Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12/19.0FAPRT.P1-A
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ IGREJA MATOS
Nº do Documento: RP2023091512/19.0FAPRT.P1-A
Data do Acordão: 09/15/2023
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: .
Decisão: .
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário:
Reclamações: Proc. Nº 12/19.0FAPRT.P1-A

O presente conflito negativo em que intervêm dois Exmos. Srs. Desembargadores deste Tribunal da Relação do Porto foi desencadeado por força de um dissídio quanto ao preenchimento dos pressupostos relativos ao impedimento de um deles para intervir nos presentes autos.
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Assim, o despacho posto em crise reza como segue, na parte que releva:
Tive intervenção nos presentes autos, como relator, no recurso interposto pelo arguido AA, negando-lhe provimento.
Em consequência, foi confirmado o despacho recorrido de 4.01.2021 que reexaminou os pressupostos da medida de coação de prisão preventiva que lhe havia sido aplicada por decisão proferida em 8.07.2020, e determinou que o referido arguido continue a aguardar os ulteriores termos processuais sujeito à mesma medida.
Considerando o disposto no artigo 40.º, n.º 1, al. d), do CPP, declaro-me, pois, impedido de intervir nos recursos relativos a este processo.
Remeta os autos à distribuição.
Redistribuídos os autos de recurso e atribuídos ao novo relator, este, por sua vez, em despacho fundamentado, concluiu que, no caso “sub judice”, não haveria o dito impedimento legal pelo se julgou incompetente para conhecer do presente recurso.
Cumprido o contraditório, pronunciou-se o relator inicial, mantendo o despacho proferido.
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Cumpre apreciar e decidir.
Reproduzamos o artigo 40º, nº1 do Código do Processo Penal (CPP) em que assentou a justificação para o impedimento:
1 – Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:
a) Aplicado medida de coação prevista nos artigos 200.º a 202.º;
b) Presidido a debate instrutório;
c) Participado em julgamento anterior;
d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior.
e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.
No caso em apreço, concatenando a dita alínea d) com a alínea a), o juiz alegadamente impedido proferiu uma decisão de recurso que conheceu da decisão de aplicação de medida de coação (concretamente, a medida de prisão preventiva).
Ora, entende o ora requerente, em síntese breve, que, nesta matéria, é crucial “estabelecer a distinção entre os conceitos (jurídicos) e decisões de “aplicação” e de “manutenção” da prisão preventiva.”
Deste modo, um juiz só estaria impedido de intervir em recurso relativo a processo em que tiver participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido de decisão que aplica a prisão preventiva, mas não nos casos em que tenha essa participação se limite, em reexame dos pressupostos, a manter a prisão preventiva. Em benefício desta tese, para além da sustentação jurisprudencial, nomeadamente, “inter alia”, o acórdão do STJ de 22-06-2022, processo 189/12.6TELSB.P1-G.S1, invoca os elementos literal, sistemático e histórico de interpretação dos art. 194.º e 213.º do CPP.
Entende ainda que o desvio ao princípio do juiz natural, por força dos impedimentos legais, não se compadece com soluções imprecisas que potenciem a discricionariedade na distribuição dos processos. Este um argumento ponderoso a que regressaremos adiante.
Na resposta proferida, resulta que o Mmo. Desembargador que se declarou impedido não se opõe a tais considerandos no sentido de que, em boa verdade, igualmente propugna pela inexistência de impedimento relativamente a decisões que se limitem a manter a prisão preventiva. Porém, entende dever efetuar-se aqui uma distinção.
Reproduzindo o raciocínio vertido, explica:
no caso concreto, o acórdão proferido sobre o recurso interposto pelo arguido AA em que tive intervenção, como relator, não se limitou, de forma tabelar, à decisão que manteve a prisão preventiva.
Pronunciou-se, além do mais, sobre a própria decisão que aplicou a prisão preventiva, ainda que de forma lateral.
Efetivamente, considerando as questões suscitadas e apreciadas no recurso, o acórdão refere que a verificação da alteração factual dos pressupostos que presidiram à aplicação da prisão preventiva no despacho de 8.07.2020 não ocorre no caso concreto.
Pois bem.
