Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
579/08.9GDVFR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
DESCRIÇÃO FACTUAL
REJEIÇÃO
Nº do Documento: RP20100714579/08.9gdvfr-A.P1
Data do Acordão: 07/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, o requerimento para abertura da instrução [RAI] apresentado pelo assistente que, na sequência do arquivamento do inquérito pelo Ministério Público, não contenha o relato dos factos imputados ao arguidos, quer no plano objectivo, quer no plano subjectivo (“acusação alternativa”), ou seja, sem a indicação dos elementos referidos nos art. 287.º/2 e 283.º/3, do CPP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 579/08.9gdvfr-A.P1
Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira – 2.º juízo criminal

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório
1. No processo n.º579/08.9gdvfr, em que foi requerida a abertura de instrução, a correr no 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira, recorre a assistente B…….., Ld.ª, melhor identificada nos autos, do despacho do M.mo Juiz que decidiu rejeitar, por legalmente inadmissível, o requerimento de abertura de instrução que havia apresentado.
A referida assistente, motivado o recurso, conclui (em transcrição):
1. O requerimento de abertura de instrução apresentado pela Assistente cumpre todos os requisitos de que depende a sua admissibilidade.
2. foi apresentado em tempo;
3. contém a narração dos factos, o lugar, o tempo e a motivação da prática que fundamentam a aplicação aos arguidos de uma pena;
4. contém a indicação das disposições legais aplicáveis;
5. define e delimita o objecto da instrução, indicando os actos de instrução que pretende que o Juiz leve a cabo.
6. O requerimento de abertura de instrução que apresentou a Assistente respeita integralmente os requisitos dos números 1 e 2 do artigo 287.º do Código de Processo Penal e ainda as alíneas b) e c) do número 3 do artigo 283.º do mesmo diploma legal.
7. O n.º 2 do Artigo 287.º do Código de Processo penal preconiza que o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades essenciais.
8. Acresce que a instrução tem um conteúdo abrangente, não estando exclusivamente limitada ao que é alegado por quem a requer, ao contrário do que se defende no despacho posto em crise.
9. O Requerimento de Abertura de Instrução não tem necessariamente de obedecer às rigorosas exigências acusação, atento o disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 287.º
10. A douta decisão ora posta em crise contraria o n.º 3 do artigo 287.º do Código de Processo Penal.
11. De acordo com este dispositivo, o requerimento de abertura de instrução apenas pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do Juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução,
12. Vícios de que o requerimento apresentado pela Assistente, ora Recorrente, não enferma.
13. A decisão de rejeição liminar do Requerimento de Abertura de Instrução que ora posta em crise, decide erradamente a aplicação do n.° 3 do artigo 287.º e viola a letra e o espírito do n.º 2 do mesmo dispositivo, em clara contradição com a função e razão de ser da própria fase de Instrução.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO QUE DOUTAMENTE SERÃO SUPRIDOS, DEVERA SER REVOGADA A DECISÃO ORA EM CRISE, COM AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS.

2. Respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, defendendo que o recurso não merece provimento, pelas razões que expõe a fls. 217 e seguintes (fls. 29 e seguintes dos autos de recurso).

3. Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido de que deverá ser negado provimento ao recurso.

4. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II – Fundamentação
1. Conforme jurisprudência constante e pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Assim, a questão a decidir consiste em saber se o requerimento de abertura de instrução apresentado pela recorrente deveria ou não ter sido rejeitado com fundamento na sua inadmissibilidade legal.

