Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5392/22.8T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: FALTA OU DEFICIÊNCIA DE GRAVAÇÃO DE PROVA
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO
PEDIDO IMPLÍCITO
Nº do Documento: RP202402085392/22.8T8MTS.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Recai actualmente sobre as partes o ónus de controlarem a existência e qualidade da gravação, fixando a lei prazo para ser arguida a sua falta ou deficiência. O Código de Processo Civil hoje em vigor fixou expressamente prazo para as partes arguirem o vício decorrente da falta ou deficiente gravação da prova, sendo esse prazo de 10 dias a contar da disponibilização do registo da gravação – que temporalmente poderá não corresponder ao levantamento pela parte do respectivo suporte -, devendo essa disponibilização ocorrer no prazo de dois dias contados de cada um dos actos sujeitos à gravação.
II - O vício em causa deve ser arguido em primeira instância, e no prazo peremptório agora legalmente estabelecido, sob pena de ocorrer, por decurso desse prazo, a sua sanação, deixando de ser admissível que a parte interessada na arguição o possa fazer no prazo de interposição do recurso – 30 ou 40 dias -, nas respectivas alegações.
III - A falta de conformidade do bem com o contrato, estando em causa venda que incida sobre bens de consumo, para além do direito à reposição da conformidade, através da reparação ou da substituição do bem, à redução proporcional do preço ou à resolução do contrato, confere ainda ao consumidor o direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos, sendo este direito autónomo em relação àqueles.
IV - Para o exercício dos direitos cobertos pela garantia, o comprador apenas terá de alegar e provar o mau funcionamento da coisa, durante o prazo da garantia, estando dispensado de alegar e provar a específica causa do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega. Ao vendedor, para se eximir da responsabilidade, incumbirá alegar e provar que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega a coisa vendida e imputável ao comprador, a terceiro ou devida a caso fortuito.
V - São de admitir os pedidos implícitos que se afigurem como pressupostos dos pedidos expressamente formulados ou se retirem, por dedução ou interpretação, da alegação formulada pela parte.
VI - Para além dos direitos reconhecidos pelo artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, tem o consumidor direito a ser indemnizado, nos termos gerais, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência da venda de bem defeituoso,
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 5392/22.8T8MTS.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto  

Juízo Local Cível de Matosinhos – Juiz 4

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO.

AA, solteiro, com o NIF ..., residente na Travessa ..., ..., Póvoa de Varzim, propôs acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB e A..., Lda, NIPC ..., com sede na Rua ..., Póvoa de Varzim e B... – Companhia de Seguros, SA, NIPC ..., com sede no Largo ..., Lisboa, pedindo que se condenem as rés pagar-lhe a importância de 21.500,00 euros, a título de indemnização pelos danos de natureza patrimonial e não patrimonial sofridos por si, acrescida dos juros de mora a contar da citação até integral e efectivo pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que no dia 29 de Maio de 2022, na autoestrada ..., ocorreu um acidente de viação, que consistiu num despiste do veículo ligeiro de passageiros, de matrícula AJ-..-LF, sua pertença e por si conduzido. Quando se encontrava em andamento, com o veículo a produzir barulhos, sem que nada o fizesse prever, uma parte do motor, mais concretamente uma biela, caiu no asfalto, tendo sido expelida através do carter do óleo, provocando o despiste.

O Autor descreveu ainda as circunstâncias da via e as condições climatéricas, referindo que foi submetido ao teste de alcoolemia, o qual não revelou indícios de ter consumido bebidas alcoólicas e também não revelou indícios de consumo de substância psicotrópicas.

Referiu que celebrou com a Ré seguradora um contrato de seguro, que incluía os danos próprios do veículo.

Por outro lado, afirmou haver adquirido o veículo quatro dias antes à 1ª Ré, no estado de semi-novo, pelo preço de 19.500,00 euros, encontrando-se com a inspeção técnica válida e com certificado de garantia, este válido até 23/11/2023.

De tal acidente, segundo o Autor, resultaram danos de natureza patrimonial e não patrimonial, tendo ambas as rés declinado a sua responsabilidade.

Contestou a Ré seguradora, impugnando quase integralmente a factualidade alegada na petição inicial, ou por desconhecimento ou por não corresponder à verdade, aceitando apenas a existência do seguro automóvel.

Mais impugnou a parte relativa aos danos alegadamente sofridos pelo Autor.

Também a Ré BB e A..., Lda. apresentou contestação, impugnando igualmente parte substancial dos factos alegados na petição inicial.

Afirmou que o acidente se ficou a dever a excesso de velocidade e imperícia do Autor e que o veículo lhe foi vendido em boas condições, cerca de 3 dias antes.

Não aceita os danos alegados, nomeadamente o trauma de conduzir, sustentando que o Autor tinha tido um acidente pouco tempo antes, não tendo tido nenhum problema em voltar a conduzir.

Defendeu ainda que o despiste se deveu à conduta do Autor, que levava a cabo uma condução perigosa, com velocidade excessiva, achando-se provavelmente sonolento, pisando as bandas sonoras, e não a uma conduta da Ré, a qual lhe vendeu um carro em boas condições.

Seguidamente, deduziu incidente de litigância de má fé contra o Autor, dizendo que a sua postura processual é parca de seriedade, actuando o mesmo em abuso de direito, na medida em que intentou esta acção bem sabendo que não existiu qualquer responsabilidade da Ré no acidente.

Defende que o Autor tem noção da falta de fundamento para a causa, deturpando os factos, pois bem sabe que antes do acidente não caiu nenhuma peça do veículo e que foi a sua condução imprudente que causou o despiste.

O Autor respondeu às duas contestações, impugnando os documentos juntos e contestando o pedido de litigância de má fé, pugnando pela sua improcedência.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, com identificação do objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

Procedeu-se a audiência final, e, concluída a mesma, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Com fundamento no atrás exposto, julgo parcialmente procedente a presente ação por parcialmente provada e, em consequência:

a) condeno a 1ª ré, BB e A..., Lda a pagar ao autor a quantia de 19.700,00 euros (dezanove mi l e setecentos euros), acrescida de juros de mora a contar desde a citação até efetivo e integral pagamento.

b) absolvo a 1ª ré BB e A..., Lda do restante pedido contra si formulado.

c) absolvo a 2ª ré B... – Companhia de Seguros, SA da totalidade do pedido formulado contra si.

d) absolvo o autor do pedido de condenação como litigante de má fé.

Custas

Custas por autor e pela 1ª ré, na proporção dos respetivos decaimentos, fixando-se em 40% para o autor e 60% para a ré BB e A..., Lda.

Notifique.

Registe”.

Não se resignando a Ré BB e A..., Lda, com tal sentença, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“1. Nos termos do art.º 155º do CPC, a audiência final de acções, incidentes e procedimentos cautelares é sempre gravada e, tal gravação, é disponibilizada às partes, para efeitos de recurso da matéria de facto.

2. A recorrida obteve o CD com a gravação da audiência final, a 13 de Junho de 2023, e após analisar a mesma percebeu que todos os depoimentos, declarações e actos praticados se encontram totalmente imperceptíveis.

3. O Tribunal a quo baseou a sua convicção e decisão, particularmente, no depoimento da testemunha CC, o qual foi caracterizado como “depoimento simples, objectivo e coerente, merecendo credibilidade”, contudo, o facto do depoimento ser totalmente imperceptível, consubstancia, nos termos do artigo 195.º n.º 1 CPC, uma nulidade processual.

4. Ora, “se no decorrer de uma audiência de julgamento, não tiver ficado gravado, no todo ou em parte, um depoimento ou se a sua gravação estiver, total ou parcialmente, imperceptível, existe uma nulidade processual, e essa influi no exame da causa quando, em sede de recurso, for impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto e esse depoimento for susceptível de poder ser considerado relevante para o julgamento dos factos colocados em crise põe em causa.”- Conforme o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido pelo juiz relator António Beça Pereira, a 06/12/2011, no processo nº 2696/09.9TBFIG.C1.

5. Em obediência, ao estabelecido n.º 2 do art,º 195.º, há que anular não só os actos afectados pela nulidade, como também "os termos subsequentes que deles dependam absolutamente", o mesmo é dizer que se deve anular o julgamento, para que, a testemunha CC volte a prestar (na totalidade) o seu depoimento, bem como a tramitação subsequente, nomeadamente a resposta dada à matéria de facto e a sentença que foi proferida.

6. O Tribunal a quo julgou totalmente procedente a acção intentada pelo recorrido, na qual peticiona a condenação da recorrente, no pagamento de uma quantia indemnizatória a título patrimonial e não patrimonial, fundada na responsabilidade civil contratual pelos danos emergentes de um acidente de viação.

7. A testemunha CC, que prestou depoimento na sessão de audiência de julgamento realizada no dia 24/04/2023 e que ficou gravado de modo imperceptível em suporte digital no sistema aplicativo "Habilus Media Studio", assim como em suporte físico (CD), com início pelas 10:29:00horas e términus pelas 10:50:07horas, com a duração de 21 minutos e 7 segundos, referiu que o problema da biela do motor só seria perceptível se o mesmo fosse desmontado, que não era possível constatar a sua existência com uma avaliação mecânica normal.

8. Aliás, o recorrido AA, que prestou declarações na sessão de audiência de julgamento realizada no dia 24/04/2023 e que ficou gravado de parcialmente imperceptível em suporte digital no sistema aplicativo "Habilus Media Studio", assim como em suporte físico (CD), com início pelas 09:49:04horas e términus pelas 10:24:59horas, com a duração de 25 minutos e 55 segundos, referiu que se despistou porque se assustou com um barulho, e não que teve o despiste por causa de uma avaria, que não tinha qualquer problema com o veiculo.

9. No nosso ordenamento jurídico, não existe obrigação a indemnizar pela responsabilidade contratual conferida pela garantia prestada nos termos da Lei do Consumidor.

10. Se o Tribunal a quo entende condenar o recorrente com base na Lei da Defesa do Consumidor (Decreto-lei nº 84/2021, de 18 de Outubro), então não há lugar a indemnização por danos patrimoniais, nem não patrimoniais.

