Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2261/17.7T8PNF-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: PEDIDO CÍVEL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Nº do Documento: RP201811052261/17.7T8PNF-A.P1
Data do Acordão: 11/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 683, FLS 43-49)
Área Temática: .
Sumário: I - Incidindo sobre matéria de exceção que subsume na figura da caducidade, é imediata e autonomamente apelável o despacho saneador que decide sobre o mérito da causa, julgando improcedente o que considerou ser caducidade, ainda que o enquadramento jurídico cabível à situação não seja de caducidade mas de incompetência do tribunal em razão da matéria.
II – Resulta do art. 71.º do CPP que a adesão obrigatória do pedido civil ao procedimento criminal, ao lado da acusação que será objeto de julgamento, respeita à prática de um crime. Donde, acusação e pedido cível haverão de fundar-se no mesmo crime. Caso contrário, não se verifica obrigação de adesão do pedido de indemnização cível ao processo criminal.
III – De acordo com o art. 72.º, n.º1 al. f) do CPP, sempre que haja pessoas com responsabilidade meramente civil, seja ela concomitante com a do arguido ou não, pode ser deduzido pedido cível nos foros cíveis. É essa a situação quando se demanda seguradora do condutor do veículo interveniente em acidente de viação que deu origem a processo criminal.
IV – O princípio da adesão previsto no art. 71.º CPP comporta uma regra de fixação de competência material em matéria de pedido de indemnização fundado em crime. A violação deste preceito não é sancionada com a caducidade do direito do lesado que vem a recorrer à ação cível, mas com a exceção de incompetência material do tribunal cível.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 2261/17.7T8PNF-A.P1

Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo Central Cível de Penafiel
Relatora: Fernanda Almeida
1.º Adjunto Des. António Eleutério
2.ª Adjunta Des. Isabel Soeiro
Sumário do acórdão, elaborado pela sua relatora, nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:
I-Relatório
AUTORES: B..., residente na ..., .. – Bloco . –1º Esq. Frente – ....-... Paredes.
C..., contribuinte nº .........., casado, residente na rua ..., .. – ... – ....-... Paredes e
D..., contribuinte nº ..........., solteiro, desempregado, residente na rua ..., .. – .... – ....-... Paredes.
Interveniente principal, do lado ativo, E..., residente na Rua ..., ..., Paredes

RÉUS: F..., Companhia de Seguros S.A., com sede na rua ..., .. – ....-... Lisboa.

Os demandantes instauraram a presente ação declarativa pretendendo a condenação da Ré a pagar-lhe indemnização de € 200.957,72.
Invocam, para o efeito, acidente de viação ocorrido a 17.10.2014 e, segundo alegam, causado por segurado da Ré, G.... Tal acidente consistiu no atropelamento de um peão octogenário, pai dos demandantes que sofreu inúmeras lesões as quais lhe determinaram internamento hospitalar, acabando por falecer a 2.3.2015.
Os danos cuja compensação se pretende prendem-se com o sofrimento da vítima antes do falecimento (€ 30.000,00), perda do direito à vida (€ 80.000,00) e sofrimento de cada um dos demandantes pela perda do progenitor (no montante de € 30.000,00, cada). Acrescem danos de natureza patrimonial, como despesas com tratamento e funeral.

A Ré defende-se por exceção, alegando a caducidade do direito dos AA., baseando-se no seguinte:
- o acidente dos autos deu origem ao processo criminal 64/15.2GAPRD;
- o A. B... constituiu-se aí assistente;
- o art. 71.º CPP impõe que o pedido fundado na prática de um crime seja deduzido no processo penal;
- não o tendo sido sem que ocorra motivo que justificasse o pedido cível em separado, ocorre caducidade desse direito, nos termos do art. 298.º, n.º2 do CC.

Em exercício do contraditório, os AA. opuseram-se à procedência da exceção, alegando verificarem-se as exceções ao princípio da adesão previstas no art. 72.º CPP: a) a constante no nº 1 alínea a), já que a acusação no processo-crime foi apenas deduzida no dia 21.4.2016, tendo o acidente ocorrido no dia 19/10/2012; b) – a constante da alínea c), já que o procedimento criminal – ofensas corporais – dependia de queixa; c) – o valor do pedido implicaria necessariamente a intervenção da instância central cível (tribunal coletivo) devendo o processo-crime correr perante o tribunal singular.

