Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
475/04.9TAAMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DA GRAÇA SILVA
Descritores: CONCEITO DE FUNCIONÁRIO
ASSOCIAÇÃO HUMANITÁRIA
PECULATO
Nº do Documento: RP20101215475/04.9TAAMT.P1
Data do Acordão: 12/15/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O conceito de funcionário, definido pelo art. 386.º, do CP, é um conceito amplo, abrangendo todas as pessoas que desempenham funções em organismos de utilidade pública.
II - Na defesa do interesse público e no sentido de evitar lacunas de punibilidade, é manifesta a intenção do legislador de integrar nessa noção todas as hipóteses de actuação administrativa.
III - Assim, o presidente da direcção de uma associação humanitária de bombeiros voluntários [pessoa colectiva de utilidade pública] é um funcionário, para efeito da lei penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 475/04.9TAAMT
(Tribunal Judicial de Amarante – 2º Juízo)
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Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
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I – Relatório:
Em processo comum, com intervenção de Tribunal singular, o Ministério Público deduziu acusação contra B………., divorciado, reformado, nascido a 23 /12/1947, natural da freguesia de ………., concelho de Felgueiras, filho de C………. e de D………., residente em ………., ………., Amarante e E………., divorciado, reformado, nascido a 28/09/1958, natural da freguesia de ………., concelho de Amarante, filho de F………. e de G………., residente na Rua ………., n.º …, ………., Amarante, imputando-lhes, em co-autoria e na forma consumada, a prática um crime de abuso de confiança qualificado, p. e p. pelos artigos 26º e 205º/1 e 4- a), do C. Penal.
A H………. constituiu-se assistente e deduziu pedido de indemnização civil, pedindo a condenação de ambos os arguidos no pagamento da quantia de € 11.235,00, acrescida de € 2.500,00 de juros de mora vencidos e de juros vincendos, até efectivo e integral pagamento, contados à taxa legal. Fundamentou o pedido de capital nos factos constantes da acusação e contabilizou os juros desde a data da emissão dos cheques.
O arguido B……….. apresentou contestação, negando os factos por que vem acusado. Deduziu ainda contestação ao pedido de indemnização civil, negando os factos e excepcionando a litispendência relativamente à acção ordinária, que corre termos no 3º Juízo deste Tribunal, proc. n.º 575/08.6 TBAMT, intentada pela assistente.
O arguido E………. não apresentou contestação.
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No decurso da audiência de julgamento foi proferido despacho que considerou verificada a excepção de litispendência e absolveu os arguidos da instância civil.
A assistente recorreu do referido despacho, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos, que se transcrevem:
«1. O douto despacho recorrido violou o disposto nos artigos 494º, al. i), 497º e 498º do Código de Processo Civil, quando julgou procedente a excepção de litispendência invocada pelos Demandados e os absolveu da instância.
2. De facto, existiu identidade de sujeitos processuais, de causas de pedir e de pedidos entre estes autos e aqueles que correm sob a forma de processo ordinário com o nº 575/08.6TBAMT no 3º Juízo do mesmo Tribunal Judicial de Amarante.
3. Identidade que não existe mais, nem existia à data da prolação do despacho que a reconheceu, uma vez que, posteriormente à invocação da excepção de litispendência, a Demandante/Recorrente apresentou naquela acção nº 575/08.6TBAMT um requerimento alterando a causa de pedir e o pedido.
4. A saber, a Demandante/Recorrente desistiu da instância quanto a esses dois cheques, o que equivale a dizer que ali não se discute mais a existência ou validade dos cheques, nem se peticiona qualquer indemnização pelo valor dos mesmos.
5. A litispendência é uma excepção dilatória (art. 494º, al. i) do Código de Processo Civil - CPC) que pressupõe a repetição de uma causa (art. 497º, nº1, 1ª parte CPC).
6. Verifica-se quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (art. 498º, nº1, sendo que nos nºs 2 a 4 do mesmo artigo se esclarece: há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico; e há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico).
7. O seu escopo é evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (art. 497º, nº2 CPC), como forma de assegurar a certeza do direito e a segurança jurídica e, concomitantemente, a segurança e a paz social.
8. Buscando-se, ao mesmo tempo, efectivar o princípio de economia processual, evitando que o tribunal pratique actos inúteis.
9. A sua verificação deve ser apreciada em qualquer momento da acção, uma vez que pode ocorrer em fase posterior à propositura da acção, mercê das possibilidades concedidas às partes para alterarem o pedido e a causa de pedir (arts. 272º e 273º CPC), deduzirem pedidos reconvencionais (art. 274º CPC) e suscitarem a intervenção de terceiros (arts. 269º e 320º e seguintes CPC).
10. E, se “em qualquer momento” as partes podem introduzir modificações no processo que gerem identidade de sujeitos, pedidos e causas de pedir, também podem introduzir modificações que a eliminem, realidades que devem ser apreciadas pelo Tribunal.
11. Como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/05/1990 (in www.dgsi.pt), se mesmo após a prolação de despacho que reconhece a litispendência, for apresentado novo requerimento que afasta a hipótese de identidade de pedidos, esta será afastada, prosseguindo as acções.
12. Efectiva-se, desta forma, o princípio da economia processual e do aproveitamento dos actos, sendo que o requerimento que afasta a hipótese de identidade de pedidos e de causas de pedir foi apresentado antes da prolação do despacho que declarou a excepção.
13. A manutenção da situação criada com a absolvição dos Demandados da instância, traduz-se na não apreciação da questão em qualquer dos processos porquanto no processo ordinário houve redução do pedido e nos presentes autos a questão não pode mais ser apreciada.