11. A Lei da Defesa do Consumidor (Decreto-lei nº 84/2021, de 18 de Outubro), determina que, em caso de inconformidade do bem há lugar à: reparação ou substituição do bem, redução proporcional do preço ou resolução do contrato de compra e venda, conforme dispõe o art.º 15º do dito diploma.

12. O recorrido escolheu a substituição do veículo, considerando a carta endereçada a recorrente a 02/08/2022, ao que a recorrente recusou, nos termos do disposto no nº 3 do art.º 15º daquele diploma.

13. O recorrido não peticionou em juízo a substituição do bem, mas sim uma indemnização por danos, o que não se pode conceber, pois, ao consumidor, nos termos do art.º 15º do Decreto-lei nº 84/2021, de 18 de Outubro, aqui recorrido, restavam duas opções, pedir a redução do preço ou a resolução contratual.

14. A resolução contratual poria termo ao contrato de compra e venda, e aí o recorrido teria direito a reaver a quantia paga pelo veículo, mas teria de o  restituir à recorrente.

15. Nos termos do art.º 20º, nº 4 do Decreto-lei nº 84/2021, de 18 de Outubro, a resolução determina a obrigação do consumidor devolver os bens ao profissional, a expensas deste, e a obrigação do profissional reembolsar o consumidor do preço pago pelos bens após a sua recepção ou de prova do seu envio, apresentada pelo consumidor.

16. A recorrente nunca poderia ser condenada ao ressarcimento de danos patrimoniais ou não patrimoniais, só podia ser condenada ao reconhecimento da resolução do contrato de compra e venda e, consequentemente, à restituição ao recorrido do preço recebido, enquanto este teria de entregar o veículo adquirido, se o recorrido o tivesse peticionado. Mas não o fez.

17. O recorrido nem prova fez de que o veículo automóvel não existe ou que foi destruído.

18. O veículo tem arranjo conforme explicou o Perito CC e resulta do seu relatório de peritagem e orçamento junto com a Petição Inicial e tem como valor comercial de 5.000,00€, segundo a ré seguradora.

19. O Tribunal a quo decidiu erroneamente e contra todo a legislação da Defesa do Consumidor e dos contratos em geral que, a recorrente fica sem o veículo e sem o dinheiro pago pelo preço, enquanto, o recorrido fica com o veículo e com 19.700€!

20. A decisão recorrida tornou-se contraditória e sem fundamento legal, pela imperceptibilidade da prova gravada, nos termos do art.º 195º e seguintes e 615º, nº1, alínea c) do CPC, por outro lado, o Tribunal a quo ao decidir como fez violou o disposto no Decreto-lei nº 84/2021, de 18 de Outubro, nos seus art.º 15, 19 e 20, nos quais o próprio fundamenta a decisão.

Nestes termos e no mais de Direito aplicável, deve o presente Recurso de Apelação ser julgado procedente por provado e revogada a sentença em crise com todas as consequências legais, atendendo à nulidade arguida nos termos do art.º 195º e 615º, nº1, alínea c) do CPC e à violação do Decreto-Lei nº 84/2021, de 18 de Outubro”.

Com o requerimento da interposição de recurso a recorrente arguiu nulidade processual pelo facto de alguns dos depoimentos prestados em audiência se revelarem imperceptíveis na respectiva gravação, pedindo que se “declare a nulidade do julgamento, nos termos dos art.º 195º e seguintes do CPC, atendendo à imperceptibilidade da prova gravada”.

Foi proferido despacho que, considerando extemporânea a arguição da nulidade decorrente da imperceptibilidade da prova gravada, indeferiu a mesma, declarando sanado o vício em causa.

Os recorridos AA e B... – Companhia de Seguros, S.A. apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:

- a arguida nulidade processual decorrente da deficiência de gravação dos depoimentos prestados em audiência;

- se a sentença é nula;

- se é admissível o direito de indemnização reconhecido ao Autor na sentença recorrida.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:

1. No dia 29 de Maio de 2022, pelas 05h00m da manhã, na Autoestrada ..., KM 11,490, no sentido da marcha sul/norte, na União das Freguesias ..., ... e ..., concelho de Matosinhos, distrito do Porto, ocorreu um despiste, conforme participação de acidente de viação nº ... junta com a petição inicial como doc.1.

2. Foi interveniente nesse despiste apenas o veículo ligeiro de passageiros da marca Volkswagen, modelo ..., com a matrícula AJ-..-LF, conduzido pelo autor AA e sua pertença.

3. No dia, hora e local referidos em 1, o autor ouviu o carro a produzir barulhos, enquanto se encontrava em andamento e, de repente, uma parte do motor caiu no asfalto, mais concretamente uma biela do motor foi expelida para a componente de fora do motor, através do cárter do óleo.

4. O autor travou a fundo e perdeu a direção do veículo.

5. O trânsito na autoestrada processa-se num único sentido.

6. O piso, no local, encontrava-se seco e limpo.

7. No dia e hora referidos o autor circulava na autoestrada com destino a casa.

8. O autor, na sequência do lavrar do auto policial, foi submetido ao teste de álcool por ar aspirado em aparelho qualitativo o mesmo não apresentou indícios do consumo da referida substância.

9. Também não revelou indícios do consumo de substâncias psicotrópicas.

10. À data do sinistro, o veículo AJ-..-LF encontrava-se segurado na Ré B... – Companhia de Seguros, S.A., através da apólice nº ..., conforme contrato de seguro, junto na petição inicial como doc. 2 e junto com a contestação da ré seguradora como doc. 1.

11. A apólice de seguro encontrava-se válida, tendo sido subscrita em 23/05/2022 com validade até 16/06/2023, conforme certificado internacional de seguro automóvel, junto com a petição inicial como doc. 3.

12. O veículo automóvel em causa foi adquirido mediante o recurso a contrato de crédito, outorgado a 25/05/2022, em que o vendedor e intermediário de crédito foi a ré BB e A..., Lda, conforme contrato de crédito junto com a petição inicial como doc. 4.

13. A viatura foi entregue pela 1ª ré ao autor no dia 27 de Maio de 2022, pese embora constar da declaração de circulação o dia 25 de Maio de 2022, documento junto com a petição inicial como doc. 5.

14. A viatura foi comprada no estado de seminovo, pelo preço de €19.900,00 (dezanove mil e novecentos euros).

15. O veículo com a matrícula AJ-..-LF, encontra-se com a inspeção técnica válida, sendo necessária nova inspeção no dia 14/01/2023, conforme inspeção técnica periódica, junta na petição inicial como doc. 6.

16. O veículo apresenta o certificado de garantia com o nº ..., válida até 23/11/2023, conforme certificado de garantia junto com a petição inicial como doc. 7.

17. Face ao estado em que ficou o veículo, foi declarada a sua perda total, conforme relatório de peritagem junto com a petição inicial como doc. 8.

18. O relatório de peritagem foi realizado pelo perito CC no dia 18/06/2022 (doc. 8).

19. Pelo perito CC foi apresentado um orçamento no montante de €12.269,00 (doze mil duzentos e sessenta e nove euros), conforme orçamento nº ..., junto com a petição inicial como doc. 9.

20. Como consequência do despiste, o autor deixou de poder usar o veículo desde a data do mesmo.

21. O autor sentiu tristeza, sendo este episódio traumático.

22 O autor tem dificuldades para conduzir outros veículos, lembrando-se do acidente, o que o impede de sentir-se tranquilo dentro de um automóvel.

23. Quando circula no lugar do passageiro pela ..., sente stress pós-traumático, recordando as circunstâncias de tal despiste que colocou em causa a sua vida.

24. O autor, na expectativa de se ver ressarcido do sinistro em causa, participou o mesmo à ré B... – Companhia de Seguros, S.A.

25. No dia 29/06/2022, após ter diligenciado contacto com a ré B... –Companhia de Seguros, S.A., recebeu um email por parte desta atestando que na sequência da avaliação feita pelos serviços técnicos da empresa C..., S.A., foi apurado o valor dos danos na viatura na ordem dos €13.889,60 (treze mil oitocentos e oitenta e nove euros e sessenta cêntimos), conforme email datado de 29/06/2022, junto com a petição inicial como doc. 11.

26. Nesse email, foi-lhe referido que a melhor proposta para compra do salvado tinha o valor de €5.200,00 (cinco mil e duzentos euros e tinha como data limite 19/08/2022.

27. No dia 04/07/2022, o autor recebeu uma comunicação por parte da ré B... – Companhia de Seguros, S.A., declinando a responsabilidade pelo sinistro.

28. Justificou tal posição com a cláusula de exclusão 5ª alínea l) das CGSAF, por entender que o sinistro (despiste) resultou de uma avaria no motor, considerando estar perante de uma exclusão da apólice, conforme carta junta com a petição inicial como doc. 12.

29. O autor procurou também resolver o litígio com a ré BB e A..., Lda, através de uma missiva endereçada para a sede desta, conforme carta registada datada de 02/08/2022, junto com a petição inicial como doc. 13.

30. No contrato de seguro celebrado entre autor e 2ª ré foram contratadas, para além do mais, coberturas relativas a proteção quanto aos danos no veículo, concretamente. "choque, colisão ou capotamento", "incêndio, raio ou explosão", "furto ou roubo", "fenômenos da natureza" e "atos de vandalismo".

31. O limite do capital seguro contratado no âmbito da respetiva apólice para cada uma daquelas coberturas era de € 18.950,00 (dezoito mil, novecentos e cinquenta euros) por sinistro/período de vigência, tendo sido acordada franquia de € 500.00 (quinhentos euros) dos prejuízos indemnizáveis no que respeita à cobertura "choque, colisão ou capotamento" e "atos de vandalismo".

32. Nos lermos das condições gerais do contrato de seguro em causa, na cláusula 5." Exclusões - alínea I): "ficam ainda excluídos do âmbito do Seguro Automóvel Facultativo: I) Danos direta e exclusivamente provenientes de defeito de construção, reparação, montagem ou afinação, vício próprio ou má conservação do veiculo seguro".

33. O despiste em causa sucedeu após a ocorrência de avaria no motor.

34. Após peritagem ao veículo em causa, apurou-se que em primeiro lugar se verificou o dano/avaria no motor e, devido a esse dano/avaria, ocorreu o despiste.