A 26.4.2018 foi proferido despacho saneador, abrangendo o conhecimento desta exceção que considerou de caducidade e julgou improcedente. Fazendo-o, considerou verificarem-se as exceções previstas no art. 72º, a), c) e g) do C.P.P., já que a acusação no processo- crime foi deduzida no dia 2/3/2016 e o lesado foi notificado da acusação e do consequente direito de deduzir pedido de indemnização civil no dia 21/4/2016, tendo o acidente ocorrido no dia 19/10/2012; o procedimento criminal – ofensas corporais à data – dependia de queixa e o valor do pedido implica a intervenção da instância central cível (tribunal coletivo) devendo o processo-crime correr perante o tribunal singular.

É deste despacho que recorre a Ré, visando a procedência daquela exceção e a sua absolvição do pedido, ancorando-se nas conclusões que passamos a reproduzir:
I. Vem o presente recurso interposto do douto despacho saneador dos autos, no qual, sem que se pusesse termo ao processo, foi decidida e julgada improcedente a excepção de caducidade do direito dos Recorridos, invocada pela Recorrente na Contestação, e é o mesmo apresentado na firme convicção de que o estado dos autos, os factos a considerar e a matéria de direito sujeita à apreciação do douto Tribunal merecem outra apreciação. Isso mesmo demonstrará a Recorrente por meio das presentes alegações, que apresenta, no entanto, sem qualquer desmerecimento por opinião contrária.
II. O Tribunal a quo, no despacho saneador ora alvo de recurso, decidiu julgar improcedente a excepção de caducidade do direito de acção dos Recorridos invocada pela Recorrente (em virtude de não terem deduzido o pedido cível no processo-crime que apreciou o acidente dos autos), por, no entender do Mmo. Juiz a quo, se verificarem as excepções ao princípio da adesão do pedido de indemnização civil ao processo penal previstas no artigo 72.º, als. a), c) e g) do CPP mas, salvo melhor entendimento, não se verifica nenhuma das apontadas excepções.
III. Importa ter presente, na apreciação da questão, que o acidente em discussão nos autos ocorreu em 17.10.2014, a queixa-crime data de 26.01.2015, a acusação data de 02.03.2016 e considera-se notificada ao lesado em 25.04.2016, não foi apresentado pedido de indemnização civil, a sentença data de 07.10.2016, a decisão sumária do Tribunal da Relação do Porto data de 29.03.2017 e considera-se notificada ao lesado/assistente em 10.04.2017 e a presente acção foi instaurada apenas posteriormente, em 24.07.2017.
IV. Apesar de o processo crime ter levado à acusação mais de oito meses depois da notícia do crime, a presente acção cível apenas foi instaurada apenas depois da notificação da decisão sumária que confirmou a sentença condenatória proferida em primeira instância no referido processo-crime.
V. A excepção da alínea a) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP só opera quando o pedido de indemnização cível é deduzido na pendência do processo-crime e antes de notificada a acusação ou, se, após esta, o processo estiver sem andamento durante oito meses e for, nessa fase, instaurado o pedido em separado.
VI. As razões de urgência e celeridade de reparação do dano que justificam a dedução do pedido cível em separado deixam de verificar-se num caso como o dos autos em que a acção cível é instaurada depois de deduzida e notificada a acusação e mesmo depois de concluído o processo-crime, com decisão final, porquanto é o lesado que deixa passar o prazo para apresentar o pedido cível, retardando ainda mais a reparação do dano.
VII. No caso dos autos não se verifica a excepção prevista no artigo 72.º, n.º 1, al. a) do CPP pois que a acção cível em separado foi instaurada muito depois da acusação e da decisão final condenatória do processo, momento em que já não existem quaisquer razões de celeridade processual e urgência na reparação do dano que justifiquem fazer cair o princípio da adesão obrigatória.
VIII. O efeito útil da norma do artigo 72.º, n.º 1, al. c) do CPP é conferir ao lesado pela prática de um crime semi-público ou particular a faculdade de este exigir a indemnização pelos danos sofridos mesmo quando não pretenda a perseguição penal do causador do dano.
