importa não olvidar a natureza polémica e argumentativa do direito, o carácter aberto, incompleto e autopoiético do sistema jurídico, a omnipresente ambiguidade dos textos legais e contratuais e as contingências probatórias quer na vertente da sua produção, quer na vertente da própria valoração da prova produzida.
Na verdade, com o passar dos tempos, tem-se verificado, com alguma frequência, que teses jurídicas inicialmente peregrinas vieram a tornar-se teses dominantes.
Assim, à semelhança da liberdade de expressão numa sociedade democrática, o direito fundamental de acesso ao direito só deve ser penalizado no seu exercício quando de forma segura se puder concluir que o seu exercício é desconforme com a sua teleologia subjacente, traduzindo-se na violação dos deveres de probidade, verdade e cooperação e numa utilização meramente chicaneira dos meios processuais, com o objectivo de entorpecer a realização da justiça.
Por isso, o tipo subjectivo da litigância de má fé apenas se preenche em caso de dolo ou culpa grave.
No caso dos autos, no essencial, entendeu-se que a recorrente litigou de má fé com base nas seguintes considerações factuais:
Já quanto à Ré, verifica-se que esta ao impugnar a matéria que vinha alegada pela Autora em sede de petição inicial, designadamente, reputando de falsa a matéria que vem alegada pela última nos pontos 18, 19º e 20º da petição inicial, nomeadamente que tivesse acordado com a Autora pagar-lhe a quantia que por ela vem peticionada nos autos, quando se veio a apurar que entre Autora e Ré realizou-se, efetivamente, uma reunião, em que foram estabelecidos os vários termos do negócio de compra pela última do autódromo, nomeadamente, condições do pagamento do preço daquela compra, data da celebração da escritura de compra e venda e o valor dos honorários a pagar pela Ré à Autora, tendo, nessa reunião, a Autora explicado à Ré que seria esta a suportar o valor dos serviços prestados pela primeira, no que a Ré concordou expressamente com o pagamento desses honorários, no montante de 5% do valor do preço acordado para a compra pela Ré do autódromo, caso essa transmissão não pagasse IMT, e no valor de 3% caso pagasse aquele imposto, forçoso é concluir que a Ré alterou a verdade dos factos efetivamente ocorridos e deduziu oposição à pretensão da Autora cuja falta de fundamento não podia ignorar, até porque se está perante factos pessoais da mesma – acordo em que a própria Ré interveio e em que acordou com a Autora.
O que se acaba de referir evidencia que a Ré faltou, de forma grave, à verdade dos factos e deduziu oposição à pretensão da Autora cuja falta de fundamento não ignorava, sequer podia ignorar, o que tudo, nos termos do disposto no art. 456º, n.º 2, als. a) e b) do Cód. Proc. Civil, na redação vigente à data da propositura da presente ação (art. 542º, n. 2, als. a) e b) na sua atual redação) consubstancia litigância de má-fé.
Não podemos deixar de subscrever, em geral, as considerações que antecedem. De facto, a recorrente, devidamente representada, tomou parte em negociações em que foram acordados termos contratuais de todo incompatíveis com a defesa que deduziu na presente lide, factualidade que veio a admitir, na pendência do recurso, procedendo ao pagamento do preço dos serviços accionado pela recorrente, bem como dos juros de mora, tal como foi determinado na decisão sob censura.
Num tal circunstancialismo, a recorrente, por intermédio dos seus representantes, não podia deixar de saber ou devia pelo menos saber que a defesa que deduziu nos seus articulados, não correspondia à verdade dos factos. Se acaso não houve a percepção de que a oposição não correspondia à verdade e pelo contrário era falsa, tal só se pode ter ficado a dever a uma desorganização da própria sociedade recorrente e dos seus representantes que não terá permitido à recorrente a percepção das realidades negociais em que por intermédio dos seus representantes esteve envolvida. Por isso, na pior das hipóteses, sempre haverá uma conduta descuidada, devendo esse descuido qualificar-se de grave[8], na medida em que só um representante anormalmente descuidado não cuidaria de transmitir à sociedade representada os termos do negócio celebrado e as obrigações assumidas com outra sociedade, levando a que esta, por desconhecimento, negasse a celebração de um negócio efectivamente concluído.