2. O despacho recorrido tem o seguinte teor:
«No termo do inquérito a que respeitam os presentes autos o Ministério Público proferiu a acusação de fls. 75 e seguintes, imputando a C………, D…….. e E……… a prática em 08.07.2008 de um crime de furto qualificado, tendo por objecto bens que se encontrariam no interior de obra em construção da ora assistente B…….., Lda.
Previamente, proferira o Ministério Público a decisão de arquivamento de fls. 74, por ausência de indícios suficientes, no que respeita a denunciado furto de outros bens que não os que constam da acusação.
Inconformada com tal decisão de parcial arquivamento, requereu a assistente abertura de instrução nos termos de fls.125 e seguintes.
O requerimento foi apresentado tempestivamente (fls. 95, 118) e foi paga a taxa de justiça devida pela abertura de instrução (fls. 134-5).
Todavia, não é legalmente admissível a realização de instrução nos termos em que foi requerida pela assistente a fls. 125 e seguintes, já que o requerimento para abertura de instrução apresentado não observa o disposto no n.º 2 do artigo 287º e no n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, limitando-se a assistente a descrever declarações prestadas no decurso do inquérito e questionar a valoração que de tais elementos de prova foi feita pelo Ministério Público na decisão de encerramento do inquérito, alegando que os arguidos deveriam ser acusados pelo furto de outros objectos para além dos referidos na acusação, enunciando diversas questões que entende que deveriam ter sido esclarecidas no decurso do inquérito e requerendo a inquirição de testemunhas.
Porém, como já aludido, no requerimento não observou a assistente o disposto no n.º 2 do artigo 287º e no n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, já que do mesmo não consta a narração de factos susceptíveis de consubstanciar todos os pressupostos legais de qualquer ilícito criminal, i.e. (cfr. artigo 1º, n.º1, al. a), do Código de Processo Penal), não consta do requerimento para abertura de instrução a narração de factos que possam fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.
Ora, o requerimento para abertura de instrução apresentado em caso de arquivamento pelo Ministério Público, equivalerá em tudo a uma acusação que nos mesmos termos que a acusação formal (pública ou particular) condiciona e limita a actividade de investigação do juiz e a decisão instrutória (cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, Curso de Processo Penal, III, pág. 125 e seguintes e 139 e seguintes), na qual apenas poderão ser considerados os factos descritos no requerimento para abertura de instrução (ressalvada a hipótese a que se refere o artigo 303º do Código de Processo Penal de alteração não substancial dos factos descritos nesse requerimento), sob pena de nulidade: artigo 309º, n. º1, do Código de Processo Penal.
Não constando do requerimento apresentado nestes autos pela assistente a descrição de factos susceptíveis de integrar todos os pressupostos legais de crime, nunca poderiam os arguidos ser condenados com base apenas nos factos alegados em tal requerimento nem poderiam, consequentemente, ser pronunciados por esses factos (já que, como expresso no artigo 308º, n.º1, do Código de Processo Penal, a eventual pronúncia tem por objecto factos que consubstanciem os "( ... ) pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança( ... )", i.e., a prática de crime, nos termos do artigo 1º, n.º1, al. a), do Código de Processo Penal), sendo certo que não poderiam também ser considerados em hipotético despacho de pronúncia factos que eventualmente resultassem da instrução e que não tivessem sido alegados no requerimento para abertura de instrução apresentado, pois tal implicaria alteração substancial que viciaria de nulidade tal decisão instrutória, nos termos do artigo 309º do Código de Processo Penal (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 23.05.2001, CJ, III, 239, Acórdãos da Relação de Coimbra de 24.11.1993, CJ, V, 61 e da Relação de Lisboa de 28.05.91, BMJ, 407, pág. 613).
Importa notar que, nos termos em que a lei vigente a regula, a instrução tem natureza judicial e não de actividade de investigação: destina-se à comprovação judicial da decisão de deduzir ou não acusação tomada pelo Ministério Público (artigo 286º, n.º1, do Código de Processo Penal) e não a constituir um complemento da investigação prévia à fase de julgamento, como parece pretender a assistente, quando alega, designadamente, que "é pois agora fundamental fazer na instrução aquilo que deveria ter ficado exaustivamente apurado durante o inquérito" (artigo 30º do requerimento).
A estrita vinculação temática do tribunal a que se vem fazendo referência (limitação da actividade de instrução aos factos alegados no requerimento para abertura de instrução) relaciona-se com essa natureza judicial da instrução e é uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal, garantia de defesa consagrada no artigo 32º, n.º5, da Constituição da República Portuguesa.
Não pode portanto pretender-se através da instrução alcançar os objectivos próprios do inquérito: outros meios processuais são os adequados para o efeito e aos mesmos podem os sujeitos processuais interessados recorrer (cfr., nomeadamente, artigos 279º, 277º, n.º2, 278º, todos do Código de Processo Penal). A admitir-se entendimento diverso, "( ... ) estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da acção penal, contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor e a transformar a natureza da instrução que passaria de contraditória a inquisitória" (Acórdão da Relação de Lisboa de 2506.2002, CJ, 11/, 143).
A apontada deficiência do requerimento (deficiência que é de conteúdo, não de mera forma) não poderia sequer ser suprida por iniciativa do Tribunal, designadamente mediante decisão que convidasse a assistente a supri-la.
Com efeito, decisão que convidasse a requerente a apresentar novo requerimento para abertura de instrução - não deixando de consubstanciar o exercício pelo juiz de instrução de uma faculdade inquisitória e de exercício de acção penal que no actual quadro legal processual penal não lhe assiste - contrariaria o citado fundamental princípio da estrutura acusatória do processo penal (artigo 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa).
Esclarecendo divergências jurisprudenciais que até então se vinham verificando a tal respeito, veio o Supremo Tribunal de Justiça fixar jurisprudência por Acórdão de 12.05.2005 (Acórdão para Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, publicado no DR - IS-A de 04.11.2005) nos termos seguintes: "Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento para abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, n.º2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido".
Importa ainda considerar que da inadmissibilidade de renovação do requerimento para abertura de instrução não resulta limitação desproporcionada do direito do assistente a deduzir acusação através do requerimento de abertura de instrução, como referido no Acórdão do Tribunal Constitucional de 30.01.2001 (publicado no DR-IIS, de 23.03.2001 (acerca da não equiparação do estatuto do assistente ao do arguido, cfr. também Acórdão do mesmo Tribunal de 31.10.2003, publicado no DR-IIS, de 17.12.2003, a pág. 18.455), "( ... ) na medida em que tal facto lhe é exclusivamente imputável, para além de constituir - na sua possível concretização - uma considerável afectação das garantias de defesa do arguido". Acresce que "(... ) do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efectivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito" .
Em síntese e em conclusão:
Não resultando do requerimento para abertura de instrução apresentado nestes autos pela assistente a descrição de factos susceptíveis de integrar todos pressupostos legais de crime, tal requerimento é nulo e implica a inexequibilidade da instrução nos termos pela mesma requerida, por falta de objecto.
Não devendo, pelas razões referidas, corrigir-se ou sugerir-se a correcção de tal requerimento, o mesmo terá de ser rejeitado, nos termos do artigo 287º, n.º3, do Código de Processo Penal, por inadmissibilidade legal da instrução baseada em tal requerimento.
Pelo exposto, por inadmissibilidade legal, rejeita-se o requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente B…….., L.da.»

3. Apreciando
A questão suscitada foi já por diversas vezes apreciada pelos tribunais superiores.
Passaremos a seguir, no essencial, o que já foi explanado no acórdão da Relação de Coimbra, de 1 de Abril de 2009, proferido no processo 2899/06.8TALRA.C1 (disponível em www.dgsi.pt), do mesmo relator do presente.

1. Preceitua o artigo 286.º, n.º1, do C.P. Penal:
«A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento»
O artigo 287.º, n.º 1, por sua vez, prescreve, na parte que nos importa:
«A abertura de instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento:
(...)
b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
(…)»
Nos termos do n.º 2, o requerimento para abertura da instrução «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda, aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) (...).»
Conforme o artigo 283.º n.º 3, a acusação contém, sob pena de nulidade:
« (...)
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) As disposições legais aplicáveis; (…)»
Por sua vez, o n.º 4 do artigo 287.º estabelece que o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

2. Enquanto fase jurisdicional (ainda que facultativa), a instrução compreende a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.
Assim, o artigo 288.º, n.º4, dispõe: «O juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º2 do artigo anterior.»
Essa liberdade de investigação (mesmo oficiosa), que é reafirmada na primeira parte do n.º 1 do artigo 289.º, não é absoluta, estando limitada pelo objecto da acusação.
Refere Germano Marques da Silva, ao mencionar a liberdade de investigação (Curso de Processo Penal, 2.ª edição, 2000, p. 132): «Porque, porém, se trata de fase jurisdicional, a estrutura acusatória do processo e o inerente princípio da acusação limitam a liberdade de investigação ao próprio objecto da acusação.»
No mesmo sentido, Anabela Miranda Rodrigues (“O inquérito no Novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 77) salienta «que se pretendeu realizar a máxima acusatoriedade possível: por um lado, sendo embora a instrução uma fase em que vigora o princípio da investigação, a autonomia do juiz não significa que tenha poderes conformadores da acusação; por outro lado, é exactamente a acusação que determina o objecto do processo.»
A importância da fixação do objecto da instrução prende-se directamente, por um lado, com a estrutura acusatória do processo penal português, embora mitigada pelo princípio da investigação judicial (cf. artigo 289.º, n.º 1, do C.P.P., na fase da instrução) e, por outro, com a necessidade de assegurar todas as garantias de defesa (artigo 32.º n.º 1 e 5 da C.R.P.).
Num caso como o dos autos, em que o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento contra o qual a assistente reagiu mediante a apresentação de requerimento de abertura da instrução, tal requerimento assume uma função decisiva na delimitação do objecto – precisamente porque não existe, na parte a que respeita, acusação pública.
Verificando-se que o Ministério Público se absteve de acusar, arquivando o processo nessa parte, o requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente teria de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório.
Disse o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 358/2004 (DR, II, de 28 de Junho de 2004):
«A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.
Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.
Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.
Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.
Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.»
A propósito da possibilidade de tal menção ser feita por remissão para elementos dos autos, lê-se no mesmo Acórdão:
«(…) a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.
De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.
Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.
Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.»

