Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
666/18.5PAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: CRIME DE FURTO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PERDA A FAVOR DO ESTADO DE VANTAGENS DO CRIME
Nº do Documento: RP20230419666/18.5PAVNG.P1
Data do Acordão: 04/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: Em caso de crime de furto, o Ministério Público deve promover e o juiz (reunidos os respetivos pressupostos legais) deve declarar perdidas a favor do Estado as vantagens decorrentes da prática do crime independentemente de haver pedido de indemnização civil ou condenação nesse pedido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n º 666/18.5PAVNG.P1

Relator Paulo Costa
Adjuntos: Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha




Acórdão, julgado em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto:


O recorrente M.P. a fls. 297 e ss não se conformando com a decisão proferida na sentença em processo comum do Tribunal Judicial da Comarca de Porto - Juízo Local Criminal de Porto-J7, que nos autos à margem referenciados decidiu:
“Julgar improcedente o pedido de declaração de perda a favor do Estado do valor €1.536,80, nos termos do disposto no artigo 110º, nº 1, al. b) e nº 4 do Código Penal.”, veio recorrer nos termos que ali constam, que ora aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os legais efeitos, concluindo pela forma seguinte (partes relevantes): (transcrição)

“1 - O Ministério Público, nos termos do disposto no art. 110º, nºs 1, al. b), e 4, do Código Penal, em sede de acusação, promoveu, sem prejuízo dos direitos do lesado, a declaração da perda das vantagens obtidas pelo agente que praticou o facto ilícito típico, quantificando essa vantagem.
2 - O tribunal a quo proferiu decisão condenatória optando, no entanto, por não declarar a perda da vantagem patrimonial, uma vez que foi deduzido pedido de indemnização civil por uma das ofendidas, julgado procedente, e não deduzido pela outra.
3 – Sucede que a apresentação e procedência do pedido de indemnização civil não impõem qualquer limite ao confisco das vantagens decorrente da prática de um facto ilícito típico.
4 – A perda da vantagem deverá ser sempre declarada, ela é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção do perigo da prática de novos crimes, imposta pelo ius puniendi do Estado, e visa impor uma ordenação dos bens adequada ao direito, restituindo a situação patrimonial do arguido às circunstâncias existentes em momento anterior ao da prática do facto antijurídico.
5 - Questão diversa é a que se prende, a posteriori, com a efectivação do ressarcimento do ofendido/lesado. Caso se declare perdida a vantagem do crime e paralelamente tenha havido vítima prejudicada pela prática do mesmo, a declaração de perda não terá eficácia prática se existir uma equivalência entre , e aquilo que vier a reverter para a vítima do crime, através do pedido de indemnização apresentado, daí que os direitos da vítima sempre estejam salvaguardados.
6 – A declaração de perda das vantagens do crime nunca prejudica o direito indemnizatório do lesado/demandante, nem obriga o arguido ao pagamento sucessivo da mesma quantia.
7 - Donde, ao contrário do sustentado pelo tribunal recorrido na decisão em crise, não há qualquer conflito entre o instituto do confisco da vantagem do crime e os direitos patrimoniais do lesado, ou os direitos do próprio condenado.
8 – Atento o que precede, deveria ter sido declarada a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial decorrente da prática do facto ilícito típico, quantificada na acusação, sem prejuízo da satisfação dos interesses do lesado/demandante e de eventuais terceiros de boa-fé.
9 - Ao proferir decisão de sentido inverso, violou a douta decisão em crise o disposto nos arts. 110º, nºs 1, al. b), e 4, e 130º, nº 2, do Código Penal.”

A este recurso ninguém respondeu.

Neste tribunal de recurso a Digna Procuradora-Geral Adjunta no parecer que emitiu e que se encontra a folhas 321 e ss pugnou pela total procedência do recurso.

Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.

Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II. Objeto do recurso e sua apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar ( Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.


Matéria de direito.

Perda da vantagem patrimonial a favor do Estado e a sua compatibilidade com pedido de indemnização cível.
Deferimento da pretensão do Ministério Público da perda de vantagem patrimonial, obtida com a prática do crime em questão.

Dos factos.