35. A avaria no motor (zona do cárter) foi originada de dentro para fora, tendo como origem o dano/avaria na biela.

36. Em consequência dessa avaria, o óleo foi projetado para a parte inferior da viatura, inclusive para as jantes e pneus, tendo dessa forma originado o despiste da viatura.

37. Do croqui elaborado pela autoridade policial, resulta que, antes do rasto de travagem deixado pelo veículo AJ-..-LF existiu primeiramente a fuga/derrame de óleo.

38. O veículo deixou um rastro de travagem a rondar os 150 metros.

39. O autor, cerca de 1 ou 2 meses antes, havia sofrido um outro sinistro.

III. 2. A mesma instância considerou não provados os seguintes factos:

1. O autor tem tido acompanhamento psicológico para ultrapassar este episódio.

2. A ré BB e A..., Lda considera ser apenas responsável pelo arranjo do motor.

3. Os danos no motor foram assumidos pelo co-ré BB e A..., Lda.

4. O acidente sofrido pelo autor deveu-se a excesso de velocidade e de imperícia por parte do mesmo.

5. O veículo encontrava-se em perfeitas condições para circular.

6. O autor conduzia de forma perigosa, que o impediu de travar caso ocorresse tal necessidade.

7. O autor violou as regras de cuidado e com a sua conduta de forma que se poderá até considerar criminosa, pôs em r isco a sua própria vida bem como poderia colocar a de outros, caso houvesse algum veículo que se tivesse imobilizado na sua f rente.

8. O autor , com uma condução perigosa, em velocidade excessiva e provavelmente sonolento, terá pisado as bandas sonoras e ter-se-á assustado com o barulho, o que provocou uma reação que levou ao acidente, que não ter ia sucedido se o autor circulasse com o devido cuidado.

 

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Nulidade processual decorrente da deficiência da gravação da prova.

Em sede de alegações de recurso, a apelante arguiu nulidade processual decorrente da deficiência da gravação, referindo, para tanto, que “obteve o CD com a gravação da audiência final, a 13 de Junho de 2023, e após analisar a mesma percebeu que todos os depoimentos, declarações e actos praticados se encontram totalmente imperceptíveis”.

Na mesma data arguiu especificamente, e com os mesmos fundamentos, a referida nulidade, pedindo, a final, que se declare a “nulidade do julgamento, nos termos dos art.º 195º e seguintes do CPC, atendendo à imperceptibilidade da prova gravada” e, por mera cautela, que seja admitido o recurso interposto.

A invocada nulidade foi indeferida e, posteriormente, admitido o recurso.

Importa, assim, indagar se ocorre o vício expressamente invocado também em sede de alegações de recurso.

De acordo com os artigos 3.º, n.º 1 e 4 do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15.2, a gravação é feita, em regra, com equipamento existente no tribunal e executada por funcionários de justiça.

Relativamente a anomalias que venham a ocorrer na gravação, dispõe-se em tal diploma legal que “se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade”[1].

O diploma em causa limitava-se a regular o modo como a gravação devia ser efectuada[2], não prevendo qualquer mecanismo que impusesse que, no final da gravação, as partes e o tribunal devessem aferir da efectiva gravação e da sua qualidade.

Relativamente a anomalias que possam ocorrer na gravação, prevê o referido diploma que “se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade”[3].

Daqui decorre, à luz da pretérita lei processual civil, que nem as partes tinham o ónus de controlar a qualidade da gravação, sendo essa tarefa reservada ao tribunal, nem as mesmas poderiam ser prejudicadas quando ocorresse uma anomalia durante a gravação, por erro, designadamente do funcionário que a executa, ou falha técnica.

Às partes não podia ser vedado o direito da reapreciação da prova em sede de recurso, nem a Relação podia ficar impossibilitada do exercício dos latos poderes de sindicância que o anterior Código de Processo Civil já então lhe reconhecia, por falha ou erro na gravação, que tornasse imperceptíveis ou mesmo inaudíveis, no todo ou em parte, os depoimentos nela contidos.

Daí o entendimento então tendencialmente uniforme das instâncias superiores[4], de que não sendo de exigir às partes que procedessem ao controlo da qualidade da gravação no próprio acto ou nos dez dias a ele subsequentes, o prazo para arguir o vício decorrente da deficiência da gravação alargava-se até ao termo do prazo para apresentação das alegações de recurso em que, com a impugnação da matéria de facto, e com a necessidade de proceder à respectiva motivação, a parte recorrente pôde aperceber-se das anomalias que eventualmente afectassem o registo da prova.

E ainda que o vício em causa não haja sido invocado por nenhuma das partes, nem assim estava vedada a possibilidade do seu conhecimento pelo tribunal superior, que houvesse de apreciar a prova testemunhal produzida em audiência para sindicar o julgamento da matéria de facto realizado em primeira instância. Assim defendia o Acórdão da Relação do Porto, de 16.06.2009[5], que no caso ”…por ex. de o recorrente impugnar a matéria de facto, e não arguir este vício, por não querer ou não ter interesse no trecho omitido ou deficiente, o tribunal de recurso, por se encontrar impedido de reapreciar a prova (conferindo e cruzando os depoimentos impugnados com o depoimento imperfeitamente gravado ou omitido) pode oficiosamente conhecer da nulidade face ao que dispõe o art. 9º do diploma (designadamente da expressão a todo o tempo) em análise e 712, nº 4 do CPC”.

A deficiência da gravação, que acarrete, no todo ou em parte, a imperceptibilidade ou inaudibilidade dos depoimentos objecto de registo constitui irregularidade que se traduz em nulidade secundária, a arguir mediante reclamação da parte interessada no seu reconhecimento.

A nulidade decorrente da deficiência da gravação, nos termos expostos, implica a anulação dos actos viciados e dos actos subsequentes, que deles dependem absolutamente.

Prevê, todavia, hoje o n.º 3 do artigo 155.º do Código de Processo Civil que “a gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias, a contar do respectivo acto”, enquanto o nº 4 do mesmo normativo determina que “a falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias, a contar do momento em que a gravação é disponibilizada”.

Ao contrário do que antes sucedia, recai actualmente sobre as partes o ónus de controlarem a existência e qualidade da gravação, fixando a lei prazo para ser arguida a sua falta ou deficiência.

Ou seja: o Código de Processo Civil hoje em vigor fixou expressamente prazo para as partes arguirem o vício decorrente da falta ou deficiente gravação da prova, que, ao contrário do que antes sucedia, é sempre obrigatória em sede de julgamento, sendo esse prazo de 10 dias a contar da disponibilização do registo da gravação – que temporalmente poderá não corresponder ao levantamento pela parte do respectivo suporte -, devendo essa disponibilização ocorrer no prazo de dois dias contados de cada um dos actos sujeitos à gravação.

O vício em causa deve, assim, ser arguido em primeira instância, e no prazo peremptório agora legalmente estabelecido, sob pena de ocorrer, por decurso desse prazo, a sua sanação.

Daí afirmar-se que “a omissão ou deficiência das gravações é, após a entrada em vigor do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, um problema que deve ficar definitivamente resolvido ao nível da primeira instância, quer pela intervenção oficiosa do juiz que preside ao acto quer mediante arguição dos interessados[6], deixando de ser admissível que a parte interessada na arguição o possa fazer no prazo de interposição do recurso – 30 ou 40 dias -, nas respectivas alegações.

À solução adoptada na nova lei processual civil há que reconhecer o mérito de permitir que em primeira instância sejam desde logo desencadeados todos os mecanismos necessários ao suprimento de eventuais vícios que afectem a gravação, quer pela intervenção oficiosa do juiz que presidiu ao respectivo acto, quer através da arguição pelas partes no prazo que para o efeito a lei lhes faculta, evitando-se, deste modo, a subida de recursos inquinados desse vício, que tantas vezes conduzia a anulação pela segunda instância dos actos viciados e remessa dos autos à primeira instância para repetição dos actos afectados, implicando um retardar da marcha do processo, que a nova resposta processual para a questão evita, constituindo, além do mais, expressão do princípio da auto-responsabilização das partes, marcadamente acolhido no novo diploma.

Assim, não obstante as posições dissonantes acolhidas no voto de vencido lavrado nos acórdãos da Relação de Guimarães de 11.09.2014 e da Relação de Lisboa de 12.11.2013, ambos já mencionados, entendemos que o artigo 155.º do Código de processo Civil fixa um prazo, peremptório, para as partes interessadas arguirem vícios da falta ou deficiência da gravação da prova – 10 dias contados do momento em que a gravação é disponibilizada, tendo a secção de processos um prazo de 2 dias a partir do acto em que ocorreu a gravação para o fazer – e que o vício fica sanado, decorrido esse prazo[7], se não for arguido, não podendo o mesmo ser arguido perante a Relação nas alegações de recurso, ainda que reclamando-se desta o reexame das provas produzidas em primeira instância, nem podendo a Relação dele conhecer oficiosamente, seguindo-se, assim de perto, as posições já expressas, para além do citado acórdão da Relação de Guimarães, os acórdãos da Relação do Porto de 13.02.2014 e de 11.03.2014[8], da Relação de Guimarães de 11.06.2014[9], da Relação de Coimbra de 10.07.2014 e de 14.10.2014[10].

E como se retira do sumário do acórdão da Relação de Lisboa de 30.05.2017[11], que segue de perto o acórdão desta Relação de 17.12.2014[12], também relatado pela ora relatora, “I-A deficiência da gravação de inquirição de testemunha tem de ser arguida pela parte no tribunal a quo, no prazo de dez dias a partir do momento em que a gravação é disponibilizada (Artigo 155º, nº4, do Código de Processo Civil).

II-Decorrido esse prazo sem que seja arguido o vício em causa, fica o mesmo sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade ser arguida nas alegações de recurso.

III-Sendo a inquirição (parcialmente impercetível) essencial para a apreciação do recurso na parte em que ocorre impugnação da decisão de facto, fica o Tribunal da Relação impossibilitado de efetuar a reapreciação da prova pretendida pelo apelante porquanto a reapreciação da prova tem de ser feita com os mesmos elementos com que o tribunal recorrido se defrontou”.

Assim, tal como refere o acórdão desta Relação de 5.06.2023[13], “a arguição de nulidade da gravação deve ser feita perante o tribunal a quo e no prazo de dez dias a contar da disponibilização às partes daquela.