3. Compreendida a importância da delimitação do objecto através do requerimento de abertura da instrução formulado por assistente – que consubstancia uma verdadeira acusação alternativa –, tem-se discutido, de há muito, que consequências decorrem da formulação de requerimento que não contenha a indicação dos elementos referidos no artigo 287.º, n.º2, particularmente os das alíneas b) e c) do n.º3 do artigo 283.º, do C.P.P. – disposição para a qual remete, como vimos, o referido preceito legal.
Para Souto Moura, a instrução surge, no C.P.P., como um direito, disponível, nem por isso deixando de representar a garantia constitucional da judicialização da fase preparatória do julgamento, de controlo judicial da actuação do Ministério Público, pelo que tal garantia se esvaziaria se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher ou valesse só para casos contados (“Inquérito e Instrução”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p.119).
Para este autor, sendo requerida a instrução, se o assistente não delimitar o campo factual de incidência, a instrução será inexequível (ob. cit., p. 120, nota).
Também se questiona se a remissão para o artigo 283.º, n.º3, compreende a cominação de “nulidade” para o requerimento instrutório, debatendo-se a natureza dessa nulidade.
E também se debate se a omissão da narração dos factos no requerimento de instrução, além de configurar a mencionada nulidade, não será um caso de inadmissibilidade legal da instrução, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 287.º do C.P. Penal.
Neste âmbito, questiona-se a interpretação do conceito de inadmissibilidade legal como causa de rejeição do requerimento para abertura da instrução.
Em qualquer caso, é indubitável que não tendo sido deduzida acusação pública quanto aos factos em causa, o requerimento (do assistente) de abertura da instrução que não contenha os factos que se imputam ao arguido e pelos quais se pretende que este venha a ser pronunciado não será apto a possibilitar a prolação de uma decisão instrutória de pronúncia que seja válida. No mínimo (e dizemos “mínimo” porque, nessas condições, parece inexistir um verdadeiro objecto da instrução), tal decisão seria nula nos termos do artigo 309.º, n.º1.
Defendeu-se, a dado passo, a possibilidade do convite ao aperfeiçoamento do requerimento deficiente.
A jurisprudência majoritária afastou essa possibilidade, tendo o S.T.J. fixado jurisprudência no seguinte sentido: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido» (Acórdão do S.T.J. 7/2005, de 12 de Maio de 2005, publicado no D.R., I Série, de 4 de Novembro de 2005).
Neste Acórdão, salienta-se que o preenchimento das lacunas em processo penal pelo recurso ao processo civil conhece um intransponível limite: o da não harmonização das finalidades descritas quanto ao último ramo de direito àqueloutro, por força do artigo 4.º do C.P. Penal. A falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respectiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283.º, n.º 3, alínea b), e 311.º, n. 2, alínea a), e 3, alínea b), do C.P.P. «A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correcção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a peremptoriedade da consequência legal desencadeada - o ser manifestamente infundada, igual proibição de convite à correcção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado.»
Mais adiante lê-se:
« (…) que o requerimento de abertura de instrução nenhuma similitude apresenta com a petição inicial em processo cível, em termos de merecer correcção, enfermando de deficiências, nos termos do artigo 508.º, n.º 1, alínea b), do CPC, por, se com aquela se introduz, inicia, o pleito em juízo, é com a queixa que se inicia o processo, cabendo ao requerimento de abertura de instrução uma exposição dos factos que, comprovados, com a maior probabilidade, tal como sucede com os vertidos na acusação, sugerem que o arguido, mais do que absolvido, será condenado, numa óptica de probabilidade em alto grau de razoabilidade, inconfundível com uma certeza absoluta, aquela excludente de as coisas terem acontecido de dada forma prevalente, em detrimento de outra.»
O Tribunal Constitucional, no seu Acórdão 389/2005, de 14 de Julho de 2005 (D.R., II, de 19 de Outubro de 2005), decidiu não ser inconstitucional a interpretação normativa dos artigos 287.º e 283.º do C.P.P. segundo a qual não é obrigatória a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelos assistentes.
Sublinha o Tribunal Constitucional que o estatuto do assistente não é equivalente ao do arguido, dizendo:
