Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2901/19.3T9AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MARTINS
Descritores: DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
NULIDADE SANÁVEL
Nº do Documento: RP202211092901/19.3T9AVR.P1
Data do Acordão: 11/09/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I - O despacho de não pronúncia que conhece do mérito da causa deve conter, ainda que de forma sintética, a narração dos factos indiciados e não indiciados nos termos dos artigos 307.º, n.º 1, 308.º, n.º 2, 283.º, n.º 3, al. b), e 97.º, n.º 5, todos do Código de Processo Penal.
II - A falta de narração dos factos indiciados e não indiciados no despacho de não pronúncia que conhece do mérito da causa consubstancia uma nulidade sanável prevista no artigo 120.º do Código de Processo Penal.
III - A declaração dessa nulidade deverá determinar a invalidade do respetivo despacho de não pronúncia e a remessa dos autos ao J.I.C. para o seu suprimento nos termos do artigo 122.º do Código de Processo Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 2901/19.3T9AVR.P1
Comarca de Aveiro
Juízo de Instrução Criminal de Aveiro – J1


Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO
I.1. Por decisão instrutória de 17.05.2022 o tribunal de instrução criminal decidiu não pronunciar os arguidos AA e BB pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º do Código Penal e de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, n.º 1 do Código Penal imputados na acusação particular deduzida pelo assistente CC.
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I.2. Recurso da decisão
O assistente CC recorreu da decisão instrutória, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição parcial):
“(…) IV- No ano letivo 2013/2014, o Assistente foi admitido ao programa de Doutoramento em Gestão de Empresas da Faculdade de Economia da Universidade ....
V- No dia 19 de julho de 2014 concluiu a componente letiva do referido Doutoramento com a classificação final de 15 valores.
VI- Sucede que, antes de terminar a componente letiva e integrado na disciplina de Projeto de Tese, o Assistente teve que escolher o seu (s) orientador (es) e registar o tema da referida tese.
VII- Por sugestão do à altura Coordenador do Doutoramento Professor DD, escolheu como seu orientador o arguido AA (Professor Auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade ... e nascido na ...) e convidou ainda para segundo orientador o arguido BB (Professor Associado da Faculdade de Economia da Universidade ...).
VIII- Assim, a Tese de Doutoramento do Assistente foi registada na Faculdade de Economia da Universidade ... com o nome "Inovação, aprendizagem e produtividade: uma estratégia exportadora".
(…) XII- Assim sendo, no dia 27 de abril de 2018 e depois de uma apresentação na Faculdade de Economia da Universidade ..., dos trabalhos efetuados pelos alunos de Doutoramento, o Assistente falou com o arguido AA e ficou verbalmente combinado que o Assistente iria efetuar uma revisão de literatura do tema learning by exporting e self-selection to export, a que juntaria o trabalho já efetuado para apresentar a sua Tese de Doutoramento.
XIII- Após o compromisso verbal do arguido AA, o Assistente trabalhou afincadamente na revisão de literatura e no dia 13/05/2018, enviou ao arguido AA uma proposta desta revisão de literatura com um total de 40 páginas.
XIV- No entanto, no dia 14/05/2018, o arguido AA, por email, informa o aqui assistente que deveria ser efetuado um estudo empírico para poder ser incorporado na tese.
XV- Assim sendo, o Assistente solicitou uma reunião com os arguidos para procurar desbloquear este impasse no dia 21/05/2018 em ..., mas o impasse continuou.
(…) XXI- Assim, no dia 12/06/2018, enviou uma proposta para a sua Tese de Doutoramento aos coordenadores e aos arguidos.
XXII- No seguimento desta proposta de tese, a solução que enviaram ao candidato a Doutoramento, não foi de seu agrado e frustrou as suas legítimas expectativas.
(…) XXIV- Não obstante, uma das decisões que tomou, foi não renovar a sua inscrição no Doutoramento em Gestão de Empresas na Faculdade de Economia da Universidade ....
XXV- Assim o assistente decidiu no mês de julho de 2018 apresentar a sua Tese de Doutoramento na Universidade de U... ao Programa Doutoral em Ciências Económicas e Empresariais, de acordo com o artigo 33° do Decreto-Lei 65/2018 de 16 de agosto, ou seja, sob exclusiva responsabilidade (sem inscrição num ciclo de estudos e sem orientação).
XXVI- O Assistente apresentou a sua tese em 03 de setembro de 2018, sob sua exclusiva responsabilidade com o objetivo de obter o seu Doutoramento em Ciências Económicas e Empresariais.
(…) XXX- Ou seja, a tese que iria ser apresentada na Universidade Z... distingue-se quer no conteúdo quer na forma da tese entregue na Universidade de U... pelo Assistente em modo de auto-proposta a doutoramento.
(…) XXXIV- Aliás, a prova dessa diferença é que os resultados entre os artigos científicos e a tese entregue pele Assistente na Universidade de U... é que os resultados são todos diferentes, chegando-se ao ponto de se retirarem conclusões totalmente opostas.
(…) XXXVII- Não existe na tese entregue em ... qualquer capítulo, nem qualquer subcapítulo que aborde a diferença salarial nos setores manufatureiros portugueses. A base de dados do artigo científico n° 1 está na posse do assistente e este artigo foi efetuado apenas com o propósito da publicação do artigo científico n°1 quando o Assistente pensava entregar a tese em ....
(…) LI- O verdadeiro autor da Tese entregue em ... é aqui assistente, sempre que usou para justificar alguns assuntos relacionados com os artigos científicos publicados com os arguidos, cita os mesmos de acordo com as normas internacionais e inclui-os na bibliografia, tal como fez com cerca de 150 outros autores utilizados na sua monografia.
LII- Obviamente, que com todas estas alterações, as conclusões finais são completamente diferentes, sendo que a interpretação e raciocínio económico da Tese entregue em ... e dos artigos científicos são completamente diferentes.
LIII- Nunca os arguidos tiveram a preocupação de questionar o assistente qual o tema da tese e o formato da mesma (em formato de artigos científicos ou em formato de monografia), preocupando-se mais em efetuar falsas denuncias sem qualquer prova ou verdadeiro conhecimento dos factos.
LIV- Sucede que, em janeiro de 2019, estranhando a demora na marcação de provas públicas para a defesa da Tese de Doutoramento, questionou a testemunha EE sobre a data da defesa da sua tese, sendo que por esta altura não obteve qualquer informação relevante.
LV- Em março de 2019, a Testemunha EE informou o Assistente que o atraso no processo se devia à apresentação de denúncias em co-autoria por parte dos arguidos AA e BB, denuncias essas com base em plágio do trabalho por estes realizado e que a tese incorporava resultados duvidosos.
LVI- Apesar dos arguidos não conhecerem o teor da Tese de Doutoramento entregue na Universidade de U..., isso não os impediu de efetuarem as alegadas citadas denúncias e pelo que sabe, sem apresentarem qualquer prova do plágio do trabalho efetuado pelos ex-orientadores, nem dos resultados duvidosos obtidos.
LVII- Denuncias efetuadas sem os Arguidos terem qualquer acesso às bases de dados utilizadas pelo Assistente na elaboração da sua Tese de Doutoramento, porque foi o candidato a Doutoramento que as recolheu, compilou e tratou econometricamente e em termos estatísticos, não as enviando a ninguém.
LVIII- Pelo que percebeu, estas supostas denúncias provocaram na Universidade de U... compreensíveis constrangimentos a nível de decisões e atrasos na obtenção do grau de Doutor do Assistente, tanto mais que as mesmas terão origem em professores do ensino universitário com cargos de responsabilidade nas referidas universidades, denuncias essas que a existirem são falsas, pelo que assistente estará a ser infundadamente difamado pelos arguidos.
LIX- Alias denuncias estas confirmas pelos Arguidos em sede de instrução, onde confirmaram na sua inquirição que fizeram as denuncias sem ter conhecimento da tese entregue na Universidade de U....
(…) LXI- Mostrando assim que não agiram por interesses legítimos mas com o interesse em difamar o aqui assistente e de prejudicar o seu percurso académico.
(…) LXIX- Acresce ainda que, o despacho de não pronúncia, de 24/05/2022, não descreveu nem especificou os factos da acusação particular e do RAI que considerou suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados;
LXX- o despacho não respeitou os art. 205°, n° 1, da C.R.P. e 97°, n°, 1, al. b), e n° 5, 308°, n° 2 e 283°, do C.P.P., sendo nulo ou, pelo menos, irregular, nos termos dos art. 118°. 119° a contrario. 120° e 123° do C.P.P.. tornando a decisão inválida, nos termos do art. 122°. n° 1. do C.P.P.;
LXXI- Nestes termos o despacho de não pronúncia violou o art. 205°, n° 1, da C.R.P. e os art. 97°, n° 1, al. b), e n° 5, 308°, n° 2 e 283°, do C.P.P., com as consequências legais enunciadas nos art. 118°, 119°, "a contrario", 120° ou, no mínimo, 123°, todos do C.P.P. e não apreciou correctamente a prova produzida, nem retirou as conclusões lógicas que a matéria dada como provada impunha, violando o art. 143° do Código Penal e nos art. 127° e 308°, n° 1, do C.P.P.
(…) LXXVIII- Entende o assistente que a sua imagem e que foi construindo de si mesmo poderia ficar comprometida com o facto de passar a ser visto como um sujeito que não tem ética profissional.
LXXIX- A reputação do assistente foi abalada, sem ter qualquer hipótese de defesa.
Por um lado foi acusado de plágio do trabalho dos orientadores, e caso isso não fosse suficiente, ainda foi acusado dos seus resultados serem duvidosos. Recorde-se que sem os aqui arguidos (facto confirmado por eles) terem visto uma única página da sua tese de doutoramento entregue na Universidade de U....
(…) LXXXII- Demonstrando ainda os arguidos a má fé quando tentaram criar a convicção de que a tese teria contributos deles e resultados duvidosos.
LXXXIII- Se estivessem de boa-fé, teriam indagado o Assistente sobre a sua tese e não o fizeram e depois avaliariam o que fariam, em vez de em conluio lhe montarem um ardiloso esquema que o deixaram sem qualquer defesa possível.
LXXXIV- Se estivessem de boa-fé, não precisariam de condicionar e ameaçar docentes de ... e seus colegas de profissão, nem extrapolar as funções que lhe estão confiadas e assumir indevidamente o papel de Reitores ou de Administradores das suas Universidades com o intuito de obterem o afastamento do candidato ao Doutoramento e aqui Assistente.
LXXXV. Se estivessem do boa-fé e de uma forma construtiva e cientes de que a tese tinha contributos seus, não se referiam aos resultados como duvidosos, apenas que deveriam ser verificados e não dar a conotação negativa da palavra "duvidosos".
(…) XC- Na verdade, o email enviado pelos mesmos para a Universidade de U... onde imputam o plágio e resultados duvidosos na tese do Assistente (sem terem conhecimento da mesma) não consubstancia a defesa de qualquer interesse legítimo.
XCI- Não se vê qual o objectivo que os arguidos pretendem salvaguardar.
XCII- Aliás os arguidos não demonstraram nem na prova carreada nem na sua inquirição factos concretos ou causas justificativas para a existência de interesses legítimos.
XCIII- Portanto uma tese de doutoramento resulta do trabalho do orientando.
XCIV- Não resulta do trabalho dos orientadores.(…)”
Pugna pela revogação da decisão instrutória e a sua substituição por outra que pronuncie os arguidos do crime de dano e do crime de difamação.
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I.3. Resposta do Ministério Público
O Ministério Público na resposta ao recurso, pronunciou-se pela sua improcedência, concluindo (transcrição integral):
“1. A conduta que seja ofensiva da honra , ou consideração de alguém não é punível quando a imputação de facto(s) for feita para realizar interesses legítimos e o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira.
2. Os referidos requisitos são cumulativos e embora a lei não diga o que são interesses legítimos, terão os mesmos que ser conformes à ordem jurídica; já no que concerne ao segundo requisito exige ele a prova da verdade da imputação ou o convencimento fundado de que a imputação é verdadeira.
3. Tendo os arguidos acompanhado o assistente durante um período de tempo tão longo, ao terem conhecimento que, a determinada altura, o mesmo se tinha autoproposto para defender uma tese de doutoramento em Universidade diversa, é claro que tinham um fundamento sério para, em boa fé, concluírem que esta, pelo menos no essencial, seria necessariamente a mesma.
4. Estando a par de tudo aquilo que se tinha passado até então com tal tese, existia um interesse legítimo em que tal informação chegasse ao conhecimento da Universidade onde o assistente pretendia defender a tese, pois que, se assim não fosse, poderia vir a ser-lhe concedido o grau de doutor de forma irregular.
5. Sendo proferido despacho de pronúncia, este terá que respeitar os formalismos que a lei também impõe para o despacho de acusação formulado pelo Ministério Público.
6. No caso vertente, tendo sido de não pronúncia o despacho que foi proferido, não vislumbramos qualquer possibilidade de terem sido violados os art.° s 283° e 308°, n.° 2, do Código de Processo Penal, concluindo-se assim forçosamente que não ocorreu qualquer nulidade ou irregularidade.
7. A decisão de não pronúncia não merece qualquer reparo, devendo manter-se nos termos em que foi proferida.”
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I.4. Resposta dos arguidos
Os arguidos AA e BB na resposta ao recurso, pugnaram pela sua improcedência, concluindo (transcrição parcial):
“I- O arguido BB é professor catedrático na Faculdade de Economia K..., e o arguido AA é professor assistente na Faculdade de Economia de X..., motivo pelo qual o assistente convidou ambos para serem os orientadores da tese de doutoramento deste;
II- Descontente por estes terem informado o assistente de que a tese de doutoramento deste, que seria entregue na Universidade Z..., não se encontrava em condições de ser entregue, isto porque ainda estava muito incompleta e requeria muito trabalho extra do assistente, o que este não concordou (apesar de este ser o aluno e aqueles os orientadores), acabou por retirar a proposta de doutoramento da Universidade Z...;
III- Qual não é o espanto dos arguidos quando, passado cerca de dois meses tomam conhecimento de que o arguido auto propôs-se a uma tese de doutoramento com um tema semelhante, agora na Universidade de U...;
IV- Ambos os arguidos, e particularmente o professor doutor BB, já tiveram vários alunos de doutoramento e acompanharam de perto as teses dos mesmos. Consistindo num trabalho a que estavam particularmente habituados. Tomando como um dado empírico que ninguém, em apenas dois meses, apresenta uma tese de doutoramento nova;
V- Assim, facilmente se alcança o porquê das dúvidas legítimas dos arguidos, quanto ao eventual plágio cometido pelo assistente;
VI- Razão pela qual os arguidos enviaram um email à Universidade de U... após conhecimento que o assistente se tinha autoproposto na mesma, expondo toda a situação vivenciada;
VII- Apesar de terem admitido que não leram a tese apresentada em ..., ou seja, tendo solicitado ao assistente em Junho de 2018 o complemento da tese em causa, que este não apresentou e, logo em Setembro auto propôs-se ao doutoramento em ...;
VIII- Tal suspeita veio a revelar-se verdadeira no entender dos arguidos, após lerem a tese de doutoramento do assistente;
IX- Mesmo que este tenha alterado o título da tesa, e tenha dado uma configuração diferente à mesma. Isso não basta, nem bastou, para ludibriar os arguidos, bem mais experientes do que o assistente;
(…)
XI- Não vamos citar nas conclusões as dezenas de publicações não citadas dos arguidos encontradas na tese do assistente, mas já foram devidamente descritas anteriormente;
XII- Todavia, e como é sobejamente conhecida a diferença, não é difamação o acto praticado pelos arguidos, se o que estes alegaram é efectivamente verdade, ou se tinham todos os motivos para estarem de facto preocupados com as evidências que dispunham, de que a tese do assistente continha partes plagiadas. O que tinham.
(…)
XV- A denúncia da existência de partes de plágio na tese de doutoramento do assistente, realiza claramente interesses legítimos. Interesses legítimos pessoais dos arguidos, que viram o seu próprio trabalho plagiado, bem como, interesses legítimos da comunidade. Pois se não fosse a denúncia dos ora arguidos, a própria instituição Universidade de U... não teria se apercebido da situação, e poderia ter concedido, sem mérito e ilegalmente o grau académico de Doutor, ao ora assistente;
XVI- Grau académico esse, que a título de zelo, refere-se que não foi conseguido pelo assistente, mesmo tendo apresentado a referida tese de doutoramento, logo depois, na Universidade X.... E não lhe foi concedido esse grau;
(…) XIX- Deste modo, em momento algum, o comportamento dos arguidos foi objectivamente e eticamente reprovável.”
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I.5. Parecer do Ministério Público
Nesta Relação o Ministério Público pronunciou pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.
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I.6. Resposta
Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada resposta ao parecer do Ministério Público.
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I.7. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II. Objecto do recurso
O objecto do recurso está limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, disponível em www.dgsi.pt).
São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal
de recurso só pode considerar as conclusões e se vão além também não devem ser consideradas porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336).
Assim, da análise das conclusões prolixas do recorrente extraímos sequencialmente as seguintes questões que importam apreciar e decidir:
Saber se o tribunal de instrução criminal deveria ter proferido decisão instrutória de pronúncia pelo crime de difamação imputado pelo assistente aos arguidos na sua acusação particular;
Saber se o tribunal de instrução criminal deveria ter proferido decisão instrutória de pronúncia pelo crime de dano imputado pelo assistente aos arguidos na sua acusação particular;
Saber se o despacho de não pronúncia é inválido por padecer de nulidade ou irregularidade por falta de narração dos factos suficientemente indiciados e não indiciados.
Os argumentos recursivos serão conhecidos pela sua ordem lógica.
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II.1. Decisão instrutória (que se transcreve parcialmente, nos segmentos com interesse para a apreciação do recurso)
“(…)
Aos arguidos vem imputada, por acusação particular, a prática, em coautoria material, e na forma consumada, de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180°, n.° 1 do Código Penal e um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212.°, do Código Penal.
Comecemos pelo crime de dano, p. e p. pelo art.° 212.°, do Código Penal.
O assistente deduziu acusação particular, além do mais que aqui não importa, contra os arguidos imputando-lhes a prática de um crime de dano do art.° 212°, n° 1, do CP.
O procedimento criminal por este crime depende de queixa, como se diz no n° 3 desse preceito, a não ser que, como resulta da remissão do n° 4, se verifique alguma das situações previstas no art.° 207.°, caso em que se exige acusação particular.
Não oferece dúvidas, nem isso está em causa, que, nos casos em que o procedimento criminal depende de queixa, o assistente só pode acusar se o MP o tiver feito.
Na verdade, sendo o crime de natureza semipública e, por isso, não tendo havido acusação do MP, o assistente carece de legitimidade para acusar os arguidos pela prática do crime de dano.
A falta de acusação do Ministério Público, atenta a natureza semipública do crime em causa, constitui nulidade insanável.
Em conformidade, faltando ao assistente a legitimidade para proceder criminalmente contra os arguidos pelo crime de dano, desacompanhado do Ministério Púbico, não os pronuncio pelo referido crime de dano.
(…)
Concluído o inquérito, o assistente CC deduziu acusação particular contra os arguidos AA e BB, imputando-lhe a prática, em coautoria material, e na forma consumada, de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180°, n.° 1, do Código Penal.
O Ministério Público não acompanhou a acusação particular.
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Inconformados, vieram os arguidos requerer a abertura de instrução, nos termos do disposto no artigo 287°, n.° 1, alínea a), do Código de Processo Penal, pugnando pela sua não pronúncia.
Para o efeito, alegam, e em síntese, que foram orientadores da tese de doutoramento do arguido, na Universidade Z..., e quando souberam que este se tinha autoproposto ao doutoramento na Universidade de U... reportaram as suas suspeitas a esta Universidade, por terem evidências de que a tese que o assistente aí ia apresentar tinha partes plagiadas, a qual tomou as providências que entendeu, não tendo esta Universidade concedido o grau de Doutoramento ao assistente, o qual acabou por retirar a sua candidatura. A denúncia de plágio efetuada pelos arguidos realiza interesses públicos e interesses pessoais dos arguidos que viram o seu próprio trabalho plagiado, bem como interesses da comunidade. Na verdade, se os arguidos não tivessem efetuado a denúncia à Universidade de U... esta não se teria apercebido da situação e poderia ter concedido o grau académico de Doutor ao assistente.
