Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | MARIA JOANA GRÁCIO | ||
Descritores: | CRIME DE CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES CONSUMO MÉDIO INDIVIDUAL CRITÉRIO PARA A SUA FIXAÇÃO | ||
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Nº do Documento: | RP202102101079/18.4GDVFR.P1 | ||
Data do Acordão: | 02/10/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||
Decisão: | DETERMINAR O REENVIO PARCIAL PARA NOVO JULGAMENTO | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I – É hoje pacífico que a detenção para consumo de produto estupefaciente em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante dez dias integra a prática do crime de consumo, p. e p. pelo art. 40.º, n.º 2, do DL 15/93, de 22-01. II – Quanto ao conceito de consumo médio individual, constitui jurisprudência minoritária a que considera que a aplicação dos limites inscritos no mapa anexo à Portaria 94/96, de 26-03, é automática, sendo irrelevante o apuramento do efectivo consumo médio de cada arguido, já que o limite fixado na Portaria não é derrogável. III – A jurisprudência maioritária, que tem na sua génese o apuramento do concreto consumo de cada arguido, se possível, vai no sentido de que as quantidades máximas fixadas no mapa anexo ao referido diploma legal não são imutáveis, podendo ser afastadas através de outros elementos apurados em julgamento. IV – Subjacente a tal raciocínio está a ideia de que será entendimento do legislador que os limites fixados naquela Portaria, embora constituam indicadores fortes dos quantitativos máximos de consumo médio individual, tendo o valor de prova reforçada, não inibem o julgador de, fundamentadamente, divergir desse juízo. V – E daí que o valor reforçado dos valores determinados nos exames periciais e limites fixados na Portaria 94/96, de 26-03 servirão para fixar o valor de referência no caso concreto se dos autos não resultarem elementos de prova sobre o consumo médio individual do arguido. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | Proc. n.º 1079//18.4GDVFR.P1 Tribunal de Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juizo Local Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 1. Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto I. Relatório No âmbito do Processo Comum Singular n.º 1079/18.4GDVFR, a correr termos no Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, Juiz 1, por sentença de 09-07-2020, foi decidido, entre o demais:«Julga-se procedente a acusação e condenam-se B… e C…, pela autoria material de um crime de detenção de substâncias estupefacientes para consumo, p. e p. pelo art.º 40.º, 1 e 2, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22.01, na pena individual de quarenta e cinco ( 45 ) dias de multa, à razão de cinco euros ( €5 ) dia, num total de duzentos e vinte e cinco euros ( €225 ). Verificada que seja a hipótese do art.º 49.º, 1, do Cód. Penal, cumprirá cada um trinta ( 30 ) dias de prisão subsidiária.» * Inconformado, o arguido C… interpôs recurso, solicitando que seja revogada a decisão recorrida e seja esta substituída por outra que que o absolva da prática do crime de detenção de substâncias estupefacientes para consumo pelo qual foi condenado.Sintetiza a sua argumentação nas seguintes conclusões da sua motivação (transcrição): «1. O presente recurso tem como objecto matéria de direito da sentença proferida nos presentes autos, a qual condenou o Recorrente, por um crime de detenção de substâncias estupefacientes para consumo (canábis resina, peso líquido 7,307 g, pureza de 8,2% (THC)), p. e p. pelo art. 40.º, n.º 1 e n.º e do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 45 dias de multa à razão diária de €5, num total de €225. 2. Com a devida vénia, não se pode concordar com tal decisão, pois que: 3. Da conjugação do art. 40.º, n.º 1 e n.º 2 do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro e o art. 2.º, n.º 2 da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro resulta que a detenção de estupefacientes só merece tutela penal caso a quantidade detida exceda a quantidade necessária para o consumo médio individual, durante um período de dez dias. 4. A Portaria n.