IX. A partir do momento em que o lesado opta por apresentar queixa ou deduzir oportunamente acusação particular passa a estar vinculado ao princípio da adesão, pois que foi sua opção que o procedimento criminal existisse e prosseguisse.
X. Do conjunto normativo formado pelo artigo 72.º, n.º 1, al. c) e n.º 2 do CPP resulta que a excepção ao princípio da adesão ali em apreço verifica-se apenas até ao momento em que o lesado toma a opção de perseguir ou não criminalmente o arguido, porquanto é mera decorrência da faculdade de apresentar ou não queixa ou deduzir ou não acusação particular nos crimes semi-públicos e públicos sem que tal prejudique o direito à reparação dos danos.
XI. No caso dos autos, foi apresentada queixa e o processo-crime prosseguiu os seus termos, inclusivamente com a condenação do arguido, pelo que o lesado estava obrigado a deduzir o PIC no prazo que lhe foi concedido para tal no processo-crime, não se verificando, por isso, a excepção da alínea c) do n.º 2 do artigo 72.º do CPP.
XII. O Tribunal a quo entendeu verificar-se, também, a excepção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP porque “o valor do pedido implica a intervenção da instância central cível (tribunal coletivo) devendo o processo crime correr perante o tribunal singular”.
XIII. No entanto, actualmente o artigo 599.º do CPC de 2013 estabelece que “a audiência final decorre perante juiz singular, determinado de acordo com as leis de organização judiciária” e o artigo 117.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário) estabelece qual a competência dos juízos centrais cíveis, resultando evidente destas normas que o juízo central cível não é um tribunal colectivo, antes competindo a um juiz singular a preparação e julgamento da causa.
XIV. Ao julgar verificadas as três excepções supra citadas ao princípio da adesão obrigatória do pedido cível ao processo penal ao julgar improcedente a caducidade do direito de acção, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 71.º e 72.º, alíneas a), c) e g) do CPP e o artigo 298.º, n.º 2 do Código Civil.
XV. Por não se verificar nenhuma das referidas excepções, deveria o Tribunal a quo ter considerado que, não tendo os Recorridos deduzido o seu pedido cível no processo-crime respectivo, no prazo aí previsto, o seu direito de acção caducou, nos termos do disposto no artigo 298.º, n.º 2 do Código Civil.
XVI. Em face do exposto, deve o despacho saneador ser revogado e substituído por outro que julgue a excepção de caducidade do direito de acção dos Recorridos procedente, por provada, e, em consequência, absolva a Recorrente integralmente do pedido.
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Estas alegações foram contrariadas pelas contra-alegações do recorrido B... que afirma:
Ocorreram pelo menos 2 excepções ao princípio da adesão constante do artigo 71º do Código Penal:
a) – a constante da alínea b) do artigo 72º do código Penal, já que conforme consta dos autos, o despacho de acusação no processo crime acima referido apenas foi proferido a 2.3.2016 e notificado ao ora recorrido B... a 21.4.2016, isto é, mais de 8 meses após ter participado criminalmente (26.1.2015), motivo por que, a partir finais de Setembro de 2015 tinha cessado a obrigatoriedade do lesado estar vinculado ao principio da adesão, ficando na sua disponibilidade propor a acção nos tribunais civis;
b) – a constante na alínea g) do já referido artigo 72º do Código Penal, já que, chame-lhe a ora recorrente, Tribunal Colectivo, Juiz de Círculo ou Varas Mistas (como anteriormente eram designados) o certo é que é que em função do valor do pedido de indemnização cível – fossem 30.000,01€, fossem agora 50.000,00€ -, o tribunal competente para o julgar seria sempre a Instância Central Cível de Paredes e nunca a Instância Criminal Local de Paredes, juízos com competência diferente.
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Por sua vez, a recorrida E..., pronunciando-se da mesma forma a favor da improcedência do recurso, remata as suas contra-alegações com conclusões que se iniciam com o que considera uma questão prévia: I. A) Não terem os Autores deduzido o seu pedido de indemnização civil no âmbito do processo crime, em desrespeito ao princípio da adesão, não configura caducidade, mas preclusão pela falta da prática tempestiva de um acto processual, o pedido de indemnização cível.