Alegam, ainda, que a tese que o arguido pretendia apresentar na Universidade Z... tinha similitudes com várias publicações não citadas. Ademais, na tese do arguido encontram-se componentes da investigação dos próprios arguidos e sem que tal seja citado.
Referem, ainda, que aquando da comunicação à Universidade de U... tinham e têm fundamento sério para de boa fé reputar a alegação de plágio como verdadeira.
Já relativamente ao comentário efetuado num jornal, não se sabem de quem é a sua origem.
Terminam pedindo que seja proferido despacho de não pronúncia.
*
(…)

A instrução tem como finalidade comprovar judicialmente a decisão sobre se a causa deve ou não ser submetida a julgamento (artigo 286.° do Código de Processo Penal).
Assim, será pronunciado o arguido se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança, o mesmo é dizer apurados factos suscetíveis de integrar a prática de um crime e a imputação desses factos ao agente, nos termos do disposto no n.° 1 do artigo 308.° do Código de Processo Penal. Caso contrário, deve o juiz proferir despacho de não pronúncia.
Nestes termos, o que se exige, quer na acusação, quer na instrução, ao contrário da fase de julgamento, é apenas um juízo de probabilidade séria, sendo que, se em sede de julgamento se mantiver uma situação de mera "possibilidade", e tendo em conta os princípios que norteiam a apreciação da prova em processo penal, deverá o arguido ser absolvido em nome do princípio "in dubio pro reo". Todavia, nesta fase, essa mesma possibilidade séria terá de conduzir a um despacho de pronúncia.
(…)
A lei não estabelece, nem poderia definir com rigor o que são "indícios suficientes", sendo que como tais se devem considerar o conjunto de elementos convincentes de que o denunciado praticou os factos que lhe são imputados.
Como ensina o Professor Figueiredo Dias, in "Direito Processual Penal", volume I, pág. 133 e seguintes, "os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação dos acusados, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição".
De resto, nos termos do disposto no artigo 283.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, para o qual remete o n.° 2 do artigo 308.°, do mesmo diploma, o despacho de pronúncia depende da formulação de um juízo sobre a suficiência dos indícios: é necessário que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. O Juiz só deve, assim, pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos, formar a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido.
*
À luz do supra exposto, vejamos agora o caso dos autos.
*
Do crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180°, do Código Penal.
(…)
O bem jurídico protegido pela incriminação prevista pela norma constante do artigo 180° é a honra, quer a honra de pessoa singular, quer a honra de pessoa coletiva, e considerada como um bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicando na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior, conceção dualista, normativa e fáctica, única compatível com o ordenamento jurídico nacional.
(…)
É esta ideia a plasmada no artigo 180° do Código Penal, única compatível com a nossa lei, que alarga a tutela da honra também à consideração ou reputação exteriores.
Segundo este normativo, a difamação compreende comportamentos lesivos da honra e consideração de alguém. A honra constitui, assim, o elenco de valores éticos que consubstanciam a dignidade de cada um, como sejam o caráter, a lealdade, a retidão. Por seu turno, a consideração é o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, o bom nome, o crédito, a confiança, a estima, a reputação, ou seja a dignidade objetiva (neste sentido, Leal Henriques/Simas Santos, Código Penal Anotado, Volume II, página 317).
No tipo de crime de difamação, e no que toca ao seu processo executivo, coloca-se o acento tónico na imputação de facto ofensivo (ainda que meramente suspeito), na formulação de um juízo de desvalor, na reprodução de uma imputação ou de juízo daquela natureza, podendo o crime ser praticado mediante qualquer daqueles processos executivos, quer de forma verbal, quer, nos termos do artigo 182° do Código Penal, por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão, tudo sem prejuízo do necessário nexo de causalidade adequada, nos termos previstos no artigo 10°, n.° 1 do Código Penal, entre o resultado e o comportamento do agente.
A proteção penal dada à honra e consideração e a punição dos factos que atentem contra esses bens jurídicos, só se justifica em situações em que objetivamente as palavras proferidas não têm outro sentido que não a ofensa, ou em situações em que, uma vez ultrapassada a mera suscetibilidade pessoal, as palavras dirigidas à pessoa a quem o foram, são, indubitavelmente, lesivas da honra e consideração do lesado.
Tendo presente o caráter fragmentário e subsidiário do direito penal, que deve ser entendido como a ultima ratio da política social, será o critério constitucional da "necessidade social" que deve orientar o legislador na tarefa de determinar quais as situações em que a violação de um bem jurídico, justifica a intervenção do direito penal.
Assim, só deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem, aquiloque, razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais. O que pode ser uma ofensa ilícita em certo lugar, meio, época, ou para certas pessoas, pode não o ser em outro lugar ou tempo, do mesmo modo que a circunstância de ser ou não injuriosa uma palavra depende, em grande parte, da opinião, dos hábitos, das crenças sociais.
No que concretamente diz respeito ao tipo subjetivo de ilícito ou, mais corretamente, aos elementos subjetivos do tipo de ilícito, diremos que se trata de um crime essencialmente doloso, a que basta, para uma plena imputação subjectiva, o dolo na sua modalidade de dolo eventual.
O dolo específico segundo o qual o agente deveria agir com a intenção especial, com o fim de atingir outrem na sua honra e consideração não é elemento subjetivo integrante dos tipos legais de crime previstos no artigo 180° do Código Penal, uma vez que tal crime se basta com o dolo genérico, sempre que o agente sabe que as imputações que fez são de natureza a ofender a honra e consideração de outrem e quis que tal ofensa o atingisse.
Contudo, a essência da difamação, é que a mesma seja levada ao conhecimento de terceiros. Com efeito, para estabelecer a diferenciação legal entre difamação e injúria, o legislador empregou uma técnica legislativa baseada na imputação direta ou indireta dos factos ou juízos desonrosos, de forma que o ponto nevrálgico da difamação se centra na imputação a outrem de factos ou juízos desonrosos efetuada não perante o próprio, mas dirigida e veiculada através de terceiros.
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Analisemos agora se da prova carreada para os autos resulta suficientemente indiciado terem os arguidos praticado os factos descritos na acusação.
Em sede de inquérito foram realizadas diversas diligências probatórias, tendo os autos principiado com a participação criminal, na qual o assistente CC, vem denunciar os arguidos, que foram seus orientadores no doutoramento em gestão de empresas na Universidade Z..., tendo, em abril de 2018, a tese já cumpria os requisitos, mas foi informado pelo professor AA que deveria ainda ser efectuado um estudo empírico para poder ser incorporado na tese, o que no entender do assistente não seria necessário, porquanto nunca tinha sido sugerido pelos orientadores e a tese já tinha vários estudos empíricos. Tendo-se criado um impasse entre os orientadores e o assistente, solicitou a intervenção da Coordenação do Doutoramento, mas como o impasse se mantinha decidiu não renovar a inscrição no Doutoramento em gestão na Universidade Z... e decidiu, em julho de 2018, apresentar a sua tese de Doutoramento na Universidade de U..., sobre a sua exclusiva responsabilidade, o que fez em 3 de setembro de 2018, sendo que esta tese se distinguia do conteúdo e de forma da que iria ser apresentada na Universidade Z.... Assim, em 15 de setembro de 2018, informou os arguidos que tinha decidido se autopropor numa outra Universidade. Em março de 2019 foi o assistente informado pela Universidade de U... que a demora na marcação da prova pública para a defesa da tese se ficava a dever a denuncias dos arguidos, denúncias essas com base em plágio do trabalho por este realizado e que a tese incorporava resultados duvidosos, pese embora estes não conhecessem a tese entregue na Universidade de U..., o que lhe causou danos.