1. Da sentença.
Da audiência de julgamento resultou provada a seguinte factualidade:
Da acusação:
1. Entre o início do ano de 2018 e o dia 14 de Abril de 2018 a arguida AA prestava serviços, enquanto empregada doméstica, a BB, na sua residência sita na Avenida ..., ..., ..., Vila Nova de Gaia, e a CC, na sua residência sita na Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia;
2. Por essa razão dispunha de chaves de acesso àquelas residências, às quais acedia livremente nos dias combinados;
3. Aproveitando-se dessa circunstância, e da confiança que já lhe era votada por aquelas, entre dia não concretamente apurado do início do ano 2018 e o dia 14/04/2018, determinou-se a arguida a fazer seus os objectos que serão identificados, pertencentes àquelas, dos quais se apoderou, dando-lhes destino não concretizado e/ou vendendo ou empenhando parte de tais objectos;
4. No que concerne a BB, a arguida apoderou-se, fazendo seus:
a. Do interior do quarto da proprietária, três libras, sendo duas delas meias libras em ouro e na forma de moeda, e a outra, uma libra em ouro em forma rectangular/barra de ouro (valendo cada uma entre os €225,00 e os €250,00); e
b. Um anel de curso de Direito, com rubi (valendo €1.000);
c. Um anel de noivado com diamantes pretos e brancos (valendo €2.000);
d. Um anel de ouro branco com diamantes (valendo €1.500);
e. Uma aliança em ouro (valendo €900);
f. Um anel em prata (valendo €60);
g. Do móvel sito no hall de entrada, num mealheiro ali existente, pelo menos €300 em moedas;
h. Do quarto dos filhos, numa gaveta ali existente, €40 em numerário;
tudo perfazendo o valor total de €6.550,00 (seis mil quinhentos e cinquenta euros);
5. Em momento posterior, a arguida vendeu alguns de tais bens a DD, no estabelecimento comercial por este explorado,
sito na Rua ..., B, ..., Vila Nova de Gaia, recebendo em troca o valor de €300;
6. No caso de CC, a arguida apoderou-se, fazendo seus:
a. Do interior de uma cómoda existente no quarto da proprietária, um anel grosso em ouro (valendo €700); e
b. Um anel grosso em ouro em forma de nó (valendo €800);
c. Um anel fino em ouro com pedra bordeaux (valendo €250);
d. Quatro pulseiras em ouros (valendo €100 cada);
e. Um par de brincos em ouro, em forma de bola (valendo €50);
f. Um par de brincos em ouro ligeiramente trabalhados (de valor não apurado);
g. Dois fios em ouros (de valor não apurado);
h. Um fio em prata com pendente árvore da vida em dourado (valendo €55);
i. Um fio em prata simples (valendo €25);
j. Um colar rígido de prata tipo fita (valendo €60);
k. Um par de brincos de prata com brilhantes (valendo €25), ainda, sem prejuízo dos indicados infra, e no valor total de €2.365,00 (dois mil trezentos e sessenta e cinco euros);
7. Em momento posterior, a arguida AA deu em penhor os seguintes objectos – que foram posteriormente reconhecidos por CC -, na Companhia ..., sita na Praça ..., Porto, recebendo os créditos (líquidos) de €350,98 e €602,71, respectivamente:
a. Duas voltas em ouro de 800 mm tipo aos elos com 11,1 gramas;
b. Uma pulseira em ouro de 800 mm tipo trabalhada com 5,8 gramas;
c. Um anel em ouro de 800 mm com 6,00 gramas;
d. Uma pulseira em ouro de 800 mm c/ pedras vermelhas com 4,4 gramas;
e. Uma volta em ouro com 800 mm tipo batida com 12,5 gramas;
f. Uma cruz em ouro de 800 mm com 2 gramas;
8. A arguida agiu com o propósito concretizado de fazer seus os bens descritos, como fez, apesar de saber que os mesmos lhe não pertenciam, e que agia contra a vontade das suas proprietárias;
9. Representou a possibilidade, de os bens pertencentes à ofendida BB terem valor superior a €5.100,00, com o que se conformou;
10. A arguida agiu livre, deliberada, e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Do pedido de indemnização civil:
11. A arguida encontrava-se a trabalhar na residência da demandante BB, à data sita na Av. ..., ..., há menos de dois meses e a título experimental;
12. Ficava sozinha na residência da ofendida, por ter sido referenciada por uma amiga sua, a aqui também ofendida EE;
13. Nesse período a demandante ofereceu várias peças de roupa à arguida e frequentemente, lhe dava comida para si e para as filhas;
14. A demandante não recuperou quaisquer bens;
15. Recebeu €5.800,00 de DD, valor acordado entre ambos e relativo ao valor aproximado dos bens que lhe foram vendidos pela arguida, a saber o anel de curso e o anel de ouro branco com diamantes, e aos danos morais causados pela conduta daquele;
16. Todavia, desconhece o destino dados aos demais objectos e dinheiro, encontrando-se ainda lesada em, pelo menos, €3.500,00;
17. A ofendida ao aperceber-se do furto ocorrido na sua residência, ficou em pânico, sendo que era já tarde, perto das 23h00m, encontrando-se a ofendida em casa, com os seus dois filhos menores, à data com 6 e 11 anos de idade e um amigo destes com 11 anos, e acompanhada da sua mãe, à data com 73 anos;
18. As crianças ficaram muito assustadas, tendo a mãe da ofendida de ficar com elas toda a noite, acalmando-os, enquanto a ofendida e o seu, à data, ex-marido, FF, foram ao encontro da arguida;
19. A ofendida passou toda a noite a tentar reaver o ouro, tendo falado com DD, tendo ido à PSP com a arguida, a casa desta e efectuado outras diligências, aguardando pelas 7h da manhã para se deslocar ao estabelecimento de DD, a fim de tentar reaver alguns dos objectos, sem sucesso;
20. A ofendida teve de trocar o canhão da fechadura, despendendo cerca de 80€;
21. A ofendida sentiu receio de dormir na mencionada residência com quem vivia com os seus dois filhos menores, altura em que passou ali a pernoitar também a sua mãe e, por vezes, o seu ex-marido;
22. Os filhos da ofendida por vezes dormiram na sua companhia;
23. Em virtude do comportamento da arguida, a ofendida sentiu-se triste e revoltada, sendo que os objectos de ouro furtados eram joias de família e com grande valor sentimental;
24. O anel de curso de Direito com o rubi, fora mandado fazer pelo seu pai, falecido a 21.11.2019, que comprara o rubi a seu gosto e escolhera os diamantes e lhe oferecera o anel em 1998;
25. O anel de noivado com diamantes negros e brancos fora oferecido à ofendida por altura do seu primeiro casamento com FF;
26. O anel de ouro branco fora oferecido pelo FF aquando do nascimento do seu primeiro filho;
27. A aliança em ouro, fora oferecida pelos padrinhos do seu primeiro casamento com FF;
28. As libras de ouro eram dos seus filhos e haviam sido oferecidas pelo avô paterno.

Mais se provou que:
29. Do certificado do registo criminal da arguida nada consta;
30. A arguida vive em casa arrendada na companhia de duas filhas menores com 8 e 6 anos de idade. Paga €200,00 de renda de casa e tem como habilitações literárias o 6º ano de escolaridade;
31. A arguida trabalha como empregada doméstica em casa particulares e aufere mensalmente o valor de €600,00. Os filhos recebem a pensão de alimentos de €100/mês.