B) O princípio de adesão define a competência penal para a apreciação da questão cível conexa, não afecta o direito à indemnização, antes se limita a definir o prazo no processo para a sua realização.
C) A acção cível conexa que se venha a intentar, com desrespeito a esse princípio padecerá de vício de instância no pressuposto de incompetência em razão da matéria.
D) Não é o “nomem juris” que define as questões jurídicas, mas a qualificação jurídica da sua substância.
E) A improcedência de que a Ré/recorrente reclama no recurso não decidiu do mérito da causa, já que a matéria que apreciou não constitui excepção perentória de caducidade.
F) Pelo que a questão decidida não admite recurso e só poderá ser impugnada no recurso que venha a ser interposto de decisão que ponha termo à causa.
Termos em que, o recurso não deve ser admitido, porquanto a questão nele levantada não se integra no n.º1 do art.º 644º do C.P.C. nomeadamente na sua alínea b).
II. A) A presente acção versa direito a indemnização pela violação do direito à vida.
B) O processo penal que a precedeu teve por objecto o crime de ofensas corporais por negligência.
C) Assiste aos autores o direito de acção onde possam discutir o nexo causal e pedir indemnização correspondente ao dano de privação da vida.
D) E não o podiam fazer em acção enxertada no processo penal com objecto diverso e onde o respectivo titular é o Ministério Público.
Não se está assim, perante pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime, mas antes perante acção autónoma de responsabilidade civil decorrente, de acidente de viação, não se mostrando sequer aplicável o princípio de adesão.
III. A) A douta decisão recorrida não agravou qualquer direito que assista à recorrente.
B) As conclusões que apresenta não têm qualquer suporte face à Lei e às regras da sua boa exegese
C) A acção em separado justifica-se nas alíneas a), c), f), g) e i) do artº 72º do C.P.P.
IV. A) Sem prescindir, a título subsidiário e a entender-se pela revogação do despacho em causa, deverá determinar-se a sua substituição por outro, que nos termos do artº 590º nº4 do C.P.C., determine o suprimento das insuficiências de alegação nos articulados.
Subsidiariamente, deverá considerar-se nula a douta decisão, determinando-se a sua substituição por outra, que ordene o suprimento das deficiências na alegação.

2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos):
A dedução do pedido de indemnização cível por homicídio decorrente de acidente de viação, formulado contra a seguradora do condutor do veículo, poderá realizar-se em separado do processo criminal onde aquele condutor foi julgado por ofensa à integridade física negligente?

II – Fundamentos
De facto
Compulsando os elementos documentais juntos aos autos, passamos a elencar os seguintes factos com interesse para a decisão:
1 – Nos autos de processo criminal 64/15.2GAPRD, foi proferida sentença, datada de 7.10.2016, a pena de 10 meses de prisão, com execução suspensa por um ano, pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave por negligência, p.p. pelo art. 148.º, n.ºs 1 a 3 do CP. Esta decisão foi mantida em segunda instância.
2 – A sentença teve por objeto o acidente de viação ocorrido no dia 17.10.2014 que consistiu no atropelamento de H... e em virtude do qual aquele peão sofreu lesões corporais.
3 – A acusação por crime de ofensa à integridade física agravada negligente (prevista e punida pelo art. 148.º, n.ºs 1 e 3 do CP, por referência às als. b), c) e d) do art. 144.º do mesmo código) foi proferida a 2.3.2016 e notificada ao que A. B... por via postal registada datada de 21.4.2014

De Direito
Quanto à admissão do recurso.
Considera a recorrida E... que o recurso não deve ser admitido, porquanto a questão nele levantada não se integra no n.º 1 do art.º 644.º do C.P.C. nomeadamente na sua alínea b), uma vez que a não dedução do pedido cível em processo criminal não origina a caducidade do direito, mas a incompetência do tribunal.
Todavia, o tribunal recorrido caraterizou a figura como de caducidade e foi nesse pressuposto que julgou improcedente a invocada exceção.
De modo que a reação que a parte poderá encetar perante a decisão judicial tem de ancorar-se nos próprios fundamentos desta e não nos fundamentos que se possa cogitar serem ou não os enquadráveis à questão.
Incidindo sobre matéria de exceção que subsume na figura da caducidade, o despacho saneador decide sobre o mérito da causa pelo que é imediata e autonomamente apelável[1].
Prosseguindo no conhecimento do recurso e dirigindo de imediato a atenção para o aspeto prático deste (deixando para depois o enquadramento jurídico da sanção aplicável à dedução do pedido cível em ação autónoma com violação do princípio da adesão), atentemos no princípio da adesão.
É consabido que em processo penal vigora o chamado princípio da adesão obrigatória do pedido de indemnização cível ao procedimento criminal, como consagrado no art. 71.º CPP.
De acordo com o aí previsto, o pedido de indemnização cível fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.
A prática de um ato criminal pode dar origem a duas pretensões distintas, uma a ser exercitada segundo o rito processual-criminal e outra a enquadrar-se nos pressupostos cíveis da responsabilidade obrigacional por factos ilícitos.
Combinar processualmente estas duas vertentes tem sido resolvido nas diversas legislações de moldes distintos, aludindo-se aos sistemas da identidade, da absoluta independência e ao da interdependência, também designado por sistema da adesão.
O art.º 71.º do CPP consagrou a teoria da adesão obrigatória: o pedido de indemnização civil originado pela prática de um crime deve ser deduzido no processo em que decorre a ação penal.
Fundamentos para tal são razões de economia processual, evitar a litispendência e, bem assim, a existência de decisões contraditórias[2].
A este respeito, veja-se o ac. STJ de 18-06-2009[3]: As razões lógicas dos sistemas que admitem o enxerto do pedido civil na acção penal são as mais díspares, mas todas elas se reconduzem, essencialmente, à vantagem da não contradição de julgados, à economia processual e ao interesse do lesado, que, funcionando como auxiliar do juiz, o habilita a melhor avaliar a extensão do dano, se exime a despesas e incómodos, além de que a estrutura do processo penal, se mais simples do que a civil, assegurará justiça mais célere, simples e acessível – cf. Prof. Vaz Serra, in BMJ 91.º/56.
Emerge deste normativo que a adesão obrigatória civil no procedimento criminal, ao lado da acusação que será objeto de julgamento, respeita à prática de um crime. Donde, acusação e pedido cível haverão de fundar-se no mesmo crime.
Dito de outro modo: se a acusação fixa o objeto da ação penal em factos configuráveis como ofensa à integridade física é com base neste crime que a sentença que conheça do pedido cível aquilatará dos pressupostos da responsabilidade civil. O dano é um pressuposto da responsabilidade civil (art. 483.º CC). É diferente o dano que se avalia quando se julga um crime de ofensa à integridade física ou um crime de homicídio negligente.
Recordemos o conceito de dano em direito civil: O dano em sentido jurídico comporta dois elementos distintos na sua estrutura, designadamente um elemento material ou substancial, consistente no facto físico ou natural e que integra o núcleo interior do dano, e um formal, proveniente da norma jurídica[4].
O elemento material ou substancial é, nos dois crimes, substancialmente distinto. Também o é o elemento físico-formal pois trata-se de crimes que protegem valores distintos, como distintas são as considerações que, em sede de indemnização, merecem uma e outra das situações.
De sorte que os aqui AA. nunca poderiam na ação penal, com objeto fixado na prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, exercitar um pedido cível emergente de objeto distinto resultante de homicídio negligente.
Tanto bastaria para julgar improcedente o recurso apresentado pela Ré.
Podemos, contudo, adentrar dos demais argumentos colocados em sede de recurso.
Àquele princípio da adesão foram introduzidas algumas exceções (art. 72.º CPP), permitindo-se que o pedido de indemnização possa ser formulado em separado.
Importa verificar se alguma das exceções é aplicável ao caso que nos ocupa.
Atentemos, desde logo, na al. f) do n.º1, por ser a que de imediato aqui se convoca.
Segundo a alínea f), sempre que haja pessoas com responsabilidade meramente civil, seja ela concomitante com a do arguido ou não, pode ser deduzido pedido cível nos foros cíveis.
Dissemos ser esta a alínea que o caso suscita de imediato porque o seu conteúdo, não tendo antecedentes no âmbito do nosso ordenamento jurídico, tem especial relevância nos casos de acidentes de viação e de responsabilidade civil conexa com participação de companhias seguradoras, na medida em que geralmente os litígios desta natureza tendem a ser morosos, o que choca com o objectivo de celeridade do processo penal[5].
No caso que apreciamos, é um pedido cível dirigido a uma seguradora e não ao próprio arguido, pelo que a exceção seria absolutamente aplicável.
Aqui chegados, já pouca importância teria cotejar os restantes argumentos. Diremos, porém, que no que diz respeito à al. a) do art.º 72.º, n.º 1 do CPP, há que clarificar que os referidos oito meses de prazo para deduzir acusação começam a contar-se a partir da notícia do crime pelo MP. Esse elemento não consta dos autos, mas o certo é que a acusação foi proferida mais de um ano após o sinistro. Além disso, o procedimento pelo crime imputado na acusação depende de queixa (ar. 148.º, n.º 4 CP), pelo que se aplicaria a al. c). Não consta que os lesados hajam sido informados nos termos do art. 77.º, n.º1 e 77.º n.º CPC (al i). Não é aplicável a al. g) posto que representa um anacronismo face à alteração do código de Processo Civil e à redação do atual art. 599.º CPC que prevê o julgamento apenas por juiz singular. O tribunal coletivo em processo civil foi eliminado pela reforma de 2003 do processo civil e a norma que a ele se refere no processo criminal constitui um puro e simples elemento de contradição sistemática do ordenamento que é inaproveitável face aos dados atuais do processo civil.
É, pois, infundado o recurso, sendo de manter a sentença, embora não aceitemos a solução da caducidade.
O não exercício do pedido de indemnização cível por adesão ao processo penal, quando obrigatória tal adesão, configura caducidade?
Os artigos 71.º e 72.º consideram que o pedido cível fundado na prática de um crime só pode ser deduzido em separado nos casos previstos na lei.
A figura da caducidade está ligada à extinção dos direitos. A extinção de um direito tem lugar quando um direito deixa de existir na esfera jurídica de uma pessoa. Quebra-se a relação de pertinência entre um direito e a pessoa do seu titular.
Uma forma particular de extinção de direitos é a correspondente aos institutos da prescrição (art.300.º ss CC) e da caducidade (art.328.º ss CC). Se o titular de um direito o não exercer durante certo tempo fixado na lei, extingue-se esse direito. Diz-se, nestes casos, que o direito prescreveu, ou que o direito caducou.
A prescrição e a caducidade acarretam a extinção de direitos quando estes não são exercidos durante certo tempo. Segundo o critério tradicional, clássico, a prescrição aplica-se aos direitos subjetivos propriamente ditos, enquanto a caducidade visará os direitos potestativos. A nossa lei segue um critério formal, afirmando que quando um direito deva ser exercido durante certo prazo se aplicam as regras da caducidade, salvo se a lei se referir expressamente à prescrição (art.298º/2).
Tal como na prescrição, a caducidade assenta na ponderação de uma inércia negligente do titular do direito em exercitá-lo, o que faz presumir uma renúncia ao direito ou, pelo menos, o torna indigno da tutela do Direito.
Por isso, embora a prescrição e a caducidade visem, desde logo, satisfazer a necessidade social de segurança jurídica e certeza dos direitos, e, assim, proteger o interesse do sujeito passivo, essa proteção é dispensada atendendo também ao desinteresse, à inércia negligente, do titular do direito em exercitá-lo. Há, portanto, uma inércia do titular do direito, que se conjuga com o interesse objetivo numa adaptação da situação de direito à situação de facto.
Na caducidade, porém, só o aspeto objetivo da certeza e segurança é tomado em conta. O que explica, p.ex., que a caducidade seja apreciada oficiosamente pelo tribunal – ao contrário da prescrição, que tem de ser invocada –, bem como o facto de influírem sobre o prazo de prescrição, e não sobre o da caducidade, situações e acontecimentos que excluem a possibilidade de a falta de exercício do direito ser atribuída a inércia do titular – situações e acontecimentos que podem suspender ou interromper a prescrição, mas não a caducidade.