Foram inquiridas as testemunhas indicadas na queixa apresentada.
A testemunha FF, coordenador do Doutoramento, disse que conhecer o assistente como aluno e os arguidos como professores. Sabia das divergências entre o assistente e os arguidos, porque foram chamados a mediar, e no parecer dado pelos arguidos não foi colocada em causa a autenticidade/autoria da tese, mas apenas que o trabalho deveria ser completado. Soube que o assistente se tinha autoproposto na Universidade de U... e que os arguidos tinham denunciado a esta Universidade, desconhecendo o conteúdo da mesma. Nada sabia sobre a publicação no jornal.
A testemunha GG, que faz parte da coordenação do Doutoramento, sabia das divergências entre o assistente e os arguidos, porque foram chamados a mediar, e no parecer dado pelos arguidos não foi colocada em causa a autenticidade/autoria da tese, mas apenas que o trabalho deveria ser completado. Soube que o assistente se tinha autoproposto na Universidade de U....
A testemunha EE, diretora dos Doutoramentos na Universidade de U..., confirmou que o assistente em setembro de 2018 se tinha autoproposto nessa Universidade ao Doutoramento. Em 19.09.2018 recebeu um email dos arguidos onde referiam que existia plágio na tese de doutoramento apresentada pelo assistente na Universidade de U.... Em 18.12.2018 foi-lhe entregue a tese de doutoramento do assistente, e após teve que procurar professores sem ligação às partes, o que foi difícil, por isso comunicou ao assistente esse facto em março de 2019. Entretanto o assistente desistiu do processo de candidatura. Sabia que o assistente escrevia no jornal Publico, mas desconhece o artigo.
A testemunha HH afirmou desconhecer os factos.
Ouvido o assistente reiterou a sua participação.
Foi junto o email enviado pelos arguidos à Universidade de U..., em 19 de setembro de 2018, onde dão conta que são ex orientadores do assistente na Universidade Z... e em julho desse ano a solicitação da comissão de coordenação do doutoramento elaboraram um parecer sobre o estado da tese e não receberam notícias. Nesse email afirmaram "a tese comporta valiosos contributos nossos, sendo que há papers publicados com os nossos nomes; assim, num contexto de auto-proposta, não deixa de haver plágio de trabalho nosso, nomeadamente ao nível do desenvolvimento teórico e de apoio à realização das estimações;
Não tivemos controle dos dados e evidencias empíricas das regressões que o doutorando apresentou em capítulos da tese;
Os coordenadores do doutoramento em gestão da ... e os coorientadores consideram que esta tese está incompleta, tem faltas de organização, e resultados duvidosos.
Perante esta situação de plágio do nosso trabalho e de resultados duvidosos esperamos que esta auto-proposta não seja aprovada pelo conselho científico da vossa instituição, para não afetar o prestígio deste curso de doutoramento ".
Foram juntos outros email enviados pelos arguidos à Universidade de U... a solicitar informação sobre o estado da Tese do assistente.
Foi notificado o jornal Público para que informasse os elementos de identificação de que dispõe relativamente ao autor do comentário constante no site no endereço id. a fls. 90, por "II".
Foram constituídos arguidos e interrogados nessa qualidade, os quais não quiseram prestar declarações.
Com base nesta prova efetuada em inquérito foi cumprido o disposto no n.° 1 do artigo 285.° do Código Processo Penal, com a indicação de que o Ministério Público entende que não foram recolhidos indícios suficientes da prática de crime de difamação por parte dos arguidos, com o fundamento de que em sede de inquérito resulta que os arguidos, ex-orientadores da tese de doutoramento do assistente, teriam fundamento sério para reportar à Universidade de U... as suas suspeitas de plágio. No que respeita ao comentário com a palavra "Hubris" ao texto publicado no jornal Público não se apurou que houvesse qualquer ligação aos arguidos e, ainda que assim fosse, estaria totalmente legitimado em face do direito à liberdade de expressão, garantido pela Constituição da República Portuguesa.
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Destas diligências o Assistente concluiu que resultou factualidade indiciária suficiente da prática de um crime de difamação por parte dos arguidos.
O Ministério Público não acompanhou a acusação particular, com o fundamento de que não resultam dos autos indícios suficientes da sua prática.
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Em sede de instrução, foram interrogados os arguidos e ouvidas as testemunhas indicadas.
Os arguidos confirmaram terem sido os orientadores do doutoramento do assistente na Universidade Z.... De igual modo, confirmaram o email enviado à Universidade de U... após conhecimento que o assistente se tinha autoproposto nessa Universidade. Explicaram que estavam a trabalhar na tese com o assistente há cerca de 2 anos, a qual tinha trabalho dos arguidos e com 3 artigos publicados da mesma em publicações conjuntas. O envio do email foi efetuado porque tendo o assistente se autoproposto para apresentar a tese noutra Universidade depois de não a apresentar em ... e em cerca de dois meses não conseguiria fazer uma tese, pelo que concluíram que a tese apresentada pelo assistente em ... seria a realizada em ..., pese embora tenham admitido que não leram a tese apresentada em ..., ou seja, tendo solicitado ao assistente em junho/julho de 2018 o complemento da tese que as não apresentou e logo em setembro foi autoproposto ao doutoramento em ..., concluíram que este iria apresentar o mesmo trabalho que estava a fazer com o arguidos, porque uma tese de doutoramento não se faz emdois meses, concluíram.
A testemunha GG, coordenador do doutoramento em gestão, afirmou que o assistente pediu a mediação com os arguidos e solicitaram a estes para informar o que faltaria na tese e foram informados que ainda faltava um capítulo e o assistente comunicou que não pretendia acabar a tese.
A testemunha FF, professor na ..., referiu que teve conhecimento do diferendo entre o assistente e os arguidos e aquele pediu a resolução do diferendo e os arguidos fizeram um relatório onde referiam que para a tese estar concluída era necessário mais um capítulo e o assistente nessa sequência abandonou a faculdade e não entregou a tese.
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Ora, analisando os elementos probatórios constantes do inquérito e da instrução, é manifesto que os arguidos imputaram ao assistente plágio na sua tese, ao alegarem que a tese que este ia apresenta na Universidade de U... era plagiada.
A questão é a de aferir se esta conduta dos arguidos é justificável, como alegam os arguidos, por a imputação ter sido feita para realizar interesses legítimos e tinham fundamento sério para, em boa fé, a reputar por verdadeira, ou seja, apurar se a conduta não é punível por se verificarem os pressupostos de exclusão de punibilidade do artigo 180° n° 2 do CP.
Entendemos que a imputação feita pelos arguidos tinha fundamento, para em boa-fé, acreditar numa eventual verdade dessa imputação, já que o arguido havia trabalhada na tese de doutoramento com os arguidos, estes como seus coordenadores, por 2 anos, sendo que ao final desses dois anos, por não concordar com as exigências destes, se autopropôs a apresentar a tese de doutoramento noutra Universidade, o que levou a crer que seria a mesma que haviam trabalhado em ..., já que o arguido não teria tempo de realizar outra tese.
Assim, entendemos estarmos perante uma causa justificativa, uma vez que os arguidos reputavam a imputação como verdadeira, pois de facto a conduta do assistente foi de molde a criar, em ambas os arguidos, a convicção séria para, de boa-fé, reputar de verdadeiras as afirmações que fizeram no email enviado à Universidade de U....
Daqui resulta que não é punível a conduta dos arguidos, pois que se verifica a causa de exclusão da punibilidade, prevista na al. b) do n.° 2, do art.° 180°, do Código Penal.
Assim, tendo em consideração a prova que foi produzida, estamos em crer que da mesma não resultam quaisquer factos que permitam antever que, aos arguidos, em julgamento, seja aplicada alguma pena ou sanção penal.
Em síntese, dir-se-á que, dos elementos constantes dos autos, resultam afastados os fundamentos que estão na génese da acusação particular deduzida pelo assistente. Vale tudo isto por dizer que não existem indícios que permitam imputar aos arguidos os factos descritos na acusação particular os quais, sendo submetidos a julgamento, conduziriam a uma mais provável absolvição dos arguidos, do que a sua condenação.
Já quanto à publicação no jornal nada se apurou.
O exposto, impõe, naturalmente, se profira despacho de não pronúncia.”
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II.3. Apreciação do recurso
II.3.1. Do despacho de não pronúncia do crime de dano
§1 Com interesse para a apreciação da questão enunciada importa ter presente os seguintes elementos factuais que constam dos autos:
a) O assistente/recorrente apresentou queixa contra os arguidos denunciando factos susceptíveis de integrar o crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, n.º 1 do CP;
b) Em 30.05.2021 o MºPº proferiu o seguinte despacho (transcrição parcial):
“(…) II- Cumpra o disposto no n.º 1 do artigo 285º do Código Processo Penal, com a indicação de que o Ministério Público entende que não foram recolhidos indícios suficientes da prática de crime de difamação por parte dos arguidos.
Com efeito, da prova indiciária produzida em sede de inquérito, resulta que os arguidos, ex-orientadores da tese de doutoramento do assistente, teriam fundamento sério para reportar à Universidade de U... as suas suspeitas de plágio.
No que respeita ao comentário com a palavra “Hubris” ao texto publicado no jornal Público não se apurou que houvesse qualquer ligação aos arguidos, e, ainda que assim fosse, estaria totalmente legitimado em face do direito à liberdade de expressão, garantido pela Constituição da República Portuguesa”.
c) Na sequência dessa notificação, em 13.09.2021, o assistente/recorrente deduziu a acusação particular contra os arguidos AA e BB imputando-lhes a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º do CP e de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º do CP.
d) Em 16.09.2021 o MºPº proferiu o seguinte despacho (transcrição parcial):
“(…) II- O Ministério Público não acompanha a acusação particular pelos fundamento já referidos no despacho de 30 de Março de 2021, que aqui se dão por reproduzidos”.
e) Em 21.10.2021 os arguidos AA e BB requereram abertura de instrução, requerendo que seja declarada nula a imputação aos arguidos do crime de dano, na acusação particular, por violação do artigo 283º, n.º 3, al. b) do CPP e que seja proferido despacho de não pronúncia dos arguidos pelos crimes de que vêm acusados pelo assistente.
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§2. O recorrente sustenta que os arguidos devem ser pronunciados pelo crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, n.º 1 do CP imputado na sua acusação particular.
Vejamos.
Importa antes de mais apreciar se o assistente carecia de legitimidade para deduzir acusação particular contra os arguidos pelo crime de dano conforme decidido no despacho de não pronúncia.
O assistente nos crimes de natureza pública ou semi-publica não pode acusar desacompanhado do MºPº (artigo 284º, n.º 1 do CPP).
No caso vertente, o crime de dano imputado aos arguidos p. e p. pelo 212º do C.P. assume a natureza de crime semi-pública atento o disposto no n.º 3 desse preceito legal.
Como tal, a titularidade da acção penal, e sob pena de ilegitimidade, pertence exclusivamente ao Ministério Público – cfr. art. 219º, n.º 1 da CRP, artº 1º do Estatuto do Ministério Público (Lei nº 47/86, de 15 de Outubro) e art. 48º do CPP –, resultando ainda das disposições conjugadas dos arts. 48º, 49º e 50º do CPP que é ao Ministério Público que cabe deduzir acusação, excepto nos casos de procedimento dependente de acusação particular –, podendo apenas o assistente, até 10 dias após a notificação da acusação do Ministério Público, deduzir também acusação pelos factos por aquele acusados, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial dos primeiros – art. 284º do Cód. de Processo Penal.
Assim, aquando da notificação nos termos do art.º 285º CPP, para deduzir acusação por crime particular, se o assistente entender que há indícios da existência de crime semi-público ou público, não pode substituir-se ao Ministério Público e deduzir ele a acusação por tais crimes, devendo requerer a instrução nos termos do art.º 287º, nº1 al. b) CPP (neste sentido se decidiu no Ac. do TRP de 05.04.2017, acessível em www. dgsi. pt).
No caso em apreciação, o MºPº aquando do encerramento do inquérito ordenou o cumprimento do disposto no artigo 285º do CPP, com a menção de que entende que não foram recolhidos indícios suficientes da prática de crime de difamação por parte dos arguidos.
Por sua vez, o assistente/recorrente aquando da notificação efectuada nos termos do disposto no art.º 285º do CPP deduziu acusação particular imputando aos arguidos, entre outro, o crime de dano, que não foi acompanhada pelo MºPº.
Note-se que não estamos perante uma falta de promoção do inquérito pelo MºPº, por incumprimento do vertido no artigo 48º do C.P.P. que estabelece que “O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal (…)”, porquanto, na queixa apresentada pelo assistente o mesmo denuncia factos contra os arguidos que configuram apenas a prática do crime de difamação.
Ora, tal circunstancialismo – isto é, o assistente deduzir acusação pela prática de crime de natureza não particular, sem prévia acusação do MºPº –, tem como consequência a nulidade insanável prevista no art. 119º, al. b), primeira parte, do CPP (de conhecimento oficioso).
Assim, tal como decidido no despacho impugnado, o assistente não tem de facto legitimidade para deduzir acusação particular pela prática do crime de dano.