2. Factos não provados
Não há factos não provados com relevância para a decisão da causa.”

2.Da decisão de direito.
(…)
“5. Da Perda de Vantagens Patrimoniais nos termos do artigo 110, nº 1 al. b) do Código Penal
O Digno Magistrado do Ministério Público requereu a declaração de perda de vantagens nos termos do disposto no artigo 110º, nº 1, al. b) do Código Penal, concluindo pela declaração de perda do montante global de €1.536,80, correspondente ao somatório das vendas e créditos obtidos pela arguida em consequência dos factos cometidos.
Estabelece o citado artigo 110º, nº 1 que:
1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
Por seu turno estabelece o nº 6 da citada norma que o ali disposto não prejudica os direitos do ofendido.
A arguida nada disse.
No caso em apreço verifica-se que a arguida AA se apoderou de bens e dinheiro que não lhe eram devidos em prejuízo das ofendidas.
Seguindo de perto o Ac. do STJ de 03-10-2002, disponível em ww.dgsi.pt, “a essência ou a significação político - criminal do que no artigo 111º, do Código Penal se estipula (particularizando, de algum modo, a filosofia que, no geral, informa a regulamentação da perda de instrumentos, produtos e vantagens, inserto no Capítulo VIII DO Título III – Das consequências Jurídicas do facto), alcança-se a partir de uma tonalidade ampla a conferir ao termo “vantagem” (encarada esta ao lado dos objectos, instrumentos, produtos e direitos relacionados com o ilícito praticado ou deste oriundos) ou seja numa perspectiva abrangente, quer da recompensa dada ou prometida ao agente delitivo, quer de todo e qualquer benefício patrimonial que resulte do crime (facto ilícito) em que, através dele ou por via dele, haja sido conseguido.
E a alguma distinção (ou, melhor dizendo, a diferenciação em capítulo daqueles que rege o destino do ilicitamente obtido) apercebível no confronto entre o regime de perda (a favor do Estado) relativo a objectos, instrumentos e produtos, por um lado e o regime de perda de vantagens (ainda a favor do Estado) por outro, encontra plausível justificação, mesmo que sob a égide de um escopo, no fundo, comum; a legitimar a perda dos objectos, instrumentos e produtos do crime acha-se, em primeira linha, a sua perigosidade (e decorrente adequação) imediata ou potencial para a prática de crimes, ao passo que a perda de vantagens assenta, primacialmente, num desiderato ditado, não só por razões de prevenção geral da criminalidade ou da conveniência da criminalidade ou da conveniência de uma acrescida censura ao desvalor das condutas desenvolvidas mas, sobretudo, pela necessidade de se estabelecer uma efectiva (normativamente efectiva) objectividade à ideia tradicional (porém sempre actual e perdurável) de que se o crime não compensa, importa que se obste e é fundamental que se impeça que, na prática, compense ou possa compensar.
“Sendo certo que nenhuma disposição legal retira propriamente imperatividade à perda a favor do Estado, prevista na primeira parte do seu n.º 2 do artigo 111º, do Código Penal e sendo igualmente certo que tal imperatividade pode ser condicionada na sua abrangência pelos “direitos do ofendido”, parecerá que a tutela desses direitos terá forçosamente de derivar (ou de depender, em termos de efectivação prática) de uma comprova (inequívoca e prévia) de que o agente do crime (e demandado cível) não satisfará de “ motu próprio” ou não se encontrará em condições de satisfazer a reparação a que, por decisão judicial, ficou adstrito.
O que, no fim de contas, se reconduz - certo sendo que o Estado apenas deixará de dispor integralmente do que tiver revertido a seu favor nos precisos termos em que esse acervo deva ser indispensável a cobrir o dano sofrido pelo lesado e importando, ainda, que a reversão das vantagens para o mesmo lesado deva pautar-se por uma exacta correspondência ao valor do prejuízo por aquele suportado (e a que tenha ficado com direito) – por um lado, à verificação de que o autor de facto ilícito não reparará o prejuízo que causou (reparação a que foi condenado) e ao apuramento, por outro, do valor real daquilo que haja de consubstanciar a matéria patrimonial sobre que vai incidir o direito à reparação”.
Escrevem João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues, em texto publicado em Abril de 2015 na Revista Julgar On Line, que: “A vantagem patrimonial obtida pelo autor de um crime de furto corresponde, inversamente, ao prejuízo patrimonial da vítima, colocando – como já referimos – o problema da articulação prática entre o confisco das vantagens do crime e o eventual pedido de indemnização civil.
Quando os bens que consubstanciam o benefício patrimonial obtido forem restituídos ao lesado (v.g. o automóvel subtraído), no decurso do processo ou na decisão final, o confisco previsto no artigo 111.º do Código Penal apenas operará se a vantagem for superior àqueles (v.g. o valor da sua utilização no período em que esteve na posse do arguido) ou o ofendido, por um qualquer motivo válido, não aceitar a restituição. O Estado não pode confiscar os bens do lesado, devendo limitar-se a restituí-los ao seu legítimo proprietário (art. 186.º, n.º 1, do CPP), assim anulando a vantagem obtida. Voltar a confiscá-la (restituição mais perda) seria uma verdadeira violação do ne bis in idem. Aliás, em bom rigor, como já não há vantagem, também não há nenhum conflito prático entre o confisco e um eventual pedido de indemnização civil (v.g. para recuperar os danos causados com a má utilização da viatura), cujas regras também são, igualmente, desnecessárias, porque se trata de restituir «o seu a seu dono» (suum cuique tribuere).
Voltando ao caso em apreço verifica-se que a arguida se apoderou de bens e dinheiro pertencentes à ofendida BB. Sucede que a mesma deduziu pedido de indemnização civil que foi julgado totalmente procedente, e relativamente à ofendida CC a mesma foi notificada para deduzir pedido de indemnização civil e não o fez, o que, obviamente está na sua disponibilidade.
Ou seja, já foi determinada a restituição à ofendida das quantias que consubstanciam o benefício patrimonial obtido, e se a ofendida CC prescindiu de as reclamar, pelo que terá que improceder e o pedido de declaração a favor do Estado do valor € 1.536,80, nos termos do disposto no artigo 110º do Código Penal (neste sentido cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07/07/2021, relatado pela Exma. Sra. Juíza Desembargadora Eduarda Lobo, publicado em www.dgsi.pt).”

Conhecendo.

Vejamos.
O thema decidendum consistirá em saber se se deve, não obstante ter havido condenação no pedido cível interposto, determinar ao abrigo do art. 111º a perda da vantagem patrimonial.
Artigo110.º
Perda de produtos e vantagens
1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.
Artigo 111.º
Instrumentos, produtos ou vantagens pertencentes a terceiro

1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a perda não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens não pertencerem, à data do facto, a nenhum dos agentes ou beneficiários, ou não lhes pertencerem no momento em que a perda foi decretada.
2 - Ainda que os instrumentos, produtos ou vantagens pertençam a terceiro, é decretada a perda quando:
a) O seu titular tiver concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiver retirado benefícios;
b) Os instrumentos, produtos ou vantagens forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer o adquirente a sua proveniência; ou
c) Os instrumentos, produtos ou vantagens, ou o valor a estes correspondente, tiverem, por qualquer título, sido transferidos para o terceiro para evitar a perda decretada nos termos dos artigos 109.º e 110.º, sendo ou devendo tal finalidade ser por ele conhecida.
3 - Se os produtos ou vantagens referidos no número anterior não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
4 - Se os instrumentos, produtos ou vantagens consistirem em inscrições, representações ou registos lavrados em papel, noutro suporte ou meio de expressão audiovisual, pertencentes a terceiro de boa-fé, não tem lugar a perda, procedendo-se à restituição depois de apagadas as inscrições, representações ou registos que integrarem o facto ilícito típico. Não sendo isso possível, o tribunal ordena a destruição, havendo lugar à indemnização nos termos da lei civil.

Como é sabido a perda de vantagens é exclusivamente determinada por necessidades de prevenção.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, não se trata de uma pena acessória, porque não tem relação com a culpa do agente, nem de um efeito da condenação, porque também não depende uma condenação. Trata-se de uma medida sancionatória análoga à medida de segurança, pois baseia-se na necessidade de prevenção do perigo da prática de crimes, "mostrando ao agente e à generalidade que) em caso de prática de um facto ilícito típico) é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito decorrente do ofendido”.

Consoante ficou exarado na própria decisão recorrida, este instituto constitui uma medida sancionatória análoga à medida de segurança com intuitos exclusivamente preventivos.
Ora, se assim é, não se vislumbra como pode o entendimento/actuação do ofendido ser determinante para a (in)viabilidade do seu decretamento.

A perda de vantagens do crime constitui instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que, mesmo onde a cominação de uma pena não alcança, nenhum benefício resultará da prática de um ilícito [v.g. “o crime não compensa”, nem os seus agentes dele retirarão compensação de qualquer natureza].
Tanto basta para concluir que as intenções ou entendimento do ofendido a propósito da obtenção do ressarcimento devido, não competem nem podem sobrepor-se ou substituir-se ao exercício do poder de autoridade pública subjacente ao instituto em causa.
O direito à indemnização, mesmo quando já se mostra judicialmente estabelecido, é livremente renunciável e negociável, o mesmo não acontecendo com as medidas de carácter sancionatório.
A reserva constante do n.º 6 do art. 110º e já anteriormente prevista no nº2 do art. 111º na redação anterior à Lei n º 30/2017 de 30 de maio, em benefício dos direitos do ofendido, não lhes concede poderes derrogatórios das medidas dessa natureza aí previstas, significando apenas que, concorrendo a execução do pedido de indemnização civil com a do valor da perda de vantagens prevalecerá a primeira delas, remetendo-nos para uma fase de tramitação posterior, em que já estão atribuídos e devidamente delimitados quer os valores da indemnização do ofendido ou de terceiro e o da perda de vantagens que, como é bom de ver, poderão nem sequer ser inteiramente coincidentes.


Aliás, no mesmo sentido vai a estatuição do art. 130º, n.º 2, do Cód. Penal, ao prever que o tribunal possa
“atribuir ao lesado, a requerimento deste e até ao limite do dano causado, os instrumentos, produtos ou vantagens declarados perdidos a favor do Estado ao abrigo dos artigos 109.º a 111.º, incluindo o valor a estes correspondente ou a receita gerada pela venda dos mesmos”.

Desde logo, porque as leis têm carácter geral e abstrato e a norma em causa nenhuma exceção contempla nessa matéria. E depois, porque os mecanismos de cobrança coerciva à disposição dos ofendidos não deixam de estar sujeitos a requisitos determinados não havendo absoluta garantia de concretização do ressarcimento (veja-se, por ex: que a execução fiscal, em regra, tem como sujeito passivo a pessoa coletiva, respondendo os seus representantes a título meramente subsidiário, acrescendo o facto de nem sempre ser fácil estabelecer a sua identidade quando existe gerência de facto ou então o caso do demandado recorrer ao instituto da insolvência).

Daqui se conclui que o facto de também haver pedido ou condenação no pedido cível interposto nada obsta à pretensão do Ministério Público – quando muito a declaração da perda de vantagens poderá é não alcançar qualquer efeito útil, sendo certo que em sede de execução nem o ofendido poderá obter o duplo pagamento das quantias em causa (se inteiramente coincidentes) nem os arguidos terão que pagar a totalidade do valor fixado, caso já tenham feito, entretanto, reembolso parcial do mesmo à ofendida, como decorre da leitura harmónica quer dos preceitos legais aplicáveis quer dos princípios que regem nesta sede.