º 94/96, de 26 de Março e o mapa anexo densificam o conceito de consumo médio individual apontando para a droga canábis resina uma quantidade diária de 0,5 g, e, consequentemente, uma quantidade de 5 g para um período de dez dias (tendo por valor indicativo uma pureza de 10%). 5. O Tribunal a quo considerou determinante para a formação da sua convicção o facto de o arguido fumar dez charros por dia e da dose apreendida só dar para dez a quinze charros. 6. Ou seja, a dose apreendida, atento o consumo concreto do arguido, só daria para no máximo dois dias, ou seja, para menos tempo do que os dez dias previstos na lei. 7. No entanto, o Tribunal a quo condenou o arguido com base na vinculação do julgador ao juízo pericial decorrente da Portaria n.º 94/96 e o seu mapa anexo, desconsiderando o consumo concreto do arguido e justificando-se nos valores pericialmente referenciados, porque aferíveis em função do critério tabelado pelo legislador, independentemente da aleatoriedade de consumo do arguido. 8. Errou assim o Tribunal a quo na interpretação que faz da conjugação do art. 40.º, n.º 1 e n.º 2 do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, do art. 2.º, n.º 2 da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro e do art. 9.º e mapa anexo da Portaria n.º 94/96, de 26 de Março, quando o faz no sentido de que os valores indicados no referido mapa vinculam o julgador, com todos os efeitos daí decorrentes. 9. Deveria, outrossim, o Tribunal a quo, atentos os factos determinantes para a formação da sua convicção e atenta toda a jurisprudência supra referida, inclusive do STJ e do TC, ter levado em conta o consumo diário concreto do arguido e só posteriormente subsumir o seu comportamento à legislação penal ou contraordenacional. 10. Sem que isso violasse a vinculação do legislador à prova pericial. 11. E tivesse o Tribunal decidido, atentos os mesmo exactos factos, na esteira da interpretação jurisprudencial supra referida seria o arguido absolvido do crime pelo qual foi condenado, pois que a quantidade que tinha consigo não excedia, por larga margem, a quantidade do consumo médio individual para um período de dez dias. 12. Pelo exposto, deverão V. Exas., absolver o Arguido do crime de detenção de estupefacientes para consumo, constituindo antes o seu comportamento a prática de uma contraordenação.» * O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pelo seu não provimento e pela manutenção da decisão recorrida, por considerar ter sido feita uma correcta aplicação da lei.Apresenta nesse sentido as seguintes conclusões: «1. Da factualidade constante da matéria de facto provada tal como enunciada na sentença mostra-se configurada a prática pelo recorrente do crime de detenção de substâncias estupefacientes para consumo, p. e p., no art.º 40º, nº 1 e 2 do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro, porquanto a quantidade que ao recorrente foi apreendida excedia a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias;2. No crime de consumo de estupefacientes é essencial identificar o grau de pureza do estupefaciente, porquanto é a concentração do princípio ativo existente no produto apreendido que, em abstrato, permite aferir que a quantidade apreendida é superior à necessária para consumo médio individual durante 10 dias considerando os valores da tabela a que se refere o artigo 9° da Portaria nº 94/96, de 26 de Março.3. Ora, de acordo com tal mapa, é de 0,5 gr a quantidade de cannabis (resina) correspondente ao consumo médio individual diário, sendo que, no caso em apreço está determinado o grau de pureza de 8,2 (THC) e princípio ativo do estupefaciente apreendido, em exame laboratorial, pelo que, as 7,307 gramas da substância que ao recorrente foi apreendida era suficiente para 12 doses.4. Ainda que, os valores contidos no mapa anexo à Portaria nº 94/96 não sejam de aplicação automática, desde logo, porque não pode ser ignorada a maior ou menor percentagem de produto ativo, certo é que, estando no caso “sub judicie”, como está este principio ativo e sua concentração, quantificado no exame laboratorial que tem valor de meio de prova, a sua apreciação como prova pericial, está subtraído à livre convicção do julgador nos termos do artigo 163° do Código de Processo Penal.5. O critério único para aferir se a detenção para consumo próprio excede a quantidade diária de consumo médio individual durante 10 dias, quando quantificada a concentração do principio ativo após exame laboratorial, são os valores fixados no mapa, a que se refere o artigo 9º da Portaria nº 94/96, de 26 de Março, que se não confunde com o critério jurisprudencial que decorre dos regras da experiência comum e da própria prova pessoal produzida, quando não foi apurado o grau de pureza da substância que permita aferir da concentração de princípio ativo, que é relevante para a determinação dos limites quantitativos máximos da dose média individual diária.6. Assim, não basta ao arguido afirmar em declarações que aquela quantidade de estupefaciente apreendida não chegaria para mais de 2 dias do seu consumo, para afastar o valor da prova pericial, que reportando a concentração de THC de 8,2, na substancia apreendida ao recorrente, revela que esta corresponde a 12 doses diárias, ainda que destinando aquele produto, exclusivamente, ao seu consumo.7. Evidencia-se segura a prova produzida em julgamento quando conjugada com os dados do exame laboratorial, da prática do crime de detenção de substâncias estupefacientes para consumo, p. e p., pelo artigo 40.º, nº 1 e 2 do Decreto Lei 15/93, pelo recorrente que foi condenado pela sua autoria, sem que outra decisão fosse de esperar do Tribunal “a quo”, que bem andou e fundamentou a sentença proferida.In casu, da análise do específico contexto em que se desenvolveu a conduta do arguido, e, elementos apurados da prova dos factos não se vislumbra ser atendível os fundamentos que apresentou em recurso para alterar a decisão proferida nos autos que é de manter nos seus exactos termos.» * Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer igualmente no sentido da improcedência do recurso, acompanhando de perto a posição do Ministério Público junto do Tribunal a quo.* Notificado nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, o recorrente veio reafirmar a sua discordância face ao decidido, realçando que os valores fixados no mapa anexo à Portaria não são de aplicação automática mas meramente indicativos, podendo afastar-se a sua aplicação, desde que demonstrado que o arguido consome diariamente dose superior à fixada no mapa, conforme jurisprudência que enuncia, sendo certo que no caso dos autos esse prova foi feita, não apenas através das declarações do arguido, como afirma o Ministério Público, mas igualmente por via de prova testemunhal.* É do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respectiva motivação constantes da decisão recorrida (transcrição):«factos provados: 1. No dia 15.12.2018, pelas 02.20 horas, na Av…., em frente ao n.º …, em …, SMF, o arguido B… detinha um pedaço de cannabis-resina, com o peso líquido de 12,170 gramas, com grau de pureza de 9,8 (THC), suficiente para 24 doses, substância que destinava ao seu exclusivo consumo. 2. Por sua vez, o arguido C…, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, detinha um pedaço de cannabis-resina, com o peso líquido de 7,307 gramas, com grau de pureza de 8,2 (THC), suficiente para 12 doses, substância que também destinava ao seu exclusivo consumo. 3. Cada um dos arguidos, ao agir da forma descrita, fê-lo com o propósito concretizado de deter tal substância, a qual destinava ao seu próprio consumo, bem conhecendo a natureza e as características estupefacientes da mesma. 4. Cada um dos arguidos agiu de forma livre, consciente e deliberada, bem sabendo que a detenção para consumo de tais estupefacientes era proibida e criminalmente punível. Elementos pessoais dos arguidos: 5. O arguido B… acha-se a viver na Suíça, onde trabalha; tem o 6.º Ano de Escolaridade. 6. Não se lhe conhecem outras práticas criminais. 7. O arguido C… acha-se desempregado; vive com a mãe, em casa desta, que o sustenta; tem o 12.º Ano de escolaridade; 8. Foi condenado, a 12.03.2020, pela prática, em Janeiro de 2018, de um crime de abuso sexual de crianças, em 3 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com regime de prova. * Inexistem. factos não provados: * Factos 1.º a 3.º: As declarações do arguido C… – reconhecendo essa ocorrência, detenção de estupefaciente e finalidade, aditando que comprava €10 de estupefaciente por dia e dava-lhe para fazer 10 charros ( doses ) que consumia num dia, dois dias no máximo; que o estupefaciente que lhe foi apreendido dava para entre 10 e 15 doses e que em média fumava por dia 8 ou 10 doses; que consome desde os 17 anos –, complementadas pelos testemunhos sintónicos do militar da GNR interveniente na intercepção, D… – na parte em que relatou que se encontrava a efectuar uma fiscalização rodoviária de rotina, confirmando o teor do auto de notícia, auto de apreensão e foto de fls. 14 a 19, enfatizando que os arguido foram 100% colaborantes, comentando que era o normal, para o fim-de-semana –, do condutor da viatura onde seguiam os arguidos, E… – na parte em que proferiu que tinha dado boleia aos arguidos e depararam com uma operação STOP, tendo aqueles com eles produtos estupefacientes; que os conhecia como consumidores mas não que transportavam estupefacientes; que o C… fumava cerca de 10 charros diários e o B… às vezes 2 ou 3 e outras 6 e 7, mas não sabe se diariamente – e da mãe do arguido D…, F… – na parte em que confirmou que o filho consome estupefacientes desde os 18 anos e que estando em casa é constante, que fuma bastante, dando-lhe cerca de € 300 mensais para compra de estupefacientes – e pelo suporte imprescindível, objectivo e incontornável do teor dos docs. de fls. 75 e 77 (relatórios dos exames toxicológicos realizados pelo LPC da Polícia Judiciária, que confirmam a natureza do produto, peso respectivo, assim como o seu grau de pureza e a sua correspondência em doses); B. A CONVICÇÃO. Convicção do tribunal: Foram determinantes para a fundamentar: 4.º: Presunção natural – atenta a idade dos arguidos e experiência vivencial respectiva, experiência de vida e da normalidade das coisas; 5.º e 7.º: O teor do doc. de fls. 323 ( relatório da GNR referente ao arguido B… ) e as declarações do arguido C… – ambos informando o tribunal sobre a situação económica e vivencial respectiva que, na ausência de outros elementos mais consistentes, se consideraram atendíveis; 6.º e 8.º: O teor dos docs. de fls. 316 e 318 ( CRC dos arguidos, de onde resulta nada constar e os elementos especificados, respectivamente ).» * É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].II. Apreciando e decidindo: Questões a decidir no recurso A questão que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso é apenas a de saber se os valores indicados no mapa anexo à Portaria 94/96, de 26-03 quanto ao consumo médio individual vinculam o julgador para efeito de verificação do crime de consumo de estupefacientes, atenta a conjugação do disposto nos arts. 40.º, n.º s 1 e 2, do DL 15/93, de 22-01 e 2.º, n.º 2, da Lei 30/2000, de 29-11, ou pode também ser levada em conta a prova quanto ao consumo diário concreto do arguido, permitindo-se apurar diferente limite. * Vejamos.É hoje pacífico que a detenção para consumo de produto estupefaciente em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante dez dias integra a prática do crime de consumo, p. e p. pelo art. 40.º, n.º 2, do DL 15/93, de 22-01. Com efeito, após a entrada em vigor da Lei 30/2000, de 29-11 – diploma que veio despenalizar o consumo de estupefacientes, passando a sancioná-lo como contra-ordenação, e revogou (nos termos do seu art. 28.º) o art. 40.º do DL 15/93, de 22-01, excepto quanto ao cultivo –, criou-se um vazio legal quanto ao enquadramento das situações em que a detenção de estupefaciente era destinada exclusivamente ao consumo mas a quantidade excedia o necessário para o consumo médio individual durante dez dias. Tal controvérsia acabou por ser resolvida através do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2008, 25-06[2], que fixou jurisprudência com o seguinte sentido: «Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só 'quanto ao cultivo' como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas i a iv, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.» Posteriormente, também o Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 587/2014[3], 17-09, não encontrou nenhum óbice ao estabelecimento deste entendimento e, por isso, emitiu juízo através do qual «[n]ão julga inconstitucional a norma constante do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro, quando interpretada no sentido de que se mantém em vigor o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas i a iv, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias». A discussão a propósito da aplicação do art. 40.º, n.º 2, do DL 15/93, de 22-01, cinge-se hoje, fundamentalmente, ao conceito de consumo médio individual. E da mesma resultam, no essencial, duas posições em confronto. Uma, minoritária, que corresponde à posição assumida pelo Tribunal a quo na decisão recorrida, que considera que a aplicação dos limites inscritos no mapa anexo à Portaria 94/96, de 26-03, é automática, sendo irrelevante o apuramento do efectivo consumo médio de cada arguido, já que o limite fixado na Portaria não é derrogável. E outra, aquela para que apela o recorrente, de acordo com a qual as quantidades máximas fixadas no mapa anexo ao referido diploma legal não são imutáveis, podendo ser afastadas através de outros elementos apurados em julgamento. A Portaria 94/96, de 26-03, veio dar corpo à previsão do art. 71.º do DL 15/93, de 22-01, com a epígrafe “Diagnóstico e quantificação de substâncias”, segundo o qual: «1 - Os Ministros da Justiça e da Saúde, ouvido o Conselho Superior de Medicina Legal, determinam, mediante portaria: a) Os procedimentos de diagnóstico e exames periciais necessários à caracterização do estado de toxicodependência; b) O modo de intervenção dos serviços de saúde especializados no apoio às autoridades policiais e judiciárias; c) Os limites quantitativos máximos de princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV, de consumo mais frequente. 2 - A portaria a que se refere o número anterior deve ser actualizada sempre que a evolução dos conhecimentos científicos o justifique. 3 - O valor probatório dos exames periciais e dos limites referidos no n.º 1 é apreciado nos termos do artigo 163.º do Código de Processo Penal.» No art. 1.º, al. c), da Portaria 94/96, de 26-03, veio mesmo dizer-se que o diploma tem como objecto a definição dos limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente. E no seu art. 9.º estabelece-se que «[o]s limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente, são os referidos no mapa anexo à presente portaria, da qual faz parte integrante.» Da conjugação do disposto nestas normas e no preceituado no art. 163.º do CPPenal resulta que a definição do quantitativo máximo para cada dose de consumo médio diário das substâncias mencionadas nas tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01, designadamente para efeitos de enquadramento dos factos no âmbito do art. 40.º, n.º 2, deste último diploma legal ou do art. 2.º, n.º 2, da Lei 30/2000, de 29-11, é aferido em função dos limites fixados no mapa anexo à Portaria 94/96, de 26-03, sendo o juízo técnico subjacente ao exame pericial e aos próprios limites aí fixados subtraídos à livre apreciação do julgador (n.º 1 do art. 163.º do CPPenal), sem prejuízo de a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, caso em que deve aquele fundamentar a divergência (n.º 2 do art. 163.º do CPPenal). Ou seja, os valores e, fundamentalmente, para o que aqui importa, os limites quantitativos máximos do consumo médio individual serão, normalmente, os que resultam do exame pericial, em conjugação com os parâmetros fixados no mapa anexo à Portaria 94/96, de 26-03, mas pode o julgador divergir desse juízo, caso em que deve fundamentar essa dissonância. Na decisão recorrida, o Tribunal a quo, após discorrer acerca de estatísticas sobre consumo de estupefacientes – não se percebendo bem a intenção, já que o fez no âmbito da análise do tipo legal e tendo em conta valores reportados a 1999 e 2011, logo com uma década de disparidade, e relativos também a outras substâncias que não a canabis, sendo que, depois, nenhuma ilação retira de tal menção –, afirma que «a controvérsia existente da quantificação do “consumo médio individual”, acha-se aqui ultrapassada pelo facto de os relatórios do exame pericial especificarem o grau de pureza (THC) e o número de doses respectivas calculadas segundo a Portaria n.º 94/96, de 26.03, vinculando assim o julgador ao juízo pericial (art.º 163.º, 1, do CPP ex vi art.º 71.º, 1 c) e 3, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22.01)». Temos alguma dificuldade em compreender este raciocínio, pois se o julgador pode divergir do juízo contido no parecer dos peritos da perícia (art. 163.º, n.º 2, do CPPenal), não é a existência de perícia que vai impossibilitar a divergência. Pelo contrário, só a sua existência a pode justificar. No caso em apreço, até aceitamos que dificilmente o julgador estará em condições de não aceitar os valores técnicos apurados no exame pericial efectuado (cf. fls. 77) quanto à natureza, peso e grau de pureza (8,2 THC) do estupefaciente analisado – sem prejuízo de poder pedir outra perícia. Já quanto à indicação do número de doses (12), calculadas com base na Portaria 94/96, de 26-03, que corresponde ao juízo contido no parecer do perito, estará o julgador muito mais habilitado para manifestar o seu desacordo nos termos indicados pelo art. 163.º, n.º 2, do CPPenal. A conclusão inserta no acórdão recorrido de que, «integrando essas substâncias estupefacientes detidas pelos arguidos a Tabela I – C, anexa ao Dec. Lei n.º 15/93, de 22.01, nos valores pericialmente referenciados, devem os mesmos ser considerados, porque aferíveis em função do critério tabelado pelo legislador, independentemente da aleatoriedade do consumo de cada um dos arguidos, que não poderia de per se ser delimitador do preenchimento ou não do tipo legal de crime», esvazia de conteúdo a possibilidade de divergência facultada pelo disposto no art. 71.º, n.º 3, do DL 15/93, de 22-01, mesmo quanto aos limites fixados na Portaria 94/96, de 26-03. E, por isso, esse tipo de raciocínio está vedado ao julgador. O legislador podia ter estabelecido que os valores dos quantitativos máximos de consumo médio individual diário correspondiam, sem mais, aos limites constantes do mapa anexo à Portaria 94/96, de 26-03 – à semelhança do que fez para o crime de condução em estado de embriaguez, em que estabeleceu uma taxa de álcool no sangue fixa, independentemente, por exemplo, da maior ou menor capacidade do agente para se deixar influenciar pelo álcool. Se assim fosse, a tese da sentença recorrida estava correcta, e nem estaríamos aqui a discorrer sobre este tema. Mas o legislador entendeu que estes limites, embora constituíssem indicadores fortes dos quantitativos máximos de consumo médio individual, tendo o valor de prova reforçada, não inibiam o julgador de, fundamentadamente, divergir desse juízo[4]. É pelo valor reforçado dos valores determinados nos exames periciais e limites fixados na Portaria 94/96, de 26-03, que a jurisprudência dominante tem entendido que se dos autos não resultam elementos de prova sobre o consumo médio individual do arguido os limites previstos na Portaria 94/96, de 26-03, servirão para fixar o valor de referência no caso concreto. Porém, este raciocínio já não vale com esta simplicidade para os casos em que existe prova divergente quanto ao consumo médio diário do agente. Abrindo aqui um parêntesis, dir-se-á que no caso em apreço, numa perspectiva exclusivamente com base nos valores fixados no mapa anexo à Portaria 94/96, de 26-03, uma vez que, segundo o exame pericial de fls. 77, está em causa canabis (resina), o limite quantitativo diário máximo seria o de 0,5g, atendendo a uma concentração de 10% de tetra-hidrocanabinol (THC, Δ⁹-THC ou Δ⁹-), conforme mapa anexo à Portaria 94/96, de 26 -03, e sua nota 3, als. c) e e). Essa concentração, contudo, pode ser variável em função da interferência de factores como a parte da planta utilizada ou características do local de produção. No caso dos autos verifica-se precisamente essa