Donde, terá que se considerar nula a acusação particular na parte em que o assistente imputa aos arguidos a prática do crime de dano e, consequentemente, mantém-se a decisão de não pronúncia por este crime.
Nestes termos, improcede, neste segmento, o recurso.
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II.3.1. Da nulidade/irregularidade do despacho de não pronúncia do crime de difamação
O recorrente sustenta que o despacho de não pronúncia é inválido (nulidade sanável ou irregularidade) por não descrever nem especificar os factos da acusação particular e do RAI que considerou suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados.
O MºPº da 1ª instância entende que não é obrigatório no despacho de não pronúncia respeitar os formalismos do despacho de acusação impostos no artigo 283º do CPP.
O MºPº desta Relação sufraga a orientação que sustenta a obrigatoriedade da discriminação dos factos suficientemente indiciados e não indiciados e a consequente nulidade insanável da decisão.
Vejamos.
O artigo 308º do CPP com a epígrafe “Despacho de pronúncia ou de não pronúncia” preceitua:
1. Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
2. É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 283º, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior”.
O artigo 307º, n.º 1 dispõe que “Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, que é logo ditado para a acta, considerando-se notificado aos presentes podendo fundamentar por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução.”
O artigo 283º, n.º 3, al. b) estabelece que:
A acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (…)”.
A jurisprudência e doutrina têm adoptado duas posições distintas quanto à estrutura do despacho de não pronúncia:
- A primeira considera que o despacho de não pronúncia não tem que conter a narração dos factos não suficientemente indiciados – cfr. o Ac. do STJ de 18.01.2006, Proc. n.º 3613/05.3.ª e os Acs. do TRP de 16.01.2002 e de 14.02.2007 acessíveis em www.dgsi.pt e o Prof. Germano Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, vol. III, 2.ª edição, Verbo, 182 e segs.) que entende que o despacho de não pronúncia é uma decisão meramente adjectiva, que tem, apenas, efeitos de caso julgado formal e por isso não impede a reabertura do inquérito;
- A segunda considera obrigatória a narração dos factos não indiciados porque é sobre esses factos que incide o efeito de caso julgado - cfr., entre outros, os Acs. do TRE de 01.03.2003 e 19.11.2013, os Acs. do TRG de 13.01.2003 e 27.09.2004, os Acs do TRC de 09.12.2010 e 13.11.2013 e os Acs. do TRP de 16.12.2009, 21.01.2015 e 13.07.2022 todos acessíveis em www.dgsi e, ainda, Paulo Pinto de Albuquerque (em “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, pág. 804) que considera fundamental a narração dos factos não suficientemente indiciados “porque é sobre esses factos que incide o efeito de caso julgado. A delimitação objectiva e subjectiva rigorosa dos factos no despacho de não pronúncia constitui, pois, a garantia última da segurança jurídica do arguido”.
No mesmo sentido veja-se ainda Frederico Lacerda da Costa Pinto, “Direito Processual Penal”, edição AAFDL, 1998, pág. 164, J.M Damião da Cunha, “Ne bis in idem e exercício da acção penal”, in “Que futuro para o processo penal?”, p. 557).
No sobredito acórdão do TRP de 21.01.2015 podemos ler:
Tenho para mim que o juiz de instrução que, pronunciando-se sobre o objecto do processo, decide que não se indiciam suficientemente os factos em que assenta a imputação do crime ou crimes que estiverem em causa e por isso determina o arquivamento do processo (a não pronúncia), não seguindo o processo para julgamento, profere uma decisão de mérito, que tem por isso força vinculativa, não só dentro do processo em que foi proferida, mas também fora dele, constituindo caso julgado res judicata e só mediante recurso de revisão poderá ser reaberta a discussão sobre tais factos.
Daí que não nos fiquem quaisquer dúvidas de que o despacho de não pronúncia tem de especificar os factos em relação aos quais existe prova indiciária suficiente e aqueles em relação aos quais não existem indícios suficientes.”
No supra citado acórdão do TRP de 13.07.2022 escreveu-se que:
Porém, o interesse da fixação da factualidade não se esgota na delimitação dos poderes de cognição do Juiz de Instrução ao proferir o despacho de pronúncia nos termos do art. 308º do C.P.Penal, nem no dever de fundamentação dos actos decisórios. A sua importância também fundamental para a determinação dos efeitos do caso julgado da decisão final de não pronúncia, quando esta assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido, ou seja, quando o tribunal conhece do mérito da causa.”
A respeito do efeito da decisão de não pronúncia escreveu-se no Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, 2021, pág. 1299:
“A decisão de não pronúncia que se fundamenta na verificação de vícios processuais que impeçam o conhecimento de mérito não preclude (sanado o vício), e a que se fundamente na inverificação de indícios suficientes da prática do crime ou de quem foi o seu agente preclude – como decorrência do princípio ne bis in idem (art. 29º/5 CRP), preordenado à garantia da paz jurídica do arguido –, a dedução de nova acusação pelos mesmos factos (o mesmo objecto processual)”.
Atentas as considerações expendidas e, com o devido respeito por posição contrária, entendemos que o despacho de não pronúncia que conhece do mérito da causa deve efectivamente conter, ainda que de forma sintética, a narração dos factos indiciados e não indiciados por quatro ordens de razões:
1ª Do artigo 307º, n.º 1 do CPP resulta que o juiz no despacho de pronúncia ou de não pronúncia deve fundamentar as razões de facto e de direito da decisão, podendo fazê-lo por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura de instrução;
2ª A aplicação ao despacho do disposto no artigo 283º, n.º 3, al. b) por força do disposto no artigo 308º, n.º 2 teve o propósito de abranger o despacho de não pronúncia como resulta da menção ao “despacho referido no número anterior”, sem fazer qualquer distinção entre o despacho de pronúncia e não pronúncia;
3ª O despacho de não pronúncia traduz-se num acto decisório do juiz, devendo ser fundamentado, especificando os motivos de facto e de direito da decisão por força do disposto no artigo 205º, n.º 1 da CRP e artigo 97º, n.º 5 do CPP;
4ª A necessidade de indicação dos factos indiciados e não indiciados é uma exigência decorrente do efeito do caso julgado que o despacho de não pronúncia enquanto decisão judicial passa a ter, com vista a evitar que alguém possa voltar a ser processado criminalmente pelos mesmos factos objecto de despacho de não pronúncia.
No caso vertente, estamos perante um despacho de não pronúncia que conheceu do mérito da causa e no qual não consta os factos indiciados e não indiciados (expressamente ou por remissão).
Assim, entendemos que o despacho de não pronúncia recorrido não cumpre minimamente aquele desiderato.