«Desde logo, a Constituição, a par da consagração de todas as garantias de defesa do arguido (artigo 32.º n.º 1), determina que “o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei” (artigo 32.º, n.º 7). É, pois, constitucionalmente reconhecida uma ampla margem de conformação legislativa da posição processual do assistente (ofendido) que inviabiliza uma abstracta equiparação entre o estatuto do assistente e o do arguido.
Tal diferenciação é naturalmente reconhecida pela jurisprudência constitucional, que reiteradamente tem realçado, a propósito de várias questões relacionadas com o estatuto do assistente, a diferença entre as posições processuais dos dois sujeitos do processo penal (cf., a título meramente exemplificativo, os Acórdãos 27/2001 e 259/2002, que serão de novo referidos infra).
Assim, o que é afirmado a propósito das garantias de defesa do arguido não tem necessariamente aplicação tratando-se do assistente, pelo que a jurisprudência invocada pelo ora recorrente não tem pertinência significativa nos presentes autos.»
Noutro passo, realça o Tribunal Constitucional:
«No presente caso, a peça processual apresentada não tem, como se referiu, a virtualidade de desempenhar a função que legalmente lhe é atribuída (possibilitar a abertura da instrução, fixando o respectivo objecto). Trata-se, nessa medida, de um requerimento “inepto”. Qualquer convite que fosse formulado traduzir-se-ia na concessão da possibilidade de repetição do acto (não seria, portanto, confundível com um mero convite para aperfeiçoamento de acto anterior).
Assim sendo, é manifesto que nenhum preceito constitucional (ou de outra natureza) impõe a possibilidade de o assistente praticar de novo um acto que já praticou no respectivo prazo de modo absolutamente inadequado. O requerimento apresentado é pois um requerimento “não aperfeiçoável”.»
Neste quadro, em que a jurisprudência tem trilhado diversos caminhos – apelando à nulidade de conhecimento oficioso (Acórdão da Relação de Guimarães, de 17 de Maio de 2004, processo 777/04-1), à nulidade por falta de objecto (Acórdão da Relação de Coimbra, de 27 de Setembro de 2006, processo 60/03.2TANLS.C1), à inexistência (Acórdão da Relação de Lisboa, de 7 de Fevereiro de 2006, processo 7649/05-5.ª), à equiparação a acusação manifestamente infundada (Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Junho de 2006, processo 0611178) –, conclui-se que todos eles conduzem ao mesmo resultado inevitável: a rejeição do requerimento de abertura de instrução (os Acs. citados estão disponíveis em www.dgsi.pt, excepto o da Relação de Lisboa, disponível em www.pgdlisboa,pt).
Como se diz no sumário do Acórdão do S.T.J., de 7 de Março do 2007 (processo 06P4688), o requerimento para abertura de instrução há-de definir o thema a submeter à comprovação judicial sobre a decisão de acusação ou de não acusação. Os termos em que a lei dispõe sobre a definição do objecto da instrução através do requerimento para abertura desta fase processual têm de ser compreendidos pela estrutura e exigências do modelo acusatório: por isso, e não obstante o juiz investigar autonomamente o caso submetido a instrução, tem de ter em conta e actuar dentro dos limites da vinculação factual fixados pelo requerimento de abertura de instrução.
«No caso de instrução requerida pelo assistente, o limite tem de ser definido pelos termos em que, segundo o assistente, deveria ter sido deduzida acusação e, consequentemente, não deveria ter sido proferido despacho de arquivamento – no rigor, por um modelo de requerimento que deve ter o conteúdo de uma acusação alternativa, ou, materialmente, da acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida com base nos elementos de prova recolhidos no inquérito, de onde constem os factos que considerar indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório – arts. 308.º e 309.º do CPP.» (ver o referido sumário).
Com a clara prevalência do entendimento de que o requerimento de abertura de instrução não é susceptível de qualquer convite ao aperfeiçoamento (veja-se o citado Acórdão do S.T.J. 7/2005 e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 389/2005), que seria contrário à índole peremptória do prazo consignado no n.º1 do artigo 287.º (veja-se o Acórdão do S.T.J. 2/96, D.R., I Série, de 10 de Janeiro de 1996, e bem assim o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º27/2001, D.R., II Série, de 23 de Março de 2001), afigura-se-nos que o conceito de inadmissibilidade legal não pode deixar de abranger o caso de instrução requerida por assistente cujo requerimento não contenha uma descrição factual susceptível de integrar os elementos do tipo criminal que o requerente entenda ter sido preenchido (neste sentido, entre muitos, o Acórdão do S.T.J., de 22 de Março de 2006, processo 357/05-3.ª, sumariado em SASTJ; com interesse sobre o tema e diversas referências doutrinárias e jurisprudenciais, ver o Acórdão da Relação de Coimbra, de 23 de Janeiro de 2008, processo 2557/06.3TALRA.C1).