Disponibilização que deve ocorrer no prazo máximo de dois dias a contar do ato em causa, para que desde logo e sendo verificada, possa ser sanada mesmo antes de serem os autos remetidos em recurso.

Esta disponibilização não envolve a realização de qualquer notificação às partes, antes sobre as mesmas recaindo um dever de diligência pela rápida obtenção das gravações a contar do ato, com vista a aquilatar de eventuais vícios das gravações e sendo o caso, arguir a pertinente nulidade[...].

Nulidade que não sendo reconhecida, permitirá então ao interessado recorrer. Recurso este a subir de forma autónoma, nos termos e ao abrigo do preceituado no artigo 630º nº 2”.

Constatada pela recorrente, no caso em apreço, a deficiência da gravação, que tornava imperceptíveis alguns dos depoimentos registados, cabia-lhe arguir a nulidade processual decorrente da mencionada anomalia perante o tribunal de primeira instância, onde o vício se terá consumado, no prazo peremptório fixado no n.º 4 do artigo 155.º do Código de Processo Civil.

A recorrente arguiu essa nulidade em sede própria, mas foi a mesma indeferida, por ter sido suscitada extemporaneamente.

Não é esta a sede adequada, nem o momento próprio para suscitar qualquer vício processual resultante de eventual deficiência da gravação dos depoimentos prestados em audiência, não podendo esta instância conhecer, ainda que oficiosamente, do vício em causa[14]. Como afirma o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.01.2023[15], “...a Relação, para além de não poder conhecer oficiosamente do vício em questão, como pretende a recorrente, determinando a baixa do processo à 1ª instância a fim de esta sanar o mesmo, uma vez que, como bem se considerou no Acórdão recorrido, para além da intempestividade da reclamação (questão que não constitui o objecto do presente recurso), sempre o interesse de repetição dos depoimentos deficientemente gravados se revela de natureza essencialmente privada, dada a sua inerência ao próprio direito a interpor recurso, direito que, como é sabido, não se configura de modo absoluto, pois embora o legislador esteja impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática, já não está impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões. (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 159/2019 de 13 de Março de 2019)”.

Não se conhece, pelas razões expostas da arguida nulidade processual

Alega a recorrente que “obteve o CD com a gravação da audiência final, a 13 de Junho de 2023, e após analisar a mesma percebeu que todos os depoimentos, declarações e actos praticados se encontram totalmente imperceptíveis.

O que, impede a análise e consequente recurso sobre a matéria de facto decidida na douta sentença”.

E, com efeito, não impugnou a recorrente a decisão relativa à matéria de facto, nem reclamou desta instância a sua reapreciação[16].

Mas ainda que o fizesse - o que não é caso, reitera-se -, sempre a esta instância de recurso estaria vedada tal reapreciação, por não ter a mesma acesso ao registo da prova em condições de poder apreciar devidamente os depoimentos gravados prestados em audiência.

Como tal, considera-se definitivamente assente a factualidade fixada em primeira instância.
2. Da nulidade da sentença.
Segundo o n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil:
“É nula a sentença quando:
 a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido”.
Tal como o n.º 1 do artigo 668.º do anterior diploma, também o n.º 1 do artigo 615.º do actual Código de Processo Civil contém uma enumeração taxativa das causas de nulidade da sentença[17], nelas não se inserindo o designado erro de julgamento, que apenas pode ser atacado por via de recurso, quando o mesmo for legalmente admissível[18].
Alega a recorrente que “A decisão recorrida tornou-se contraditória e sem fundamento legal, pela imperceptibilidade da prova gravada, nos termos do art.º 195º e seguintes e 615º, nº1, alínea c) do CPC”.
No primeiro segmento da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º enquadra-se o vício da sentença em que ocorra oposição entre os seus fundamentos e a decisão. A nulidade resultará dos próprios termos da sentença e está relacionada, por um lado, com a obrigação imposta pelos artigos 154.° e 607.°, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil, de fundamentar as decisões e, por outro, pelo facto de a sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão deverá ser a consequência ou conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor). Esta oposição é a que se verifica no processo lógico, que das premissas de facto e de direito que o julgador tem por apuradas, este extrai a decisão a proferir.[19]
Não se cuida, no vício contemplado na referida alínea, de indagar se existe contradição/oposição entre a decisão que julga a matéria de facto e os fundamentos que a motivaram, como sucede na hipótese delineada pelo anterior artigo 653.º da lei adjectiva, mas antes de averiguar se essa oposição ocorre entre a decisão que aprecia a matéria controvertida e os fundamentos quer de facto, quer de direito que contribuíram para essa mesma decisão.
 Numa perspectiva silogística da sentença, a decisão nela contida deve estar numa relação lógica e coerente com as respectivas premissas, que a hão-de anteceder, sendo aquela o resultado natural decorrente das mesmas.
Isto é, “a decisão tem como antecedentes lógicos os fundamentos de direito (premissa maior) e os fundamentos de facto (premissa menor), não podendo o sentido da decisão achar-se em contradição ou oposição com os fundamentos, o que sucede sempre que na construção da sentença os fundamentos expressos pelo juiz, necessariamente, haveriam de conduzir a uma solução de sentido antagónico: a proposição final (conclusão) revela-se incompatível com as proposições logicamente antecedentes (fundamentos), o que traduz um vício de raciocínio. A nulidade de oposição entre os fundamentos e a decisão não se confunde com o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, ou com a inidoneidade dos fundamentos para conduzir à decisão”[20].
Configura-se a nulidade tipificada no citado preceito quando “o juiz escreveu o que queria escrever; o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto[21].
Ou seja: “…se os fundamentos invocados conduzem logicamente, não ao resultado expresso da decisão, mas a resultado oposto ou pelo menos diferente, em última análise a decisão carece de fundamento[22].
Precisa, também a propósito do vício em análise, Lebre de Freitas[23]: “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decide noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição é causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão for tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se.”
Quanto à “ambiguidade ou obscuridade que torne a sentença ininteligível”, vício a que se refere o segundo segmento do mencionado normativo, ele ocorre “quando não seja percetível qualquer sentido da parte decisória (obscuridade) ou ela encerre um duplo sentido (ambiguidade), sendo ininteligível para um declaratário normal[24].
Segundo o Prof. Alberto dos Reis[25], a “(…) sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes”, explicitando que “(…) num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos”, adiantando ainda ser “(…) evidente que em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade” por “(…) se a determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento do juiz”.
Sinteticamente, poderá afirmar-se que ocorre obscuridade quando não seja perceptível o pensamento do julgador traduzido na parte decisória, verificando-se ambiguidade quando ela comportar mais do que uma interpretação.
Segundo o acórdão do S.T.J. de 11.4.2002,[26]só existe obscuridade quando o tribunal proferiu decisão cujo sentido exacto não pode alcançar-se. A ambiguidade só releva se vier a redundar em obscuridade, ou seja, se for tal que não seja possível alcançar o sentido a atribuir ao passo da decisão que se diz ambíguo [...].
Mas deve ter-se em conta que o haver-se decidido bem ou mal, de forma correcta ou incorrecta, em sentido contrário ao preconizado pela requerente, é coisa totalmente diversa da existência de obscuridade ou ambiguidade do acórdão [...]”.
Em todo o caso, a ambiguidade e a obscuridade só invalidam a sentença se e na medida em que qualquer uma daquelas patologias a tornem ininteligível.
No caso dos autos, não se confundido a nulidade processual decorrente da falta ou da deficiente gravação dos depoimentos prestados em audiência com a nulidade da sentença, sendo vícios distintos, é de incontroversa evidência que a sentença não padece de qualquer patologia que a invalide.
3. Da aplicação do Direito.

Tal como é definido pelo artigo 874º do Código Civil, “compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou direito, mediante um preço”.        

O contrato de compra e venda, independentemente da sua natureza civil ou comercial, é, assim, um contrato translativo ou de efeito real imediato (produz sempre a transferência da propriedade de uma coisa ou de um direito), bilateral ou sinalagmático (pressupõe a existência de, pelo menos, dois contraentes, que reciprocamente se vinculam, sendo ambos sujeitos de direitos e obrigações), oneroso (pressupõe atribuições patrimoniais de ambos os contraentes), em regra comutativo (as duas prestações patrimoniais são certas e tendencialmente equivalentes).

De acordo com o acervo factual recolhido nos autos, o Autor adquiriu à Ré BB e A..., Lda o veículo ligeiro de passageiros da marca Volkswagen, modelo ..., com a matrícula AJ-..-LF, no estado de seminovo, pelo preço de €19.900,00 (dezanove mil e novecentos euros), tendo a vendedora entregue o mesmo ao Autor a 27.05.2022.

Tal veículo tinha a inspecção técnica válida, devendo realizar inspecção técnica periódica no dia 14.01.2023, tendo, relativamente ao mesmo, sido emitido certificado de garantia com o nº ..., válido até 23.11.2023.

Resultou ainda demonstrados nos autos que no dia 29.05.2022, ou seja, volvidos apenas dois dias sobre a data da entrega da viatura, o Autor sofreu um acidente de viação, quando conduzia a mesma, e do qual resultaram danos no veículo cuja reparação foi orçada em €12.269,00 (doze mil duzentos e sessenta e nove euros), tendo, na sequência da peritagem efectuada, sido declarada a sua perda total, dado o estado em que ficou o veículo sinistrado.

O acidente, que consistiu num despiste, deveu-se a avaria no motor, zona do cárter, da viatura adquirida pelo Autor. Em consequência dessa avaria, o óleo foi projetado para a parte inferior da viatura, inclusive para as jantes e pneus, tendo dessa forma originado o despiste da viatura.

A Ré BB e A..., Lda. tem como objecto social o “comércio de veículos automóveis ligeiros; com. ret.peças e acessórios para veículos automóveis; act. Das sociedades financeiras para aquisições a crédito; manutenção e reparação de veículos automóveis”, como consta da respectiva certidão permanente, junta aos autos.

Segundo o nº 1 do artigo 406º do Código Civil, que consagra o princípio pacta sunt servanda, traduzido no reconhecimento da força vinculativa dos contratos, tal como foram concluídos, em relação aos contratantes, “o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contratantes ou nos casos admitidos na lei”.

E de acordo com o artigo 762º do Código Civil, “o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado”.

O cumprimento deve, pois, ter por objecto a coisa ou o facto sobre os quais versa a obrigação.

Vale dizer: no caso específico do contrato de compra e venda, o vendedor cumpre a sua obrigação quando entrega a coisa objecto do contrato, a qual deve ter as características e as qualidades acordadas entre as partes.

A realização da prestação nem sempre implica que o cumprimento haja sido efectuado de forma correcta e nos termos devidos.

No domínio dos contratos nominados, como o contrato de compra e venda, podem ocorrer, durante a sua execução, vicissitudes várias que determinem a imperfeição do seu cumprimento.

Como salienta o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.03.2010[27], “será preciso (…) distinguir, o cumprimento defeituoso da obrigação (ou falta qualitativa de cumprimento da obrigação) da venda de coisa defeituosa. Naquele, o vendedor não realizou a prestação a que, por força do contrato, estava adstrito. Nesta a coisa objecto da transacção sofre dos vícios ou carece das qualidades referenciadas no art. 913º, quer a coisa entregue corresponda, ou não, à prestação a que o vendedor se encontrava vinculado”.

Com efeito, no âmbito da inexecução do contrato, além da mora e do incumprimento definitivo, destaca-se também a execução defeituosa do contrato, ou cumprimento defeituoso do contrato, na designação acolhida pelo artigo 799º, nº1 do Código Civil. Ou seja: o devedor executa materialmente a prestação, mas em desconformidade com o convencionado com a outra parte – “a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidades ou requisitos dela, ao objecto da obrigação a que ele estava adstrito”[28].

Poder-se-á, assim, considerar que ocorre cumprimento defeituoso da obrigação quando a prestação efectuada não tem requisitos idóneos a fazê-la coincidir com o conteúdo obrigacional tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correcção e da boa fé, podendo o defeito ser quantitativo ou qualitativo[29].

O mesmo é dizer, “no cumprimento defeituoso, o devedor cumpre a obrigação que lhe estava imposta, mas não como lhe estava imposta, isto é, cumpre mas de forma defeituosa, com vícios ou deficiências”[30].

Pode-se, deste modo, concluir que “há venda de coisa defeituosa sempre que a coisa vendida sofrer vícios ou carecer de qualidades abrangidas no art. 913 do CC, quer a coisa entregue corresponda ou não à prestação a que o vendedor se encontra vinculado.
O defeito material tanto pode ser inerente à própria coisa, como a uma desconformidade ao contrato ou ainda à sua execução, por isso, sempre que o bem vendido não tem a qualidade, explicita ou implicitamente assegurada, a prestação é defeituosa”
[31].

Na compra e venda, para além da equiparação, em termos de tratamento jurídico, do vício ao defeito e à falta de qualidade da coisa transaccionada, privilegia a lei a idoneidade e aptidão do bem para o fim a que se destina.

Como esclarece João Calvão da Silva[32], “…a lei posterga a definição conceitual e privilegia a idoneidade do bem para a função a que se destina, ciente de que o importante é a aptidão da coisa, a utilidade que o adquirente dela espera.

Daí a noção funcional: vício que desvaloriza a coisa ou impede a realização do fim a que se destina; falta de qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.

Nesta medida, diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente - função negocial concreta programada pelas partes - ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art. 913º, nº2)”, acrescentando ainda o mesmo Autor: «a “venda de coisa defeituosa” respeita à falta de conformidade ou qualidade do bem adquirido para o fim (específico e/ou normal) a que é destinado. E na premissa de que parte o Código Civil para considerar a coisa defeituosa, só é directamente contemplado o interesse do comprador/consumidor no préstimo ou qualidade da coisa, na sua aptidão ou idoneidade para o uso ou função a que é destinada, com vista à salvaguarda da equivalência entre a prestação e a contraprestação subjacente ao cumprimento perfeito ou conforme do contrato».

De acordo com o nº 1 do artigo 913º do Código Civil, há venda de coisa defeituosa quando “a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim”, fornecendo o nº 2 do mesmo normativo os critérios supletivos para a determinação do fim relevante.

Em anotação ao referido normativo, escreveram Pires de Lima e Antunes Varela[33]:

“... este artigo 913.º cria, efectivamente, um regime especial para as quatro categorias de vícios que nele são destacadas:

a) Vício que desvalorize a coisa;

b) Vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada;

c) Falta das qualidades asseguradas pelo vendedor;

d) Falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.

Equiparando, no seu tratamento, os vícios às faltas de qualidade da coisa, a lei evitou as dúvidas que, na doutrina italiana por ex., se têm suscitado sobre o critério de distinção entre um e outro grupo de casos.

Como interpretativo, manda o n.º 2 atender, para a determinação do fim, à função normal das coisas da mesma categoria...”.

Privilegiando a lei o critério funcional da prestação, para equacionar se esta foi correctamente executada haverá que indagar se a coisa vendida é ou não idónea a satisfazer a função a que se destina.

Segundo Pedro Martinez[34], “o regime do cumprimento defeituoso, estabelecido nos arts. 913.º e segs. do Código Civil, vale tanto no caso de ser prestada a coisa devida, mas esta se apresentar com um defeito, como também para as hipóteses em que foi prestada coisa diversa da devida (o chamado aliud)”, acrescentando o mesmo autor: “as consequências da compra e venda de coisas defeituosas determinam-se atentos três aspectos: em primeiro lugar, na medida em que se trata de um cumprimento defeituoso, encontram aplicação as regras gerais da responsabilidade contratual (arts. 798º ss. Código Civil); segundo, no art. 913º, nº 1, do Código Civil faz-se uma remissão para a secção anterior… Nos termos gerais, incumbe ao comprador a prova do defeito (art. 342º, nº l Código Civil) e presume-se a culpa do vendedor, se a coisa entregue padecer de defeito (art. 799º, nº l, Código Civil)”.

A Directiva n.º 1994/44/CE, de 25 de Maio constitui um instrumento disciplinador de aspectos relativos à venda de bens de consumo e garantias dos consumidores, tendo sido transposta para o direito interno português pelo DL n.º 67/2003, de 8 de Abril, posteriormente alterado pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio.

Visando a defesa dos consumidores no seio da União Europeia, tal Directiva, através da criação de regras comuns de Direito do Consumo, teve por finalidade a tutela dos direitos dos consumidores, nomeadamente em situações de aquisição de bens defeituosos, em qualquer país da União Europeia em que a aquisição seja concretizada, de modo a evitar distorções na concorrência entre os vendedores em resultado das disparidades das legislações dos Estados-Membros respeitantes às vendas de bens de consumo.

Direccionando-se à venda de bens de consumo, o seu regime apenas era aplicável quando o comprador tivesse a qualidade de consumidor, conceito no qual se integram as pessoas singulares, desde que actuem com objectivos não comerciais ou profissionais, dele sendo arredadas sociedades e pessoas colectivas, assim como as pessoas singulares que actuem no âmbito da sua actividade profissional[35].

A tutela dos direitos do consumidor garantida pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, cujo complexo normativo se norteava por razões de ordem pública social[36], conferia caráter imperativo às normas protectivas nele acolhidas, tornando irrenunciáveis os direitos nele reconhecidos aos consumidores. É o que directamente resultava do seu artigo 10.º, n.º 1 quando estabelecia: “Sem prejuízo do regime das cláusulas contratuais gerais, é nulo o acordo ou cláusula contratual pelo qual antes da denúncia da falta de conformidade ao vendedor se excluam ou limitem os direitos do consumidor previstos no presente diploma”.

A propósito do Decreto-Lei n.º 67/2003 e dos direitos por ele acautelados, escreveu-se no acórdão da Relação do Porto de 4.10.2021[37]: “...este decreto-lei - no que especialmente tange aos direitos do consumidor em caso de falta de conformidade[...] da coisa que lhe foi entregue - consagra um conjunto de garantias edilícias que passam pelo direito de reparação ou substituição da coisa, redução do preço ou resolução do contrato (cfr. art. 4º)[...], e isto independentemente de culpa do vendedor no cumprimento inexacto da obrigação de entregar o bem devido, como, com meridiana clareza, emerge dos seus arts. 2º, nº 1 e 3º, nº 1.

De facto, como sublinha CALVÃO DA SILVA[...], o diploma em causa “impõe a responsabilidade do vendedor por qualquer falta de conformidade existente no momento da entrega da coisa – independentemente de a não conformidade ser anterior, concomitante ou posterior à celebração da compra e venda – e que se manifeste dentro de dois ou cinco anos a contar dessa data”, consoante a coisa for móvel (art. 5º, nº 1) ou imóvel (art. 3º, nº 2), respectivamente.

O propósito confesso do legislador traduziu-se, pois, numa mais intensa protecção do comprador, através da consagração de uma garantia legal de conformidade, alterando-se, como sublinha MENEZES LEITÃO[...], o regime tradicional que se resumia na máxima caveat emptor (o comprador que se acautele), por um regime baseado no cumprimento em conformidade e que se caracteriza pela máxima inversa: caveat venditor (o vendedor que se acautele), ou seja, a responsabilidade do vendedor não é excluída pelo simples facto de não ter tido culpa no defeito da prestação”.

Retira-se, por seu lado, do acórdão da mesma Relação, de 11.01.2022[38]: “O artigo. 3º, nº. 1 do citado DL 67/2003, prescreve que o vendedor profissional é responsável perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento da entrega do bem.

Por seu turno, o artigo 4º, nº 1 desta lei comanda que o comprador/consumidor, em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, tem direito a que aquela conformidade seja reposta, sem encargos para si, por meio de reparação ou de substituição, assim como poderá optar pela redução adequada do preço ou mesmo resolver o contrato.

Neste contexto, a doutrina e a jurisprudência são unanimes em considerar que compete ao comprador/consumidor alegar e provar o defeito de funcionamento da coisa, isto é, a sua desconformidade com o contrato e que esse defeito existia à data da entrega (artigo 342º, nº. 1 do Código Civil).

Feita esta alegação e prova, se a situação couber nos aludidos “factos-índice” demonstrativos de não conformidade, compete então ao vendedor ilidir a presunção de não conformidade, mediante a demonstração de que a falta de conformidade resulta de facto imputável ao consumidor, nomeadamente a incorrecta utilização do bem, ou que, atentas as circunstâncias, o defeito não existia na data da entrega.

Na verdade, considerando a dificuldade da prova da existência do defeito à data da entrega, quando ele se manifesta ao longo de um período de tempo relativamente longo (dentro de 2 ou 5 anos a contar da entrega), a lei favorece o consumidor, determinando que a falta de conformidade verificada dentro dos referidos prazos, faz presumir que o defeito já existia à data da entrega.
Calvão da Silva, in Venda de Bens de Consumo, 4ª ed., pág. 83, nota que se pretendeu garantir ao consumidor um mínimo de protecção, estabelecendo-se presunções de não conformidade as quais “valem como regras legais de integração do negócio jurídico, destinadas a precisar o que é devido contratualmente na ausência ou insuficiência de cláusulas que adrede fixem as características e qualidades da coisa a entregar ao consumidor em execução do programa negocial adoptado pelas partes”.

Portanto, o consumidor apenas tem o ónus da denúncia da anomalia e de que esta se manifestou dentro do prazo da garantia legal imposta pelo citado DL (2 anos para os bens móveis), ficando, assim, dispensada a demonstração da anterioridade da falta de conformidade do bem no momento da entrega (artigo 3º, n.º 2 do citado DL 67/2003). – Vide acórdão do STJ de 20/03/2014, proc.nº. 783/11.2TBMGR, em www.dgsi.pt.

Deve acentuar-se ainda aqui ser entendimento pacífico que, ao contrário do regime civilístico que regula a venda de coisa defeituosa, o mencionado DL 67/2003, no seu artigo 5º, não impõe qualquer hierarquização dos diversos direitos que assistem ao consumidor no precedente artigo 4º. Portanto, no caso de negócio de bem de consumo, não se impõe ao comprador que, em primeiro lugar, peticione a reparação/substituição e, só na ausência dessa reparação ou substituição do bem, possa vir peticionar a resolução/anulação do contrato”.

O Decreto-Lei n.º 67/2003 veio, entretanto, a ser revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro[39], que regula os direitos do consumidor na compra e venda de bens, conteúdos e serviços digitais, transpondo para o direito interno as Diretivas (UE) 2019/771 e (UE) 2019/770, e cuja entrada em vigor ocorreu no dia 1 de Janeiro de 2022[40].

Como se pode ler no respectivo preâmbulo, “O presente decreto-lei estabelece, desde logo, o princípio da conformidade dos bens com um conjunto de requisitos subjetivos e objetivos. O profissional encontra-se, assim, obrigado a entregar ao consumidor bens que cumpram todos os requisitos referidos, sob pena de os bens não serem considerados conformes.

Prevê-se a responsabilidade do profissional pela falta de conformidade do bem que se manifeste num prazo de três anos e que se considera existente à data da entrega do bem se manifestada durante os primeiros dois. São, ainda, estipulados prazos de responsabilidade distintos, consoante estejamos perante bens com elementos digitais incorporados relativamente aos quais se preveja o fornecimento contínuo de conteúdos ou serviços digitais.

Ao contrário do previsto no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril, na sua redação atual, que não estabelecia qualquer hierarquia de direitos em caso de não conformidade dos bens - reconhecendo ao consumidor um direito de escolha entre a reparação do bem, a substituição do bem, a redução do preço ou a resolução do contrato - o presente decreto-lei incorpora a solução da Diretiva que aqui se transpõe, a qual prevê os mesmos direitos, embora submetendo-os a diferentes patamares de precedência. Trata-se, pois, de matéria sujeita ao princípio da harmonização máxima, que impede o legislador nacional de divergir da norma europeia.

Neste enquadramento, em caso de não conformidade do bem, o consumidor tem o direito à «reposição da conformidade», através da reparação ou da substituição do bem, à redução do preço e à resolução do contrato, estabelecendo-se as condições e requisitos aplicáveis para cada um destes meios”.

Segundo o artigo 1.º do aludido diploma, “1 - O presente decreto-lei:

a) Reforça os direitos dos consumidores na compra e venda de bens de consumo, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2019/771, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019, relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens, que altera o Regulamento (UE) 2017/2394 e a Diretiva 2009/22/CE e que revoga a Diretiva 1999/44/CE [...]”, sendo aplicável, designadamente, “Aos contratos de compra e venda celebrados entre consumidores e profissionais, incluindo os contratos celebrados para o fornecimento de bens a fabricar ou a produzir”[41].

Determina o artigo 5.º do mencionado Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro que “O profissional deve entregar ao consumidor bens que cumpram os requisitos constantes dos artigos 6.º a 9.º, sem prejuízo do disposto no artigo 10.º”.

Os requisitos subjectivos de conformidade são os descritos no artigo 6.º, que estabelece:

“São conformes com o contrato de compra e venda os bens que:

a) Correspondem à descrição, ao tipo, à quantidade e à qualidade e detêm a funcionalidade, a compatibilidade, a interoperabilidade e as demais características previstas no contrato de compra e venda;

b) São adequados a qualquer finalidade específica a que o consumidor os destine, de acordo com o previamente acordado entre as partes;

c) São entregues juntamente com todos os acessórios e instruções, inclusivamente de instalação, tal como estipulado no contrato de compra e venda; e

d) São fornecidos com todas as atualizações, tal como estipulado no contrato de compra e venda”.

O n.º 1 do artigo 7.º enumera, por sua vez, os requisitos objectivos de conformidade:

1 - Para além dos requisitos previstos no artigo anterior, os bens devem:

a) Ser adequados ao uso a que os bens da mesma natureza se destinam;

b) Corresponder à descrição e possuir as qualidades da amostra ou modelo que o profissional tenha apresentado ao consumidor antes da celebração do contrato, sempre que aplicável;

c) Ser entregues juntamente com os acessórios, incluindo a embalagem, instruções de instalação ou outras instruções que o consumidor possa razoavelmente esperar receber, sempre que aplicável; e

d) Corresponder à quantidade e possuir as qualidades e outras características, inclusive no que respeita à durabilidade, funcionalidade, compatibilidade e segurança, habituais e expectáveis nos bens do mesmo tipo considerando, designadamente, a sua natureza e qualquer declaração pública feita pelo profissional, ou em nome deste, ou por outras pessoas em fases anteriores da cadeia de negócio, incluindo o produtor, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem”.

Como antes se mencionou, o Autor adquiriu à Ré BB e A..., Lda., que tem como objecto social, designadamente, o comércio de veículos automóveis ligeiros, o veículo ligeiro de passageiros da marca Volkswagen, modelo ..., com a matrícula AJ-..-LF, no estado de seminovo.

Decorridos cerca de dois dias apenas sobre a data da sua entrega pela vendedora, o referido veículo sofreu uma avaria no motor, quando o Autor o conduzia, o que veio a causar o seu despiste, do qual resultaram avultados danos, que ditaram a perda total da viatura.

Convocando os ensinamentos de Calvão da Silva[42], refere o acórdão da Relação do Porto de 21.01.2014[43]: “...na venda de automóveis usados, a qualidade e o comportamento razoavelmente esperável pelo consumidor terá em conta o tempo da precedente utilização e mesmo a idade do veículo.

Contudo, se um bem usado pressupõe um desgaste normal em função da sua utilização ou do tempo, esse desgaste não poderá nunca por em causa a sua funcionalidade e performance, tendo em consideração o fim a que o mesmo é destinado. E, o mínimo que se pode esperar de um veículo automóvel, ainda que adquirido em segunda mão, é que circule sem problemas e sem risco de ficar imobilizado por excessivo aquecimento do motor.

Assim, se o comprador de um automóvel usado terá de ter a consciência de que o mesmo terá sido sujeito a algum desgaste, correspondente à sua antiguidade e aos quilómetros percorridos, que os bancos poderão estar puídos, que os pneus e outras peças de desgaste mais rápido, tendo tido algum uso, poderão ter de vir a ser substituídos num prazo mais curto que se fossem novos, de qualquer modo, será suposto que se trate de um veículo que se encontre apto a funcionar, pelo que, qualquer avaria que importe a paralisação do veículo caberá dentro da responsabilidade do vendedor, desde que ocorra dentro daquele período de um ano após a compra, a não ser que o vendedor, com os seus especiais conhecimentos, alegue e prove que a avaria em questão se deve a alguma peça de desgaste rápido, que sempre teria de ser sujeita a substituição periódica (ou que a avaria se devesse a imprudente utilização ou ato do comprador)”.

E como dá conta o acórdão da Relação do Porto de 04.02.2010[44], “um veículo automóvel destina-se a circular (pelos seus meios), satisfazendo as necessidades de transporte e deslocação (nomeadamente) do seu possuidor, pelo que se não serve a essa finalidade, por força de avaria (correspondente ou decorrente de vício, ainda que oculto, de que o comprador se não apercebeu nem poderia aperceber, usando de diligência normal do homem médio), a coisa, além de ficar desvalorizada, não presta para o fim a que se destina”.

Dispõe o artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro:

1 - O profissional é responsável por qualquer falta de conformidade que se manifeste no prazo de três anos a contar da entrega do bem.

2 - Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 a 3 do artigo 8.º, no caso de bens com elementos digitais, o profissional é responsável por qualquer falta de conformidade que ocorra ou se manifeste:

a) No prazo de três anos a contar da data em que os bens com elementos digitais foram entregues, quando o contrato estipule um único ato de fornecimento do conteúdo ou serviço digital ou quando o contrato estipule o fornecimento contínuo do conteúdo ou serviço digital durante um período até três anos; ou

b) Durante o período do contrato, quando este estipule o fornecimento contínuo do conteúdo ou serviço digital durante um período superior a três anos.

3 - Nos contratos de compra e venda de bens móveis usados e por acordo entre as partes, o prazo de três anos previsto no n.º 1 pode ser reduzido a 18 meses, salvo se o bem for anunciado como um bem recondicionado, sendo obrigatória a menção dessa qualidade na respetiva fatura, caso em que é aplicável o prazo previsto nos números anteriores [...]”.

Estabelece, por seu turno, o artigo 13.º do mesmo diploma:

“1 - A falta de conformidade que se manifeste num prazo de dois anos a contar da data de entrega do bem presume-se existente à data da entrega do bem, salvo quando tal for incompatível com a natureza dos bens ou com as características da falta de conformidade.

[...]

3 - Nos casos em que as partes tenham reduzido por acordo o prazo de garantia de bens móveis usados nos termos do n.º 3 do artigo anterior, o prazo previsto no n.º 1 é de um ano.

4 - Decorrido o prazo previsto no n.º 1, cabe ao consumidor a prova de que a falta de conformidade existia à data da entrega do bem”.

O bem vendido deve, assim, estar conforme com o contrato de compra e venda e não está em conformidade no caso do bem não respeitar alguma das condições-índice descritas nos artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro.

Em caso de desconformidade, o profissional é responsável nos termos dos artigos 12.º e 13.º do mencionado diploma, respondendo o vendedor perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue, presumindo-se que já nessa data existam as faltas de conformidade que se venham a revelar no prazo de dois anos a contar dessa entrega, para as coisas móveis, salvo quando for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.

Ocorrendo venda de bens de consumo defeituosos, ao comprador basta alegar e provar a anomalia ou o mau funcionamento da coisa, durante o prazo da garantia, sem necessidade de alegar e provar a específica causa  dessa anomalia ou do mau funcionamento e a sua existência à data da entrega. Ao vendedor, para se ilibar da responsabilidade, incumbe alegar e provar que a causa do mau funcionamento é posterior à entrega a coisa vendida e imputável ao comprador, a terceiro ou devida a caso fortuito”.

Assim, tendo a venda por objecto coisa móvel, comprovada pelo comprador a existência do defeito manifestado dentro do prazo de dois anos a contar da data da entrega, dispensa-o a lei da prova de que o defeito é anterior a essa entrega[45].

No caso de venda de bens móveis usados, os direitos do consumidor merecem idêntica tutela, podendo, no entanto, o prazo de garantia ser reduzido a 18 meses, por acordo entre as partes - excepto se concorrer a circunstância prevista na última parte do n.º 3 do artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro -, considerando a menor expectativa que o comprador/consumidor razoavelmente terá acerca da qualidade e performance de bem já usado, podendo este, no prazo de garantia, exercer contra o vendedor profissional os direitos reconhecidos no artigo 15.º do referido Decreto-Lei.

No caso vertente, o Autor cumpriu o ónus probatório que sobre si recaía, considerando que ficou demonstrado que cerca de dois dias após a viatura adquirida lhe ter sido entregue pela vendedora, sofreu aquela uma avaria no motor, estando essa anomalia na origem do despiste da viatura, do qual resultaram danos que, pela sua extensão, ditaram a perda total da mesma.

Em contrapartida, a Ré vendedora não logrou comprovar, para afastar a sua responsabilidade perante o Autor, que a avaria em causa é posterior à entrega da viatura que vendeu, e que a mesma é imputável ao comprador, a terceiro ou se deveu a caso fortuito.

Deste modo, e concluindo:

- achando-se demonstrada a anomalia de que padecia o veículo adquirido pelo Autor à Ré vendedora;

- não tendo esta logrado ilidir a presunção prevista no artigo 13.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, e não se mostrando preenchida a circunstância excludente dessa presunção mencionada na parte final do citado normativo;

- não se achando demonstrado que o Autor tivesse conhecimento da falta de conformidade do veículo ou que não podia razoavelmente ignorá-la; e

- tendo a anomalia se manifestado volvidos apenas dois dias sobre a data de entrega da viatura,

tanto basta para que se considerem reunidos os pressupostos legais exigidos para poder a Ré BB e A..., Lda., ser responsabilizada pela falta de conformidade do bem com o contrato, conferindo, em virtude dessa desconformidade, ao Autor os direitos tutelados pelo artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro.

Segundo o n.º 1 deste dispositivo, “Em caso de falta de conformidade do bem, e nas condições estabelecidas no presente artigo, o consumidor tem direito:

a) À reposição da conformidade, através da reparação ou da substituição do bem;

b) À redução proporcional do preço; ou

c) À resolução do contrato”.

Alega a recorrente que:

“13. O recorrido não peticionou em juízo a substituição do bem, mas sim uma indemnização por danos, o que não se pode conceber, pois, ao consumidor, nos termos do art.º 15º do Decreto-lei nº 84/2021, de 18 de Outubro, aqui recorrido, restavam duas opções, pedir a redução do preço ou a resolução contratual.

14. A resolução contratual poria termo ao contrato de compra e venda, e aí o recorrido teria direito a reaver a quantia paga pelo veículo, mas teria de o  restituir à recorrente”.

É certo que o Autor, peticionando a condenação de “uma das Rés ou ambas” no pagamento da quantia global de € 21.500,00[46], além de juros de mora sobre o montante indemnizatório que vier a ser arbitrado, desde a citação até efectivo pagamento, para reparação dos danos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos em consequência do acidente, não formulou, pelo menos de forma explícita, tal pretensão com fundamento no exercício de algum dos direitos tutelados pelo citado artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, limitando-se a referir no artigo 47.º da petição inicial que “uma vez que foi declarada a perda total do referido veículo, salvo melhor opinião, que a reparação do mesmo seja completamente inviável”.

Tratando de questão similar, em que o Autor, sem pedir a resolução do contrato de compra e venda, formulou pedido de indemnização contra a sociedade vendedora do veículo por si adquirido que, em virtude de defeito que o afectava, se incendiou, com a consequente destruição do mesmo, o acórdão da Relação de Coimbra de 13.09.2022[47] confirmou a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância que julgou parcialmente procedente o pedido indemnizatório formulado pelo Autor.

Nele se escreveu: “considerando as alternativas previstas no referido art. 4º, nº1 do Dec. Lei nº 67/2003, importa concluir que a pretensão do Autor de indemnização no montante pago a título de preço do carro se enquadra na resolução do contrato de compra e venda celebrado com a Ré”, acrescentando mais à frente: “...do exposto e dos factos provados resulta que o A. pode pedir o reembolso do preço que pagou, descontado o benefício que teve com a utilização do carro desde a aquisição até ao incêndio, pois que se é certo que a Ré não provou que no período de utilização pelo Autor, o veículo sofreu a alegada desvalorização, também é certo que a sua utilização trouxe um benefício para o Autor”.

Tendo desse acórdão sido interposto recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 30.05.2023, esclarece, a propósito da questão em análise: “É exato que o autor não peticionou, de modo expresso, a resolução do convénio - tendo-se limitado a peticionar a atribuição de uma indemnização que, entre o mais, integrava o valor do preço pago pela aquisição do automóvel (€25.500,00) - tendo as instâncias assumido que o demandante pretendia operar a resolução do contrato.

Questiona-se: podiam tê-lo feito?

5.3. Com efeito, interpretando a petição inicial, como ato jurídico que é, em conformidade com as regras hermenêuticas previstas nos artigos 236.º a 238.º do Código Civil (por remissão operada pelo artigo 295.º do mesmo Código), concluímos que a matéria alegada pelo autor aponta, em conjugação com o alcance do pedido formulado, para a compreensão da sua pretensão como implicando a destruição dos efeitos do contrato, compaginável com a resolução do mesmo, num contexto em que a reparação do automóvel em segunda mão se mostrou impossível pelo facto de o mesmo ter ficado destruído pelo incêndio.

A interpretação do pedido em conjugação com a “parte narrativa da petição inicial” (a expressão pertence ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04-12-2008, Processo n.º 3597/08) leva-nos, pois, a integrar a resolução do contrato no domínio categorial do pedido implícito, que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem reiteradamente admitindo no âmbito de ações em que se peticiona a restituição do sinal prestado na sequência da celebração de contratos-promessa.

5.4. Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-10-1998 (Processo n.º 83/98, não publicado na “dgsi.”), “(...) o pedido resolutivo está implícito como condição processualmente declarativa que fundamenta a seguir o pedido condenatório de restituição do sinal.”, fazendo notar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-10-2004 (Processo n.º 04A2667), que, “no pedido de restituição do sinal em dobro está implícito o pedido de resolução do contrato promessa”. No mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-10-2013 (Processo n.º 04A2667) decidiu que “em acção fundada no art. 432.º do CC a resolução pode ser apenas um pressuposto do pedido de devolução do sinal e respectivos juros, sem que este seja expressa e necessariamente formulado.”

5.5. A respeito da admissibilidade de pedidos implícitos que se afigurem como pressupostos dos pedidos expressamente formulados ou se retirem, por dedução ou interpretação, da alegação formulada pela parte, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-01-2012 (Processo n.º 1790/2002.L1.S1, não publicado na “dsgi”), que apresenta o seguinte sumário conclusivo:

“(...) VI - Ainda que a Autora, na petição inicial, não tenha expressamente formulado um pedido de condenação dos Réus a verem decidida a nulidade dos contratos, o certo é que o pedido de condenação solidária dos Réus na restituição das quantias entregues a título de preço e despesas feitas com a celebração do negócio, implica – para a sua procedência – que o tribunal conheça e declara os negócios celebrados como nulos. VII - Trata-se de um pedido implícito, circunstancial, não autónomo, entendido como pressuposto do pedido expressamente formulado, cujo conhecimento se impõe como via de acesso ao conhecimento deste.”

No mesmo sentido, em datas mais recentes, vejam-se os seguintes Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça:

- Acórdão de 08-11-2018, Processo n.º 48/15.0..., no qual se consagrou a orientação de que « É desnecessário que a invocação, em processo judicial, dos factos reveladores da usucapião seja acompanhada do pedido do seu reconhecimento, bastando que esses factos integrem a causa de pedir de um outro pedido que a pressuponha ou sejam alegados como elemento integrador da legitimidade de quem na ação a invoca».

- Acórdão de 19-05-2020, Processo n.º 1642/13.0..., não publicado na “dsgi”), em cujo sumário se pode ler “(...) VII - O pedido de anulação do contrato de seguro deve considerar-se contido, de forma implícita, na contestação quando ela assenta na existência de um vício na formação da vontade da seguradora, alegando que foi induzida em erro pelo segurado, decorrente da omissão sobre o seu estado de saúde.”

- Acórdão de 29-09-2022, Processo n.º 605/17.0..., em cujo sumário se postula que «Pedido implícito é aquele que com base na natureza das coisas, está presente na acção, apesar de não ter sido formulado expressis verbis, ou seja, o pedido apresentado na petição pressupõe outro pedido que, por qualquer razão, o autor não exprimiu de forma nítida ou óbvia.”

5.5. De todo o modo, a alegação do recorrente neste particular encontra-se desprovida de operatividade jurídica: não apenas porque o mesmo não assaca ao acórdão recorrido a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. e), do CPC, por condenação em objeto diverso do pedido, ao ter reconhecido ao autor o direito de resolução do contrato que, na sua ótica, não tinha sido pedido, mas igualmente porque os efeitos da resolução decretada se equiparam, em regra, aos efeitos da nulidade do contrato (artigo 433.º do Código Civil), sanção que a própria recorrente sustenta ser aplicável ao caso (ponto 13 da motivação e ponto F das conclusões de recurso).

6. Conclui-se, pois, que não obsta à atribuição da indemnização peticionada pelo autor o facto de o mesmo não ter pedido expressamente a resolução do contrato de compra e venda celebrado com o réu”.

Também no caso dos autos, por idênticas razões, se deve considerar que o pedido de indemnização, expresso pelo Autor, tem implícito o pedido de resolução do contrato, pois, conforme ele próprio alega, o facto de o veículo ter sofrido danos, em consequência do acidente originado pelo defeito do motor, que determinaram a sua perda total, torna inviável a reparação, sendo certo que, perante o descrito circunstancialismo fáctico, acrescentamos, a redução do preço justificado pela desconformidade que determinou o despiste do veículo não repara suficientemente os interesses do Autor, violados pela dita desconformidade.

A resolução  do contrato de compra e venda, comporta, neste caso, a obrigação de o consumidor devolver os bens defeituosos, nos termos prescritos no artigo 20º, n.º 4, alínea a) do Decreto-Lei n.º 84/2021, pelo que assiste à recorrente o direito a reaver, embora decorram por sua conta as despesas da devolução, o veículo que vendeu ao Autor.

Para além dos direitos reconhecidos pelo artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, tem o  consumidor direito a ser indemnizado, nos termos gerais, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência da venda de bem defeituoso, como resulta do artigo 12.º da Lei n.º  24/96, de 31 de Julho (Lei da Defesa do Consumidor).

Segundo o acórdão da Relação de Coimbra de 28.02.2023[48], “Dispõe o artigo 12.º da Lei de Defesa do Consumidor que o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos;

O direito à indemnização, previsto no referido artigo 12.º, é independente e autónomo dos direitos previstos quer no Código Civil, quer no regime que tutela a venda de bens de consumo; não está assim dependente da sua verificação, cabendo inclusive ao consumidor a opção de exigir ou não uma indemnização, independentemente de recorrer aos restantes remédios protetivos.

…nesse conspecto…o direito à indemnização não está assim também sujeito ao prazo de caducidade previsto nos artigos 5.º e 5.º-A do Decreto-Lei n.º 67/2003, mas antes aos prazos de prescrição e caducidade gerais.

Contudo, para que o comprador tenha direito à indemnização ali prevista, entende-se que é necessário que se verifiquem provados todos os pressupostos do direito à indemnização, mormente a culpa do vendedor – culpa esta que será presumida, nos termos do artigo 799.º do Código Civil, por estar em causa responsabilidade civil contratual (v. neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-01-2022, no proc. 271/20.6T8MLD.P1, no sentido de assistir ao vendedor a possibilidade de ilidir a presunção de culpa prevista no artigo 799.º).

Com efeito, a responsabilidade objetiva, ou seja, independente de culpa do lesante, é excecional, apenas sendo admissível a sua aplicação quando expressamente prevista na lei – é o caso do Decreto-Lei n.º 67/2003, que se tem vindo a referir, de onde se extrai que é indiferente a existência de culpa do vendedor para efetivação dos direitos do consumidor”.

Este é também o entendimento acolhido no acórdão da Relação do Porto de 24.01.2022[49], ao afirmar: “E, ainda, e de acordo com o estatuído no nº 1, do art. 12º, da Lei n.º 24/96, de 31/07, o consumidor tem, também, direito, nos termos gerais, a indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens defeituosos [...]”.

Por conseguinte, não colhem aqueles argumentos recursivos da apelante porquanto o pedido de resolução do contrato, ainda que não tenha sido expressamente deduzido pelo Autor/Apelado, está implícito no pedido de indemnização por ele formulado, consentindo a lei que o consumidor seja indemnizado, nos termos gerais, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência da venda de bem com defeito, recaindo sobre este o dever de devolver o veículo que adquiriu à Ré/Apelante, a expensas desta.

Improcede, assim, o recurso, confirmando-se o decidido.


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Síntese conclusiva:

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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas da apelação: pela apelante - art.º 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Porto, 8.02.2024


Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.
Judite Pires
Paulo Duarte Teixeira
Isabel Ferreira
_________________
[1] Artigo 9º.
[2] Artigos 6º, nºs 1 e 2, 7º e 8º.
[3] Artigo 9º.
[4] Cf., entre outros, Acórdãos do STJ, 02.02.2010, processo nº 1159/04.3TBACB.C1, 03.11.2009, 23.10.2008, Acórdãos da Relação de Lisboa, 10.05.2007, 13.05.2009, Acórdãos da Relação do Porto, 22.01.2007, 15.10.2009, 02.03.2009, 27.11.2008, 22.11.2007, todos em www.dgsi.pt.
[5] www.dgsi.pt.
[6] Acórdão da Relação de Guimarães de 11.09.2014, processo nº 4464/12.1TMGMR.C1, www.dgsi.pt, embora com voto de vencido no sentido de que o n.º 4 do artigo 155º do NCPC não veda à Relação o conhecimento oficioso do vício em causa, posição que na esteira da defendida pelo acórdão da Relação de Lisboa de 12.11.2013, processo nº 1400/10.3TBPDL.L1-7, também em www.dgsi.pt.
[7] Neste sentido, cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág. 130.
[8] Respectivamente, processos nºs 142046/08.3YIPRT.P1, 501/10.2TBOAZ.P1, ambos em www.dgsi.pt.
[9] Processo nº 1224/11.0TBVVD.G1, www.dgsi.pt.
[10] Respectivamente, processos nºs 64/13.7T6AVR-A.C1 e 477/03.2TBVNO.C3, www.dgsi.pt.
[11] Processo n.º 298/13.4TBSCR.L1-7, www.dgsi.pt.; no mesmo sentido, cfr. ainda acórdão da mesma Relação de 25.05.2021. processo n.º 15321/19.0T8SNT.L1-7, www.dgsi.pt.
[12] Processo n.º 927/12.7TVPRT.P1, www.dgsi.pt.
[13] Processo n.º 634/17.4T8FLG-C.P1, www.dgsi.pt.
[14] Cfr. acórdão da Relação de Coimbra de 10.07.2014, processo n.º 64/13.7T6AVR-A.C1, www.dgsi.pt.
[15] Processo n.º 3820/21.9T8PRT.P1.S1, www.dgsi.pt.
[16] Embora, não se sabendo a que propósito, porquanto apenas impugna a decisão de direito, proceda à transcrição parcial de alguns depoimentos prestados em audiência.
[17] Cf. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil anotado”, vol. V, pág. 137.
[18] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 686.
[19] Rodrigues Bastos, “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. III, página 246.
[20] Acórdão do STJ, 07.05.2008, processo nº 3380/07, www.dgsi.pt.
[21] Alberto dos Reis, ob. cit., vol. V, pág. 141; cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra, ob. cit., pág. 690.
[22] Anselmo de Castro, ob. cit., pág. 142.
[23] “A Acção Declarativa Comum – À Luz do Código do Processo Civil de 2013”, 3ª ed., pág. 333.
[24] Lebre de Freitas, “A Acção Declarativa Comum – À Luz do Código do Processo Civil de 2013”, 3ª ed., pág. 333.
[25] Obra citada, pág. 151.
[26] Processo n.º 01P3821, www.dgsi.pt.
[27] Processo nº 4467/06.5TBVLG.P1.S1, www.dgsi.pt.
[28] Antunes Varela, parecer publicado na “Colectânea de Jurisprudência”, Ano XII, 1987, Tomo 4, págs. 22 a 35.
[29] Baptista Machado, “Obra Dispersa”, I, pág. 169.
[30] Armando Braga, “Contrato de Compra e Venda”, pág. 174.
[31] Acórdão desta Relação de 14.11.2006, processo nº 477/05.8TBILV.C1, www.dgsi.pt.
[32] “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, 5ª ed., págs. 44 e 49.
[33] Código Civil Anotado, vol. II, 2.ª edição, pág. 187.
[34] “Direito das Obrigações - Parte Especial”, págs. 124, 126
[35] O n.º 1 do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 67/2003 remetia para o conceito de consumidor, previsto na Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, que considera consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados ao uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.
[36] “Ordem pública de protecção ou ordem pública social, para defesa da parte supostamente mais fraca”, nas palavras de Calvão da Silva, ob. citada, pág. 155.
[37] Processo n.º 30/17.3T8PRD.P1, www.dgsi.pt.
[38] Processo n.º 1910/19.7T8VFR.P1, www.dgsi.pt.
[39] Artigo 54.º, alínea b).
[40] Artigo 55.º.
[41] Artigo 3.º, n.º 1, a).
[42] “Venda de Bens de Consumo”, 4ª ed., Almedina 2010, pág. 116.
[43] Processo n.º 1177/12.8T2OVR.P1, www.dgsi.pt.
[44] Processo n.º 1362/05.9TBGDM.P1, www.dgsi.pt.
[45] Cfr. acórdão da Relação de Lisboa de 12.04.2011, processo n.º 391/09.8YXLSB.L1-1, www.dgsi.pt.
[46] Quantificando o Autor em € 2.500,00 os danos não patrimoniais e por privação do uso de veículo, os remanescentes € 19.000,00 constituirão danos não patrimoniais pela perda do veículo.
[47] Processo n.º 135/21.6T8LRA.C1, www.dgsi.pt.
[48] Processo n.º 349/21.9T8SRT.C1, www.dgsi.pt
[49] Processo n.º 271/20.6T8MLD.P1, www.dgsi.pt.