variabilidade, pois o grau de concentração de THC ou de pureza, como se refere no relatório do exame pericial, é de 8,2%, isto é, inferior ao previsto no mapa (10%). Tal significa que a quantidade de produto (canabis – resina) necessária para atingir o quantitativo máximo diário de 0,5g terá de ser maior. Por isso, o número de doses apurado no exame pericial é de 12, e não 14, como seria caso fosse tão-somente contabilizado o limite de 0,5g previsto no mapa sem ter em conta o concreto grau de pureza do produto. Fechando o parêntesis e regressando à análise em apreço, importa reter que se de alguma forma no processo onde se discutem os valores do quantitativo médio individual do consumo do arguido é suscitada e produzida prova no sentido de procurar afastar os limites resultantes do mapa anexo à mencionada Portaria, como aconteceu no caso dos autos, como resulta claramente do texto da sentença recorrida, o Tribunal do julgamento não pode ignorá-la. Pode concluir que não é suficientemente credível para afastar o valor da prova pericial, ou o contrário. Não pode é, como aconteceu no caso dos autos, ignorá-la e entender que nem lhe era lícito levar a cabo tal ponderação. Aliás, o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 534/98[5], de 07-08, interpretando o disposto no art. 71.º, n.º 1, al. c), do DL 15/93, de 22-01, concluiu que «os limites fixados na portaria, tendo meramente um valor de meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial, não constituem verdadeiramente, dentro do espírito e da letra do artigo 71º do Decreto-Lei nº 15/93, uma delimitação negativa da norma penal que prevê o tipo de crime privilegiado. Não está em causa a remissão para regulamento da definição dos comportamentos puníveis através do artigo 26º, mas tão-só, bem mais modestamente, a remissão para valores indicativos, cujo afastamento pelo tribunal é possível, embora acompanhado da devida fundamentação.» A esta configuração também não foram levantados obstáculos pelo Supremo Tribunal de Justiça, como se firmou no seu acórdão de 30-04-2008[6], em cujo sumário se lê: «A Portaria 94/96, de 26-03, norma complementar que veio dar expressão, por força do critério do valor probatório da remissão nela contida, à norma sancionatória (em branco) – norma incompleta – do art. 71.º, n.º 1, al. c), do DL 15/93, definidora dos limites quantitativos máximos admitidos nas doses individuais de estupefacientes (em função dos quais se aplicam tipos de ilícitos comuns ou privilegiados), tem natureza meramente técnica, devendo ser interpretada como um critério de prova pericial, permitindo, pois, a impugnação dos dados apresentados, nos termos do art. 163.º do CPP – neste sentido, Ac. do TC n.º 534/98, de 07-08, comentado in RMP, n.º 75, págs. 173-180». Compulsada a sentença recorrida, como resulta do segmento supratranscrito quanto à convicção do Tribunal, verificamos que, no que concerne à questão do consumo do arguido C…, aqui recorrente, foi feita referência à prova resultante das declarações do arguido e depoimentos das testemunhas E… e F…, prova que o Tribunal a quo não desvalorizou, no sentido de afirmar que tais meios de prova, pelo menos nesta parte, não lhe ofereceram credibilidade. Mas como o Tribunal a quo entendeu que era irrelevante a quantidade média diária de consumo individual do recorrente, que segundo aquela prova colocaria os limites muito acima dos valores de referência do mapa, ficamos sem perceber se nesta parte e para o que importa aqui decidir – qual o consumo médio diário do arguido – acreditou efectivamente ou não na prova produzida, prova que, como alega o recorrente, não se resumiu às suas próprias declarações, como também se descreve na sentença. Do exposto resulta que, sendo a questão do consumo médio diário do arguido suscitada em julgamento, e tendo relevo para a decisão da causa, por poder suscitar a divergência quanto aos valores de referência – precisamente por não serem inderrogáveis, automáticos ou imperativos –, o Tribunal a quo, em cumprimento do disposto no art. 368.º, n.º 2, do CPPenal, tinha de ter elencado entre os factos provados ou entre os não provados o consumo diário alegado pela Defesa do arguido. Não o tendo feito e não tendo sido impugnada a matéria de facto, está vedado a este Tribunal de recurso analisar a questão na perspectiva da validade da prova produzida para sustentar uma ou outra posição. Os autos denunciam, por isso, vício de lógica na elaboração da sentença, na modalidade de erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 1, al. c), do CPPenal), porquanto alguns meios de prova, para efeitos de apuramento do quantitativo do consumo médio individual do recorrente, foram desconsiderados, sem chegarem sequer a ter sido ponderados nessa perspectiva, por o Tribunal a quo ter entendido, incorrectamente, que não se lhe impunha realizar essa avaliação. Por tal razão, a matéria de facto (provada ou não provada) acabou por ser omissa quanto a esses factos, que foram efectivamente abordados no decurso do julgamento, como resulta consignado na decisão recorrida. Tal falha determina, de acordo com o disposto no art. 426.º, n.º 1, do CPPenal, o reenvio do processo para novo julgamento, sendo certo que, como já se aludiu, não pode este Tribunal de recurso procurar a sua correcção nos termos do disposto no art. 431.º do CPPenal, por não ter sido impugnada a matéria de facto nos termos do art. 412.º, n.º 3, do referido diploma legal. Resta, em conformidade com a avaliação antecedente, determinar o reenvio parcial do processo para novo julgamento quanto à questão do consumo médio diário individual do recorrente[7], devendo a matéria de facto provada e/ou não provada, e respectiva convicção, espelhar a questão na perspectiva aqui enunciada. O reenvio é determinado nos termos do art. 426.º, n.º 1, do CPPenal, a realizar de acordo com as regras estabelecidas no art. 426.º-A do CPPenal e com intervenção de diferente magistrado judicial. * Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em reconhecer verificado o vício do erro notório na apreciação da prova, previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPPenal, e, em consequência, determinar o reenvio parcial do processo para novo julgamento, quanto à questão do consumo médio diário individual do recorrente C…, devendo a matéria de facto provada e/ou não provada, e respectiva convicção, espelhar a questão na perspectiva aqui enunciada, decidindo-se após, em termos de direito, em conformidade.III. Decisão: O reenvio é determinado nos termos do art. 426.º, n.º 1, do CPPenal, a realizar de acordo com as regras estabelecidas no art. 426.º-A do CPPenal e com intervenção de diferente magistrado judicial. Sem tributação (arts. 513.º, n.º 1, do CPPenal). Porto, 10 de Fevereiro de 2021 (Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página) Maria Joana GrácioPaulo Costa ________________ [1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção. [2] Relatado por Camona da Mota e publicado no DR n.º 150/2008, Série I, de 05-08-2008, também acessível in www.stj.pt. [3] Relatado por José Cunha Barbosa e acessível in www.tribunalconstitucional.pt. [4] Neste sentido, entre muitos outros, vejam-se os acórdãos da Relação de Coimbra, de 08-11-2017, relatado por José Eduardo Martins, proferido no âmbito do Proc. n.º 29/17.0GBGRD.C1, e de 10-01-2018, relatado por Maria José Nogueira, proferido no âmbito do Proc. n.º 733/14.4GBCLD.C1; da Relação do Porto de 02-10-2013, relatado por Pedro Vaz Pato, no âmbito do Proc. n.º 2465/11.6TAMTS.P1, e de 30-05-2018, relatado por Maria Deolinda Dionísio, proferido no âmbito do Proc. n.º 1115/16.9PJPRT.P1; e da Relação de Lisboa de 28-05-2019, relatado por Artur Vargues, proferido no âmbito do Proc. n.º 150/15.9PJCSC.L1-5. [5] Relatado por Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, acessível in www.dgsi.pt. [6] Relatado por Raúl Borges, acessível in www.dgsi.pt, com o n.º 07P4723. [7] Com o outro arguido, não recorrente, apesar da incorrecta interpretação da lei, não se colocam as mesmas questões por serem diferentes os valores apurados quanto ao estupefaciente detido, ao seu grau de pureza e ao consumo médio individual reportado na decisão, não se impondo, nesta parte, a respectiva correcção. |