Cientes do que seja caducidade em direito civil, já vemos que o art. 71.º do CPP não tem em vista sancionar o lesado pela prática extemporânea do direito. Embora se pretenda obter uma certeza e segurança jurídicas das posições subjetivas dos sujeitos processuais (máxime do arguido e do seu interesse em não se ver confrontado diversas vezes a propósito do mesmo recorte da vida), tem-se em vista uma solução de economia processual e de obviar a possíveis situações de julgados contraditórios.
Assim vistas as coisas, a violação do disposto no art. 71.º CPP não é sancionada com a caducidade do direito do lesado[6].
Já a figura da preclusão, ao contrário da caducidade (que decorre a partir de uma data ou de um acontecimento, sem qualquer aviso ou comunicação), respeita à não realização do ato por decurso de um prazo para o qual se foi previamente avisado.
De preclusão se tratará quando o lesado não cumpre o prazo de 20 dias que lhe é assinalado no n.º 2 do art. 77.º CPP para, em processo penal, formular o pedido de indemnização cível.
No caso que nos ocupa, o tribunal cível não poderia conhecer o pedido de indemnização cível formulado em violação do disposto no art. 71.º CPP, não porque o direito do lesado tivesse caducado ou estivesse precludido mas, como assinala a recorrida, porque o princípio da adesão comporta, afinal, uma regra de fixação de competência material em matéria de pedido de indemnização fundado em crime.
Aderimos, por isso, ao que se escreveu no ac. RC, de 2.3.2010, proc. 143/08.2TBOBR.C1: tal como decidido na decisão recorrida, não se verifica nenhuma excepção à regra consagrada no artigo 71.º do CPP, do que decorre que o pedido ora formulado deveria ter sido, obrigatoriamente, formulado no processo penal, carecendo o tribunal civil de competência para o seu conhecimento e decisão, verificando-se, pois, a alegada excepção de incompetência material do presente Tribunal, para apreciar e decidir os presentes autos, com a consequente absolvição do réu da instância, em conformidade com o disposto nos artigos 493.º, n.ºs 1 e 2; 494.º, al. a) e 288.º, n.º 1, al. a), todos do CPC, em função do que tem o presente recurso de improceder.
Temos, assim, a falta de fundamento do recurso.

III - Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem este tribunal, em julgar improcedente a apelação e confirmar o despacho recorrido, embora com diferente fundamentação.
Custas pela apelante.
N.

Porto, 5.11.2018
Fernanda Almeida
António Eleutério
Isabel São Pedro Soeiro
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[1] Neste sentido, ac. RG, de 6.11.2014, Proc. 2777/13.4TBBCL.G1.
[2] PINTO, Rui, O valor extra-processual da prova penal na demanda civil : algumas linhas gerais de solução. In PINTO, Rui, coord. - Coletânea de estudos de processo civil. 1.ª ed., 2103. P. 69-104.
[3] Pro. n.º 81/04.8PBBGC.S1
[4] Inês Fernandes Godinho, Responsabilidade civil e responsabilidade penal: entre o diálogo e o silêncio (ou a justiça restaurativa como ponte de encontro), p. 112, disponível em file:///C:/Users/mj01710/Downloads/3788-1-12487-1-10-20131004.pdf
[5] Daniel Conceição, Pedido de indemnização civil - O princípio do pedido, Dissertação de Mestrado, 2011, Faculdade de Direito da Universidade Católica, p. 17.
[6] Não aderimos, por isso, à posição do ac. RE de 13.3.2008, Proc. 3204/07-3, em cujo sumário se lê: O decurso do prazo para a formulação do pedido cível na acção penal, sem que se verifiquem as excepções que permitem a sua dedução em separado configura uma situação de preclusão do direito respectivo e consequentemente de caducidade do respectivo direito de acção. Esta por respeitar a questão de interesse público, atinente a realização pronta da justiça, é do conhecimento oficioso (art.º 298º n.º 2, 328º, e 333º todos do CC) e consequentemente por se tratar de excepção peremptória implica a absolvição do pedido.