Dando de antemão como adquirido, à luz dos argumentos indicados pelo requerente para os quais se remete e face à coincidência de pontos de vista, que a decisão, seja em primeira instância seja em sede de recurso, que se pronuncia sobre a manutenção da prisão preventiva não legitima a declaração de impedimento pelo juiz que a profere, atenhamo-nos, então, à análise da perspetiva do requerido segundo a qual esta solução seria de descartar naqueles casos, como seria o nosso, em que o juiz não se limita a, de forma tabelar, manter a prisão preventiva mas em que vai mais longe, pronunciando-se sobre a decisão anterior que a aplicou.
Desde logo, esta distinção enferma, a nosso ver, de duas fragilidades que não serão despiciendas.
A ausência de cobertura legal na medida em que o legislador se ateve à expressão “aplicado”, existindo, como se explica no requerimento inicial para o qual remetemos, um recorrido histórico e sistemático que aconselha uma leitura literal do preceito.
A segunda, já aflorada acima, reporta-se a uma indesejada ambiguidade que obrigaria, caso a caso, a um exercício permanente de escrutínio sobre o teor da decisão que manteve a prisão preventiva, gerando, naturalmente, uma margem de discricionariedade, hostil aos valores de certeza e segurança jurídicas que devem imperar, em particular, na interpretação das regras de competência e distribuição.
A estes dois fatores acresce um terceiro, de carater genérico, que consagra um grau de exigência acrescido, se quisermos uma interpretação restritiva, sempre que estiver em causa a aplicação de uma norma que constitua um desvio ao princípio do juiz natural. Sorteado aleatoriamente um juiz, ou um coletivo de juízes, a anulação da distribuição decorrente daquele apenas deve ocorrer em situações tão objetiváveis quanto possível de modo a justificar plenamente, à luz da consagração do princípio da imparcialidade, essa entorse à marcha normal do processo.
Por isso, a opção simples e objetiva, sendo a que melhor corresponde à letra da lei, segundo a qual o juiz que aplica a prisão preventiva está impedido e aquele que, posteriormente, a manteve não está impedido, tem as inegáveis vantagens da certeza e segurança jurídicas e, além disso, de uma melhor, porque previsível, gestão dos recursos humanos à disposição do tribunal.
Não teremos então de arcar com as fragilidades do casuísmo, permissivo à subjetividade e à discricionariedade, que outras alternativas sempre traduziriam.
Os considerandos expendidos já remetem para a solução que propugnamos e que, salvo o devido respeito, nos levam a concluir pela inexistência dos pressupostos que legitimariam o invocado impedimento.
E os mesmos, a nosso ver e sempre salvo melhor opinião, não são infirmados pelas especificidades do caso concreto, ou seja, pelo conteúdo do acórdão que determinou a manutenção da prisão preventiva. Na verdade, como bem explica o Exmo. Colega na sua resposta, o acórdão apenas lateralmente alude ao despacho que, efetivamente, aplicou a medida de coação. E fá-lo explicando que, em qualquer caso, quando está em causa a impugnação do despacho que procedeu ao reexame oficioso dos pressupostos da medida de coação, o âmbito do recurso circunscreve-se a esta decisão, existindo, nesse âmbito, um “caso julgado formal rebus sic stantibus («permanecendo as coisas como estão» ou «enquanto as coisas estão assim»)”. Ou seja, apenas as alterações supervenientes seriam impugnáveis e, decorrentemente, escrutináveis.
Donde, em síntese conclusiva: entendemos, nesta como noutra qualquer situação idêntica, não existir qualquer impedimento relativamente aos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores que, em sede de recurso, se pronunciem sobre a decisão que manteve uma medida de coação prevista no artigo 200º a 202º do CPP.
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Pelo exposto, decide-se:
Determinar como válida e operante a distribuição operada em 28 de Agosto de 2023 e anular a que foi posteriormente efetuada.
Notifique.
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A presente decisão deve ser publicada no sítio da dgsi.pt, remetendo-se a mesma, por email, através do secretariado da Presidência, a todos os Srs. Juízes Desembargadores da área criminal.

Porto, 15 de Setembro de 2023
José Igreja Matos
[Presidente do Tribunal da Relação do Porto]
Decisão Texto Integral: