Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2727/09.2TBVCD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MATOS
Descritores: INVENTÁRIO
DOAÇÃO MANUAL E REMUNERATÓRIA
RELACIONAMENTO NO INVENTÁRIO
Nº do Documento: RP201501272727/09.2tbvcd-A.P1
Data do Acordão: 01/27/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A doação manual versa sobre coisas móveis e é acompanhada da tradição da coisa doada.
II - As doações manuais e as doações remuneratórias presumem-se dispensadas de colação; não obstante esta presunção, quer umas, quer outras, devem ser relacionadas para efeitos de cálculo da legítima.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2727/09.2tbvcd-A.P1
Póvoa do Varzim

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório.
1. No processo de inventário a que se procede por óbito de B… e C… e em que é cabeça de casal D…, casada, residente na Rua …, nº .., …, Vila do Conde, os interessados E… e mulher reclamaram contra relação de bens.
Alegaram, na parte que releva para o recurso, que o dinheiro da herança é de € 75.966,54 e não de € 39.966,54 como foi relacionado pela cabeça de casal, devendo esta relacionar o dinheiro em falta.
A cabeça de casal respondeu considerando haver relacionado corretamente a verba refente ao dinheiro, entre outras razões que não vêm ao caso, porque a inventariada C…, do dinheiro que tinha e que administrava, entregou à cabeça de casal a quantia de 25.000 € como reconhecimento e pagamento das despesas que esta com ela teve, quer antes, quer após a morte do inventariado, seu mando, sendo que antes visitava regularmente os inventariados e levava-lhe alimentação, roupa, fez obras na casa destes, etc., e após a morte do inventariado, foi primeiramente viver alguns (poucos) meses para a casa da cabeça de casal, e esta é que lhe pagava tudo, alimentação, calçado, vestuário, etc., depois foi internada num F…, onde esteve internada durante os três últimos anos da sua vida, e a cabeça de casal ia sensivelmente uma/duas vezes por semana á … visitar a mãe, levando-lhe sempre a fruta que ela pedia, bem como outras coisas (bolachas, bolinhos, etc.) que também lhe solicitava, comprava e levava roupa e calçado que a inventariada necessitava, trazia a roupa da inventariada, lavava-a, tratava-a e voltava a levar-lhe a roupa, etc e durante este período a inventariada foi intervencionada ao coração no Hospital …, em Braga, onde a cabeça de casal a acompanhou diariamente, enfim, era a cabeça de casal que tudo tratava e fazia para a inventariada.

2. Após produção de prova foi proferido o seguinte despacho que se transcreve, na parte relevante:
“Tendo sido admitida a reclamação à relação de bens constante de fls. 52 referente ao interessado E… e esposa, e com resposta deduzida pela cabeça de casal a fls. 58, importa, produzida toda a prova a ela respeitante, decidir quanto ao seu mérito.
Ao incidente de reclamação, como a todos os outro que surjam no processo de inventário e não tenham regulamentação especial na lei, é, como se diz no art. 1334.°, aplicável o disposto nos arts. 302.° a 304.° do Código de Processo Civil. No art. 303.° do Código de Processo Civil diz-se que no incidente e na oposição que lhe for deduzida devem as partes.
Em termos de ónus ela prova, valem as regras do art. 342.° do Código Civil, nos termos da qual «àquele que invocar una direito cace fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado». A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
Na reclamação de bens supra identificada é invocada a falta de relacionação dos bens ai descritos, a saber, dinheiro e mobiliário.
Foram juntos documentos e ouvidas testemunhas, e prestado depoimento de parte, por banda da cabeça de casal.
Relativamente ao dinheiro, foi pela cabeça de casal relacionado 39.966,54 euros. Pelo Interessado E… foi reclamado este valor, defendendo-se estar em falta 75.833 euros.
Da prova produzida, nomeadamente da confissão efectuada pela cabeça de casal, resultou que do valor inicialmente deixado pelo finado pai foi entregue 30 mil euros a cada neto, 5 mil euros à F…, entre outros gastos efectuados pela finada C…. Todos os gastos alegados na resposta de fls, 58 foram comprovados pelos depoimentos tomados, ou por documento - fls. 62 e depoimento de G….
No entanto, pela cabeça de casal foi dito que lhe foi entregue o valor de 25 mil euros como gratificação e pagamento pelas deslocações que fazia ao lar, com a lavagem da roupa de sua mãe, compra de bolachas e outros alimentos que gostava. Atento o valor da doação, e o sujeito da mesma filha da finada, aqui cabeça de casal - considera-se que se não pode esta como sendo uma doação remuneratória, prevista no art.° 941 CC. Assim, sendo uma doação de cariz normal está sujeita ao regime da colação, de acordo com o art.° 2104 CC. Ou seja, deve ser incluído o seu valor na relação de bens, por forma a aferir da sia oficiosidade - art.° 2108 CC.
(…)
Decidindo:
- Deve a cabeça de casal incluir o valor da doação de que foi beneficiária, no valor de 25 mil euros, na relação de bens.
(…)”

3. Recurso.
É deste despacho que a cabeça-de-casal agora recorre, formulando as seguintes conclusões:
1.º A inventariada entregou à cabeça de casal, que recebeu e fez seu, um cheque no montante de 25.000 €, o que configura uma doação manual de dinheiro.
2.º Ao efectuar esta doação, a inventariada quis também agradecer à cabeça de casal o trabalho e despesas que esta teve para consigo, pelo que tal doação também configura uma doação remuneratória. Ora,
3.º O artº 2.113º, nº 3, do Código Civil, expressamente estipula que “a colação presume-se sempre dispensada nas doações manuais e nas doações remuneratórias”. Deste modo,
4.º A mencionada doação efectuada pela inventariada à cabeça de casal, da quantia de 25.000 €, está dispensada da colação, pelo que
5.º A douta decisão de que a cabeça de casal recorre violou frontalmente o disposto no artº 2.113º, nº 3, do Código Civil, devendo, portanto, ser proferido acórdão que revoge tal decisão, sentenciando-se que a doação em causa está dispensada de colação, assim se respeitando a citada disposição legal e fazendo-se inteira e sã justiça.
Termos em que revogando a douta decisão proferida, e proferindo outra que determine que a doação em causa está dispensada de colação, se fará inteira e sã JUSTIÇA.”
Os recorridos contra-alegaram, pugnando pela manutenção do despacho recorrido.
Observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso.
Considerando as conclusões da motivação do recurso, importa decidir se a verba de € 25.000,00 alegadamente doada pela inventariada à cabeça de casal está sujeita a colação.

III. Fundamentação.
1. Factos.
Para a decisão do recurso, importa considerar a dinâmica processual que se procurou deixar exposta nos pontos 1 e 2 do relatório.

2. O direito.
2.1. Embora sem expressão no dispositivo propriamente dito o despacho recorrido concluiu que a doação alegadamente efetuada à cabeça de casal pela inventariada C…, está sujeita ao regime da colação, por assumir a natureza de uma doação de cariz normal.
Esta conclusão, na economia do despacho recorrido, constituiu um pressuposto do segmento decisório que determinou a inclusão do valor da doação na relação de bens.
A cabeça de casal não recorre da decisão na parte em que determinou a inclusão do valor da doação na relação de bens, mas tão só da parte da decisão que considerou a doação sujeita ao regime da colação.
De facto, e contrariamente ao suposto no despacho recorrido, as liberalidades do autor da herança aos descendentes, ainda que não sujeitas a colação, devem ser relacionadas e isto porque a causa/função de um e de outro procedimento não se confunde.
A colação visa estabelecer a igualdade da partilha (artº 2104, nº1, do CC), a relacionação dos bens do autor da herança quando lhe sucedam, como é o caso, herdeiros legitimários tem por função estabelecer a integridade das legítimas.
Por isso que, como ensina Lopes Cardoso[1], “(…) cumprirá, pois, relacionar as liberalidades feitas pelo inventariado a seus descendentes (artº 2110º-1), mesmo quando a colação seja dispensada ou quando a lei presume a dispensa (artº 2113º-1) , casos em que serão imputadas na quota disponível do doador (artº 2114º-1)”.
Dito isto, julgamos haver esclarecido, para o caso de tal esclarecimento ser necessário, que mesmo que a doação em causa nos autos não esteja sujeita a colação deve ser relacionada, como se decidiu, importando agora enfrentar a questão colocada no recurso, ou seja, determinar se a concreta doação reportada nos autos está ou não sujeita à colação.

2.2. Com exceção das despesas com o casamento, alimentos, estabelecimento e colocação dos descendentes, na medida em que se harmonizem com os usos e com a condição social e económica do falecido, está sujeito a colação tudo quanto o falecido tiver despendido gratuitamente em proveito dos descendentes (artº 2110º, do CC).
A colação pode ser dispensada pelo doador (artº 2113º, nºs 1 e 2) e presume-se dispensada nas doações manuais e nas doações remuneratórias (ibidem nº3).
É este último número que nos interessa porque a cabeça de casal veio alegar que a inventariada C… lhe doou € 25.000,00 em dinheiro e que esta doação é uma doação manual e remuneratória.
Doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espirito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente (artº 940º, nº1, do CC) e embora a lei não defina o que deve entender-se por doação manual, o artº 947º, nº2, do CC, estabelece que a “doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa, quando acompanhada de tradição da coisa doada”, daqui resultando que a doação manual versa sobre coisas móveis e é acompanhada da tradição da coisa doada.
Mais apropriadamente, e como se escreveu no Ac. do STJ de 18/5/2005, “doações manuais, cuja dispensa de colação a lei presume, são, por exemplo, aquelas em que o tradens, com animus donandi, entrega dinheiro ao accipiens que, pelo recebimento, revela a vontade de aceitação” ou no acórdão desta Relação, de 22/4/2008, “por doação manual entende-se todo o acto pelo qual o tradens, com animus donandi, entrega bem móvel, no caso, determinadas quantias em dinheiro, ao accipiens que, pelo simples facto de o receber e dele tomar posse revela a vontade de aceitar a liberalidade”.[2]
Já a conceptualização da doação remuneratória consta da lei; é considerada doação a liberalidade remuneratória de serviços recebidos pelo doador, que não tenham a natureza de dívida exigível (artº 941º, CC).
A especificidade da doação remuneratória é a de pretender remunerar serviços em casos em que tal remuneração não é exigível jurídica, social ou moralmente, daqui emergindo o espirito de liberalidade que caracteriza a doação e, como tal, são havidas pela lei.[3]
Umas e outras, presume-se dispensadas de colação, como dito; mas a operância da presunção supõe a prova pelo beneficiário descendente, quer da doação propriamente dita, quer da sua natureza manual ou remuneratória.

2.3. No caso dos autos a cabeça de casal alegou, na resposta à reclamação contra a relação de bens, que a inventariada C… lhe entregou a quantia de € 25.000,00, como reconhecimento e pagamento de despesas que teve com o acompanhamento e assistência que lhe prestou, a ela inventariada e ao marido, nos últimos tempos da respetiva vida.
Factos que, assim sumariados e uma vez provados, são suscetíveis de caracterizarem quer a doação manual, quer a doação remuneratória, por assim ser não se duvidará da sua relevância para a decisão do incidente, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
A decisão recorrida é omissa quanto a estes factos; isto não obstante o nº5 do artº 304º, do CPC, considerado aplicável pela decisão recorrida, determinar que “finda a produção da prova, o juiz declara quais os factos que julga provados e não provados”.
Envolvendo a questão controvertida a apreciação da matéria de facto e de direito, como é o caso, a decisão deve conter os fundamentos de facto e os de direito, sendo manifestamente inócua, nestas circunstâncias, para efeitos de fundamentação a mera alusão à posição do interessado quanto ao facto, ou seja, o que “pela cabeça de casal foi dito”, como se consignou.
O reconhecimento da razão da cabeça de casal, ora recorrente, ou falta dela, exige a expressão do juízo sobre os factos que fundamentam a sua pretensão. É este juízo que a decisão recorrida omite e, neste ponto, por desconforme com a lei processual, impõe anulação para que esta conformidade se estabeleça.
A Relação deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão da 1ª instância quando considere indispensável a ampliação da decisão proferida sobre a matéria de facto (artº 662º, nº2, al. c), do CPC.
É o caso. Para se averiguar da dispensa de conferência da liberalidade em referência, ou colação, é indispensável ampliar a matéria de facto por forma a julgar-se provado, ou não provado, a existência da doação e o bem sobre que incidiu, se foi acompanhada da tradição da coisa doada e os demais factos que, alegados pela cabeça de casal, sejam suscetíveis de caracterizar agora a doação remuneratória, segundo as várias soluções plausíveis para a questão de direito, sem prejuízo de alguma destas questões ficar prejudicada pela solução dada a outras, como decorre dos princípios gerais (artº 608º, nº2, do CPC).
Repetição do julgamento que não abrange a parte da decisão não viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições (artº 662º, nº3, al. c), do CPC).

Sumário:
- A doação manual versa sobre coisas móveis e é acompanhada da tradição da coisa doada.
- As doações manuais e as doações remuneratórias presumem-se dispensadas de colação; não obstante esta presunção, quer umas, quer outras, devem ser relacionadas para efeitos de cálculo da legítima.

IV. Dispositivo:
Delibera-se, pelo exposto, em anular o despacho recorrido na parte em que sujeitou a doação à colação, determinando-se a ampliação da matéria de facto nos termos supra consignados.
Custas a final, por quem as houver que pagar.

Porto, 27/1/2015
Francisco Matos
Maria de Jesus Pereira
Maria Amália Santos
____________
[1] Partilhas Judiciais, 4ª ed. Vol. 1º, pág. 429.
[2] Ambos os acórdãos estão disponíveis em www.dgsi.pt
[3] Para maiores desenvolvimentos, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, 2º vol., 2ª ed., pág. 232.