14. Nestes termos, a manutenção desta absolvição da instância aproxima-se perigosamente de se configurar como denegação de Justiça, o que não pode ser, de modo algum, tolerado.
Termos pelos quais deve o presente recurso ser declarado procedente, revogando-se o douto despacho recorrido».
Ao recurso foi fixado o regime de subida com aquele que fosse interposto da decisão final e efeito devolutivo.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Realizado julgamento, os arguidos foram condenados nos seguintes termos:
a) O arguido B………. pela prática, em co-autoria, de um crime de peculato, previsto e punido pelo artº 375º/ 1, com referência ao artº 386º/1, alínea c), do CP na pena de vinte e quatro meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de vinte e quatro meses;
b) O arguido E………., pela prática, em co-autoria, de um crime de peculato, previsto e punido pelo artº 375º/ 1, com referência ao artº 386º/ 1, alínea c), do CP, na pena de 18 dezoito meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de dezoito meses;
c) A ambos os arguidos foi fixada a obrigação de entregar à I………., as quantias de € 1500,00 quanto ao arguido B………. e de € 400,00 quanto ao arguido E………., devendo comprovar nos autos tal entrega no prazo de 150 dias.
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O arguido B………. recorreu da condenação crime, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos, que se transcrevem:
«1º - Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos referenciados autos, na qual se procedeu à alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação e condenou o arguido pela prática “em co-autoria de um crime de peculato, previsto e punido pelo are 375°, n° 1 com referência ao artº 386°, nº 1, al. c), do Código Penal, na pena de 24 (vinte e quatro) meses de prisão”, suspensa por igual período, “com a obrigação de entregar à I………. a quantia de e 1 500,00 (mil e quinhentos euros)”;
2º - A prova documental e testemunhal produzida em sede de julgamento não foi correctamente julgada, impondo uma decisão diversa da proferida pelo Tribunal “a quo”;
3º - De acordo com toda a prova produzida, valorada de acordo com as regras do saber e da experiência comum, essa mesma prova não permite ao Tribunal concluir que o arguido B………, ora Recorrente, tenha praticado o crime de peculato de que é acusado;
4º - Na verdade, o próprio depoimento do co-arguido E………., bem assim como das testemunhas de acusação J………., K………., L………. e M………., bem assim como da testemunha de defesa N………., documentadas nos autos, conjugada com a prova documental constante dos mesmos, impunham uma decisão diversa, qual seja, a absolvição do arguido, ora Recorrente, do crime de peculato em que vem condenado ou do crime de abuso de confiança pelo qual foi inicialmente acusado;
5º - Tal é o motivo pelo qual o ora Recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto relativa aos itens 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º, 15º, 17º, 18º, 19º e 21º dos factos dados como provados na douta sentença ora sob censura;
6º - A prova transcrita no presente recurso, bem assim como os documentos juntos aos autos, justifica a alteração dos factos incorrectamente julgados, ao abrigo do disposto no art° 412°, nº 3, al. a) do Cód. de Proc. Penal,
7º - Com efeito, dessa mesma prova resulta apenas que foi o co-arguido E………. quem efectivamente, como empreiteiro realizou obras para a Ofendida que totalizaram mais de 30.000,00€;
8º - Resulta também suficientemente claro que os cheques em causa foram emitidos depois de o co-arguido E………. ter apresentado dois recibos emitidos pela sociedade unipessoal constituída pela ex-esposa;
9º - Como resulta ainda confessado pelo mesmo co-arguido, pela testemunha M………. e pelo irmão, L………., aquela e a sociedade, de que este último faziam parte serviram apenas como testas de ferro para a emissão de facturas que permitissem ao co-arguido E………. receber o valor dos trabalhos efectuados;
10º - Ainda de acordo com a mesma prova, aquando da emissão dos mesmos cheques, o próprio co-arguido apercebeu-se da divergência de opiniões quanto à titulação dos cheques;
11º - Segundo o próprio E………., à data da emissão dos cheques, a Ofendida devia-lhe “onze mil e tal euros”;
12º - Por último, pelo menos à data dos factos, o co-arguido e a testemunha M………. estavam de boas relações e entendiam-se bem, tanto assim que, confrontada com o pedido do marido para que levantasse a quantia de um dos cheques, e depois de ter sido informada sobre a pessoa a quem se destinava, disse não achar nada estranho;
13º - Assim sendo, fazendo apelo aos princípios e regras acima citados, será legitimo afirmar-se que, atento o circunstancialismo de facto, que quem de facto fez as obras para a Ofendida foi o E……….;
14º - Os cheques emitidos á ordem do arguido E………. foram os únicos que foram emitidos a favor do credor do preço das obras realizadas;
15º - À data da emissão dos cheques, o co-arguido E………. era credor da Ofendida pelo valor de "onze mil e tal euros";
16º - Nada mais se podendo dar como provado, o simples facto de o arguido, ora Recorrente, ter emitido e entregue ao co-arguido os cheques dos autos não permite concluir, com segurança, no sentido da prática, por aquele, do crime de peculato em que vem condenado, ou do crime de abuso de confiança do qual foi inicialmente acusado;
17º - O valor dos cheques e causa, somado aos restantes pagamentos efectuados como adiantamentos, perfaz o total dos recibos entregues e devolvidos ao E……….-,
18º - De qualquer modo, a alegada entrega pelo co-arguido E………. ao ora Recorrente das importâncias dos cheques em causa, atentos os contornos que lhe foram assinalados pelo co-arguido E………. e pela testemunha O………. sempre oferece dúvidas que ultrapassam, de largo, o razoável;
19º - Ao dar-se como provada na douta sentença recorrida a factualidade constantes de 17° e 18° da matéria de facto assente, nela se cometeu erro notório na apreciação da prova;
20º - Erro esse cuja notoriedade resulta do próprio depoimento do co-arguido E………. e da testemunha M………., constantes do texto da sentença recorrida na parte relativa à "Motivação da Decisão de Facto";
21º - Assim, a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, ao condenar o ora recorrente pela prática do crime de peculato, violou, além do mais, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos artºs 127º do CPP, 26º, 205º, n° 1 e n° 4, al. a), 375°, n° 1 e 386º, nº 1, al c), do Cód. Penal.
22º - Sendo certo que, para além dos normativos legais a que se alude na conclusão anterior, o mesmo sentenciado violou o princípio in dubio pro reo;
23º - Face ao que antecede e tendo presente a documentação da prova, designadamente a gravação da audiência em suporte digital, deverá este Vendo. Tribunal proceder à modificação da matéria de facto que vem impugnada por incorrectamente julgada;
24º - Após, deverá o arguido B………., ora Recorrente, ser absolvido do crime de peculato em que vem condenado;
25º - Mesmo que assim se não entenda, a alteração da qualificação dos factos descritos na acusação operada na douta sentença ora em crise, inicialmente tidos como consubstanciadores da prática de um crime de abuso de confiança e, agora, de peculato, p. e p. pelo art° 375º, n° 1, do Cód. Penal, mostra-se errada;
26º - Com efeito, a alegada prática pelo ora Recorrente dos factos que lhe são imputados no exercício das funções de Presidente da Direcção da Ofendida não pode ser considerada no exercício de funções em organismos de utilidade pública, logo, não poderá ser equiparado a funcionário público.
Termos em que deverá o presente recurso merecer provimento, alterando-se a matéria de facto dada como assente, nos termos da conclusão 45ª e absolvendo-se o Recorrente do crime de que vem acusado, com o que se fará inteira».
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Contra-alegaram o Ministério Público e a assistente, concluindo as respectivas alegações no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido B………..
Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto aderiu à motivação da contra-alegação do Ministério Público.
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II- Questões a decidir:
Conforme resulta do artº 412º/1, do CPP – na redacção dada pelo DL nº 303/2007, de 24/8, aplicável aos autos – a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pelas conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. Deste dispositivo se retira, unanimemente, que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso [1], exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso [2].
A questão colocada pela recorrente, assistente, é saber se há litispendência, ou não, entre o pedido civil deduzido nestes autos e a acção, que intentou, onde alegadamente reduziu o pedido/ desistiu da instância quanto aos cheques que fundaram o pedido aqui deduzido.
As questões colocadas pelo recorrente, arguido, são:
A) Pedido de reapreciação da prova quanto aos pontos 6º a 15º, 17º a 19º e 21º da matéria de facto (conclusões 1 a 18 e 22º e 23º) e alegação de que houve violação do princípio “in dubio pro reo” (conclusões 21º e 22º);
B) Erro na apreciação da prova quanto aos pontos 17º e 18º da matéria de facto por contradição com a fundamentação da aquisição probatória (conclusões 19º a 21º);
C) Inaptidão da factualidade provada para o preenchimento do tipo legal pelo qual o arguido foi condenado (conclusões 25º e 26º).
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III- Fundamentação de facto:
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes os factos:
1º) No dia 2 de Janeiro de 2002, foi conferida posse aos corpos gerentes da H………. que haviam sido eleitos em Assembleia Geral, no dia 22 de Dezembro de 2001, e que desempenhariam funções durante o biénio 2002/2003; nesse acto foi o arguido B………. empossado no cargo de Presidente da Direcção e a testemunha P………. empossado como Tesoureiro.
2º) Entre outras funções inerentes ao cargo para o qual fora eleito, competia ao arguido B………., nos termos do artigo 37.º, dos Estatutos da H………., «assinar e rubricar os livros de actas bem como quaisquer outros documentos referentes à actividade da H……….».
3º) Assim, e relativamente às contas bancárias, nomeadamente as que a H………. possuía na agência de Amarante da Q………., com o número ……….., e na agência de Amarante do S………., com o número ……….., competia ao arguido B………., juntamente com o Tesoureiro P………., assinar os cheques sobre a mesma sacados e destinados ao pagamento dos fornecedores, bem como controlar a sua movimentação.
4º) Os cheques pertencentes à H………. eram guardados num cofre e, de modo a ser facilitada a sua utilização na realização dos pagamentos aos fornecedores, era prática corrente o Tesoureiro P………. deixar vários assinados, sem outros elementos preenchidos, para além da sua própria assinatura, pois confiava no Presidente da H………., o arguido B………..
5º) Quando necessários, e em obediência às ordens que lhe eram dadas pelo arguido B………. ou pelo Tesoureiro, tais cheques eram preenchidos pela escriturária K………. e, após serem assinados por este arguido, entregues como forma de pagamento.
6º) Em data não concretamente determinada do mês de Abril de 2003, mas situada entre o início desse mês e o dia 11 de Abril de 2003, o arguido B………. decidiu apropriar-se de parte dos saldos de duas das contas bancárias da H……….., sendo uma a n.º ……….., existente na agência de Amarante da Q………. e outra a n.º ……….. existente no S………..
7º) Assim, de forma a concretizar essa sua intenção, sem dar qualquer explicação ao Tesoureiro P………., nem solicitar o seu preenchimento pela pessoa que normalmente o fazia (a escriturária K……….) durante o supra referido período de tempo apoderou-se de dois cheques, sendo um o com o número ………., sacado sobre a conta número …........, existente na agência de Amarante do S……….., e outro com o número ………., sacado sobre a conta número ……….., existente na agência de Amarante da Q……….. 8º) Preencheu ambos pelo seu próprio punho e quase integralmente, ou seja, todos os dizeres, com excepção da assinatura do Tesoureiro da H………., P………., que dos mesmos já anteriormente constava, sendo o primeiro no dia 11 de Abril de 2003 e o segundo no dia 15 de Abril de 2003.
9º) Porém, e porque sabia que a concretização desses seus intentos apropriativos seria ostensiva e detectável caso, para além de preencher e assinar os referidos cheques, também procedesse ao seu levantamento, acrescendo a isso o facto de não conseguir forma de justificar contabilisticamente a saída dos montantes das contas, o arguido B………. decidiu incluir na concretização do seu plano o arguido E………., pessoa que conhecia bem, não só por já ter colaborado na realização de obras, quer no quartel dos H……….., quer em outros locais, e ainda em virtude de estar a realizar obras numa piscina que o arguido B………. nessa altura construía na sua casa situada em ………., ………., Amarante.
10º) Assim, em concretização do plano traçado pelo arguido B………., ao qual o arguido E………. aderiu, no dia 11 de Abril de 2003, em hora não concretamente determinada, mas antes das 14 horas e 55 minutos, em local não concretamente apurado, o arguido B………. entregou ao arguido E………. o cheque n.º ………., sacado sobre a conta n.º ……….., existente na agência de Amarante do S………., datado desse mesmo dia, no valor de € 5.000,00, do qual constava como beneficiário o arguido E………., para que procedesse ao levantamento da quantia que o mesmo titulava e a entregasse na sua residência, situada em ………., ………., Amarante.
11º) No dia 11 de Abril de 2003, em hora não concretamente determinada, mas antes das 14 horas e 55 minutos, o arguido E……… falou com a sua esposa, M……….., a quem, sem explicar as circunstâncias em que o mesmo lhe havia sido entregue pelo arguido B………., entregou o cheque e pediu-lhe que fosse ao Banco proceder ao levantamento, o que a mesma conseguiu fazer pelas 14 horas e 55 minutos, após ter endossado o cheque no verso, onde apôs, pelo seu próprio punho, a sua assinatura, vindo seguidamente a entregar-lhe os referidos € 5.000,00 em notas do Banco Central Europeu.
12º) Na posse dessa quantia, no dia seguinte, 12 de Abril de 2003, em hora não concretamente determinada, o arguido E………. dirigiu-se até à residência do arguido B………., sita em ………., ………., Amarante, onde lhe entregou em mão tal montante, que o arguido B……… integrou no seu património, fazendo do mesmo coisa sua, vindo a gastar posteriormente em proveito próprio.
13º) Dando sequência ao plano entre ambos anteriormente traçado, no período compreendido entre os dias 15 de Abril de 2003 e 16 de Abril de 2003, antes das 10 horas e 6 minutos, em local não concretamente apurado, o arguido B.......... entregou ao arguido E………. o cheque n.º ………., sacado sobre a conta n.º ……….. da Q………. – Agência de Amarante, no valor de € 6.235,00, da qual é titular a referida H……….
14º) No dia 16 de Abril de 2003, o arguido E………. dirigiu-se à Q………., agência de Amarante, apôs a sua assinatura no verso do cheque e, quando eram cerca das 10 horas e 6 minutos, procedeu ao seu levantamento.
15º) Nesse mesmo dia, em hora que não foi possível concretamente determinar, mas após as 10 horas e 6 minutos, dirigiu-se, com a quantia de € 6.235,00 em notas do Banco Central Europeu, até à residência do arguido B…….., sita em ………., ………., Amarante, onde lhe entregou em mão tal montante, que o arguido B………. integrou no seu património, fazendo do mesmo coisa sua, vindo a gastar posteriormente em proveito próprio.
16º) O comportamento dos arguidos apenas veio a ser detectado em Maio de 2006, aquando da realização de uma auditoria, levada a efeito pela sociedade de revisores oficiais de contas “T……….”, por iniciativa da nova direcção da H………., que havia tomado posse no dia 2 de Janeiro de 2006 e que sucedeu à Direcção presidida pelo arguido B………..
17º) As duas quantias supra referidas (€ 5.000,00 e 6.235,00) não diziam respeito a quaisquer trabalhos ou obras de construção civil, ou de outro tipo, que o E………. tivesse efectuado para a H………. ou no quartel ou noutras instalações à mesma pertencentes, quer directamente quer por intermédio da sociedade “W………., Lda.” ou de M………., ou seja, não existia qualquer dívida que justificasse a emissão dos dois cheques que permitiram o seu levantamento das contas bancárias da H………., dos valores que tais cheques titulavam, como bem sabiam ambos os arguidos.
18º) Mais sabiam estes que o arguido B………. não podia preencher, assinar e entregar ao arguido E………. quaisquer cheques da H………., uma vez que o mesmo não se encontrava sequer colectado como empreiteiro, e não havia celebrado com a H………. qualquer contrato de prestação de serviços.
19º) Também bem sabiam os arguidos que os valores monetários existentes nas contas bancárias da H………. não lhes pertenciam e que os poderes de movimentação dessas contas bancárias, que o arguido B……… possuía, advinham da sua qualidade de Presidente da Direcção, pelo que não as poderia movimentar em proveito próprio, o que não os impediu de agir como se de coisa sua se tratasse, integrando-as no património do arguido B………..
20º) Como forma de camuflar a sua conduta e ao mesmo tempo tentar justificar contabilisticamente a saída dessas quantias das contas bancárias da H………, o arguido B………. procedeu do seguinte modo:
a) fotocopiou e juntou ao cheque n.º ………., datado de 11 de Abril de 2003, sacado sobre o S……….”, agência de Amarante, no valor de € 5.000,00 um recibo no valor de € 19.319,75 e entre esses dois documentos escreveu, pelo seu próprio punho, “adiantamento”;
b) fotocopiou e juntou ao cheque n.º ………., datado de 15 de Abril de 2003, sacado sobre a Q………., agência de Amarante, no valor de € 6.235,00, uma fotocópia de recibo no valor de € 19.319,75 (o mesmo referido na alínea a)) e, na parte de cima desses dois documentos escreveu, pelo seu próprio punho, “pagamento final obras adjudicadas”.
21º) Acontece porém que o referido “recibo” nada tinha que ver com a emissão daqueles dois cheques que não se destinavam a pagar qualquer trabalho efectivamente prestado.
22º) Os arguidos agiram de forma voluntária, livre e consciente, em comunhão de esforços e conjugação de vontades, com o objectivo, que concretizaram, de integrar no património do arguido B………. a quantia global de € 11,235,00 em detrimento da H………, bem sabendo que tal quantia não lhes pertencia e que actuavam contra a vontade da sua proprietária.
23º) Mais sabia o arguido B………. que apenas poderia administrar tais quantias em prol da H………., em virtude de as mesmas apenas lhe estarem acessíveis por acto não translativo da propriedade, e que não o legitimava a agir como se de seu proprietário se tratasse, como fez.
24º) Também bem sabiam os arguidos que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Mais se provou que:
25º) O arguido B………. divorciado, vive com uma companheira.
26º) Vive em casa própria. Paga € 400 mensais de amortização de crédito à habitação.
27º) Encontra-se reformado como gerente bancário, recebendo cerca de € 2.000,00 de pensão de reforma. A companheira é doméstica.
28º) Exerce o cargo de Presidente da Junta de Freguesia de ………., recebendo € 270,00 por mês.
29º) Tem o 9º ano de escolaridade.
30º) É considerada por aqueles que o conhecem como uma pessoa séria e trabalhadora.
31º) O arguido B……… foi condenado no âmbito do Processo Comum Singular n.º 631/02.4 TAAMT, deste mesmo Juízo e Tribunal, por factos praticados no dia 30 de Setembro de 2002, que consubstanciam um crime de difamação, previsto e punido pelos artigos 180.º, n.º 1 e 183.º, do Código Penal, por sentença proferida no dia 7 de Julho de 2004, na pena de 160 dias de multa à taxa diária de € 6,00.
32º) O arguido E……… é divorciado.
33º) Encontra-se reformado, recebendo € 242 por mês de pensão de reforma.
34º) Vive em casa da ex-mulher.
35º) Tem o 4º ano de escolaridade.
36º) É considerado uma pessoa educada, amiga de ajudar os outros e que não se mete em confusões.
37º) Não tem antecedentes criminais.
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Com interesse para a apreciação dos recursos interpostos, e com fundamento probatório nos documentos juntos aos autos, mais se considera assente que:
38) A H………., por requerimento entrado em juízo a 05/05/2009, deduziu pedido de indemnização civil nestes autos, contra ambos os arguidos, pedindo a sua condenação no pagamento do valor dos dois cheques, supra referidos, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a data da respectiva emissão.
39) O arguido B……… deduziu contestação ao pedido de indemnização civil, deduzido nestes autos, a 16/06/2009, invocando, entre o mais, a litispendência com a acção declarativa, com processo ordinário, que corre termos no Tribunal de Amarante, sob o nº 575/08.6TBAMT.
40) A mesma H………., a 18/03/2008, intentara acção declarativa, comum, com processo ordinário, contra os aqui arguidos e a sociedade “W………., Ldª”, acção essa que corre termos no Tribunal de Amarante, sob o nº 575/08.6TBAMT. Aí foi pedida a condenação solidária, de todos os RR., no pagamento do valor de cinco cheques, num total de € 30.264,04, acrescido de juros de mora, desde citação até integral pagamento, à taxa legal. Desses cinco cheques, dois deles são os supra referidos e os outros três, no valor de € 19.129,04, foram, alegadamente emitidos pelo arguido B………. a favor da Ré sociedade.
41) A 21/09/2009 a H………. assistente deu entrada neste processo, a um requerimento, onde refere que junta cópia de requerimento apresentado no processo 575/08.6TBAMT.
42) O documento junto com o requerimento, configura-se como um requerimento dirigido à acção nº 575/08.6TBAMT, assinado por advogado, pelo qual a a H………. assistente declarar pretender a redução do pedido para o valor de € 19.129,04, excluindo da acção o valor de € 13.485,00, alegadamente relativo aos dois cheques a que se reporta a acusação deduzida nestes autos.
43) A assistente foi considerada de utilidade pública, por despacho da Direcção Geral da Administração Politica e Civil, publicado no DR, IIª Série, de 10/04/1928.
44) A assistente encontra-se registada na Conservatória do Registo Comercial de Amarante como Pessoa Colectiva de Utilidade Pública.
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Factos não provados:
Não se provou que:
a) Porque sabia o arguido B………. que o único modo de que dispunha para aceder ao valor monetário existente nessas contas bancárias era através da emissão de cheques, o arguido B………. dirigiu-se ao cofre, de onde retirou dois cheques.
b) O arguido B……….. entregou ao arguido E………., no interior das instalações da H………., o cheque n.º ………..
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IV- Fundamentação probatória:
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B) Do erro na apreciação da prova quanto aos pontos 17º e 18º da matéria de facto por contradição com a fundamentação da aquisição probatória:
Esse é o vício que tem a ver com a aptidão da fundamentação da aquisição probatória à consideração sobre se determinados factos se encontram, ou não, provados.
Existe erro notório na apreciação da prova quando, considerado o texto da decisão recorrida, por si, ou conjugado com as regras de experiência comum, se evidencia um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum ou do jurista com preparação normal. Ocorre o vício, quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica normal, revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados entre si, ou entre os provados e os não provados, ou traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, insustentável, e por isso incorrecta [3].
Este vício prende-se com os limites a que está sujeito o princípio da livre apreciação da prova, p. no artigo 127.º/CP, que «não pode ser entendida como uma operação puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável: Há de traduzir-se em valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisitos necessários para uma efectiva motivação da decisão» [4].
O princípio da livre apreciação da prova «não deve traduzir-se em mais que não aprisionar o juiz em critérios preestabelecidos pela lei para formar a sua convicção, mas não para o isentar de obediência às regras da experiência e aos critérios da lógica. Neste sentido, um elemento de legalidade entra de novo no problema da apreciação da prova. Ainda que não fixadas pela lei, ele implica, na verdade, que certas regras de direito (nas quais podem transformar-se as leis da lógica e da experiência) presidam à avaliação da prova pelo juiz, mesmo onde falamos de livre convicção. Ideia que implica, por um lado, a possibilidade de apreciar em via de recurso a violação de tais leis na apreciação da prova e, por outro lado, (…) conduz à necessidade de motivar as decisões em matéria de facto» [5].
No caso concreto convém que nos debrucemos sobre a fundamentação contida na decisão. Resumidamente, digamos que o recorrente pretende que há erro quanto ao que consta dos pontos 17 e 18 da matéria de facto, quando cotejados com a fundamentação da aquisição probatória, quando refere que «quanto aos factos 9º) a 15º); 17º); 18º); 19º); 21º) e 22º) dados como provados, fundamentou-se nas declarações do arguido E………., que esclareceu que (…) fez bastantes obras para a H………. (…) designadamente, obras no interior e exterior do quartel ………., numas casas pertencentes à mesma Instituição na ………., e ainda na residência do co-arguido, sita em ………., mais concretamente na construção de raiz de uma piscina. Mais esclareceu que, por estar reformado por invalidez, não se encontrava colectado no Serviço de Finanças, mas quem tratava das obras, da sua adjudicação, da realização e acompanhamento das obras e dos trabalhadores era ele» e que considerou o depoimento da testemunha M………. que disse que «constituiu uma empresa e se colectou nas Finanças por forma ao marido passar facturas, em seu nome, para não estar sempre a chatear o cunhado, L………., a pedir para passar facturas das obras que eram realizadas pelo marido».
Entende o recorrente que o erro se configura pela contradição entre os factos assentes e a prova invocada e que ele contamina toda a acusação, que considera que não há causa para a emissão dos cheques porque parte do princípio de que o arguido E……… não prestou serviços à assistente, nada contratou com ela e nem estava colectado como empreiteiro.
Toda esta argumentação se reveste de falta de suporte, porque o consta do ponto 17 da matéria de facto (tal como do 21) é, tão-somente, que os dois cheques, em apreço, não se destinaram a pagar quaisquer trabalhos ou obras feitas pelo arguido à assistente. Não se disse, nem na factualidade assente, nem na fundamentação, que o arguido nunca trabalhou ou prestou serviços para a assistente ou que nunca contratou com ela, por si ou através de sociedade ou da sua mulher. Antes pelo contrário, partiu-se sempre do princípio que o arguido trabalhou /prestou serviços para a assistente. O que se discute na causa e se averiguou foi se estes cheques tinham, ou não, servido para pagar esses serviços ou trabalhos. E, justificadamente, concluiu-se que não, o que se fez verter na factualidade provada. A questão das obras, das pessoas em nome de quem eram cobradas, da facturação e dos recibos está perfeitamente esclarecida na sentença, sem que se suscitem quaisquer dúvidas. E é nessa medida que se deve entender o vertido no ponto 18, que não primando pela clareza, deixa perceber suficientemente bem que o que se quis dizer foi que o arguido B………. não tinha justificação para emitir cheques da ofendida em nome do co-arguido E………., que não podia facturar por si quaisquer trabalhos que fizesse. Ou seja, a argumentação do recorrente não corresponde ao conteúdo da sentença, para que remete - nem ao literal, nem ao semântico. E, nessa medida, improcede o alegado erro.
Também improcede o erro que se invoca com fundamento nas questões que o Tribunal a quo colocou, em sede de fundamentação, a propósito das incongruências encontradas no depoimento do arguido B……….. Não são dúvidas do Tribunal, quanto aos factos aí referidos, são a manifestação das incongruências encontradas nesse depoimento, que se formularam na interrogativa. A pretensa justificação agora apresentada é, consequentemente inócua. Como o é aquilo que se pretende extrair do documento de folhas 163. Por um lado o erro tem que ser detectável a partir do texto da decisão e não com recursos a elementos externos, o que é o caso do documento a que o recorrente se reporta. Por outro esse documento não é factura, nem recibo e dele não se retira nada de útil para a discussão da causa. É uma cópia de um manuscrito, onde se escreveram uma série de palavras soltas, vários nomes, três contas, duas assinaturas e um carimbo, em nome do arguido E……….. Afigura-se excessivo pretender que este documento configura uma factura, em nome do arguido E………., da qual se retire veracidade para o depoimento do recorrente quando disse que esse arguido também apresentava facturas em seu nome.
Apreciada toda a fundamentação da aquisição probatória e bem assim o acervo da factualidade considerada provada e não provada, nenhum vício se nos depara. O Tribunal a quo não evidenciou qualquer dúvida quanto à fixação da factualidade assente e a justificação da matéria de facto fixada não suscita dúvidas quanto à adequação da factualidade considerada assente à prova produzida, face às regras de experiência comum. Improcedem, na conformidade, as questões colocadas de vício na sentença ou de violação do princípio in dubio na apreciação da prova.
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C) Da inaptidão da factualidade provada para o preenchimento do tipo legal pelo qual o arguido foi condenado:
Entende o arguido que os factos que praticou não integram o crime de peculato porque as funções de presidente da direcção da assistente não podem ser consideradas exercício de funções em organismo de utilidade pública, pelo que não ocorre a previsão
A questão prende-se com o conceito de funcionário, que vem definido pelo artº 386º/CP, e que, na alínea c), na redacção anterior à L. 32/2010, incluía (o que agora faz na alínea d)) quem desempenhar funções em organismos de utilidade pública ou nelas participar, mesmo provisória ou temporariamente, a título gratuito ou remunerado, voluntária ou obrigatoriamente. Defende o recorrente, na esteira do já defendido pelo Ministério Público quando proferiu a acusação, que o conceito de “organismo”, indelevelmente ligado ao corporativismo, proibido pela Lei nº 64/78, de 07/10, porque enraizado na ideologia fascista, só pode ser entendido enquanto reportado às associações de utilidade pública administrativa, representativas de uma actividade social, porque são as únicas que têm carácter representativo (de profissões ou categorias). No caso de corporações morais ou culturais, as associações ou instituições que as compõem não são representativas, de per se; são-no apenas as corporações que representam toda a actividade social desenvolvida pelos seus membros. E transposto este raciocínio, fundado em conceitos definidos pelo Prof. Marcelo Caetano, no seu «Manual de Direito Administrativo» para o momento actual, subordinado a novos princípios constitucionais, chega-se à conclusão que um conceito de organismo tão abrangente como o correspondente ao conceito corrente no direito administrativo, que incorpora as pessoas colectivas de utilidade publica, de mera utilidade pública, as pessoas colectivas de utilidade pública administrativa e as instituições de solidariedade social, tem que ser restringido ao sentido proposto porque é impreciso e usa categorias que com ele perpassam dois regimes constitucionais.
Salvo devido respeito a argumentação é redundante. O motivo da restrição do conceito é o facto de ser impreciso e ter perpassado dois regimes constitucionais. Quanto à imprecisão, esta não é a única situação em que a norma penal faz apelo a conceitos abertos. É uma técnica usada em determinadas tipificações (vide, por exemplo a tipificação do crime de desobediência) que tem a ver com critérios de política normativa. Os conceitos abertos preenchem-se de acordo com as boas regras de hermenêutica e é nessa e apenas nessa medida que se restringem, ou não. Quanto ao facto de o conceito ter perpassado dois regimes constitucionais não se vê que, por isso, tenha que ser preenchido com aquilo que ao tempo dos trabalhos preparatórios poderia significar, mas que já não significava, seguramente, ao tempo da publicação do Código em que se insere, porque o sistema constitucional assim o impunha. Antes pelo contrário, afigura-se é que o intérprete deve buscar o sentido que o legislador (no sentido do autor da peça final e não dos sucessivos projectos) lhe quis imprimir. E, assim sendo, não se pode ir preencher um conceito normativo contido numa lei, publicada com uma determinada ordem constitucional (que eliminou o corporativismo) com recurso a entendimentos vigentes noutra determinada ordem constitucional (corporativista), vigente ao tempo dos trabalhos preparatórios. Na medida em que o conceito era um conceito chave na ordem corporativista, subsistindo o termo, tem que ser entendido, necessariamente, de acordo com a unidade do novo sistema jurídico – o que é (e era ao tempo dos projectos) um dos critérios de fixação do sentido e alcance da lei, a par com a respectiva letra, nos termos do artº 9º/1, do CC). Tanto mais que este normativo, inserido no C. Penal de 1982, tem por fonte directa o direito alemão, que em 1974 consagrou, expressamente, um conceito amplo de funcionário, sendo que as alterações que sofreu (pelo DL nº 48/95, de 15/03, pela Lei nº 108/2001, de 28/11 e Lei 32/2020, de 02/09) foram no sentido do reforço dessa amplitude. Não se confunde com o artº 327º/CP de 1886, que definia “empregado público” para o efeito da integração das previsões normativas contidas no capítulo relativo aos crimes dos empregados públicos no exercício das suas funções (na vigência do qual, no entanto, já se configurava uma corrente que incluía na noção aqueles a quem eram acometidas funções em serviços públicos, sem permanência bastante para que, em direito administrativo, fossem considerados funcionários públicos). Esta ruptura de conceitos foi intencional, como resulta da justificação dada pelo autor do Anteprojecto do CP/1982, que vincou a necessidade de criar um conceito de funcionário distinto do conceito administrativo, evitando assim lacunas na punibilidade [6]. O próprio normativo distancia o conceito do de direito administrativo, ao dizer que a noção é «para efeito da lei penal». A manifesta intenção do legislador de integrar na noção todas as hipóteses de actuação administrativa, no sentido de persecutória do interesse público, foi reiterada, ao longo do tempo, com o alargamento sucessivo verificado com as alterações da norma e sobretudo, com a equiparação feita pelo artº 4º/2, do DL 371/83, de 06/10 (que foi acolhida na versão dada pela revisão de 95), em cujo preambulo se manifesta a intenção de alargar a noção para abranger funções similares, do ponto de vista de política criminal, considerando demasiado “estrita” a norma penal. Se o alargamento da noção tem sido persistente nas sucessivas alterações legislativas a ela concernentes, afigura-se-nos desprovida de apoio, face à unidade do sistema jurídico, a interpretação restritiva que o recorrente pretende fazer vingar.
Com a agravante que, no caso em apreço, a assistente foi objecto de consideração de utilidade pública, em 10/04/1928, constando do registo feito na Conservatória do Registo Comercial de Amarante, que é Pessoa Colectiva de Utilidade Pública. Este foi o reconhecimento público de que prossegue fins administrativos, que foi generalizado a todas as associações humanitárias de bombeiros pela Lei nº 32/2007, de 13/8, que, entre o mais, as define como «pessoas colectivas sem fins lucrativos que têm como escopo principal a protecção de pessoas e bens, designadamente o socorro de feridos, doentes ou náufragos, e a extinção de incêndios, detendo e mantendo em actividade, para o efeito, um corpo de bombeiros voluntários ou misto, com observância do definido no regime jurídico dos corpos de bombeiros».
De todo o exposto resulta que a letra da lei e a unidade do sistema determinam que se entenda que, para fins penais, funcionários são, para além dos funcionários civis (por contraposição a militares) os agentes administrativos e todos aqueles que, «por qualquer forma ou em quaisquer circunstâncias, desempenham funções em organismos de utilidade pública (considerando-se abrangidos nestes as pessoas colectivas de direito público e, dentre as pessoas colectivas de direito privado, os entes colectivos de fim desinteressado – pessoa colectivas de utilidade pública em geral e pessoas colectivas de utilidade pública administrativa)» [7]. Neste sentido, veja-se, a título de exemplo, o Ac STJ [8] «o conceito de funcionário público para efeitos penais, previsto no CP, é bastante amplo, procurando evitar lacunas, abrangendo qualquer pessoa que desempenhe funções em organismo de utilidade pública, ou nelas participe, sem curar da natureza do vínculo, que só interessa no âmbito disciplinar», o Ac TRL [9] «sendo determinado clube, de acordo com os seus estatutos, uma pessoa colectiva privada sem fins lucrativos que tem por finalidade o fomento das actividades desportivas e que, por força da Lei, recebem a declaração de utilidade pública, o seu presidente não pode deixar de ser considerado uma pessoa que desempenha funções num organismo de utilidade pública e, por conseguinte, funcionário para efeitos da Lei penal». Com interesse, também, se bem que a análise feita seja numa perspectiva civilista, veja-se o Ac TRL, de 28-03-2000, no proc. 0001341, em www.dgsi.pt.
A propósito da noção de organismo de utilidade pública, para efeitos da norma, é particularmente feliz a noção dada por P.P. Albuquerque [10] «é a pessoa colectiva de direito privado que é objecto de declaração de utilidade pública, precisamente porque a declaração de utilidade pública reconhece a “cooperação” desta pessoa colectiva no exercício da função da Administração pública, nos termos do artigo 1º, nº 1, do Decreto Lei nº 460/77, de 7/11». Damião da Cunha [11] define o conceito com correspondência «às pessoas colectivas de direito privado que mereçam a qualificação de interesse público, ou seja, a declaração de utilidade pública, independentemente do substrato que lhes presida. Podem ser pessoas colectivas de mera utilidade pública, instituições particulares de solidariedade social ou pessoas colectivas de utilidade pública administrativa». Também o Prof. Freitas do Amaral aponta, como exemplo de pessoas colectivas de utilidade pública administrativa que não foram abrangidas pelo Decreto-Lei n° 119/83, na categoria das instituições particulares de solidariedade social, as associações de bombeiros voluntários, anteriormente reguladas no C.A., e que continuam a ser, para todos os efeitos, pessoas colectivas de utilidade pública administrativa, estando sujeitas ao regime próprio destas [12].
Perfilhamos, sem sombra de dúvida, a tese de que nos organismos de utilidade pública se compreendem as pessoas colectivas de utilidade pública. Nada obsta, pois, à correcção da sentença recorrida no entendimento, que expressou, de que o recorrente detinha, ao tempo da prática dos factos, a qualidade de “funcionário”, para efeitos de integração da previsão normativa do tipo, previsto no artigo 375º/CP, pelo que a questão improcede.
Mostram-se integralmente preenchidos, pelo recorrente, com a factualidade que praticou, os elementos do tipo de peculato, pelo qual foi condenado. Nesta medida não resta senão a confirmação da sentença recorrida.
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VI- Decisão:
Acorda-se, pois, em negar provimento ao recurso deduzido pela assistente e bem assim ao recurso interposto pelo arguido, mantendo, integralmente, o despacho e a sentença recorridas.
Custas do recurso deduzido pela assistente, pela própria.
Custas criminais pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 ucs.
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Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
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Porto, 15/12/2010
Maria da Graça Martins Pontes dos Santos Silva
José Alberto Vaz Carreto

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[1] Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em B.M.J. 477º-271.
[2] Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995.
[3] Cf. Ac. do STJ, de 24.03.2004, proferido no processo nº.03P4043, em www.dgsi.pt.
[4] Cf. Ac. TC nº 1165/96 e 464/97.
[5] Cf. Eduardo Correia, em «Les Preuves en Droit Penal Portugais», na RDES, XIV, Janeiro-Junho/ 1967, 1-2, 29.
[6] Cf Actas 1979, 494 e ss.
[7] Cf. Leal Henriques e Simas Santos, em «Código Penal Anotado», 2º vol., 1996, 1234.
[8] De 18/04/1991, em BMJ-406º-351.
[9] De 22/10/2002, no proc. 0055995, relator Cabral Amaral.
[10] Em «Comentário do Código Penal, 914.
[11] Em «Comentário Conimbricense do Código Penal», III, 2001, 815.
[12] Cf Parecer do Conselho Consultivo da PGR, n° P000981990, in www.dgsi.pt.