A jurisprudência tem adoptado essencialmente três posições distintas quanto à consequência processual da falta de narração dos factos no despacho de não pronúncia que conhece do mérito da causa:
- A primeira defende que se trata de uma irregularidade, sendo que para uns constitui uma irregularidade sujeita ao regime geral do art. 123.º do CPP, só podendo ser conhecida mediante atempada arguição – cfr. o Ac. do TRP de 29.05.2013 e o TRC de 03.07.2013, acessíveis em www.dgsi.pt – e para outros constitui uma irregularidade que influi no conhecimento da causa, sendo por isso de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 123.º, n.º 2, do CPP – cfr. Acs. do TRG de 04.07.2005, 12.02.2007, 18.06.2007, 09.07.2009 e 06.12.2010, Ac. do TRL de 10.02.2022 e Acs. do TRP de 15.04.2015, 06.05.2015, 12.10.2016, 16.12.2009, 14.06.2017 e 13.07.2022, acessíveis em www.dgsi.pt.
- A segunda sufraga a orientação de que se trata de uma nulidade insanável de conhecimento oficioso – cfr. Acs. do TRE de 20.12.2012, 26.02.2013 e de 17.06.2014, Acs. do TRP do TRP de acórdão de 17.02.2010 e 26.04.2017, Ac do TRL de 07.05.2013 e Ac. do TRC de 13.11.2013, acessíveis em www.dgsi.pt.
- A terceira defende que se trata de uma nulidade sanável, dependente de arguição – cfr. Acs. do TRP de 07.07.2010, 17.02.2010, 27.02.2013, 19.11.2013 e 21.01.2015, Acs. do TRE de 10.12.2009, 19.11.2013 e 22.04.2014 e Ac. do TRL de 10.07.2007, acessíveis em ww.dgsi.pt.
A propósito do despacho de não pronúncia no supra citado acórdão do TRP de 07.07.2010 escreveu-se:
“Os demais casos do n.º3 do artigo 283.º, não subsumíveis à previsão da acusação manifestamente infundada, reconduzem-se ao regime geral das nulidades sanáveis e dependentes de arguição.
Daí que, tratando-se, no caso, não de um despacho de pronúncia, mas antes de um despacho de não pronúncia, a falta de fundamentação (e omissão de pronúncia) se traduza numa nulidade que é sanável e dependente de arguição”.
Não tendo sido arguida a nulidade do despacho de não pronúncia, quer perante o tribunal que praticou o acto, quer por via de recurso, tal nulidade tem de considerar-se sanada.”
E no sobredito acórdão do TRP de 21.01.2015 podemos ler:
“Como é bem sabido, o regime geral das nulidades em processo penal está, basicamente, previsto nos artigos 118.º a 122.º do Cód. Proc. Penal e é dominado pelo princípio da legalidade ou tipicidade das nulidades: só se consideram nulos os actos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência (artigo 118.º, n.º 1).
Fora desses casos, se for cometida alguma ilegalidade susceptível de afectar o valor do acto praticado, estaremos perante uma irregularidade (n.º2 do citado artigo 118.º).
Nos termos do n.º 3 do art.º 283.º do Cód. Proc. Penal, a acusação tem de conter, “sob pena de nulidade”, além do mais, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”. E, como já foi abundantemente referido, tal disposição normativa é aplicável, por força da remissão feita no n.º 2 do artigo 308.º, ao despacho de não pronúncia, o qual deve especificar os factos considerados suficientemente indiciados e os não indiciados.
Sempre que a lei comine a nulidade de um acto sem que, expressamente, a qualifique como insanável, terá de ser havida como nulidade relativa (princípio da subsidiariedade da nulidade sanável).”
Paulo Pinto de Albuquerque (em Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição actualizada, pág. 780) também entende que se trata de uma nulidade sanável o despacho de não pronúncia que não contenha a indicação dos factos não indiciados, podendo ser arguida e conhecida no recurso interposto do despacho de não pronúncia (artigo 379º, n.º 2, por identidade de razão).
Igual entendimento é também sufragado por M. Simas Santos e M. Leal Henriques no Código de Processo Penal Anotado, 2ª edição, Vol. II, pág.216.
Atentas tais considerações e, com o devido respeito por posição contrária, entendemos que a falta de narração dos factos no despacho de não pronúncia que conhece do mérito da causa consubstancia uma nulidade sanável p. e p. pelo artigo 120º do CPP.
De facto, o artigo 283º, n.º 3 do CPP, aplicável ao despacho de não pronúncia (conforme acima explanado), consagra a cominação de nulidade para a inobservância dos requisitos legais previstos nesse preceito legal.
Ora, em processo penal, vigora o princípio da legalidade, segundo o qual, “a violação ou a inobservância da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei” – artigo 118º, n.º 1 do CPP –, sendo que o elenco das nulidades insanáveis é taxativo e devem estar cominadas expressamente em disposições legais – artigo 119º do CPP.
Assim, a nulidade cominada no artigo 283º, n. 3 do CPP não estando elencada no acervo das nulidades insanáveis, deve, pois, constituir uma nulidade sanável.
E, tendo o recorrente suscitado a nulidade em causa no presente recurso, seguindo de perto o entendimento sufragado pelo Paulo Pinto de Albuquerque (ob. cit., pág. 780) e pelos citados acórdãos do TRP de 07.07.2010 e 21.01.2015, consideramos não estar impedidos de conhecer a questão em apreciação e de declarar a nulidade do despacho de não pronúncia pelo crime de difamação.
Resta agora determinar qual o efeito, no caso vertente, desta declaração de nulidade sanável.
O artigo 122º do CPP determina que:
“1. As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar.
2 - A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respectivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.
3 - Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.”
Ora, na esteira do entendimento sufragado no sobredito acórdão do TRL de 09.12.2010, o Tribunal de recurso não pode apreciar um despacho de não pronúncia se o mesmo for omisso quanto à narração dos factos indiciários e não indiciários, pelo que, tendo em conta o disposto no citado artigo 122º do CPP, entendemos que a declaração de nulidade aqui em causa, deverá determinar a invalidade do despacho de não pronúncia do crime de difamação e, como tal, os autos terão que ser remetidos ao JIC para suprimento dessa nulidade.
Por isso, procede o recurso neste segmento.
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II.3.2. Consequências da apreciação da nulidade sanável
O conhecimento da restante questão suscitada pelo recorrente – pronúncia dos arguidos pelo crime de difamação - fica prejudicado com a verificação e declaração da nulidade do despacho de não pronúncia do crime de difamação.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo assistente CC e, em consequência:
a) Declarar a nulidade sanável prevista no artigo 120º do C.P.P. do despacho de não pronúncia pelo crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º do C.P.;
b) Determinar o suprimento de tal nulidade através da remessa dos autos ao JIC para proferir novo despacho de não pronúncia pelo crime de difamação com a indicação dos factos indiciados e não indiciados que constem da acusação particular e do requerimento de abertura de instrução dos arguidos e que sejam normativamente relevantes;
c) Manter a decisão recorrida na parte em que não pronuncia os arguidos pelo crime de dano.
Sem tributação.
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Porto, 09.11.2022
Maria do Rosário Martins
Lígia Trovão
Pedro Menezes [(com a declaração que se segue) - “Acompanho a decisão”]