4. Revertendo ao caso concreto, afigura-se-nos que o requerimento de abertura da instrução apresentado pela assistente não satisfaz as exigências legais.
Cabia-lhe, conforme já se disse, deduzir, no requerimento de abertura de instrução, a acusação alternativa ao arquivamento decidido pelo Ministério Público, ou seja e em termos materiais, a acusação que a assistente entendia que deveria ter sido deduzida e não foi, com base nos elementos de prova recolhidos no inquérito, de onde constassem os factos que considera indiciados e que integram o(s) crime(s) imputado(s).
Lendo o requerimento de abertura da instrução, verificamos que do mesmo consta uma lista de objectos e a indicação das razões que levam a assistente a discordar do despacho de arquivamento do Ministério Público que não considerou haver indiciação suficiente de que tais objectos tivessem sido furtados, além da pretensão de que sejam consideradas algumas provas.
Desde logo, falta o relato dos factos imputados aos arguidos, quer no plano objectivo, quer no plano subjectivo, não constituindo tal requerimento algo que possa ser considerado como uma “acusação alternativa”.
Competia à assistente a narração de factos consubstanciadores dos elementos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito imputado aos arguidos e pelos quais pretendia obter a respectiva pronúncia, tendo aquela olvidado que o seu requerimento deveria constituir-se como uma acusação alternativa ao despacho de arquivamento do Ministério Público.
Em suma: o requerimento de abertura da instrução não preenche os requisitos para ser tomado como uma acusação: a acusação que a assistente pretenderia que o Ministério Público tivesse deduzido em vez de arquivar o inquérito naquela parte.
Pelas razões supra indicadas, o requerimento de abertura de instrução não é susceptível de qualquer aperfeiçoamento, não enfermando o despacho recorrido de qualquer vício e não se mostrando violada pelo mesmo qualquer norma legal.
Conclui-se, pois, sem dificuldade, que o recurso não merece provimento.

III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.

Porto, 14 de Julho de 2010
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)
Jorge Manuel Baptista Gonçalves
Adelina da Conceição Cardoso Barradas de Oliveira