No entanto, atendendo à oficiosidade do conhecimento da litigância de má fé, este tribunal de recurso não está vinculado à exclusiva apreciação das concretas questões aduzidas para fundamentar a revogação da condenação a tal título, bem podendo relevar outras, ainda que não invocadas, seja em sentido favorável ao recorrente, seja em sentido desfavorável.
Neste ambiente normativo, tendo em conta o que se sustentou em sede de aplicação no tempo das regras relativas ao instituto da litigância de má fé, importa conhecer da possibilidade de uma sociedade poder ser directamente responsabilizada, como litigante de má fé, por condutas ocorridas em data anterior à vigência do Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho.
Nos termos do disposto no artigo 458º do Código de Processo Civil “Quando a parte for um incapaz, um pessoa colectiva ou uma sociedade, a responsabilidade das custas, da multa e da indemnização recai sobre o seu representante que esteja de má fé na causa.
A previsão legal que se acaba de reproduzir determina que sempre que nos casos de litigância de má fé a parte seja um incapaz, uma pessoa colectiva ou uma sociedade, a responsabilidade pelas custas, multa e indemnização recai sobre o representante que esteja de má fé na causa[9].
No normativo em análise, não se prevê um mero direito de regresso do incapaz, da pessoa colectiva ou da sociedade relativamente ao seu representante que esteja de má fé na causa, por forma a fazer repercutir na esfera jurídica deste os montantes que tenham sido impostos àquelas entidades a título de multa e indemnização por litigância de má fé, como sucede, por exemplo, no artigo 500º, nº 3, do Código Civil. Também não se prevê uma responsabilidade alternativa, no sentido de responder o representante de qualquer destas entidades que esteja de má fé na causa ou, quando se não apure a existência de representante de má fé na causa, a responsabilidade do incapaz, da pessoa colectiva ou da sociedade. Antes se determina, salvo melhor opinião, que nestes casos o sujeito passivo da responsabilidade por litigância de má fé nunca é a parte que seja incapaz, pessoa colectiva ou sociedade, mas o seu representante que esteja de má fé na causa[10].
Assim, afigura-se-nos que mesmo nos casos em que se não logre a identificação do representante responsável pela litigância de má fé, nunca a sociedade poderá ser responsabilizada pela litigância de má fé eventualmente comprovada.
Ainda que a previsão legal em apreço possa ser criticável face a uma recente expansão da possibilidade de responsabilização criminal das pessoas colectivas (aludimos à revisão do Código Penal operada em 2007) e ao facto das eventuais vantagens da litigância de má fé se projectarem directamente na esfera jurídica da sociedade e apenas mediatamente na esfera jurídica dos sócios e accionistas, afigura-se-nos que apenas com uma derrogação ou integração da mesma metodologicamente infundada, se poderá sustentar a responsabilidade subsidiária da sociedade, afigurando-se-nos que a equacionação de uma responsabilidade cumulativa da sociedade e do representante que deu causa à lide de má fé, na vigência do artigo 458º do anterior Código de Processo Civil, era claramente contra legem.
No caso dos autos, a recorrente é uma sociedade comercial e a procuração forense junta aos autos foi outorgada por J… e K…, na qualidade de gerentes da ora recorrente (veja-se folhas 59).
Assim, face ao normativo que se reproduziu, é manifesto que a sociedade recorrente não é sujeito passivo da responsabilidade emergente da litigância de má fé. Essa responsabilidade recai sobre o ou os representantes da recorrente que estejam de má fé na causa.
Porém, tal responsabilidade só poderá ser efectivada após ser facultado o exercício do contraditório aos aludidos gerentes da recorrente (artigo 3º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Pelo que antecede, conclui-se que, no que respeita esta questão, com base no disposto no artigo 458º do Código de Processo Civil, o recurso procede.
A questão que ora se coloca é a de saber se deve verificar-se nesta sede a mera procedência do recurso de apelação, neste segmento, pelos fundamentos que precedem, deixando-se impune uma situação de litigância de má fé ou se, ao invés, devem os autos baixar à 1ª instância a fim de se facultar o exercício do contraditório aos representantes da recorrente, ao que tudo indica responsáveis pelas instruções transmitidas ao seu mandatário judicial para adoptar a posição seguida nestes autos.
Na nossa perspectiva, o segundo procedimento enunciado é o correcto, devendo na primeira instância notificar-se os gerentes da recorrente subscritores da procuração forense junta aos autos para, querendo, se pronunciarem sobre a existência de litigância de má fé, após o que se conhecerá, na primeira instância, de novo, da existência de litigância de má fé e consequências respectivas, caso se verifique na pessoa de um ou de ambos os aludidos gerentes da recorrente. De facto, só com este procedimento se poderá tentar efectivar a responsabilidade pela litigância de má fé comprovada nos autos, não se compreendendo que verificada tal actuação, o tribunal se desinteresse pela efectivação da responsabilidade em causa, de acordo com as regras legais aplicáveis.
Assim, verificada a ilegalidade da condenação da recorrente como litigante de má fé, por violação do disposto no artigo 458º do Código de Processo Civil, deve essa decisão ser revogada e substituída por outra que determine a notificação dos legais representantes da recorrente, a fim dos mesmos se pronunciarem sobre a litigância de má fé pelos indicados fundamentos, após o que se conhecerá, na primeira instância, de novo, da existência de litigância de má fé e consequências respectivas, caso se verifique na pessoa de um ou de ambos os aludidos gerentes da recorrente.
5. Dispositivo
Pelo exposto, em audiência, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar procedente o recurso de apelação interposto por C…, Lda. no segmento subsistente e, consequentemente, em revogar a sentença recorrida proferida a 17 de Outubro de 2013, na parte em que condenou a recorrente como litigante de má fé, em multa de cinco unidades de conta e indemnização a liquidar em despacho complementar da sentença a favor de B…, S.A. em consequência das despesas acrescidas tidas por esta última, incluindo com o pagamento de honorários acrescidos que teve de pagar ao seu ilustre mandatário por via da litigância de má fé da aqui recorrente, decisão que se substitui por outra que determina a notificação dos legais representantes da recorrente antes identificados, a fim de os mesmos, querendo, se pronunciarem sobre a litigância de má fé pelos fundamentos indicados nesta decisão, após o que se conhecerá, na primeira instância, de novo, da existência de litigância de má fé e consequências respectivas, caso se verifique na pessoa de um ou de ambos os aludidos gerentes da recorrente.
Custas a cargo da recorrida, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
***
O presente acórdão compõe-se de vinte páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 16 de Junho de 2014
Carlos Gil
Carlos Querido
Soares de Oliveira
_____________
[1] Segue-se, no essencial, o relatório da sentença proferida pelo tribunal a quo.
[2] Há nesta observação da recorrida algum equívoco ou alguma impropriedade de expressão porquanto é indubitável que credor da multa por litigância de má fé é o Estado e nunca a parte eventualmente afectada pela litigância de má fé da outra parte.
[3] Porque no aperfeiçoamento das conclusões das alegações a recorrente deixou de fazer qualquer referência à nulidade da sentença recorrida, este alegado vício, por não ser de conhecimento oficioso, deixou de fazer parte do objecto do recurso.
[4] Uma vez que a decisão recorrida foi proferida após 01 de Setembro de 2013, em processo instaurado após 01 de Janeiro de 2008, por força do disposto no artigo 7º, nº 1, da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, por maioria de razão, é aplicável o Código de Processo Civil, na redacção que presentemente vigora.
[5] Expurgados de referências meramente probatórias.
[6] Por isso, discorda-se do decidido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26 de Setembro de 2013, proferido no processo nº 4351/08.8TBVNG.P2, acessível no site do Tribunal da Relação do Porto, na DGSI.
[7] Sob este prisma, pode suscitar-se a questão de saber se a responsabilidade directa das pessoas colectivas e sociedades por litigância de má fé após 01 de Setembro de 2013 “apaga” a responsabilidade do representante que esteja de má fé por actos praticados antes de 01 de Setembro de 2013, numa como que “despenalização”. A nosso ver, não obstante o inegável carácter sancionatório do instituto da litigância de má fé (que porém não se reduz a esta faceta sancionatória, pois é também fonte de obrigação de indemnizar pela prática de facto ilícito), afigura-se-nos que a responsabilidade do referido representante se mantém, desde logo porque a sua conduta continua a ser legalmente qualificada como litigância de má fé, continua a ser ilícita e foi por si praticada pessoalmente, apenas tendo havido alteração do sujeito directamente responsável, não havendo assim qualquer situação equiparável a uma “descriminalização”. Acresce que a pessoa humana autora da conduta que determina a responsabilização da pessoa colectiva ou sociedade como litigante de má fé, sempre será responsável, em via de regresso, perante estas (artigo 500º, nº 3, do Código Civil).
[8] A negligência grave tanto pode ser consciente como inconsciente, referindo-se a qualificação de grave ao grau de intensidade de violação dos deveres que impendem sobre o agente.
[9] Veja-se a análise crítica desta previsão legal em A Litigância de Má fé, Paula Costa e Silva, Coimbra Editora 2008, páginas 593 a 596, números 569 a 571; na jurisprudência, em termos não totalmente coincidentes vejam-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 17 de Janeiro de 2006, relatado pelo Sr. Desembargador Cândido Lemos, que ainda admite a condenação da sociedade, depois de verificada a conduta censurável pelo seu representante e de facultado ao mesmo o exercício do contraditório e os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Março de 2009 e de 17 de Março de 2009, o primeiro relatado pela Sra. Desembargadora Maria João Romba e o segundo relatado pela Sra. Desembargadora Maria Rosário Barbosa, estes a decidirem no sentido propugnado nesta decisão, acórdãos todos acessíveis no site do ITIJ. Já no domínio da vigência do novo Código de Processo Civil, pronuncia-se criticamente sobre o novo regime António Menezes Cordeiro in Litigância de Má-fé Abuso do Direito de Ação e Culpa “In Agendo”, 3ª edição aumentada e atualizada à luz do Código de Processo Civil de 2013, Almedina 2014, páginas 69 e 70, sustentando que a revogação do artigo 458º do Código de Processo Civil e a sua substituição pelo actual artigo 544º que impede a condenação dos representantes da sociedade é objectivamente uma medida que retira eficácia ao instituto da litigância de má fé, porquanto entendia que a anterior previsão legal não obstava à condenação da sociedade e dos seus representantes.
[10] Veja-se de modo incisivo neste sentido, com plena actualidade, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, Coimbra Editora 1981, reimpressão da 3ª edição, José Alberto dos Reis, página 271; no mesmo sentido, A Responsabilidade Processual Civil, Almedina 1987, Fernando Luso Soares, página 288; em sentido diverso, quando não se logre a identificação do representante responsável pela litigância de má fé, sem indicar os fundamentos para tal solução, limitando-se a remeter para um acórdão do Tribunal da Relação do Porto que por lapso vem indicado como publicado no tomo II da Colectânea de Jurisprudência de 1995, quando foi efectivamente publicado no tomo I dessa publicação desse ano, veja-se Temas Judiciários, I Volume, Almedina 1998, António Santos Abrantes Geraldes, página 338.