Nos termos do artigo 110º, nº 2, do Código Penal são também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie. Por isso mesmo, num processo penal orientando pelo princípio da legalidade (artigo 2º) o Ministério Público deve promover e o juiz (reunidos os respetivos pressupostos legais) deve declarar perdidas a favor do Estado as vantagens decorrentes da prática do crime. O confisco ainda faz parte do multiversum que constitui o exercício do ius puniendi estadual, não havendo aqui nenhum poder de oportunidade (ou discricionariedade) na sua declaração. Tal como quem «quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão» (artigo 131º do Código Penal) «são também perdidos a favor do Estado ... as coisas, direitos ou vantagens” (artigo 110°, nº 1, do Código Penal e também no anterior art. 111º, n º 2 do C.P.. Em ambos os casos, o legislador utiliza uma formulação imperativa, que, reunidos os demais pressupostos legais, deve desencadear a respetiva consequência legal.
A lei não distingue: os artigos 110º e 111º do Código Penal, são claros, não excecionando nenhuma situação, nomeadamente aqueles casos em que a vítima (seja ela o Estado ou um particular) já dispõe de formas legais para recuperar os ativos de que foi privada. Por isso mesmo, uma vez que a lei não distingue, também nós não podemos distinguir: «Ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus». O julgador não pode sobrepor a sua interpretação à letra da própria lei, subvertendo o seu espírito e a sua ratio. Ao contrário de outros sistemas, que consagraram a preferência do pedido de indemnização civil ou de outras formas de ressarcimento sobre o confisco (de tal forma que havendo essa possibilidade abstrata não deverá haver declaração de perda), o legislador português, como resulta claramente do artigo 130º, n º 2 do Código Penal, deu preferência ao confisco enquanto manifestação do ius imperium estadual. Essas formas de reparação devem sujeitar-se ao confisco e não o contrário, devendo a articulação ser feita a posteriori.

Depois porque tendo o confisco uma finalidade preventiva, a omissão da sua declaração (a sua execução posterior já será outra coisa) frusta este propósito político-criminal e emite um sinal errado para a comunidade. É imprescindível que a sentença torne claro que o «crime não compensa». Se não for assim, se condenar o arguido, mas permitir que ele mantenha incólumes as vantagens decorrentes da prática do crime, estará a transmitir a comunidade um sinal contraditório e incompreensível. O veredictum tem este valor declarativo insofismável, fazendo ver a toda a comunidade quais as consequências da prática de crimes.
O mero valor pedagógico da decisão não é despiciendo, não podendo ser esquecido.
A questão da execução posterior dessa decisão é coisa muito diferente.
Como é evidente, esta decisão só poderá ser executada se, entretanto, os meios normais tiverem falhado. Só nesse caso, em conjugação com o ofendido, poderá o Ministério Público promover a sua execução. Não pode haver execução dupla do mesmo pedido, mas nada obsta à existência de vários títulos executivos relativos à mesma matéria. Nada impede que quem já dispõe de um título executivo, intente uma ação declarativa para obter outro [artigo 535°, nº 2, alínea c), do Código de Processo Civil.

Acresce que a possibilidade abstrata da instauração de uma execução ou mesmo de dedução do pedido de indemnização civil não constituem sempre formas suficientes para assegurar as finalidades subjacentes ao confisco. Desde logo, na medida em que a efetivação da responsabilidade depende não só do cumprimento da ortodoxia formal prevista pelo legislador, como do respeito pelo cumprimento de diversos prazos, nomeadamente de caducidade, prescrição. E para além disto, o recurso ao instituto da insolvência por parte do demandado impede o ressarcimento integral da indemnização, já para não contar com as situações em que o montante da indemnização pretendida pelo lesado nem sempre coincide com o valor da vantagem obtida em face do incremento patrimonial que posa ter sido gerado pela aplicação das vantagens obtidos pela prática do facto ilícito típico.
Acresce que o direito à indemnização, meso quando já se mostra judicialmente estabelecido, é livremente renunciável e negociável, o mesmo não acontecendo com medidas de carácter sancionatório preventiva, o caso da perda de vantagens, a qual é irrenunciável. Ver a propósito Ac RP de 22.02.17, proc. n º 2373/14.9IDPRT.P1 e de 26.01.22, proc.2769/16.1T9PRT.P1
Relativamente ao conceito de vantagem, não temos dúvidas que o valor de €1536,80, correspondente ao somatório das vendas e créditos obtidos pela arguida em consequência dos factos cometidos constitui logo uma vantagem do infrator.

Nestes casos, restará, pois, ao Estado (enquanto legítimo destinatário dos montantes) recorrer ao mecanismo ablativo do confisco das vantagens, previsto no artigo 110 e 111º do Código Penal, para, deste modo, demonstrando que o crime não compensa, assegurar o restabelecimento da ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito.
A existência de pedido de indemnização civil é, pois, irrelevante, sendo que no caso do confisco, ao contrário do pedido de indemnização civil, não estão incluídos os juros) obtendo em ambas as situações um mero título executivo, com inequívoco e imprescindível valor declarativo, mas que depois não pode usar, enquanto e se estiverem pendentes os mecanismos de cobrança já ou que venham a ser desencadeados.

É certo que durante décadas, apesar do ambicioso e pioneiro programa político criminal consagrado no artigo 111º do Código Penal, o Ministério Público não foi eficaz nesta matéria, consignando as vantagens da prática do crime na acusação e promovendo depois a sua perda. À medida que a importância da questão patrimonial vai crescendo no plano internacional será, pois, de esperar a alteração progressiva da
praxis nacional (alertando, justamente para a necessidade da alteração desta prática, cfr. Maria do Carmo Silva Dias, Enriquecimento ilícito/injustificado, Revista Julgar [2016], 28, p. 312, nota 67). No início (como agora acontece) esta prática poderá parecer bizarra ou estranha, a prazo, contudo, à medida que os operadores judiciários interiorizarem os mecanismos da recuperação de ativos, converter-se-á numa dimensão imprescindível da sentença penal. O crime não pode compensar e a sentença é o momento simbólico e ideal para o declarar.

E não se diga que, em abstrato, o Ministério Público «apenas deverá acionar o mecanismo da perda das vantagens adquiridas pelo agente através do facto ilícito típico que correspondam à prestação da obrigação de indemnização civil pela prática daquele facto quando o ofendido (o titular do interesse penalmente tutelado) se desinteresse pela mesma» Desde logo porque, como já referimos, a lei não distingue: os artigos 110º e anterior 111º do Código Penal não excecionam nenhuma situação, designadamente aqueles casos em que a vítima já dispõe de formas legais para recuperar os ativos de que foi privada (o que a lei diz é que não podem ser prejudicados os seus direitos). Depois, porque quando formula a sua pretensão confiscatória, o Ministério Público não sabe como é que o ofendido se vai comportar. Fazer depender essa aspiração da prévia comprovação do desinteresse do lesado será, pois, na esmagadora generalidade dos casos, condenar o confisco ao fracasso.
Para não prejudicar inalienáveis direitos de defesa (v.g. o contraditório) e a própria estrutura acusatória do processo penal, a pretensão confiscatória estadual terá que ser acionada antes, no momento em que, sem saber como se vai comportar a vítima, deduz acusação. Esperar pela manifestação processual do desinteresse do ofendido será tarde demais. Quando deduz acusação o Ministério Público deve, sob pena de contradição, tratar a questão penal e a questão patrimonial. Ambas são essenciais ao completo exercício da ação penal.
Aliás, se dúvidas houvesse, verifica-se que sua redação atual artigo 130°, nº 2, do Código Penal, refere, hoje, expressis verbis, o artigo 111° do mesmo diploma legal. Anteriormente a maio de 2017 remetia apenas para os artigos 109° e 110°. No entanto, não podemos retirar desta omissão a impossibilidade liminar de adjudicar ao lesado os bens declarados perdidos ou o produto da sua venda. Com efeito, é a própria norma que refere que pode ser entregue ao lesado o preço (isto é, a recompensa) ou o valor correspondente a vantagens provenientes do crime, indicando, claramente, que também elas estão incluídas. Se apenas estivessem em causa os instrumenta e producta sceleris (artigos 109° e 110º do Código Penal), o legislador ter-se-ia bastado com a primeira parte da norma, sem necessidade de acrescentar, expressamente, que também lhe pode ser entregue «o preço ou o valor correspondente a vantagens provenientes do crime, pagos ao Estado» (obviamente nos termos do artigo 111º do Código Penal).

O elemento histórico confirma esta tese decorrente da mera análise gramatical. Na versão original do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de setembro, o artigo 129º (atual artigo 130º) remetia para os artigos 107º a 110º, incluindo expressamente os instrumentos, os produtos, as recompensas e as vantagens da prática do crime. Com a reforma do Código Penal, operada pelo Decreto-Lei nº 30/2017, de 30 de maio, o legislador reformulou essa remissão (só se referia aos artigos 109º e 110º), mas manteve o corpo do artigo, continuando, como já referimos, a falar expressamente das vantagens enquanto todas as coisas, direitos ou vantagens económicas, diretas ou indiretas resultantes de facto ilícito e ainda de recompensas («preço»)(nº2 do atual 110º) e das vantagens pagas ou transferidas para o Estado por efeitos da perda. A vontade do legislador, embora porventura mal expressa, nunca foi excluir esta possibilidade, porque, se assim fosse, teria que a eliminar em ambos os casos (na referência expressa e na remissão para a norma legal).
A atual redação do 130º já inclui os arts. 109º a 111º do C.P.

Esta solução decorre, ainda, do elemento teleológico. Se o Estado pode utilizar os instrumentos e produtos que tenha confiscado para compensar o lesado, porque é que não há de fazer o mesmo com as vantagens? A compreensão unitária da natureza jurídica da perda dos instrumentos, produtos, recompensas e vantagens da prática do crime, preconizada por Jorge de Figueiredo Dias (Direito Penal Português As consequências jurídicas do crime, Lisboa, Aequitas/Editorial Notícias (1993), p. 628 e 638.) e subjacente àquela reforma aponta nesse mesmo sentido. Não há nenhuma razão lógica, teórica ou prática para separar as duas situações. Pelo contrário, a configuração da perda das vantagens como um mecanismo de restituição do arguido ao status patrimonial anterior à prática do crime e o seu montante, em regra, muito superior aos meros instrumentos e produtos, aconselha o mesmo tratamento legal. O legislador terá prescindido da remissão por entender que ela não era necessária. A referência à perda de bens do próprio (artigo 109º) ou de terceiro (artigo 110º) seria suficiente.

Para além de ser dogmaticamente insustentável, a impossibilidade de compensar as vítimas com as recompensas/vantagens confiscadas seria processualmente incongruente. Se no mesmo caso coexistirem instrumentos, produtos, recompensas e vantagens (como acontece frequentemente), os primeiros podem ser confiscados em benefício das vítimas e os segundos não, gerando uma situação processual de difícil gestão. A mesma questão é tratada de forma diversa, sendo essa solução dualista incompreensível para a comunidade. Num caso a perda prevalece sobre o pedido de indemnização civil; no outro, em tudo igual, não, levando à restituição das vantagens apreendidas nos termos do artigo 178°, nº 1, do Código de Processo Penal, em qualquer possibilidade de as afetar ao pagamento da indemnização civil arbitrada.

Justificar a rejeição da perda com a necessidade de evitar a proliferação de títulos executivos [artigo 535º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Civil] subverte a política criminal definida pelo legislador, esquece as singularidades destes títulos e que esse problema é resolvido a montante, em sede de execução. O exequente não pode cobrar duas vezes a mesma quantia e, se o tentar fazer, deverá ser processualmente responsabilizado e o seu pedido indeferido. Na fórmula de Alberto dos Reis: «a eficácia do título executivo significa apenas isto ... pelo facto de ser portador legítimo do título o credor tem o direito de pôr em movimento a sanção executiva, isto é, de promover os atos necessários para que a execução atinja o seu fim. Mas a eficácia é meramente processual e não pode prevalecer sobre a eficácia substancial da relação jurídica subjacente, de sorte que se o executado demonstrar, no processo de oposição, que o direito de crédito, cuja existência o título faz supor, não existe na realidade, a eficácia do direito cai, é submergida e vencida pela supremacia da relação jurídica substancial» (Processo de execução, Coimbra, Coimbra Editora (1985), I, p. 119/20).
É por isso mesmo, porque não pode ser executada duas vezes (sob pena de se modificar a natureza jurídica do confisco: em vez de colocar o arguido no status patrimonial anterior à prática do facto ilícito típico seria um mecanismo de redução do seu património lícito) que Jorge de Figueiredo Dias refere quer nesses casos, decretar o confisco poderá não ter utilidade. Da sua asserção não se pode, todavia, retirar que o confisco cessa quando existe um pedido de indemnização civil, mas apenas que «poucas serão as hipóteses em que a perda das vantagens poderá ser decretada utilmente» (Direito Penal Português…, p. 633). O que não significa, por exemplo, que não tenha já relevância (teórica) ou que não possa vir a ganhá-la no futuro (v.g. porque o título executivo já existente prescreveu entretanto ou por inexistência de bens no momento).
E não se diga também quer em face da posição da ofendida, o Ministério Público deverá abster-se de formular um pedido de indemnização civil, mas também qualquer outra pretensão confiscatória estadual. Na verdade, por força do princípio da legalidade (artigo 219° da CRP) o Ministério Público deve promover e o juiz (reunidos os respetivos pressupostos legais, é claro) deve declarar perdidos a favor do Estado as vantagens decorrentes da prática do crime. O confisco ainda faz parte do multiversum que constitui o exercício do ius puniendi estadual, não havendo aqui nenhum poder de oportunidade (ou discricionariedade) na sua declaração. Ao contrário do pedido de indemnização civil, o Ministério Público não goza de qualquer discricionariedade na promoção da perda dos instrumentos, produtos, recompensas e vantagens decorrentes da prática do crime. O Ministério Público age por direito próprio, exercendo o ius puniendi estadual no interesse supra individual da comunidade e não em representação de qualquer vítima, cuja posição subjetiva não merece tutela processual. Se o objeto do processo for indisponível também o confisco será indisponível.
No caso de haver condenação no pedido cível, a perda de vantagens consubstancia uma específica e excecional subsidiariedade entre os dois institutos, no sentido de constituir uma reserva para o caso do pedido de indemnização cível não ser executado por qualquer razão, tendo sempre o carácter de reforçar a procedência do pedido cível visto que além dele tem uma autónoma função de dar um sinal relevante à comunidade de que o crime não compensa.

Perda de vantagem deve ser sempre decretada, embora sem prejuízo do que o ofendido consiga obter em termos de pagamento no âmbito do pedido cível que efetuou e foi procedente.

Pelas razões acima enunciadas entendemos que o recurso interposto pelo Ministério Público é de proceder.
No mesmo sentido Ac. RP de 12.07.17, AcRP de 26.10.17, AcRP de 12.09.18, AcRP de 24.10.18 e ainda AcRP de 31.05.17 e ainda “O confisco das vantagens e a pretensão patrimonial da Autoridade Tributária e Aduaneira nos crimes tributários” de João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues in Julgar online, janeiro de 2017.

E ainda aquilo que já tivemos oportunidade de referir no voto vencido no proc. 1325/17.1T9PRD.P1 de 30/04/2019 e que aqui se transcreve:
1. Vantagem, para nós, será tudo aquilo com que, no caso, o autor do facto ilícito típico criminal se locupleta indevidamente por ter praticado esse ilícito criminal e que possa ser economicamente avaliado – João Conde, Apreensão ou arresto preventivo dos proventos do crime, R. P. C. Criminal, 25 (2015), página 516.
Quem recebe uma quantia que não lhe pertence e lhe dá um qualquer destino que não seja a entrega ao legítimo titular, apropria-se desse valor e assim enriquece, obtendo uma vantagem.
Num crime de abuso de confiança, quem recebe uma quantia em dinheiro de uma pessoa para entregar a um terceiro e se apropria da mesma, dando-lhe o destino que entender (ou, pelo menos, desde que se prove que não entregou o dinheiro a esse terceiro e lhe deu outro uso, ainda que não concretamente apurado qual tenha sido – Ac. da R. L. de 19/05/2015, www.dgsi.pt), apropria-se ilegitimamente da quantia e, com essa apropriação, obtém uma vantagem, medida desde logo pelo valor que não entregou ao terceiro (mesmo que entregue a quantia a terceiro a título gratuito, obtém essa vantagem de poder proceder a essa entrega, por esse valor, à custa do proprietário).
Pode ter outras vantagens- adquiriu um bem com esse dinheiro, investiu-o obtendo proventos, ... - mas o primeiro benefício que obtém é o apropriar-se do valor não entregue.
2. Pensamos que a visão mais correta é aquela que defende que a perda das vantagens quando não é possível recuperá-las em espécie pode ser decretada pelo tribunal tenha ou não sido formulado pedido de indemnização civil pelo Estado, intervenha ou não o M.º P.º a defender os interesses civilísticos da A. T./ISS quando está em causa a apropriação de valores tributários.
A decisão de perda de vantagens é uma consequência necessária da prática de um facto ilícito criminal visando conseguir a maior reconstituição da situação do seu autor antes da sua prática, ou seja, sem ficar com qualquer benefício da prática do crime.
A referência a «prática de ilícito criminal» tem por base a ideia de que pode haver situações em que, não havendo crime e consequente condenação, pode ser decretada a perda das vantagens (por exemplo, o arguido falece no decurso do processo sem haver julgamento podendo ainda assim os autos prosseguirem para aferir da perda conforme se clarificou no atual artigo 110.º, n.º 5, do C. P.).
Mas, seja o arguido condenado (como no caso presente) seja apenas concluído que está em causa um facto ilícito típico e a obtenção de vantagens indevidas, esta conclusão assenta em juízos de índole criminal, havendo que aferir se se preenche a factualidade de um crime e daí concluir que as vantagens que advieram dessa prática são também elas ilícitas.
A ideia de evitar que o agente do facto ilícito típico não tenha qualquer vantagem com a prática do crime tem de assentar na intenção do M.º P.º em pedir essa perda de vantagem por ser o titular da ação penal – artigo 48.º, do C. P. P. -, e do tribunal por ter de apreciar o pedido e aferir qual deve ser a situação patrimonial do arguido (no caso) que deve ser reposta.
Naturalmente que o efeito prático de o demandado cível ser condenado a pagar ao Estado a quantia em que lesou o demandante cível Estado também se reflete em o demandado perceber que «o crime não compensou» pois acabou por ter de indemnizar o ofendido.
O tribunal não se deve impressionar com esta situação que lhe é alheia; se é feito um pedido de perda de vantagens pelo M.º P.º, tem de o apreciar por que efetuado por quem tem legitimidade, estar legalmente previsto e assim decidi-lo para cumprir na totalidade a decisão que abarca todos os efeitos da prática do facto ilícito típico.
Só se houver prova de que o aqui ofendido já foi ressarcido, é que tal perda não pode ser decretada por que se tornou inútil (originariamente se ainda não tinha sido efetuado o pedido, supervenientemente se já tinha sido formulado).
Aí, como em qualquer pedido, se o fim foi atingido, a respetiva «instância» tem de ser julgada extinta, tal como sucede quando ocorre o cumprimento de uma pena criminal.
3.O artigo 130.º, n.º 2, prevê que o lesado pode pedir ao Estado que lhe entregue as quantias obtidas a título de vantagens (aí se incluindo o artigo 111.º), para ressarcir o seu dano; ora se o ofendido/lesado declarara que não o pretendia e se este é o Estado, poderia concluir-se que então não haveria motivo para a perda a seu favor pois quem podia beneficiar dessa perda não pretende esse mesmo benefício.
Não é essa a nossa posição já que, mesmo que o Estado, na vertente tributária, demonstre que ou quer atuar sozinho ou não pretende reaver a quantia, na vertente penal a questão continua a ter interesse para que o agente (e a comunidade) entenda que não pode ter o agente qualquer benefício com a sua atuação ilícita.
Se a A. T/Segurança Social., como no caso, está interessada no ressarcimento da quantia ou então é deduzido pedido de indemnização civil, e também é efetuado um pedido de perda de vantagens, «apenas» há que apreciar as duas vertentes desse pedido.
Pode haver uma repetição de finalidades – ressarcimento do lesado e restituição da situação patrimonial do agente do crime ao momento anterior à sua prática -, mas com natureza diferente sendo que a vertente cível não substitui a vertente criminal, ou seja, a finalidade da prevenção criminal (geral e especial) foi reservada pelo legislador ao instituto da declaração da perda de vantagens e não ao pedido de indemnização civil, ainda que este possa vir, na prática, a obter um resultado semelhante (o que vimos referindo segue o mencionado nos Acs. da R. Guimarães de 14/01/2019, 22/03/2017, e 31/05/2017, 2019/04/11(Processo n.º 360/17.4IDPRT.P1.) da R. Porto, www.dgsi.pt; no Ac. da R. P. de 22/03/2017 foi proferido voto de vencido onde se conclui que os casos em que, nos crimes tributários, a vantagem corresponda integralmente à obrigação fiscal incumprida e à obrigação de indemnização civil decorrente da prática do facto ilícito típico, apenas pode/deve ser decretada a sua perda se o titular dos danos causados pelo mesmo (a Autoridade Tributária e Aduaneira) se desinteressar pela reparação do seu direito, casos que em a declaração de perda de vantagens, de forma necessária, proporcional e adequada, acautela as finalidades preventivas que a originaram), visão que não é a nossa.
O que sucede é que o Estado não pode receber duas vezes a mesma quantia atenta a coincidência de credor e prestação.
Se o arguido condenado a pagar o valor da vantagem que auferiu, cumpre essa obrigação, a vantagem foi recuperada pelo Estado e, ao mesmo tempo, obtém o pagamento da quantia eventualmente peticionada em sede cível, impossibilitando por exemplo a fase executiva ou impossibilitando ou fazendo cessar as diligências de pagamento do imposto pela A. T..
Se o demandado cível paga o valor em foi condenado em sede cível, a condenação no pagamento das vantagens que tinha auferido tem de se entender como cumprida e assim extinta.
Como refere Germano Marques da Silva, in Direito Penal Tributário, página 142: «e se a vantagem obtida corresponder integralmente ao imposto em dívida? Parece-nos que mesmo neste caso o tribunal deve condenar na perda de vantagem correspondente, ainda que se entretanto tiver sido pago o imposto em dívida deva considerar não haver já lugar à condenação por essa vantagem pertencer ao Estado a título de imposto já cobrado. …».
Não compete ao tribunal, de primeira instância ou de recurso fixar ressalvas sobre que direitos não podem ser prejudicados com esta perda nem como devem ser reduzidos pagamentos; essas questões terão que ser atendidas no momento próprio (na decisão em primeira instância ou em sede de recurso se já tiverem ocorrido pagamentos ou em execução se ocorrerem depois daquelas decisões) e sempre sem prejuízo de direitos legalmente conferidos não havendo que o declarar.

Consequentemente, forçosa é a conclusão que a decisão recorrida não pode subsistir no segmento impugnado, impondo-se a revogação e o decretamento da perda a favor do Estado da vantagem patrimonial, no valor de €1.536,80.

Decisão

Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto conceder provimento ao recurso do Ministério Público e decretar a perda a favor do Estado da vantagem patrimonial resultante do crime cometido pela arguida AA condenando-a no pagamento ao Estado do valor de €1.536,80, correspondente ao somatório das vendas e créditos obtidos pela arguida em consequência dos factos cometidos ao praticar os crimes pelos quais foi condenada, sem prejuízo dos direitos das ofendidas e da dedução do montante de eventuais pagamentos por conta da condenação cível que a arguida já lhes tenha ou venha a realizar, não podendo o Estado obter duplo pagamento da quantia em causa.

Sem tributação.

Sendo o recurso do Ministério Público julgado provido, sem oposição do arguido, não há lugar à sua tributação (artigo 513º, 1, in fine et a contrario sensu do Código de Processo Penal).

Sumário:
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Porto, 19 de abril de 2023.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)

Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha