Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
341/14.0GALSD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: CRIME DE HOMICIDIO NEGLIGENTE
NEXO DE CAUSUALIDADE ADEQUADA
NEXO DE IMPUTAÇÃO OBJECTIVA
CONCAUSALIDADE
Nº do Documento: RP20180606341/14.0GALSD.P1
Data do Acordão: 06/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º25/2018, FLS.209-216)
Área Temática: .
Sumário: O agente responsável por uma das causas que conduziram à morte da vítima de um acidente de viação pode ser condenado pela prática de crime de homicídio por negligência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr 341/14.0GALSD.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – B… veio interpor recurso da douta sentença do Juiz 1 do Juízo Local Criminal de Lousada do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este que o condenou, pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 15.º, 137.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, a), do Código Penal, na pena de duzentos e cinquenta dias de multa, à taxa diária de seis euros, e na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados por cinco meses.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«I. O presente recurso vem interposto da Sentença que condenou o Recorrente pela prática de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo disposto nos artigos 15.º, 137.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), num total de €1.500,00 (mil e quinhentos euros);
II. Salvo o devido respeito por opinião em contrário, o Recorrente nunca se poderia conformar com tal decisão, uma vez que a mesma alicerçou-se em considerações e interpretações erradas, tanto dos depoimentos prestados pelos dois militares da GNR bem como dos esclarecimentos prestados pelo Sr. Perito que fez o subscreveu o relatório pericial pedido pelo tribunal ao Centro Pericial de Acidentes do INEGI – CENPERCA da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto.
III. A Mma. Juíza da douta sentença recorrida não atendeu ao relatório efectuado a seu pedido, nem aos esclarecimentos prestados pelo Engº D… que fez e subscreveu o relatório, nem justificou nos termos do artigo 163º do CPP porque não considerou os esclarecimentos prestados e ou divergiu dos mesmos.
IV. Desde logo, os factos da matéria assente 3, 4, 7, 8 e 9 deveriam ter sido considerados não provados e as alíneas c), d), e), e g) dos factos dados como não provados deveriam fazer parte do elenco dos factos provados;
V. Deveria que dar-se como provado que se o arguido E… conduzisse a uma velocidade de 50 Km/h limite máximo no local, o acidente não ocorreria e a ocorrer não teria a dinâmica e consequentes consequências que teve.
VI. Tendo em conta que no sentido em que seguia o veículo conduzido pelo arguido E… existiam marcas no pavimento de aproximação de passadeira para peões, que nas margens da via existem habitações, estabelecimentos comerciais e instalações fabris e que existe o entroncamento onde se de deu o acidente a velocidade nos termos dos artigos 24º, nº 1 e 25º, nº 1, alíneas a), c) e h) do Código de Estrada o arguido E… circulava a uma velocidade excessiva. Se circulasse a uma velocidade especialmente moderada não teria ocorrido o embate.
VII. Contrariamente ao referido na douta sentença não foi a mudança de direção a única causa do acidente dado que ela era no local permitida por lei no local.
VIII. Deve ser dado como provado que no momento do acidente o arguido E… conduzia uma taxa de alcoolemia igual ou superior a 1,2 gr/l com efeitos na sua reação e condições físicas e anímicas para conduzir que causaram junto com a velocidade excessiva o acidente;
IX. Mesmo que não se desse como provado, por mera hipótese de raciocínio que o acidente ocorreu porque o arguido E… circulava com velocidade excessiva e sob efeito de álcool, sempre o tribunal teria, de acordo com o princípio do in dubio pro reo, que consiste numa imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa;
X. Desta feita, existiu um erro na valoração e apreciação da prova, pelo que, deve o Recorrente ser absolvido do respetivo crime uma vez que, não praticou os factos de que vem acusado.
XI. Acresce que resulta dos autos que o recorrente, ao contrário do dado como provado nos autos, deitava atenção à sua condução e ao trânsito, só assim permitiu que antes de realizar a manobra de mudança de direcção à esquerda deixasse a vítima e a amiga atravessar a rua em segurança.
XII. Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou, entre outros, os artigos 24º, 25º e 26º do Código de Estrada, 163º, 412º, nº 3 do Código do Processo Penal e artigo 32º da CRP»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se a prova produzida, também à luz do princípio in dubio pro reo, impõe decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida, devendo o arguido e recorrente ser absolvido do crime por que nessa sentença foi condenado.

III – Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:
«(…)
II – Fundamentação de Facto
2.1. Factos provados
Discutida a causa e com interesse para a decisão da mesma, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 6 de Junho de 2014, cerca das 20 horas e 30 minutos, o arguido B… conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula XH – .. - .., pela Avenida …, na localidade de …, Lousada, no sentido de … - ….
2. Ao chegar ao entroncamento formado por aquela Avenida com a Rua …, o arguido B… imobilizou o seu veículo junto à linha divisória da faixa de rodagem, aí aguardando que F… e G… atravessassem, a pé, a Rua de ….
3. Após estas terem terminado tal travessia, sem que aguardasse pela passagem do veículo de matrícula .. – CN - .., conduzido pelo arguido E…, que, naquele preciso momento, circulava no sentido … - …, a uma velocidade de, pelo menos, 70 km/h, o arguido invadiu a faixa de rodagem contrária com intenção de mudar de direcção para a esquerda e entrar assim na Rua ….
4. Mercê dessa manobra, o arguido obstruiu a faixa de rodagem do lado esquerdo, atento o seu sentido de marcha, na qual circulava, naquele momento, o veículo de matrícula .. – CN - .., conduzido pelo arguido E…, que não conseguiu evitar o embate frontal com o veículo de matrícula XH - .. - .., sendo projectado, na sequência desse embate, para fora da faixa de rodagem.
5. Indo invadir o passeio do lado direito da Avenida …, atento o sentido de marcha … - …, no qual seguia F…, que foi aí colhida e entalada contra o muro pelo veículo de matrícula .. – CN - .., o que provocou as lesões traumáticas torácicas e abdominais descritas no auto do relatório da autópsia médico-legal, junto a fls. 82 a 85 dos autos, cujo teor se dá aqui por reproduzido, as quais, de forma directa e necessária, lhe determinaram a morte.
6. No local, a estrada tem a configuração de um entroncamento, com duas faixas de rodagem, uma em cada sentido, com a largura total de 5,80 metros.
7. O arguido B… conduzia o seu veículo com manifesta falta de atenção em relação ao trânsito que se apresentava pela sua direita, não tendo cedido a passagem ao condutor do veículo de matrícula .. – CN - .., não usando da precaução e destreza devidas, que era capaz de adoptar e que devia ter.
8. O arguido B… agiu deliberada, livre e conscientemente, estando ciente que com a sua conduta poderia vir a provocar lesões corporais e até a morte dos restantes utentes da via, nomeadamente aos condutores, passageiros e peões, mas com isso não se conformando.
9. O arguido B… sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
10. O arguido E…, a hora não concretamente apurada, foi submetido à recolha de sangue para efeitos de exame pericial de pesquisa de álcool, tendo acusado uma TAS de 1,92 g/l.
11. Os arguidos não têm antecedentes criminais registados.
12. O arguido B… encontra-se reformado, auferindo €517,00 mensais. Reside com a esposa, reformada, que aufere €315,00 mensais. Paga €175,00 de renda. Despende na farmácia cerca de €40,00 mensais. Tem o 4º ano de escolaridade.
13. O arguido E… é empresário, auferindo cerca de €1250,00 mensais. Reside com a esposa, que aufere cerca de €700,00 mensais, e 2 filhos, de 9 e 1 ano. Reside em casa pertencente ao Pai. Paga €250,00 de creche, €215,00 de prestação para aquisição de viatura e €270,00 de prestação para aquisição de um armazém. Tem um Citroen … de 2006. Tem o 9º ano de escolaridade.
14. A Avenida … é uma via ladeada por fábricas, habitações e estabelecimentos comerciais.
15. Nas imediações do local onde ocorreu o embate, estavam marcadas no pavimento barras de cor branca, assinalando a proximidade de uma passadeira.
16. No sentido em que circulava o arguido E…, existe uma lomba, permitindo a quem circula nesse sentido uma visibilidade de 60 metros em relação ao local do embate.
17. O arguido B… é tido como bom condutor, sendo bem considerado pelos que o rodeiam.
18. O arguido E… é tido como bom condutor, sendo bem considerado pelos que o rodeiam.
*
2.2. Factos não provados
Discutida a causa e com interesse para a decisão da mesma, não resultou provado que:
a) Aquando do referido em 1. a 5., o arguido E… conduzia com uma TAS de 1,92 g/l.
b) O arguido E… agiu livre, voluntária e conscientemente, com intenção de ingerir bebidas alcoólicas e conduzir de seguida veículo automóvel na via pública, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
c) O arguido B… seguia com atenção ao trânsito que circulava em sentido contrário.
d) O arguido B… accionou o pisca do seu lado esquerdo.
e) Antes de realizar a manobra referida em 3., o arguido B… certificou-se que não circulava nenhum veículo em sentido contrário.
f) O arguido B… circulava a cerca de 90 km/h, sem prestar atenção ao trânsito e à condução.
g) O acidente em causa nos autos ocorreu porque o arguido B… circulava a uma velocidade superior à permitida para o local e/ou com uma taxa de alcoolemia de 1,92 gr/l.
*
O tribunal não se pronunciou sobre o demais vertido na acusação e contestação por constituírem afirmações conclusivas e/ou juízos de direito e que, por isso, não podem ser objecto de uma pronúncia em termos de "provado" ou "não provado", ou por se tratar de factualidade irrelevante à boa decisão da causa.
*
2.3. Fundamentação da convicção do Tribunal
Conforme dispõe o art. 127.º do Código de Processo Penal, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do Tribunal.
A convicção do Tribunal resultou, assim, da prova testemunhal produzida em sede de audiência e da prova documental e pericial junta aos autos, tudo apreciado à luz das regras da experiência comum.
O arguido E… optou por não prestar declarações quanto aos factos vertidos na acusação, fazendo-o apenas quanto às suas condições pessoais, nos termos dados como provados em 13.
O arguido B… confirmou o vertido em 1. e 2., referindo que se certificou antes de arrancar que não vinha ninguém nem de atrás, nem de frente.
Referiu que, quando se preparava para avançar, foi embatido ainda na sua mão de trânsito, não se recordando de mais nada porquanto perdeu os sentidos.
Prestou declarações quanto às suas condições pessoais, nos termos dados como provados em 12.
H…, marido da vítima F…, não assistiu ao acidente em causa nos autos, nada sabendo, por isso, esclarecer quanto à sua dinâmica.
Descreveu as características do local onde ocorreu o acidente.
G… acompanhava a vítima F… no dia e hora em causa nos autos.
Esclareceu que iam a fazer uma caminhada, quando se aperceberam que estava um carro vermelho parado na faixa contrária, já inclinado para a esquerda, à espera que elas atravessassem a Rua ….
Mais disse que, depois de concluírem a travessia, quando já seguiam no passeio, foram atingidas por um veículo.
Esclareceu que não viu como ocorreu o acidente em causa nos autos porquanto o mesmo ocorreu nas suas costas.
Descreveu as características do local onde ocorreu o acidente.
I…, funcionário do arguido E…, e J…, cliente do arguido E…, não assistiram ao acidente em causa nos autos, limitando-se a referir que o arguido E… é um condutor calmo e cuidadoso e que não costuma beber álcool em excesso.
K…, militar da GNR, confirmou o que fez verter no relatório técnico de fls. 125 a 132, nomeadamente que, em face dos cálculos que efectuou, o arguido E… circularia a, pelo menos, 62,64 km/h.
Fez alusão aos efeitos da ingestão do álcool nos condutores.
Referiu ter concluído que a manobra causal do acidente foi a manobra de mudança de direcção à esquerda realizada pelo arguido B… e que mesmo que o arguido E… circulasse a 50 km/h o acidente teria ocorrido na mesma.
L…, militar da GNR, confirmou os relatórios que subscreveu e que se mostram juntos aos autos a fls. 37 a 65.
Descreveu as características do local onde ocorreu o acidente e fez alusão aos efeitos da ingestão do álcool nos condutores.
Esclareceu que se não tivesse ocorrido a manobra de mudança de direcção, o acidente não teria ocorrido.
M…, militar da GNR, que se deslocou ao local após a ocorrência do acidente, confirmou o que fez verter no auto de notícia de fls. 3 a 4, na participação de acidente de viação de fls. 5 a 6, no croqui de fls. 7 e no aditamento de fls. 78.
Esclareceu que foi a patrulha da GNR de Penafiel que realizou os testes/exames de pesquisa de álcool no sangue.
N… nada soube esclarecer sobre o acidente em causa nos autos, limitando-se enumerar os efeitos da ingestão do álcool nos condutores.
O…, P… e Q…, não assistiram aos factos em causa nos autos, atestando que o arguido B… é tido como bom condutor, sendo bem considerado pelas pessoas que o rodeiam.
S… e T…, militares da GNR que se deslocaram ao Hospital U… para realizar os testes/exames de alcoolemia aos arguidos, referiram não se recordar desta situação em concreto.
Referiram, contudo, não se recordar de nenhuma situação em que tenham pedido ao condutor para regressar ao hospital para fazer a colheita de sangue depois do mesmo já se ter ausentado daquele local.
Esclareceu S… que primeiro recolhe a assinatura do médico chefe de equipa, fazendo constar da requisição a hora em que a mesma foi assinada, e que só depois vai ter com a/o enfermeira/a para proceder à colheita do sangue, confirmando, assim, que a recolha é sempre feita em momento posterior à hora que consta da requisição.
S… e T… referiram, ainda, não reconhecer a esposa do arguido E….
V…, responsável pela equipa que realizou os exames de fls. 79 e 80, esclareceu que fazem constar do relatório como hora de colheita a que consta da requisição da GNR.
Elencou os efeitos da ingestão do álcool nas capacidades dos condutores.
Referiu que o arguido E… teria de ter ingerido uma quantidade significativa de álcool para atingir a taxa referida no relatório de fls. 79.
W…, esposa do arguido E…, não assistiu ao acidente em causa nos autos.
Esclareceu, de forma segura e circunstanciada, que o marido lhe ligou logo após o acidente, tendo-se deslocado ao local, tendo-o acompanhado, na ambulância, ao Hospital U….
Referiu que o marido teve alta por volta das 22h30m, tendo-se deslocado para casa. Chegados a casa, disse que foi preparar algo para comerem, tendo ficado o arguido E… na sala.
Mais disse que, quando regressou à sala, encontrou o marido a chorar e a beber, não sabendo precisar nem o que ele bebeu, nem que quantidade bebeu.
Referiu, ainda, que, passado cerca de 1 hora, ligaram para o telemóvel do marido a pedir que fosse ao Hospital fazer recolha de sangue.
Acrescentou que se deslocaram ao Hospital, onde os esperavam os militares da GNR, esclarecendo que entraram directamente na urgência, onde foi feita a colheita de sangue.
X…, médico/chefe de equipa, confirmou ser sua a assinatura que consta da requisição de fls. 536.
Esclareceu que a hora que consta da referida requisição é a hora a que a assinou, podendo não corresponder com a hora em que é feita a colheita.
Não assistiu à colheita de sangue em causa nos autos, não sabendo esclarecer a que hora a mesma foi efectivamente realizada.
Quanto ao registo que consta a fls. 591, por referência às 0h19m, esclareceu que é possível reabrir o programa Alert para introduzir dados na ficha do doente, sendo que a hora que fica registada é a hora em que é introduzido o registo, que pode ou não coincidir com o acto registado.
Y…, médico, confrontado com a ficha clínica de fls. 591, referiu não se recordar da situação em causa, esclarecendo que a hora que dela consta – 0h19m – corresponde à hora em que registou tal informação no programa, desconhecendo se corresponde ou não à hora em que a colheita foi, efectivamente, realizada.
Estes dois médicos referiram que, pelo que consta da ficha clínica do arguido E…, estava o mesmo em condições de realizar o teste de pesquisa de álcool no sangue por ar expirado, nada impondo, do ponto de vista clínico, que se realizasse a colheita de sangue.
Z… e AB…, administrativos do Hospital U…, referiram, em suma, que, por ordem do médico, podem reabrir o episódio de urgência do doente, não confirmando se o doente se ausentou ou não do Hospital.
BB…, enfermeira que realizou a colheita de sangue relativa ao arguido E…, esclarecendo que não se recorda da situação em concreto, referiu que coloca sempre um cateter ao doente que chega à urgência, o qual não utiliza posteriormente para efeitos de colheita de sangue para teste de alcoolemia solicitado pela GNR (fazendo, para esse efeito, sempre uma nova punção), pelo que a colocação de cateter referida na ficha clínica não corresponde a colheita de sangue para efeitos de teste de alcoolemia.
Mais confirmou que os militares da GNR têm de obter em primeiro lugar a assinatura do médico chefe de equipa na requisição e que só depois é que os enfermeiros podem colher a amostra de sangue.
Esclareceu que pode mediar bastante tempo entre a assinatura do médico e a efectiva colheita de sangue, caso os enfermeiros estejam ocupados.
Disse, ainda, que não regista esta colheita nos procedimentos de enfermagem da ficha clínica do doente, ficando apenas registada a colheita para efeitos hospitalares – conforme p.ex. consta da ficha de fls. 599.
Atentou-se, ademais, ao auto de notícia de fls. 3 a 4, à participação de acidente de viação de fls. 5 a 6, ao croqui de fls. 7, a ficha de CODU de fls. 10 a 11 (onde é atestado o óbito de F…), ao relatório de inspecção ocular de fls. 37 a 38, ao registo fotográfico de fls. 39 a 65, ao aditamento de fls. 78, aos relatórios dos exames toxicológicos de fls. 79 e 80, ao relatório de autópsia de fls. 82 a 86, à informação de fls. 90, ao croqui de fls. 121, às fotografias de fls. 154 a 177, ao assento de óbito de fls. 186, ao documento junto a fls. 300 a 319 (relativo aos efeitos do álcool na condução), à fotografia de fls. 320, às requisições de fls. 536 a 537 (que nem sequer se mostra assinadas pelo arguido E…, nem dela consta qualquer resultado obtido pelo teste de ar expirado), aos registos clínicos de fls. 546 a 547, ao relatório de fls. 554 a 575 (valorado como prova documental nos termos previstos no art. 165º n.º 3 do CPP, aí se referindo que o veículo conduzido pelo arguido E… circularia a uma velocidade mínima de 69,69 km/h, concluindo, contudo, ser a manobra realizada pelo arguido B… a que deu causa ao acidente), à informação de fls. 590, ao relatório de urgência relativo ao arguido E… de fls. 591 a 593 (onde se refere que o arguido teve alta clínica pelas 22h30m e alta administrativa pelas 22h39m, tendo sido registado que, pelas 0h19m, que o arguido fez colheita de sangue para alcoolemia, após o que teve nova alta), à informação do IML de fls. 595 a 596, ao relatório de urgência relativo ao arguido B… de fls. 597 a 603, à informação prestada pela GNR a fls. 615 a 624 e 630 a 638 (a fls. 616 consta apenas a resposta dada quanto ao arguido B…; a fls. 624 consta escrito manualmente o n.º de telemóvel do arguido E…) e aos CRC´s de fls. 627 e 628.
Mais se atentou ao relatório técnico de fls. 125 a 134, onde se conclui que o arguido E… circulava a, pelo menos, 62,64 km/h e que, mesmo que este circulasse a 50 km/h, não conseguiria evitar o embate.
Teve-se em consideração o relatório pericial de fls. 466 e ss., em conjugação com os esclarecimentos prestados, em sede de audiência de discussão e julgamento, pelo Sr. Perito D….
Daqui resultou, em suma, que:
- o embate ocorreu na hemi - faixa de rodagem reservada à circulação do veículo conduzido pelo arguido E… (ao contrário do afirmado pelo arguido B…);
- o arguido E… circulava a uma velocidade de, pelo menos, 70 km/h.
- o arguido B… podia percepcionar a aproximação do veículo do arguido E…, tendo em consideração a velocidade a que este seguia, a, pelo menos, 42 metros de distância.
Foi esta a prova produzida nos autos.
Dela resultou, a nosso ver, que o acidente em causa nos autos ocorreu por causa da manobra de mudança de direcção realizada pelo arguido B….
Se é certo que se provou que o arguido E… circulava em excesso de velocidade, não se provou que tivesse sido por causa desse excesso de velocidade que o acidente em causa nos autos ocorreu.
Mesmo que o arguido E… circulasse dentro do limite de velocidade legalmente estabelecido para o local – 50 km/h – o acidente sub judice teria ocorrido – cfr. fls. 131.
Tendo ficado demonstrado que o arguido B… imobilizou o seu veículo junto da linha divisória da faixa de rodagem, para deixar passar os peões que atravessavam a Rua …, da prova resultou que o mesmo, quando iniciou a sua marcha, não atentou ao trânsito que circulava em sentido contrário, nomeadamente ao veículo conduzido pelo arguido E…, o qual lhe era visível a mais de 40 metros de distância.
Sendo possível ao arguido B… visualizar o veículo conduzido pelo arguido E… a tal distância, deveria este ter aguardado que este passasse para iniciar a manobra de mudança de direcção à esquerda.
Não o tendo feito, agiu o arguido B… com falta de atenção e cuidado.
Considerando ainda a localização do ponto de embate – cfr. fls. 472 a 473 e 478 - podemos concluir que o arguido B… iniciou a manobra de mudança de direcção quando já lhe era possível visualizar o arguido E… a circular em sentido contrário (caso este arguido estivesse já a finalizar a manobra em causa, o embate teria ocorrido na parte traseira do veículo conduzido pelo arguido B…, mais próximo do limite direito da hemi - faixa de rodagem onde circulava o arguido E…).
Tivesse o arguido B… aguardado, como podia e devia ter feito, que o veículo conduzido pelo arguido E… passasse e o acidente nunca teria ocorrido.
Dúvidas não restam, ainda, que o óbito de F… ocorreu na sequência do acidente em causa nos autos, óbito que foi, aliás, logo atestado no local.
No que concerne aos elementos subjectivos, o Tribunal socorreu-se, ainda, de uma presunção judicial ou natural, partindo dos factos objectivos, conjugados com as regras da experiência comum.
Ao realizar uma manobra perigosa como é a mudança de direcção à esquerda, sem atentar devidamente ao trânsito que segue em sentido contrário, qualquer condutor tem de prever, como necessariamente previu o arguido, que, com a sua conduta, pode vir a provocar um acidente e que desse acidente podem resultar lesões corporais e até a morte aos restantes utentes da via, nomeadamente aos condutores, passageiros e peões.
Ademais, é do conhecimento generalizado que o homicídio, ainda que por negligência, é penalmente punido.
Quanto ao provado em 10. e ao não provado em a) e b), dúvidas não existem que ao arguido E… foi recolhida uma amostra sanguínea para determinação da TAS e o resultado obtido nessa sequência.
Não consta dos autos que o arguido tenha sido sujeito a um teste de despistagem com aparelho qualitativo, com resultado positivo, nem que o mesmo tivesse realizado previamente teste quantitativo através do ar expirado.
Veja-se a propósito o disposto nos artigos 1.º e 2.º, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool e Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17-05.
Estabelece o artigo 1.º, n.ºs 1 e 2, daquele diploma legal, que:
“1 – A presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado, efectuado em analisador qualitativo.
2 – A quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado, efectuado em analisador quantitativo, ou por análise de sangue”.
Preceitua, por sua vez, o artigo 2.º, n.ºs 1 e 2, do diploma em referência, que:
“1- Quando o teste realizado em analisador qualitativo indicie a presença de álcool no sangue, o examinando é submetido a novo teste, a realizar em analisador quantitativo, devendo, sempre que possível, o intervalo entre os dois testes não ser superior a trinta minutos.
2 – Para efeitos do disposto no número anterior, o agente da entidade fiscalizadora acompanha o examinando ao local em que o teste possa ser efectuado, assegurando o seu transporte, quando necessário”.
Em conformidade com o exposto, o procedimento levado a cabo na detecção de infracções relativas à condução sob influência do álcool passa:
- primeiro, pela realização de um teste qualitativo, destinado apenas a despistar as situações de existência de álcool no sangue, funcionando como indicador para a actuação dos agentes a partir daquele momento, mas que não oferece, quanto à quantidade em concreto de álcool no sangue, o mesmo grau de precisão do teste quantitativo feito com o aparelho respectivo;
- depois um teste quantitativo, acompanhando o agente da entidade fiscalizadora o examinando ao local que o mesmo possa ser efectuado - normalmente as instalações dessa entidade - assegurando o seu transporte, destinado a permitir saber com a precisão e o rigor que se impõem qual a taxa efectiva de cuja certificação depende a definição da natureza da infracção a que corresponde a conduta (contra-ordenação ou crime);
Prevê o artigo 156.º, do Código da Estrada, sob a epígrafe “exames em caso de acidente”, que:
“1 – Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do termos do artigo 153.º
2 – Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de disgnóstico do estado de influenciado pelo álcool. (…)”
Ou seja, em caso de acidente de viação, a pesquisa deve fazer-se, em primeiro lugar, mediante exame de pesquisa de álcool no ar expirado e só quando o mesmo não seja possível realizar, por o estado de saúde o condutor não o permitir, é que se deverá proceder à recolha de sangue.
Conforme refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13-07-2016, Proc. 73/14.9GAPNL.C1, in www.dgsi.pt:
“III – A entidade fiscalizadora não tem o poder discricionário para agir como lhe aprouver na pesquisa de álcool no sangue, pois o condutor que interveio em acidente de viação, deve em princípio ser submetido no mais curto espaço de tempo ao teste de pesquisa de álcool no sangue no ar expirado, através de analisador qualitativo e sendo este positivo deve ser submetido novamente a teste a realizar em analisador quantitativo.
IV - A medição da TAS através de análise ao sangue, só deve ser feita quando o condutor requerer a contraprova, ou quando for impossível a realização do teste no ar expirado segundo o procedimento regulamentar do art. 4.º do Regulamento de Fiscalização, aprovado pela Lei 18/2007, de 17/5 ou quando as condições físicas do fiscalizado não o permitam.”
Acrescenta o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17-12-2013, Proc. 1135/11.0GBGMR.G1, in www.dgsi.pt:
“Nos termos do artigo 156.º, n.ºs 1 a 3, do Código da Estrada, em caso de «acidente de trânsito», «os condutores e os peões» que neles intervenham «devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado», devendo efectuar «o exame de pesquisa de álcool no sangue» quando tal não for possível e, «se este não puder ser feito, deve proceder-se a exame médico».
Ou seja, em caso de acidente de trânsito, o legislador impõe que seja fiscalizada a presença de álcool nos respectivos intervenientes, devendo tal efectuar-se através de exame de pesquisa de álcool no ar expirado e, caso este não seja possível, através de pesquisa de álcool no sangue ou, na impossibilidade deste, mediante exame médico.
Em tal caso, a lei aponta, pois, um procedimento de fiscalização, o que bem se compreende atenta a situação: em causa pode estar a invasão da integridade física do condutor e/ou peão, assim como uma limitação do direito à não auto-incriminação, o que tudo exige uma ponderação de valores, cujo desequilíbrio é susceptível de exprimir um método proibido de prova e, pois, de invalidar em absoluto a prova produzida.
Dito de outro modo, a prova do estado de embriaguez está legalmente indicada: deve fazer-se necessária e subsidiariamente por exame de pesquisa de álcool no ar expirado, por pesquisa de álcool no sangue ou por exame médico.
«(…) Existindo todo um bloco normativo que de modo detalhado define e limita os modos processualmente idóneos à demonstração de um dos elementos do tipo objectivo do crime, excluindo quaisquer outros, a conclusão inequívoca que daí tem de extrair-se é a de» que estamos aqui perante «um autêntico domínio de prova vinculada. Nem a confissão do arguido, nem evidentemente a prova testemunhal e nem sequer eventuais meios técnicos de que por sua conta o arguido ou outrem se tivesse socorrido, podem suprir a falta daqueles meios de prova e infirmar o seu resultado» Pedro Soares Albergaria e Pedro Mendes Lima, Sub Judice, n.º 17, Janeiro/Março de 2000, página 60.
«Estamos no domínio da legalidade da prova e a falta de cumprimento dos trâmites legais não é susceptível de sanação, o que significa que a falta de documentação da legalidade não pode corresponder à legalidade do meio de prova, sendo sempre necessário que o processo documente essa legalidade» Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19.10.2010, Processo n.º 178/09.8GCAGD.C1, in www.dgsi.pt/jtrc.”
Posto isto, importa aferir da validade da prova obtida nestes autos, através da recolha de sangue, tendo presente que o arguido não foi sujeito ao teste quantitativo através do ar expirado.
In casu, julgamos que, em face da prova produzida em audiência de julgamento, a impossibilidade de submissão ao teste através do analisador quantitativo não ficou demonstrada.
O arguido E… teve alta médica pelas 22h29m.
Ademais, os dois médicos inquiridos referiram que, atentando ao que consta da ficha clínica do arguido E…, este estaria em condições de fazer o teste quantitativo de ar expirado.
Não consta dos autos, nomeadamente do expediente junto pela GNR, que tenha sido sequer tentada a realização de teste quantitativo de ar expirado e/ou que o arguido se encontrava fisicamente impossibilitado de o fazer.
Daqui resulta que estamos perante uma prova obtida em violação do preceituado no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool e Substâncias Psicotrópicas, ferida, por isso, de nulidade.
Sendo inválida a prova em causa, não nos é possível afirmar que o arguido E… circulava, aquando do acidente, com uma TAS superior à legalmente prevista.
Ademais, o depoimento da esposa do arguido E…, conjugado com os registos clínicos juntos aos autos a fls. 591 e ss., e a anotação que consta a fls. 624, levantaram dúvidas sérias e insanáveis sobre a hora da efectiva colheita de sangue e, bem assim, se o arguido E… ingeriu bebidas alcoólicas após o acidente em causa nos autos e antes da colheita do sangue.
Pelo exposto, da prova produzida resultou, com a certeza exigível, apenas a factualidade dada provada e já não a factualidade dada como não provada.
(…)»
IV – Cumpre decidir.
Vem o arguido e recorrente alegar que a prova produzida, também à luz do princípio in dubio pro reo, impõe decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida, devendo ser ele absolvido do crime de homicídio por negligência por que nessa sentença foi condenado. Alega que a sentença recorrida diverge da perícia realizada a solicitação do Tribunal e tal divergência não foi justificada como impõe o artigo 163.º do Código de Processo Penal. De acordo com essa perícia, e tendo em conta os esclarecimentos prestados em audiência pelo perito, se o arguido E… circulasse à velocidade de 50 km/h, o máximo permitido no local, o acidente não ocorreria, ou, se ocorresse, não teria a dinâmica e a consequência trágica que teve. Contrariamente ao que consta da sentença recorrida, não foi a mudança de direção (permitida no local) a única causa do acidente. Deveria considerar-se provado que o arguido E… conduzia com uma taxa de alcoolémia igual ou superior a 1,2 g/l. e deveria considerar-se provado que ele, arguido e recorrente, prestava atenção à sua condução e ao trânsito, pois só esse facto permitiu que, antes de realizar a manobra de mudança de direcção para a esquerda, deixasse a vítima e a amiga desta atravessar a rua em segurança.
O arguido alega que estaremos perante um erro notório da apreciação da prova. No entanto, de acordo com o artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, esse vício teria de decorrer do próprio texto da sentença recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum. E não é isso que resulta da própria motivação do recurso. Estaremos, antes, perante a impugnação da decisão sobre matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Vejamos.
Alega o arguido e recorrente que o embate que deu origem à morte da infeliz vítima não teria ocorrido (ou não teria a trágica consequência que teve) se o arguido E… não circulasse à velocidade a que circulava (pelo menos, 70 km/h) e circulasse à velocidade máxima permitida no local (50 km/h), Invoca nesse sentido a perícia solicitada pelo Tribunal ao Centro Pericial de Acidentes do INEGI- CENPERCA da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (cujo relatório está junto a fls. 466 a 491), em especial os esclarecimentos a esse respeito prestados em audiência pelo perito Engº D….
Na parte da fundamentação da sentença recorrida acima transcrita é invocado o relatório da G.N.R. junto a fls 125 a 134, onde se afirma que o acidente teria ocorrido mesmo que o arguido E… circulasse à velocidade de 50 km/h. E afirma-se que foi tido em conta o referido relatório pericial.
Impõe-se sublinhar, desde já, que a prova relevante para este efeito é a que resulta dessa perícia (nesta incluindo o referido relatório e os esclarecimentos prestados em audiência pelo perito Engº D…). Só esta tem o valor que é próprio da prova pericial e que decorre do artigo 163.º do Código de Processo Penal. Não tem essa relevância e esse valor o relatório técnico da G.N.R. junto a fls. 125 a 134.
No referido relatório pericial afirma-se que o arguido E… não poderia ter evitado o embate devido à velocidade a que seguia (ver fls. 489).
Mas relevantes são, sobretudo, os esclarecimentos prestados em audiência pelo perito autor desse relatório, Engº D… Este não afirmou com certeza que o embate seria evitado se o veículo conduzido pelo arguido E… circulasse a 50 km/h., mas afirmou repetidamente que a dinâmica do acidente seria, nesse caso, completamente diferente, que este veículo teria mais dificuldade em sobrepor o passeio e poderia não bater no muro (aos min. 4.39 a 8.53, 33.41 a 34.53, 45.1 a 48.17, 53.20 a 53.38, 54.55 a 1.02.06, declarações transcritas na motivação do recurso). O que significa que a morte da infeliz vítima poderia ser evitada se esse veículo circulasse a essa velocidade.
Poderemos, assim, concluir que a velocidade excessiva (tendo em conta os artigos 24.º, 25.º e 27.º do Código da Estrada) a que seguia o veículo conduzido pelo arguido E… contribuiu causalmente para a morte da infeliz vítima.
No que se refere à prova da eventual condução em estado de embriaguez por parte do arguido E…, o arguido e recorrente invoca os depoimentos das testemunhas agentes da G.N.R. que afirmam que seria insólito (porque não se lembram de alguma vez assim terem procedido) que tivessem solicitado àquele a realização de pesquisa de álcool no sangue no hospital já depois de este daí ter regressado a casa com alta, e alega, por outro lado, que é inverosímil a versão da testemunha esposa desse arguido, segundo a qual ele, que normalmente não ingere bebida alcoólicas, as ingeriu precisamente nessa altura, entre o momento que regressou do hospital e o momento em que lá terá voltado para fazer o exame de pesquisa de álcool no sangue.
Podemos dizer que estamos perante uma dúvida não superada a respeito da questão de saber se o exame de pesquisa de álcool no sangue a que foi sujeito o arguido E… se seguiu ao acidente sem que, entretanto, ele tenha ingerido bebidas alcoólicas.
A verdade é que, como bem se refere na sentença recorrida, não foram observados os requisitos legais que impunham a realização de testes qualitativo e quantitativo através do ar expirado e do exame sanguíneo apenas na impossibilidade de realização desses testes. A inobservância desse procedimento e a referida dúvida impedem que o arguido E… pudesse ser condenado pela prática de crime de condução em estado de embriaguez por que vinha acusado. Poderá dizer-se que, perante essa dúvida, o princípio in dubio pro reo, beneficiará esse arguido, impedindo a prova de que ele conduzia em estado de embriaguez, mas também poderá beneficiar o arguido ora recorrente quando se coloca a questão de saber se este teve, ou não, culpa exclusiva no acidente. Ou seja, a dúvida a esse respeito também poderia obstar à prova de que só a conduta do arguido ora recorrente deu causa ao acidente.
Nada do que se vem afirmando implica, porém, que o arguido e recorrente também não tenha contribuído causalmente para o acidente, por ter procedido à manobra de mudança de direção sem observância do disposto no artigos 29.º, 30.º e 35.º do Código da Estrada, como bem se assinala na sentença recorrida.
Simplesmente, não foi essa a causa única do embate e da sua trágica consequência. Para tal contribuiu também o excesso de velocidade a que seguia o veículo conduzido pelo arguido.
Alega o arguido e recorrente que deverá considerar-se provado (ao contrário do que consta da sentença recorrida) que ele prestava atenção à sua condução e ao trânsito, pois só esse facto permitiu que ele, antes de realizar a manobra de mudança de direcção para a esquerda, deixasse a vítima e a amiga desta atravessar a rua em segurança. Mas, se assim fosse, também teria avistado o veículo conduzido pelo arguido E… a, pelo menos, 42 m de distância (assim, o relatório pericial acima referido, a fls. 489). A sentença recorrida não é, pois, merecedora de reparo quanto a este aspeto.
Devemos, pois, concluir que quer o arguido ora recorrente, quer o arguido E…, concorreram, com as respetivas conduta, para o acidente em apreço e para a trágica consequência deste. Estamos, assim, perante uma situação de causalidade cumulativa, concausalidade ou concorrência de causas, ou seja, a concorrência conjunta de cursos causais que em separado não seriam suficientes para a produção do resultado. Para saber se nestas situações o agente responsável pela ocorrência de uma dessas causas concorrentes (neste caso, o arguido e recorrente) pode ser responsabilizado pela ocorrência do resultado, impõe-se a análise das várias teorias relativas à imputação objetiva que têm sido propostas pela doutrina.
De acordo com a teoria da condição ou da equivalência, todas a condições que contribuem para a produção do resultado têm o mesmo valor, sendo causa em sentido jurídico-penal toda a condição que não pode ser suprimida sem que desapareça o resultado (fórmula da conditio sine qua non). À luz desta teoria, qualquer das causas concorrentes seria condição sine qua non da produção do resultado: sem ela este não teria ocorrido.
No entanto, esta teoria foi, desde há muito, superada pela doutrina e pela jurisprudência, que criticaram o exagero e as desigualdades (o célebre exemplo de escola da morte de um hemofílico por efeito de um golpe que nunca provocaria a morte de uma pessoa que não sofra dessa doença) a que pode conduzir e o pressuposto puramente naturalista de que parte. A causalidade humana não se confunde com a causalidade física. Só se justifica a imputação objetiva quando estamos perante condutas que representam o domínio de forças naturais pela vontade humana (ver, entre outros, Manuel Cavaleiro Ferreira, Direito Penal Português, Parte Geral, I, Verbo-U.C.P., Lisboa, 1982, pgs. 248 a 252, e Eduardo Correia, Direito Penal, I, Livraria Almedina, Coimbra, 1971, pgs.253 a 257).
Com reação a essa teoria, teve grande acolhimento na doutrina e na jurisprudência a teoria da causalidade adequada. Para esta teoria, causa em sentido jurídico-penal é apenas aquela ação humana que se traduz numa condição que, em conformidade com a experiência comum, é em abstrato adequada à produção do resultado, quando este é uma consequência normal e típica dessa ação (ver, entre outros, Manuel Cavaleiro Ferreira, op. e loc. cits., e Eduardo Correia, op. cit., pgs. 257 a 266).
Esta teoria encontra ainda algum acolhimento na doutrina portuguesa atual (assim, Américo Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pgs. 301 a 308). E pode considerar-se refletida na redação do artigo 10º, nº 1, do Código Penal quando, a propósito da comissão por ação e por omissão, se alude à «ação adequada» a produzir o resultado e à «ação adequada a evitá-lo».
À luz desta teoria, poderia fazer-se o seguinte raciocínio.
Ao contrário da teoria da equivalência das condições, a teoria da causalidade adequada distingue, de entre as várias condições (todas aquelas sem as quais não se produz o resultado), as que são causa (adequada) desse resultado. Em caso de causas cumulativas, poderá dizer-se que qualquer delas poderá ser condição de produção do resultado, mas nenhum deles será, por si só, causa dessa produção (só em conjunto o serão). A situação é semelhante à do exemplo de escola das duas doses de veneno, ministradas por duas pessoas diferentes que actuam independentemente uma da outra, que só em são conjunto (e não isoladamente) provocam, a morte. A ação de cada uma das pessoas que ministra cada uma das doses será condição, mas não causa (adequada) da morte da vítima.
No entanto, também já tem sido defendido, no âmbito desta teoria, que se verifica um nexo de causalidade adequada quando uma condição não é a única a contribuir para a produção do resultado, mas aumenta a possibilidade de ocorrência do mesmo de modo não irrelevante (ver Claus Roxin, Derecho Penal, Parte General, tomo I, tradução castelhana da 2ª edição alemã, Editorial Civitas, Madrid, 1997, pg. 360).
Mas mais do que a teoria da causalidade adequada, tem tido acolhimento recente na doutrina a teoria da conexão do risco, ou teoria do incremento do risco (ver, entre outros, Claus Roxin, op. cit., pgs. 342 e segs., e Problemas Fundamentais do Direito Penal, tradução portuguesa, Vega, Lisboa, 1986, pgs. 145 a 168 e 235 a 272; Hans Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, tradução castelhana da 3ª edição alemã, Bosch, Barcelona, 1981, vol. I, pgs 391 e segs., e vol. II, pgs. 805 e segs; e Günter Jakobs, Derecho Penal, Parte General, tradução castelhana da 2ª edição alemã, Marcial Pons - Ediciones Jurídicas S.A., Madrid, 1997, pgs. 250 e segs.; e, entre nós, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I – Questões Fundamentais; A Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pgs. 331 e segs.). Para esta teoria, haverá imputação objetiva do resultado à conduta do agente quando este, com a sua ação, tenha criado um risco não permitido, ou tenha aumentado um risco já existente, e que esse risco tenha conduzido à produção do resultado concreto.
À luz desta teria, pode dizer-se que se verificará um nexo de imputação objetiva em casos de causalidade cumulativa e em relação a qualquer das causas, pois cada uma das ações, embora não seja causa única de produção do resultado, incrementou o risco dessa produção. Assim se verificará no exemplo de escola de um camionista que, ao ultrapassar um ciclista que conduzia embriagado, por não respeitar a distância regulamentar, o faz tombar, sendo este resultado consequência quer da embriaguez, quer da inobservância de tal regra de ultrapassagem (assim, Claus Roxin, Problemas Fundamentais…, cit., pgs. 256 a 261; e Güntther Jakobs, op, cit, pg. 278). Ou também no caso de um atropelamento causado por um veículo que, conduzindo em excesso de velocidade, o provocou para se desviar de outro que não respeitou a regra da prioridade; situação em que também são duas condutas não permitidas (o excesso de velocidade e o desrespeito pelas regras de prioridade) a produzir o resultado, sendo que cada uma delas incrementou o risco dessa produção (assim, Günther Jakobs, op. cit., pg. 278).
O caso em apreço é equiparável a estas situações. À luz desta doutrina, não pode deixar de ser imputada à conduta do arguido ora recorrente, enquanto conduta que criou e incrementou o risco de produção do resultado concreto que se traduziu na morte da vítima do embate em apreço, este resultado. E, como estamos perante uma conduta culposa, não pode deixar de ser imputada ao arguido ora recorrente a prática do crime de homicídio por negligência por que foi condenado.
A concorrência de causas do acidente (e de culpas) não impede, pois, essa condenação. Poderia dizer-se que essa concorrência atenua a responsabilidade do arguido ora recorrente, o que deverá influenciar a escolha e medida da pena em que foi condenado. E o artigo 403.º, n.º 3, do Código de Processo Penal impõe que consideremos este aspeto, apesar de ele não ser referido na motivação do recurso.
No entanto, afigura-se-nos que a pena em que o arguido ora recorrente foi condenado (duzentos e cinquenta dias de multa, não particularmente gravosa, pois) é, à luz do disposto nos artigos 70-º, 71.º e 137.º, n.º 1, do Código Penal, adequada à ilicitude do facto e da culpa do arguido ora recorrente, mesmo considerando que a morte da vítima não se ficou a dever apenas à conduta e à culpa deste.
Deve, assim, ser negado provimento ao recurso.

O arguido e recorrente deverá ser condenado em taxa de justiça (artigo 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo a douta sentença recorrida.

Condenam o arguido e recorrente em três (3) U.C.s de taxa de justiça.

Notifique
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Porto, 6/6/2018
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo