Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9734/11.3TBVNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA DIAS DA SILVA
Descritores: EXECUÇÃO
OPOSIÇÃO
CONTRATO DE CRÉDITO
NULIDADE DO CONTRATO
DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
DAÇÃO PRO SOLVENDO
Nº do Documento: RP201411119734/11.3TBVNG-A.P1
Data do Acordão: 11/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não tendo o vendedor que contratou com e executado a celebração da proposta de financiamento em apreço, data em que este a assinou, entregue ao executado uma cópia ou exemplar dessa proposta, foi violado o disposto no art.º 6.º n.º1 do DL 359/91, de 21.09, o que ao abrigo do que preceitua o art.º 7.º n.º1 do mesmo diploma legal, implica a nulidade do contrato.
II – Age em abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium” o executado/apelante que depois de ter cumprido o contrato durante quase de dois anos, e mesmo quando já em incumprimento quanto às obrigações decorrentes do contrato assumido, quando interpelado pela exequente para cumprir, nada fez, pelo que só agora (em sede de oposição à execução) vem invocar a nulidade por violação do dever de entrega de um exemplar à data da assinatura, não está a actuar como uma pessoa de bem, honestamente e com lealdade, mesmo que disso não tenha consciência.
III - In casu” o executado/apelante poderia opor à exequente a excepção material do preenchimento abusivo da livrança exequenda. Mas para se poder aquilatar se ocorreu na realidade violação do pacto ou convenção de preenchimento, incumbia ao executado/apelante, além do mais, alegar que subjacente à entrega da livrança em branco, existia uma determinada convenção de preenchimento, que a exequente ao completar o preenchimento do título havia violado e não o fez.
IV - As cláusulas gerais contratuais apenas são consideradas integrantes do contrato desde que a respectiva aceitação pelo aderente, tenha sido precedida da sua comunicação informada (integral e adequada) por parte de quem propõe tais cláusulas, cfr. art.ºs 4.º, 5º e 6º do DL 446/85 de 25.10
V – Tendo o executado/apelante aposto a sua assinatura imediatamente a seguir à declaração de que “(…) declara conhecer todas as condições e cláusulas do presente contrato de crédito (composto pelas presentes Condições Particulares e pelas Condições Gerias constantes do verso ou de anexo ao presente documento), sobre as quais foi devidamente informado, tanto por lhe ter sido dado a ler, como por lhe ter sido fornecido um exemplar do mesmo no momento da sua assinatura”, não pode vir alegar que a desconhecia porque está aposta imediatamente antes da sua assinatura (e se não a leu sibi imputet, é falta de diligência sua), onde se incluía, sob a cláusula 10.ª, consistente no mandato de preenchimento da livrança assinada e entregue à exequente em branco.
VI - A dação em cumprimento ou “datio in solutum” consiste na realização de uma prestação diferente da que é devida, com o fim de, mediante acordo do credor, extinguir imediatamente a obrigação, cfr. art.º 837.º do C.Civil. A dação “pro solvendo” é uma dação em cumprimento condicional; há uma efectiva substituição da prestação no cumprimento, mas a extinção da obrigação só se opera caso o credor realize o valor correspondente ao montante da prestação a que tinha direito e na medida em que o realize.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação
Processo n.º 9734/11.3 TBVNG-A.P1
Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia – Juízo de Execução
Recorrente – B…
Recorrida – C…, SA
Relatora – Anabela Dias da Silva
Adjuntos – Desemb. Ana Lucinda Cabral
Desemb. Maria do Carmo Domingues

Acordam no Tribunal da Relação do Porto (1.ªsecção cível)

I – Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que C…, SA intentou no Juízo de Execução de Vila Nova de Gaia contra B…, veio este deduzir oposição à execução e à penhora.
Alegou, para tanto, a nulidade do contrato por omissão da obrigação de entrega no momento da respectiva assinatura e invocou a excepção do preenchimento abusivo com fundamento na falta de um pacto de preenchimento que o sustente e ainda a exclusão da cláusula prevista no contrato por incumprimento dos deveres de comunicação e informação e, por último, sustenta que o veículo foi entregue a título de dação em cumprimento.
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Notificada a exequente veio esta contestar, pedindo a improcedência da oposição e a condenação do opoente como litigante de má-fé.
Para tanto, impugnou cada um dos fundamentos da oposição, sustentando a sua improcedência.
O opoente exerceu o contraditório relativamente ao pedido de condenação como litigante de má-fé.
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Foi proferido despacho-saneador, com dispensa da elaboração da base instrutória.
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Procedeu-se ao julgamento da matéria de facto com gravação em sistema audio dos depoimentos aí prestados, após o que foi proferida decisão sobre a mesma, sem censura das partes.
Por fim foi proferida sentença que: - “julgou a oposição à execução e à penhora improcedentes, determinou o prosseguimento da execução e mantenho a penhora sobre o salário do executado.
Absolveu o opoente do pedido de condenação como litigante de má-fé”.
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Não se conformando com tal decisão, dela veio o executado/opoente recorrer de apelação pedindo que a mesma seja revogada e substituída por outra que julgue a oposição à execução e à penhora totalmente procedente, por provada.
O apelante juntou aos autos as suas alegações que terminam com as seguintes e manifestamente prolixas conclusões:
– Questão prévia: da nulidade
1- A sentença recorrida, não faz qualquer referência ao invocado pelo apelante, relativamente à justeza do valor de venda de veículo de matrícula ..-..-XS, promovida pelo apelado, na hipótese – que não se concede – de se considerar que sua entrega pelo executado foi efectuada a título de datio pro solvendo, desconsiderando o que aí se pretendia fazer valer.
2- Não obstante o Tribunal referir que a adequação do preço consiste num facto que não está em causa por não ter sido alegado, a verdade é que as alusões – na oposição deduzida – a esse facto são várias, como decorre do alegado nos arts. 97.º, 104.º a 106.º, 107.º a 112.º, como seja que “o eventual valor atribuído pela exequente ao bem que lhe foi entregue […] é de tal modo baixo, que é legítimo ao executado questionar a boa-fé e a diligência usada pela exequente, para a atribuição do mesmo.”.
3- O apelante alegou que a venda do veículo automóvel não se verificou por um preço justo e adequado ao seu valor intrínseco, não tendo a exequente justificado a diligência por si assumida em tal desígnio, como – nesta hipótese que se analisa – contratualmente estaria obrigada, e do qual objectivamente resulta um valor de venda consideravelmente inferior ao valor médio de mercado de um bem similar.
4- Como a douta sentença recorrida nenhuma referência faz quanto ao requerido e invocado a este título, considera o apelante que a mesma padece de ausência de fundamentação e de pronúncia, o que configura fundamento de nulidade, nos termos do disposto no art. 668.º, n.º 1, al.ªs b) e d) C.P.C., que se invoca.
– Da matéria de facto
5- Salvo o devido respeito, pensa o recorrente que o Tribunal a quo não atendeu – nem valorou adequadamente – todos os elementos de prova constantes dos autos, razão pela qual não se conforma com a sentença proferida e impugna a decisão sobre os concretos aspectos da matéria de facto.
6- O alegado a 3.º da oposição deduzida, atenta a ausência de impugnação expressa, deve ser considerado como admitido por acordo e, consequentemente, passar a constar da matéria de facto dada como provada.
7- O alegado a 21.º da oposição deve constar da matéria de facto dada como provada – designadamente, que o veículo foi entregue ao executado a 07-05-2007 – já que, não obstante se considerar que “não pode o mesmo ser julgado provado com base no documento invocado, dado tratar-se de uma factura, sem qualquer menção à entrega”, efectivamente consta desse documento [Doc. 2 do apelante] que “Os artigos e/ou serviços constantes deste documento foram postos a disposição do cliente em: 07-05-2007”.
8- Quanto à credibilidade atribuída às duas testemunhas, é evidente a preferência do Tribunal a quo pela produção lida da prova testemunhal, ao invés da imediação que da mesma deve resultar.
9- Se é certo que – como transparece da douta sentença proferida – o afecto conjugal é, ab initio, o bastante para afectar a credibilidade da testemunha apresentada pelo Apelante, questiona-se como – numa similitude de entendimento – o afecto – pelo menos – patrimonial que liga a testemunha D… – “…funcionário da exequente…” – a esta, permite conclusão oposta, em afrontamento das regras da experiência comum e do normal acontecer.
10 O conhecimento de causa que a testemunha da exequente manifestou decorre – como reconhece o Tribunal a quo – “da “instrução” do processo […] que consultou, enquanto pasta com documentos internos, durante o seu depoimento”.
11- “O Facto de o veículo estar danificado por ter sofrido um acidente” encontra-se contraditado do que se extrai do doc. n.º 4 do apelante – aceite pela exequente [art. 103.º Contestação] e elaborado por um funcionário de uma entidade contratada por esta para a recepção de automóveis – onde apenas consta aposta uma cruz, no campo destinado ao “Estado da viatura”, no item “pequenos riscos”, para além de inexistirem outros elementos que permitam concluir que tais eventuais danos possam ter surgido quando aquele possuía o veículo, pelo que deve ser aditado ao ponto 12 da matéria dada como provada o estado da viatura, como estando em – pelo menos – normal e adequada condição, salvo “pequenos riscos”.
12- Não obstante o depoimento testemunhal seja caracterizada pela imediação e oralidade – em que compete ao julgador, perante a testemunha, aferir da veracidade e/ou credibilidade dos conhecimentos de ciência pessoal, obtidos por contacto directo, acerca dos factos respectivos – a testemunha da exequente, com a conivência do Digníssimo Tribunal, assumiu as vestes de leitor de uma realidade, que não presenciou, alegadamente plasmada na pasta com documentos internos, que consultou durante o seu depoimento, sem que se saiba que documentos são esses, qual a sua origem, conteúdo, data,
13- E sem que quem quer que seja tenha tido a possibilidade de sobre eles se pronunciar, seja em termos de admissibilidade, seja em termos do mais elementar princípio do contraditório [art. 3.º, n.º 3 C.P.C.], enquanto direito constitucionalmente consagrado [art. 20.º C.R.P.].
14- Veja-se, e.g., que “no que respeita à concretização das datas [de alegadas chamadas telefónicas] a testemunha referiu-se às dadas como provadas na alínea 19), relativamente às quais concretizou o seu teor pelo confronto com o dossier interno da exequente”.
15- Ora, não é possível conjecturar crédito num depoimento de uma testemunha não presencial, que resume a sua ciência sobre os factos à leitura de documentos de todos desconhecidos, carentes do imprescindível crivo da contrariedade e com um alegado valor que, só por mero acto de fé, se pode atribuir, em termos tais que qualquer que fosse o leitor, sempre a proficuidade estaria garantida em proveito da exequente, motivo pelo qual se deixa impugnado tudo quanto dele decorra, por violação de lei [arts. 3.º, n.º 3 e 638.º, n.º 1 C.P.C., 20.º C.R.P.], com as devidas e legais consequências, como seja, a matéria de facto dada como provada sob os n.ºs 14, 15, 16, 17, 18, 19 e 20, que não se pode manter.
16- O Tribunal a quo desvalorizou ainda os documentos de fls. 97 e 99 – juntos pelo apelante para demonstrar que o valor de venda do veículo automóvel promovida pela exequente se encontra fatalmente distante do valor médio de mercado de um bem similar – “porquanto se trata de uma página de anúncios (valores pedidos pelos vendedores) e não pelos quais tais veículos foram efectivamente vendidos (valores de compra no mercado) e de tabelas de preços de desvalorização de veículos para efeito de actualização de prémios de seguros.”.
17- O valor pedido por um vendedor de automóveis é, em regra, o valor médio de mercado dos mesmos, resultando dos documentos juntos a média aritmética dos preços ali constantes como o valor de mercado de uma viatura similar – sob pena de só com facturas de compra e venda tal se conseguir demonstrar, num ónus de obtenção que, cremos, excede a normalidade do acontecer – e em que as tabelas de desvalorização visam demonstrar o percentual a subtrair ao valor patrimonial primário do veículo, na devida proporção da sua idade, às quais – por coincidirem com o coeficiente de desvalorização estatuído na Lei nº 22-A/2007 – não se pode senão reconhecer intrínseco valor,
18- Donde se impugna a desvalorização propugnada, devendo ditos documentos serem criticamente analisados e dar-se como provado que o veículo automóvel foi vendido por um valor de cerca de metade do valor médio de mercado de um bem similar.
19- Não obstante constar do ponto 20 da matéria de facto dada como provada que “O executado nunca manifestou quaisquer dúvidas, renitências ou discordâncias relativamente ao montante em dívida ou ao teor do contrato celebrado.”, o doc. 4 da exequente – como resposta formal da exequente a um conjunto de dúvidas telefonicamente expostas pelo apelante, seja sobre o preenchimento da livrança, valor e data, seja sobre o destino dado à viatura entregue – pressupõe conclusão distinta: “Conforme solicitado por V.Exa. no decorrer da nossa conversa telefónica, somos a remeter em anexo conforme solicitado […] Caso entenda necessário quaisquer outros esclarecimentos […]”,
20- O que é altamente sugestivo de que alguns esclarecimentos foram efectivamente solicitados, para algumas das dúvidas, renitências ou discordâncias que apoquentavam o apelante, motivo pelo qual se impugna dito facto dado como provado – com as devidas e legais consequências – que assim não se pode manter.
– Do direito
21- Com o devido respeito, somos da modesta opinião que o Tribunal recorrido não ponderou adequadamente a aplicação do direito ao caso em concreto, essencialmente no que tange às questões invocadas em sede de oposição apresentada, ou seja:
-da nulidade decorrente da falta de entrega de um exemplar do contrato no momento da sua assinatura;
-da excepção de abuso de preenchimento;
-da dação em cumprimento.
22- No que concerne à primeira questão, o Tribunal a quo, não obstante considerar que a invocada nulidade se verifica, entende que a sua arguição – numa fase avançada do plano contratual e perante uma situação de incumprimento – redunda num exercício abusivo do direito – na modalidade de suppressio – pois conclui – atentos os factos 16 a 20 provados – que o apelante jamais manifestou interesse em resolver o contrato em data anterior à da instauração da presente lide, quando o exemplar do contrato de crédito se encontrava na sua posse por um período de quase 2 anos.
23- A matéria de facto que constitui o alicerce do expendido foi impugnada pelo apelante, pelo que – consequentemente – não lhe pode ser atribuído dito valor, para além de inexistirem quaisquer factos – alegados, e muito menos, provados – de que alguma vez aquele tenha prescindido do exercício dos seus legítimos direito.
24- No caso vertente, não há dúvida que, no momento da assinatura pelo apelante, não lhe foi entregue um exemplar da proposta contratual – vide matéria de facto dada como provada, sob os pontos 6, 7 e 8 – pelo que andou bem o Tribunal a quo ao considerar verificada a nulidade invocada – nos termos das disposições conjugadas dos arts. 6.º e 7.º D.L. n.º 359/91 – sem prejuízo de não se partilhar do entendimento de que dita invocação consubstancia um exercício abusivo do direito.
25- A ratio que subjaz ao Decreto em apreço – que faz depender a validade de um contrato da verificação de um determinado formalismo, que estatui – não pode deixar de ser o conhecimento pelos consumidores do clausulado ao qual, as mais das vezes, se limitam a aderir, sem poder decisório e/ou de mutação do seu conteúdo.
26- O apelante – enquanto consumidor – viu-se impossibilitado de, até ao momento da recepção do exemplar da proposta contratual, analisar as disposições estipuladas – igualmente desconhecidas, dado que a relação negocial foi desenvolvida entre aquele e um vendedor automóvel sobre o qual não se logrou provar a “habilidade técnica para explicar não só a questão do aval como todo o clausulado contratual” [vide art. 40.º contestação] e que se resumiu a uma outorga, acompanhada da entrega de cópias de diversa documentação pessoal, de uma proposta de financiamento, na qual apenas o valor e o número de prestações mensais chegou a ser discutido – e de exercer o seu direito ao arrependimento nos 7 dias úteis a contar da assinatura da mesma [art. 8.º D.L. n.º 359/91].
27- Os interesses do consumidor – prevalecentes no espírito do mencionado diploma regulamentador do crédito ao consumo – não podem ficar dependentes das conveniências burocráticas ou organizacionais do credor, nem é esse o espírito que presidiu o legislador aquando da criação da norma, donde a não entrega do exemplar do contrato constitui nulidade que se interliga com o direito ao arrependimento – art. 8.º, n.º 1 DL. N.º 359/91, que mais não é do que um direito potestativo que pode ser exercido ad nutum – imotivadamente – e que se relaciona, também, com o direito à informação [art. 5.º e 6.º D.L. n.º 446/85].
28- Só de posse do exemplar do contrato pode o consumidor inteirar-se do seu conteúdo, sopesar as vantagens e desvantagens do contrato, ajuizar da informação prestada pelo proponente, dissipar dúvidas e assegurar-se da transparência da negociação – quer se trate de uma proposta de contrato, quer de um contrato já concluído.
29- A posterior remessa de um exemplar do contrato – a qual se verificou para além do prazo estatuído para o exercício do direito ao arrependimento, vide pontos 6, 7 e 8 provados – não cumpre os desígnios legais estabelecidos, porquanto desprotegeria o aderente, devendo considerar-se que, se o proponente não assina o contrato no momento em que o aderente o faz, igualmente incumprida fica a obrigação de informação, insanável a posteriori com o cumprimento da formalidade omitida – para além da violação do direito de reflexão legalmente concedido ao aderente.
30- Como escreve Gravato Morais: “…se se entendesse que a entrega posterior sanasse a invalidade, esta seria uma forma expedita e eficaz (do ponto de vista do credor) de ultrapassar a exigência legal. Nesta hipótese, o consumidor poderia até invocar o instituto da fraude à lei (art. 19.º DL 359/91)”.
31- A exequente, podendo, não quis, nem logrou respeitar este ónus que sobre si impende, preferindo manter-se alheia, como um terceiro elemento, seja na fase da negociação, seja na da elaboração do contrato, não podendo deixar de assumir, como tal, as respectivas consequências.
32- Apesar de não ter contribuído para dito incumprimento, o Tribunal recorrido entende que quem exerce abusivamente o direito é o apelante – a quem nada de nada foi explicado no momento da formação da vontade ou posteriormente – por considerar que este jamais pretendeu resolver o contrato ou colocar em causa a sua validade – acrescentamos, sem elementos de prova que o sustentem – e que apenas numa situação de incumprimento e de cobrança coerciva convoca o presente meio de defesa, em que a gravidade da violação da norma é a menor, ou seja, a decorrente da falta de entrega no momento da assinatura e não de total falta de entrega.
33- Este último critério é irrazoável e inócuo perante o instituto de protecção do consumidor em que se insere, dado que o legislador – presumindo-se que consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados – certamente que não pretendeu acautelar o conhecimento prévio e/ou contemporâneo de um determinado clausulado – a que um consumidor adere – a um momento posterior à formação da vontade respectiva – senão onde se lê “sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura”, ler-se-ia “sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura ou em momento posterior.
34- A ser como o Tribunal propugna, certamente que o legislador não teria cominado o seu incumprimento com a mais grave das sanções, a nulidade, sendo certo que apenas nesta sede poderia o apelante invocá-la – o que pode fazer a todo o tempo [art. 286.º C.C.] – que carece de ser judicialmente declarada, não se compreendendo quais as circunstâncias e qual o lapso de tempo em que, então, tal invocação seria legítima, tanto mais quando sustenta a jurisprudência que “Com base na figura do abuso de direito jamais se pode coarctar a possibilidade de a parte interessada e legítima invocar a nulidade de um contrato que se encontra afectado de tal vício”.
35- Na ponderação de saber se houve abuso do direito, o Tribunal deve actuar com prudência quando se está perante uma relação de consumo, onde é patente a desigualdade de meios, cabendo-lhe aferir, entre o financiador e o consumidor, se aquele, ao actuar como actuou, prevalecendo-se de superioridade negocial em relação a quem recorreu ao seu crédito, não infringiu ele mesmo, em termos censuráveis, os deveres de cooperação, lealdade e informação – em suma, o princípio da boa-fé.
36- Sopesada a gravidade do comportamento da exequente – profissional no mercado de crédito, com o arsenal de meios logísticos, marketing e publicidade, de que dispõe – perante o apelante – a parte mais fraca no contexto negocial – outra não pode ser a conclusão senão no sentido de que não exprime abuso do direito a invocação da nulidade, por não ser clamorosa e chocantemente violadora das regras da boa-fé.
37- Não fora a omissão da exequente, incompatível com a ponderação e salvaguarda dos direitos do apelante – enquanto consumidor – não poderia este invocar a nulidade do contrato, motivo pelo qual a sua pretensão não pode ser paralisada pelo abuso do direito – tanto mais quando é consabido que nas relações de consumo a regra é a protecção do consumidor – já que só deve ser desconsiderada, em casos de conduta – a todos os títulos – censurável e injustificada, com grave prejuízo da contraparte, o que aqui não é evidente, nem se mostra minimamente indiciado nesta lide.
38- Atente-se que apenas estaremos numa situação de abuso do direito se/quando alguém, embora legítimo detentor de um determinado direito, formal e substancialmente válido, o exercita circunstancialmente fora do seu objectivo ou da finalidade que justifica a sua existência, em termos que ofendam, de modo gritante, o sentimento jurídico, seja criando uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito e as consequências a suportar por aquele contra quem é invocado, seja prejudicando ou comprometendo o gozo do direito de outrem – tudo circunstâncias que, in casu, não se verificam, pelo menos decorrentes da conduta do apelante.
39- Traduzindo-se a modalidade de abuso de direito invocada pelo Tribunal numa omissão, a sua caracterização – por força da ratio do instituto a que pertence – demanda a verificação de outros elementos complementares que a sentença recorrida nem sequer integra para comprovar a admissibilidade do seu entendimento – situação de confiança, justificação para essa confiança, investimento de confiança e a imputação da confiança ao não-exercente e a omissão do titular do direito, por via desse nexo de imputação da confiança.
40- Jamais o apelante criou a convicção na exequente de que não iria invocar a presente nulidade, nem tal está minimamente indiciado, alegado ou provado, nem pode ser retirado do cumprimento do contrato, nem a presente invocação de nulidade causa maiores desvantagens para esta caso tivesse sido invocada anteriormente, para além de inexistirem em concreto os demais elementos complementares expostos.
41- Seria um completo contra-senso que quem concomitantemente incumpre com a sua obrigação de entrega de um exemplar do contrato aquando da sua outorga e de comunicação e informação do clausulado respectivo – o que ainda é mais censurável atenta a qualidade de profissional de concessão de crédito que a exequente assume – não estivesse à espera que lhe fosse imposta a cominação do seu próprio e consciente incumprimento.
42- Para assim não ser, bastaria à exequente ter diligenciado pela efectiva e completa informação e comunicação ao apelante do clausulado adstrito ao contrato a celebrar, com entrega, no acto, de um exemplar do mesmo, motivo pelo qual, abstendo-se conscientemente da conduta ora descrita, não pode senão assumir o risco inerente, sob pena de se esvaziar o que subjaz à criação do instituto sobre o qual nos debruçamos.
43- Nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.01.2010: “Se o legislador pretendesse a sanação do vício pelo decurso do tempo tê-lo-ia provavelmente sancionado com a anulabilidade, como fez para os casos previstos no n.º 2 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 359/91. […] haveria de ter sido alegada e provada matéria de facto que permitisse concluir que o não exercício anterior do direito de invocar a nulidade por falta de entrega oportuna de um exemplar da proposta de contrato tinha sido acompanhado de uma actuação dos consumidores apta a, objectiva e justificadamente, criar na recorrente a confiança de que a nulidade não seria suscitada”.
44- Quer o regime da nulidade, quer o abuso do direito, têm uma natureza de protecção de ordem pública, pelo que nenhuma pode ser usada como forma de inviabilizar a invocação da outra, em que aquela tem uma natureza muito especial de protecção dos consumidores, pelo que permitir a sua neutralização através da figura do abuso do direito – nos termos invocados – seria manter-se o risco que o legislador pretende evitar, para além de que ficaria praticamente sem campo de aplicação o normativo sancionatório em apreço.
45- Então, ao decidir-se como se decidiu, violaram-se os normativos indicados – arts. 6.º, 7.º e 8.º D.L. n.º 359/91, 5.º e 6.º D.L. n.º 446/85 e arts. 286.º e 334.º C.C. – motivo pelo qual deve a decisão proferida ser substituída por uma outra que declare a invocada nulidade, sem que a tal exercício possa ser oponível o abuso do direito.
46- O apelante é do modesto entendimento que também estamos perante um preenchimento abusivo da livrança dada à execução, essencialmente porque não houve qualquer pacto de preenchimento negociado e celebrado inter partes e, a existir, consta de cláusulas gerais do contrato que, ex vi legis, têm de ser excluídas deste, por violação do regime estatuído no D.L. 446/85, de 25 de Outubro.
47- O Tribunal a quo considera que não se verificam os pressupostos para que se determine a exclusão das mencionadas cláusulas, por entender que “compete ao obrigado cambiário fazer prova da celebração do pacto de preenchimento e dos seus termos” porquanto “a subscrição de um título de crédito em branco pressupõe sempre um pacto de preenchimento”, em que “a entrega do título incompleto contém em si uma autorização para ser preenchido”.
48- É inegável – atentos os pontos 9, 10 e 11 provados – que foi a exequente quem preencheu a livrança que o apelante se limitou a assinar aquando da outorga da proposta de financiamento, na exclusiva companhia de um vendedor automóveis – porquanto não se encontrava presente qualquer representante daquela – motivo pelo qual “nunca foi negociado ou celebrado entre as partes, qualquer acordo quanto ao preenchimento da livrança dada à execução” – art. 44.º da oposição – nem tal poderia ter sucedido pois, sendo estas as partes na obrigação cambiária (exequente e executado), não se concebe como poderia o apelante celebrar o que quer que fosse – quanto mais um pacto de preenchimento – com um terceiro vendedor de automóveis que – tanto quanto se sabe – não vincula nenhuma daquelas.
49- Se o apelante subscreveu um título em branco foi porque tal documento constava da documentação que dito vendedor lhe apresentou para outorga, no âmbito de uma proposta de financiamento a apresentar à exequente – e que visava precisamente instruir – para que esta ponderasse se concederia o financiamento proposto, sendo que não é esse facto que permite, per se, conceber e/ou pressupor um qualquer pacto de preenchimento e – muito menos – uma autorização para se preencher o título respectivo, tal qual um desenho em branco não tem em si uma autorização para ser colorido – em que bastaria a incompletude para se antever de per se o seu posterior preenchimento.
50- Por inexistente, jamais poderia o apelante alegar os termos de um pacto de preenchimento que nunca existiu – nem nunca foi negociado, com quem quer que seja – e não é por isso que se pode afastar o preenchimento abusivo do título, aliás, é precisamente por não ter sido negociado e estabelecido um pacto de preenchimento que se impõe o reconhecimento desse mesmo abuso.
51- Embora seja aplicável ao contrato em apreço o regime estatuído no D.L. 446/85 – que impõe, para além de outros, especiais deveres de informação e comunicação das cláusulas que o compõem, sob pena da sua exclusão, arts. 5.º, 6.º e 8.º – o Tribunal considera – contraditoriamente – que ditos deveres foram efectivamente cumpridos pela exequente, seja porque do contrato consta uma declaração de conhecimento imediatamente antes, da assinatura do opoente – que não é um nada jurídico – e à qual se reconhece valor ex vi o art. 376.º C.C. – em que “o documento escrito (ou a redução a escrito da declaração, isto é, do reconhecimento de que lhe foram comunicadas e explicadas as cláusulas) há-de ser a prova por excelência do cumprimento das obrigações legais na fase pré-contratual.” – seja porque um aderente de normal diligência teria apelado a esclarecimentos complementares ou manifestado discordância apelando à desvinculação do contrato.
52- Os elementos que o Tribunal propugna para chegar a esta conclusão são elucidativos e demonstrativos da, permita-se, confusão que presidiu ao raciocínio que lhe está subjacente, dado que inexiste qualquer situação sui generis em que o opoente tenha declarado ter recebido no momento da assinatura o exemplar do contrato – como, certamente por lapso, se fez constar da sentença recorrida, ao invés, vide art. 58.º da oposição – sob pena de todo o expendido no presente ser um exercício inglório e manifestamente teórico.
53- O apelante não só não especificou como tendo sido exclusivamente a cláusula que se refere ao pacto de preenchimento [10.ª] a não ter sido comunicada e informada, como tal conclusão – “(apenas e só se trata aqui da cláusula relativa ao preenchimento que é a que o opoente diz não lhe ter sido comunicada e na qual sustenta a sua defesa).” – para além de ser inconcebível, nem sequer é admissível atenta a defesa apresentada in totum – vide 45.º da oposição.
54- Nem sequer o facto dado como provado a 9 – “…foi objecto de discussão entre o executado e o vendedor o valor e o número das prestações mensais.” – permite concluir que “houve uma fase prévia da contratação em que o vendedor explicou necessariamente aspectos essenciais do financiamento (valor e número de prestações) (facto vertido em 9.)”, tanto mais quando não se logrou provar a “habilidade técnica [do vendedor] para explicar não só a questão do aval como todo o clausulado contratual” e, ao mesmo tempo, se tenha concluído que o mesmo “estava habilitado a cumprir tais deveres”, não obstante não se ter provado “…em concreto o que o vendedor comunicou ao opoente”.
55- As contradições expostas são de tal modo gritantes que as conclusões do Tribunal recorrido – assentes em premissa de per se erradas – não podem ter qualquer tipo de valor – quanto mais determinar o cumprimento pelo exequente dos deveres de comunicação e informação que sobre ele impendem – tal como nenhum valor pode ter a declaração de conhecimento tida pelo Tribunal como prova por excelência desse mesmo cumprimento.
56-Tendo por certo que nada foi entregue ao apelante no momento da outorga da proposta contratual, jamais se pode conjecturar – e muito menos aceitar – o contemporâneo cumprimento dos invocados deveres de comunicação e informação, tanto mais quando trai a protecção do consumidor/aderente cometer a terceiro – in casu, ao vendedor do automóvel – o dever de informação que competia à exequente, pois foi esta quem se socorreu de cláusulas contratuais gerais – sobre quem impendia, então, a infungível obrigação de informação – não se tendo provado, ademais, qual o teor de prévias negociações – que, a não ser a discussão do valor e número de prestações, não existiram – visto que é entendimento pacífico que no regime das cláusulas contratuais gerais não é de admitir a delegação de competência daquele fulcral dever de informação.
57- Para além de que não é o aderente que tem, por iniciativa própria, de tentar conhecer as condições gerais de um contrato, nem a este pode ser aposto um dever-saber que exceda a comum diligência – sob pena de se esvaziar de sentido os preceitos apontados e, com isso, o pensamento legislativo associado à protecção do consumidor, que rege aquele instituto – sendo inegável que não é imputável ao apelante qualquer tipo de lacuna na diligência assumida para o conhecimento das condições daquele, embora, fosse ela qual fosse, tal ser dificilmente atingido vista a completa indiferença no cumprimento dos deveres, que pautou o comportamento da exequente – seja na fase negocial, na qual não participou, seja em fase posterior.
58- Por outro lado, as cláusulas inseridas em formulários depois da assinatura dos contratantes consideram-se excluídas dos contratos singulares – art. 8.º, al.ª d) D.L. n.º 446/85 – com o que se pretende acautelar os interesses do contratante que não teve qualquer intervenção na elaboração do contrato – como o apelante – por forma a evitar que ele subscreva acordos negociais de forma leviana, sem uma leitura ponderada e conscienciosa do teor – normalmente impessoal e estandardizado – desta espécie de contratos, motivo pelo qual o legislador impôs a observação de determinadas práticas na sua celebração, sob pena da sua invalidação total ou parcial, como é o caso que nos ocupa, em que a assinatura do apelante não consta no final de todo o clausulado, mas apenas na primeira página, onde constam as condições específicas.
59- O Tribunal a quo fez tábua rasa de tudo quanto se invocou e requereu, a este título, pelo que considera o apelante que a sentença recorrida padece de ausência de fundamentação e de pronúncia, o que configura fundamento de nulidade, nos termos do disposto no artigo 668.º, n.º 1, alíneas b) e d) C.P.C., e que ora se invoca.
60- No caso em concreto, tem-se de considerar excluída do contrato toda a segunda página – onde constam as cláusulas contratuais gerais – por não estar assinada por qualquer dos outorgantes, e isto não obstante a primeira página (assinada) fazer referência quer às condições especiais – nela contida – quer às condições gerais – constantes da parte não assinada – obstaculiza o sancionamento previsto na mencionada alínea, pois manter-se-ia o risco que o legislador pretende evitar e ficaria praticamente sem campo de aplicação o normativo sancionatório em apreço.
61- A declaração de conhecimento precede, em termos de existência, qualquer manifestação de vontade e/ou de acordo do aderente, porquanto consta imutavelmente de todos os contratos que assumem a natureza de adesão, para além de que, no momento da assinatura pelo apelante, ninguém da exequente estava presente para não só reduzir a escrito qualquer eventual declaração de conhecimento, como para, como lhe competia, garantir o efectivo conhecimento e concomitante cumprimento das obrigações legais na fase pré-contratual – que sobre si impendem.
62- Mais, estabelecendo o legislador um regime especial para esta questão, em que se visa precisamente a protecção do consumidor e que, como tal, prevalece sobre o regime geral, cremos não ser possível o recurso a este último regime geral, ao arrepio do que naquele especial se estatui, como assim o pretende fazer o Tribunal a quo, quando apela à aplicação do art. 376.º C.C., por violação de lei,
63- Sendo certo que em toda a página onde constam as propaladas cláusulas contratuais gerais não consta uma assinatura dos contraentes, o que, para além de fortemente indiciar o desconhecimento, implica, ex vi legis, a sua exclusão do contrato – com as devidas e legais consequências.
64- Aliás, a admitir-se o entendimento do Tribunal recorrido – de que a declaração de conhecimento é a prova por excelência do cumprimento das obrigações adstritas – então como se explica: o carácter genérico com que foi escrito, a sua pré-determinação e precedência à factualidade que visa reflectir, a consideração contraditória de que as condições gerais constam ou do verso ou de anexo ao presente documento e o facto de igualmente se declarar que foi fornecido um exemplar do contrato no momento da sua assinatura.
65- A atribuir-se validade a uma declaração, tem de o ser no seu todo, o que implicaria considerar que, afinal, foi entregue um exemplar do contrato ao apelante no momento da sua assinatura, como o documento – como prova por excelência do cumprimento dos deveres ínsitos à exequente – garante, motivo pelo qual nenhum valor pode ter a dita declaração de conhecimento, donde falecerá todo o entendimento expresso pelo Tribunal a quo, que dela decorre.
66- Atento o exposto, o apelante crê que as cláusulas contratuais gerais constantes do contrato em apreço devem ser excluídas do mesmo, com a consequente declaração de preenchimento abusivo da livrança dada à execução, motivo pelo qual se violou, ao se ter decidido como se decidiu, o estatuído nos arts. 5.º, 6.º e 8.º D.L. 446/85 e 7.º, n.º 3, 227.º e 334.º C.C., devendo a decisão proferida ser substituída por uma outra, coincidente com o ora referido.
67- O apelante invocou ainda a dação em cumprimento, designadamente por lhe ter sido garantido, seja telefonicamente quando informou a exequente que pretendia entregar a viatura automóvel objecto do contrato, seja aquando da efectiva entrega, que o valor em débito para com aquela ficaria liquidado com esta entrega.
68- Ora, cremos que a aceitação de recepção do veículo promovida pela exequente não pode senão apontar o assentimento prestado pelo credor à exoneração da obrigação, pois, sendo do seu conhecimento que era pretensão do apelante proceder à entrega da viatura pelo valor então em débito, sempre caberia àquela, sob este pressuposto e caso não fosse esta a sua vontade, recusá-lo.
69- Assim, aceitando a recepção da viatura em causa sem qualquer outra menção, exprimiu, no nosso modesto entendimento, a vontade expressa em exonerar o devedor, aqui apelante.
70- Aliás, a concluir-se que inexiste prova desta vontade do exequente, então – numa mesma linha de raciocínio – inexistirá prova bastante que permita determinar que a entrega do veículo visava a datio pro solvendo, seja por vontade expressa do apelante nesse sentido, seja por inexistir qualquer tipo de presunção que assim o permita enquadrar.
71- Diga-se ainda que, pretendendo-se com a datio pro solvendo facilitar a satisfação do crédito, não se concebe como, in casu, tal seja admissível, dado o, permita-se, irrisório valor de venda do veículo automóvel, promovida pela exequente, em total desconsideração dos legítimos interesses do apelante e, acreditamos, da finalidade doutamente pretendida pelo legislador.
72- E foi com esta perspectiva que o apelante, a seu tempo, invocou a responsabilidade contratual por, nesta eventualidade de se enquadrar a entrega como datio pro solvendo, impender sobre a exequente o dever de actuar com o menor sacrifício possível para o devedor na pretendida satisfação do seu crédito – como melhor exposto nos arts. 104.º a 113.º da oposição à execução e à penhora deduzida,
73- Motivo pelo qual deve a sentença proferida ser substituída por uma outra que declare a responsabilidade contratual da exequente, ex vi do incumprimento dos deveres que sobre si impendem, de, na eventualidade de se considerar que a entrega da viatura automóvel assume a forma de datio pro solvendo, garantir o menor sacrifício para o devedor, como seja, promover a venda de uma viatura automóvel por um valor assaz distante do valor médio de mercado de uma viatura similar.
74- Sem prejuízo de se considerar que, ao decidir-se como se decidiu, se violou o disposto nos art.ºs 837.º e 840.º C.C., o que impõe a substituição da sentença proferida por uma outra em que se declare a extinção da obrigação de pagamento do apelante, ex vi da dação em cumprimento promovida com a entrega do veículo de matrícula 61-64-XS.
75- Por último, para além de a exequente jamais se ter preocupado em justificar o modo que lhe permitiu chegar ao montante por si peticionado, o que configura – como invocado pelo apelante em sede de oposição [arts. 114.º a 116.º] – clara ininteligibilidade do petitório, nulidade sobre a qual o Tribunal recorrido não promoveu a necessária sanação, de modo a permitir o efectivo contraditório da contraparte, nem sequer se pronunciou,
76- Pelo que considera o apelante que a sentença recorrida padece de ausência de fundamentação e de pronúncia, o que configura fundamento de nulidade, nos termos do disposto no artigo 668.º, n.º 1, alíneas b) e d) C.P.C., e que ora se invoca.
77- Assim, pretendendo o apelante pronunciar-se sobre o quantum pedido falece nesse exercício por não se encontrarem discriminadas – como deveriam – as parcelas que, em conjunto, alegadamente permitiram chegar ao produto final, motivo pelo qual deve a sentença proferida deve ser substituída por uma outra que declare a nulidade do presente processo, atenta a clara ininteligibilidade do petitório e da ineptidão que daí decorre, nos termos do estatuído no art. 193.º, n.º 2, b) C.P.C., sob pena de violação de lei.
78- O apelante comunga ainda do entendimento doutrinal – que se tem como pacífico – no sentido de que “não se trata de colocar o prejudicado na situação em que estaria se o contrato tivesse sido cumprido, mas naquela em que ele se encontraria se não tivesse sido celebrado o contrato” e de que “Desde que o credor opte pela resolução do contrato, não faria sentido que pudesse exigir do devedor o ressarcimento do benefício que normalmente lhe traria a execução do negócio”.
79- Sucede que o Tribunal a quo não só não se pronunciou sobre esta questão, o que configura nulidade, ex vi artigo 668.º, n.º 1, alíneas b) e d) C.P.C., que ora se invoca, como, ao decidir com decidiu, violou o entendimento expendido, motivo pelo qual deve a sentença proferida ser substituída por uma outra coincidente com o exposto, designadamente julgando improcedente o pedido formulado em tudo quanto exceda a reposição do património da exequente no estado em que se encontraria se não tivesse existido o contrato, o qual, repete-se, foi resolvido por sua iniciativa, com as consequências a tal inerentes, das quais se destaca a impossibilidade de ficcionar o seu cumprimento.
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A exequente/apelada juntou aos autos as suas contra-alegações onde pugna pela confirmação da decisão recorrida.
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A 1.ª instância apreciou a apontada nulidade da sentença tendo-a julgado inexistente.

II – Da 1.ª instância chegam-nos assentes os seguintes factos:
1) O exequente é portador de um impresso uniformizado destinado a servir como livrança no valor de 14.338,25€, emitida em 19.11.2009 e com vencimento em 20.12.2009, onde figura aposta no local destinado ao subscritor a assinatura do executado B….
2) Exequente e executado celebraram um acordo identificado como “contrato de crédito n.º……”, datado de 3.05.2007, pelo qual o exequente financiou a aquisição do veículo da marca “Volkswagen”, modelo “…”, com a matrícula “..-..-XS”, mediante a obrigação do reembolso da quantia mutuada em 84 prestações mensais, no montante de 207,89€, vencendo-se a primeira em 8.06.2007.
3) No espaço prévio à assinatura do executado no documento referido em 2) consta: “O(s) Cliente(s) declara(m) conhecer todas as condições e cláusulas do presente contrato de crédito (composto pelas presentes Condições Particulares e pelas Condições Gerais constantes do verso ou de anexo ao presente documento), sobre as quais foi/foram devidamente informado(s), tanto por lhe(s) ter sido dado a ler, como por lhe(s) ter sido fornecido um exemplar do mesmo no momento da sua assinatura”.
4) Da cláusula 10.ª das Condições Gerais consta: “O Cliente e, se aplicável, o(s) respectivo(s) Avalista(s) autoriza(m) a C… a preencher, caso exista, qualquer livrança ou outro documento ou garantia por si subscrito/avalizado e não integralmente preenchido, designadamente no que se refere á data de vencimento, local de pagamento e aos valores, até ao limite das responsabilidades assumidas pelo(s) Cliente(s) / Avalista(s) perante a C…, por força do presente contrato, e em dívida na data de vencimento, acrescidos de todos e quaisquer encargos com a selagem dos títulos”.
5) O processo tendente à celebração do contrato identificado em 2) foi conduzido por um funcionário do “E…, Ld.ª”.
6) O documento referido em 2) foi assinado pelo executado em 3.05.2007.
6)-A [1] “O veículo referido em 2) foi entregue ao executado em 7.05.2007”.
7) O mesmo documento foi assinado por representante da exequente em data posterior.
8) A exequente dirigiu ao executado uma missiva, datada de 18.05.2007, por intermédio da qual, remeteu a este uma cópia da proposta de financiamento, que o executado havia assinado em 3.05.2007 [proposta de financiamento n.º ………], assinada no local destinado à “C…” e onde foram manuscrita como data do vencimento da primeira prestação “08-06-2001” e o n.º do contrato de crédito “……”.
9) O executado assinou uma proposta de financiamento e documentação avulsa que o vendedor lhe explicou destinar-se a instruir a proposta, na qual foi objecto de discussão entre o executado e o vendedor o valor e o número das prestações mensais.
10) Quando o documento referido em 1) foi entregue à exequente continha apenas a assinatura do executado.
11) Foi a exequente quem preencheu os campos constantes da livrança dada à execução, nomeadamente, os campos respeitantes ao valor do crédito de que alegadamente é titular, à data de vencimento e local de pagamento, bem como o campo respeitante à morada do subscritor.
12) O executado entregou o veículo em 28.09.2009.
13) A exequente, mediante carta registada com aviso de recepção datada de 8.04.2009, que o executado recebeu, concedeu ao executado o prazo de oito dias úteis para pagamento do valor de 1.098,01€, que liquidou como valor em dívida, findo o qual a mora seria convertida em incumprimento definitivo.
14) Ao fornecedor “E…, Ld.ª” foi ministrada formação por parte da exequente.
15) Foi ponto de venda mediante celebração de outros contratos de financiamento pela exequente.
16) A exequente diligenciou pelo envio ao executado de carta de boas vindas, com plano de pagamentos e fornecendo indicação de linha de apoio ao cliente para quaisquer questões suscitadas.
17) As partes mantiveram contactos telefónicos entre 15.05.2007 e 2009.
18) O que se deveu ao facto de as prestações não serem pagas atempadamente por débito bancário, sendo contactado pelos serviços do Departamento de Cobrança da exequente para pagamento.
19) Foram estabelecidos contactos pelo executado, entre outros, nos dias 15.05.2007 e 24.05.2007.
20) O executado nunca manifestou quaisquer dúvidas, renitências ou discordâncias relativamente ao montante em dívida ou ao teor do contrato celebrado.
21) Por missiva datada de 29.03.2011 a exequente enviou ao executado cópia da factura de venda do veículo pelo preço de 2.350,00€.

III – Como é sabido o objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do N.C.P.Civil), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida. Sendo que ao presente recurso já é aplicável o regime processual decorrente do N.C.P.Civil, por a decisão em crise ter sido proferida depois de 1 de Setembro de 2013.
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Ora, visto o teor das alegações do apelante são questões a decidir no presente recurso:
1.ª – Da alegada nulidade da sentença recorrida.
2.ª – Da impugnação da decisão da matéria de facto.
3.ª – De Direito.
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1.ªquestão – Da alegada nulidade da sentença recorrida.
Defende o apelante que a sentença recorrida, não faz qualquer referência ao que invocou em sede de petição inicial, (designadamente nos art.ºs 97.º e 104.º a 112.º) relativamente à justeza do valor de venda de veículo de matrícula ..-..-XS, promovida pela apelada, daí enfermar do vício da nulidade por omissão de pronúncia.
Ora, vendo a sentença recorrida temos de concluir que nela nenhuma referência se faz a essa argumentação do apelante.
Mas será que tal implica a nulidade da sentença recorrida como o apelante defende?
Vejamos.
Segundo o disposto no art.º 615º n.º1 al. d), “ex vi” do art.º 666.º n.º1, ambos do C.P.Civil, a sentença é nula se deixa de conhecer na sentença de questões de que devia tomar conhecimento ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Como é sabido, este vício traduz-se no incumprimento ou desrespeito por parte do julgador, do dever prescrito no art.º 608.º n.º2 do C.P.Civil, cfr. Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, pág 690 e Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. III, pág. 247, segundo o qual deve o juiz resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Importa, porém, ter em linha de conta que uma coisa são os argumentos ou as razões de facto e ou de direito e outra, essencialmente diversa, as questões de facto ou de direito. As questões a que se reporta a al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.Civil são os pontos de facto e ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções do respectivo litígio. Ou, como se decidiu nos Acs do STJ de 8.01.2004 e 5.02.2004, ambos in www.dgsi.pt, “essas questões centram-se nos pontos fáctico-jurídicos que estruturam as posições das partes na causa, designadamente os que se prendem com a causa de pedir, o pedido e as excepções”.
Analisando o alegado pelo ora apelante sobre o preço de venda do veículo pela apelada em sede de petição inicial, ou seja, além do mais que “(…)veículo de matrícula ..-..-XS, diga-se que em óptimo estado de conservação, dado que apenas continha pequenos riscos que em nada diminuíam o seu valor(…)”; “(…) não se vislumbra como a entrega de uma viatura em óptimo estado de conservação e eventualmente vendida ao desbarato (…)”; “(…) a exequente reclama do executado, o pagamento de um valor manifestamente excessivo, tendo em conta o elevado valor do bem que lhe foi entregue (…)”; “(…) o eventual valor atribuído pela exequente ao bem que lhe foi entregue (…) é de tal modo baixo, que é legítimo ao executado questionar a boa fé e a diligência usada pela exequente, para a atribuição do mesmo(…)”, temos de concluir que o ora apelante no âmago da sua prolixa alegação limita-se a fazer juízos de valor, a tirar conclusões, não alegando quaisquer factos concretos de onde se pudesse vir a inferir que o referido preço de venda do veículo não foi o justo e objectivo.
Destarte, sem necessidade de outros considerandos, uma vez que o ora apelante se limitou a tecer argumentos valorativos e/ou juízos de valor sobre a situação, não tendo assim submetido à apreciação do tribunal uma questão concreta de facto relevante, temos de concluir que a decisão recorrida não padece do apontado vício de omissão de pronúncia.
Improcedem as respectivas conclusões do apelante.
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2.ªquestão – Da impugnação da decisão da matéria de facto.
Entende o apelante que a 1.ª instância não interpretou e não valorou devidamente a prova produzida nos autos, razão pela qual a sua decisão padece de erro na apreciação da prova. Concretamente entende o apelante que o tribunal recorrido incorreu em erro quando julgou não provados os factos contidos nos art.ºs 3.º e 21.º da p. inicial da oposição, sendo que o primeiro por não ter sido impugnado e o segundo, pelo menos, quanto á data da entrega do veículo deveria ter sido dado por provado, conforme teor do doc. n.º 2 junto com a p. inicial. Diz ainda o apelante que deve ser aditado ao ponto 12.º da fundamentação de facto da sentença recorrida, pois tal resultou da prova produzida nos autos, que “o estado da viatura estava, pelo menos, normal e em adequada condição, salvo pequenos riscos”, conforme teor do doc. n.º 4 junto com a oposição. Finalmente defende o apelante que também os factos julgados provados e constantes dos pontos 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º e 20.º da fundamentação de facto da sentença recorrida se não podem manter provados, uma vez que não deveria ter sido dada credibilidade ao depoimento da testemunha D…, funcionário da exequente.
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Sob os art.ºs 3.º e 21.º da petição da oposição à execução o ora apelante alegou que:
“3.º - Ora, se esta Livrança tem aposta a assinatura do executado, tal deve-se ao facto de este ter assinado alguns documentos, num stand de automóveis, mais precisamente, no “E…, Lda.”, local onde o ora opoente havia visto um veículo de marca Volkswagen, modelo …, que considerou ser do seu agrado.
21.º - Satisfeito com a notícia que então lhe foi transmitida, e continuando a pretender adquirir a viatura em questão, o opoente deslocou-se nesse mesmo dia ao “E…”, local onde procedeu ao levantamento do veículo adquirido, que lhe foi facturado nessa mesma data, cfr. Doc. 2 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos”.
O tribunal recorrido julgou que tais factos não resultaram provados.
Por seu turno, a 1.ª instância julgou provado que:
“12) O executado entregou o veículo em 28/9/2009.
14) Ao fornecedor “E…, Lda.” foi ministrada formação por parte da exequente.
15) Foi ponto de venda mediante celebração de outros contratos de financiamento pela exequente.
16) A exequente diligenciou pelo envio ao executado de carta de boas vindas, com plano de pagamentos e fornecendo indicação de linha de apoio ao cliente para quaisquer questões suscitadas.
17) As partes mantiveram contactos telefónicos entre 15.05.2007 e 2009.
18) O que se deveu ao facto de as prestações não serem pagas atempadamente por débito bancário, sendo contactado pelos serviços do Departamento de Cobrança da exequente para pagamento.
19) Foram estabelecidos contactos pelo executado, entre outros, nos dias 15.05.2007 e 24.05.2007.
20) O executado nunca manifestou quaisquer dúvidas, renitências ou discordâncias relativamente ao montante em dívida ou ao teor do contrato celebrado”.
E fundamentou assim tais decisões: - “(…) Os factos enumerados em (…) 12) resultam provados por acordo.
No que respeita aos demais factos julgados provados e não provados, a formação da convicção assenta na análise dos documentos juntos aos autos, em conjugação com o depoimento das testemunhas.
(…)
Os documentos de fls. 97 a 99 foram desvalorizados porquanto se trata de uma página de anúncios (valores pedidos pelos vendedores) e não pelos quais tais veículos foram efectivamente vendidos (valores de compra no mercado) e de tabelas de preços de desvalorização de veículos para efeito de actualização de prémios de seguros.
(…)
Os factos julgados provados e vertidos nas alíneas 13) a 21) resultam provados pelo teor dos documentos de fls. 70 a 82.
Quanto ao valor da venda do veículo, cumpre fazer notar que, para além de terem sido desvalorizados os documentos de fls. 97 a 99, os mesmos nunca fariam prova contrária ao preço de venda mas, quando muito, à adequação do preço (se o veículo foi vendido pelo preço de mercado) facto que não está em causa por não ter sido alegado.
(…)
Quanto ao facto alegado no art. 21.º da oposição, concretamente quanto à data da entrega do veículo ao executado, não pode o mesmo ser julgado provado com base no documento invocado, dado tratar-se de uma factura, sem qualquer menção à entrega”.
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No que concerne à impugnação da decisão de facto proferida em 1.ª instância, importa atentar no que dispõe no art.º 662.º do C.P.Civil.
Como refere F. Amâncio Ferreira, in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, pág. 127, resulta de tal preceito que “...o direito português segue o modelo de revisão ou reponderação…”, ainda que não em toda a sua pureza, porquanto comporta excepções, as quais se mostram referidas pelo mesmo autor na obra citada.
Os recursos de reponderação, segundo o ensinamento do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudo Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 374, “...satisfazem-se com o controlo da decisão impugnada e em averiguar se, dentro dos condicionalismos da instância recorrida, essa decisão foi adequada, pelo que esses recursos controlam apenas - pode dizer-se - a “justiça relativa” dessa decisão”. Por isso, havendo gravação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, como no presente caso se verifica, temos que, nos termos do disposto no art.º 662.º n.º 1 do C.P.Civil, o tribunal da Relação deve alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto, desde que, em função dos elementos constantes dos autos (incluindo, obviamente, a gravação), seja razoável concluir que aquela enferma de erro.
Não nos podemos esquecer de que ao reponderar a decisão da matéria de facto, que, apesar da gravação da audiência de julgamento, esta continua a ser enformada pelo regime da oralidade (ainda que de forma mitigada face à gravação) a que se mostram adstritos, entre outros, o princípios da concentração e da imediação, o que impede que o tribunal de recurso apreenda e possa dispor de todo o circunstancialismo que envolveu a produção e captação da prova, designadamente a testemunhal, quase sempre decisivo para a formação da convicção do juiz; pois que, como referem A. Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in “Manual de Processo Civil”, pág. 657, a propósito do “Princípio da Imediação”, “...Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar. ...”.
Decorre também do preâmbulo do DL 39/95 de 15.12, que instituiu no nosso ordenamento processual civil a possibilidade de documentação da prova, que a mesma se destina a correcção de erros grosseiros ou manifestos verificados na decisão da matéria de facto, quanto aos pontos concretos da mesma, dizendo-se aí que “a criação de um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais – e seguramente excepcionais – erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto”.
Vendo ainda esse preâmbulo, dele consta também que “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede da matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
Quanto ao resultado da apreciação da prova testemunhal não pode esquecer-se que, nos termos do art.º 607.º n.º 5 do C.P.Civil, “O juiz aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, mantendo o princípio da liberdade de julgamento. E, quanto à força probatória, os depoimentos das testemunhas são apreciados livremente pelo tribunal, como resulta do disposto no art.º 396.º do C.Civil.
Atendo em atenção o que preceitua o art.º 640.º n.ºs 1 e 2 do C.P.Civil, ou seja, que é ónus do apelante que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, isto é, não basta ao apelante atacar a convicção que o julgador formou sobre cada uma ou a globalidade das provas para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, sendo ainda indispensável, e “sob pena de rejeição”, que:
a) - Especifique quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
b) - Indique quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto; indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição. Devendo ainda, desenvolver a análise crítica dessas provas, por forma demonstrar que a decisão proferida sobre cada um desses concretos pontos de facto não é possível, não é plausível ou não é a mais razoável, cfr. entre outros, Acs. do STJ de 25.09.2006, de 10.05.2007 e de 30.10.2007, todos in www.dgsi.pt.
c) – Indique a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Está assim hoje legalmente consagrada o dever deste tribunal de recurso alterar a decisão de facto proferida em 1.ª instância, devendo para tal reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo ainda em consideração o teor das alegações das partes, para o que terá de ouvir os depoimentos chamados à colação pelas partes. E assim, (re) ponderando livremente essas provas, deve, por força do disposto no art.º 662.º n.º 1 do C.P.Civil, “alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Ou seja, deve o tribunal de recurso formar a sua própria convicção relativamente a cada um dos factos em causa não desconsiderando, principalmente, a ausência de imediação na produção dessa prova, e a consequente e natural limitação à formação desta convicção, o que em confronto com o decidido em 1.ª instância terá como consequência a alteração ou a manutenção dessa decisão. E isso, por se ter concluído que a decisão de facto em causa, (re) apreciada “segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica” cf. Ac. STJ de Proc. n.º 3811/05, da 1ª Secção, citado no Ac. do mesmo tribunal de 28.05.2009, in www.dgsi.pt., corresponde, ou não, ao decidido em 1.ª instância.
Por outro lado, deve ainda a Relação, por força do disposto no n.º2 do art.º 662.º do C.P.Civil, “mesmo oficiosamente”: a), a renovação “da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento”; b) a produção de novos meios de prova em segunda instância, “em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada”; c) a anulação da decisão da matéria de facto, mesmo oficiosamente, sempre que não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; d) se determine que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.
No caso em apreço, temos de considerar que o apelante, apenas em parte, cumpriu os referidos ónus de alegação, cfr. art.º 640.º do C.P.Civil, já que no que concerne à prova testemunhal, que chamou à colação, não o fez, uma vez que se limitou, quanto a ela, a alegar “(…)sem prejuízo dos princípios que presidem à ponderação e ao valor a atribuir à prova testemunhal produzida, cremos que, no caso em concreto, é evidente (…) a, digamos, preferência do Tribunal a quo pela produção lida da prova testemunhal, ao invés da imediação que da mesma deve resultar.
(…) comecemos por realçar que o primeiro factor a que se alude para afastar a Credibilidade do depoimento da testemunha indicada pelo Apelante, incide no facto desta ser sua companheira.
(…) se é certo que, como transparece da douta Sentença proferida, o afecto conjugal é, ab initio, o bastante para afectar a credibilidade da indicada testemunha, questiona-se como, numa similitude de entendimento, o afecto, pelo menos, patrimonial que liga a testemunha D…, enquanto“…funcionário da exequente…”, a esta, permite conclusão diametralmente oposta, em claro afrontamento das regras da experiência comum e do normal acontecer.
(…) o conhecimento de causa que esta testemunha da exequente manifestou decorre, como reconhece o Tribunal a quo, “da “instrução” do processo […] que consultou, enquanto pasta com documentos internos, durante o seu depoimento.”
(…) a sua produção extravasa o que de normal se pode aceitar de um depoimento testemunhal.
Com efeito, este tipo de prova é caracterizada pela imediação e a oralidade, em que compete ao julgador, perante a testemunha, aferir da veracidade e/ou credibilidade dos conhecimentos de ciência pessoal, obtidos por contacto directo, acerca dos factos sub judice.
(…) in casu, a testemunha, com a conivência do Digníssimo Tribunal, assumiu as vestes de leitor de uma realidade alegadamente plasmada na pasta com documentos internos, que consultou durante o seu depoimento (…),
(…) Sem que quer o Tribunal, quer o ora Apelante, saiba que documentos são esses, Qual a sua origem, Qual o seu conteúdo, Qual a sua data (…),
(…) não se concebe como é possível conjecturar crédito num depoimento de uma testemunha não presencial, que resume a sua ciência sobre os factos à leitura de documentos, para além do mais, de todos desconhecidos, carentes do imprescindível crivo da contrariedade e com um alegado valor que, só por mero acto de fé, se pode atribuir”.
(…) não se concebe como é possível conjecturar crédito num depoimento de uma testemunha não presencial, que resume a sua ciência sobre os factos à leitura de documentos, para além do mais, de todos desconhecidos, carentes do imprescindível crivo da contrariedade e com um alegado valor que, só por mero acto de fé, se pode atribuir(…)”.
O assim alegado, manifestamente, não cumpre os ónus de alegação que sobre o apelante impendiam relativamente à impugnação da decisão da matéria de facto relativamente aos pontos 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º e 20.º da fundamentação de facto da sentença recorrida, - não indica com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição - razão pela qual e sem necessidade de outros considerandos se rejeita o recurso relativamente a esses pontos.
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Vejamos então a decisão dos demais factos impugnados pelo apelante.
Diz o apelante que não tendo a exequente/apelada impugnado o que alegou no art.º 3.º da sua p. inicial, tal facto deve ser admitido por acordo e, como tal, passar a constar do complexo fáctico provado nos autos.
Na verdade, vendo o teor do assim alegado pelo apelante, é manifesto concluir que o mesmo consta da demais factologia julgada provada. Assim, que o apelante apôs a sua assinatura na livrança dada à execução, consta do ponto 1) da fundamentação de facto da sentença recorrida; que as negociações e a formalização do contrato de crédito tiveram lugar no E…, resulta do ponto 5) e que esse contrato destinou-se à aquisição de determinado veículo automóvel, resulta do ponto 2). Logo, o que consta do referido art.º 3.º da p. inicial, por si só, não tem qualquer interesse para a boa decisão da causa, estando antes, no que a esta interessa, vertido na demais matéria de facto provada nos autos.
Relativamente ao que o apelante alegou sob o art.º 21.º da sua p. inicial, temos que esse mesmo facto foi impugnado pela exequente/apelada, em sede de contestação.
O que se extrai com algum interesse para a boa decisão da causa do facto alegado pelo ora apelante será o local e a data em que procedeu ao levantamento do veículo/o mesmo lhe foi entregue, facto, esse, aliás que o próprio apelante nem sequer, expressamente, invocou, refugiando-se na data da facturação, ou seja, remetendo para a respectiva factura.
Ao que parece defende agora o apelante que a data da entrega do veículo se deve dar por provada, com base no teor do doc. n.º 2 que juntou com o articulado.
Na realidade, o documento em apreço é a factura da venda do veículo ao apelante, emitida em 7.05.2007 e dela consta, de facto, que: - “Os artigos e/ou serviços constantes deste documento foram postos a disposição do cliente em 07/05/2007”. Ora, assim sendo, não nos repugna que seja, julgado provado nos autos, como ponto 6)-A, que “O veículo referido em 2) foi entregue ao executado em 7.05.2007”.
Finalmente e relativamente ao facto julgado provado e constante do ponto 12) da fundamentação de facto da sentença recorrida, onde se julgou provado que: - “O executado entregou o veículo em 28.09.2009”, como se deixou acima consignado defende agora o apelante que resulta do teor do doc. n.º 4 junto com a p. inicial que aquando da entrega do veículo à apelada, o mesmo estava em estado, pelo menos, normal e em adequada condição, salvo apresentar pequenos riscos, o que deve ser aditado ao referido ponto do factos provados.
Ora vendo o teor do documento junto a fls. 33 dos autos, parece-nos evidente que dele se não pode extrair, como realidade, o pretendido pelo apelante. Na verdade, aceita a exequente que o veículo lhe foi entregue em 28.09.2009, conforme o ora apelante havia alegado sob o art.º 97.º da sua p. inicial, mas o mais aí alegado foi expressamente impugnado pela exequente/apelada.
Se é certo que do teor do doc. junto a fls. 33 – denominado Auto de Entrega de Veículo Automóvel – resulta que o veículo foi entregue em 28.09.2009, e que no que concerne ao “Estado da Viatura” então, mais precisamente “Danos na carroçaria” esta apresentava “Pequenos riscos” daí não se pode concluir, como pretende o apelante, que o veículo estava em “óptimo estado de conservação dado que apenas continha pequenos riscos que em nada diminuíam o seu valor”, ou que o seu estado era normal, ou como expressamente agora pretende o apelante que “o estado da viatura estava, pelo menos, normal e em adequada condição, salvo pequenos riscos”, pois manifestamente, salva a existência de riscos, tratam-se de meros juízos valorativos que por isso não devem consta da factologia provada nos autos.
Destarte em sem necessidade de outros considerandos, procedem parcialmente as conclusões do apelante, havendo apenas de se alterar a matéria de facto provada nos autos, de forma a que dela passa e constar, como ponto 6)-A, que “O veículo referido em 2) foi entregue ao executado em 7.05.2007”.
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3.ªquestão – De Direito.
Por via do presente recurso vem ainda o apelante pedir a reapreciação de todas as questões de direito colocadas nos autos e decididas em 1.ª instância.
Como resulta dos autos, a exequente deu à execução e que este é um apenso uma livrança de que é portadora, no valor de €14.338,25, emitida em 19.11.2009, com vencimento em 20.12.2009, subscrita pelo ora apelante e não paga na data do seu vencimento nem posteriormente.
Quando tal livrança foi entregue à exequente ela continha apenas a assinatura do executado/apelante. Foi a exequente quem preencheu os demais campos, dela, constantes, nomeadamente, os campos respeitantes ao valor do crédito de que alegadamente é titular, à data de vencimento e local de pagamento, bem como o campo respeitante à morada do subscritor.
Subjacente à emissão de tal livrança, está provado nos autos que exequente e executado/apelante celebraram um acordo denominada “Contrato de Crédito n.º……”, datado de 3.05.2007 e assinado pelo executado nessa mesma data, pelo qual o exequente financiou a aquisição do veículo da marca “Volkswagen”, modelo “…”, com a matrícula “..-..-XS”, - sendo o total do financiamento e encargos de €17.943,76 - o qual foi entregue ao executado/apelante em 7.05.2007, mediante a obrigação do reembolso da quantia mutuada em 84 prestações mensais, no montante de €207,89, cada uma, vencendo-se a primeira em 8.06.2007.
As referidas prestações não foram pagas atempadamente, razão pela qual o executado/apelante foi contactado pelos serviços do Departamento de Cobrança da exequente para pagamento das mesmas, e por tal motivo, exequente e executado/ /apelante mantiveram contactos telefónicos entre 15.05.2007 e 2009.
O executado/apelante não pagou diversas das acordadas prestações e, por isso, a exequente, mediante carta registada com A/R, datada de 8.04.2009, recebida pelo ora apelante, concedido a este o prazo de oito dias úteis para pagamento do valor de €1.098,01, que liquidou como estando, então, em dívida, findo o qual a mora seria convertida em incumprimento definitivo. O que veio a suceder, ou seja, a exequente resolveu o contrato celebrado com o executado/apelante.
Posteriormente, em 28.09.2009, o executado/apelante veio a entregar o veículo à exequente. Esta, mais tarde veio a aliená-lo, e por carta de 29.03.2011, enviou ao executado/apelante cópia da respectiva factura de venda pelo preço de €2.350,00.
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3.1. Da nulidade decorrente da falta de entrega de um exemplar do contrato no momento da sua assinatura.
Insiste o apelante em defender que o contrato que celebrou com a exequente é nulo porque não lhe foi entregue, aquando da sua assinatura, uma cópia do mesmo.
Quanto a esta questão está provado nos autos que o processo tendente à celebração do contrato “Contrato de Crédito” foi conduzido por um funcionário do “E…, Ld.ª”, onde foi adquirido o veículo. Aí o executado assinou uma proposta de financiamento (proposta de financiamento n.º ………) e documentação avulsa que o vendedor lhe explicou destinar-se a instruir a proposta, na qual foi objecto de discussão entre o executado e o vendedor o valor e o número das prestações mensais.
Tal proposta foi assinada pelo executado em 3.05.2007 e veio a ser assinado por um representante da exequente em data posterior.
Posteriormente a exequente dirigiu ao executado uma carta, datada de 18.05.2007, por intermédio da qual, remeteu a este uma cópia da proposta de financiamento, que o executado havia assinado em 3.05.2007 (proposta de financiamento n.º………), assinada no local destinado à “C…” e onde foram manuscrita como data do vencimento da primeira prestação “8-06-2001” e o n.º do contrato de crédito “……”.
Está ainda provado nos autos que a exequente diligenciou pelo envio ao executado de uma carta de boas vindas, com plano de pagamentos e fornecendo indicação de linha de apoio ao cliente para quaisquer questões suscitadas.
Está também assente que exequente e executado mantiveram contactos telefónicos entre 15.05.2007 e 2009, o que se deveu ao facto de as prestações não serem pagas atempadamente, sendo o executado contactado pelos serviços do Departamento de Cobrança da exequente para pagamento. Concretamente o executado contactou a exequente, entre outros, nos dias 15.05.2007 e 24.05.2007.
Finalmente está provado que o executado nunca manifestou quaisquer dúvidas, renitências ou discordâncias relativamente ao montante em dívida ou ao teor do contrato celebrado com a exequente.
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A 1.ª instância, correctamente, configurou o contrato em apreço como de crédito ao consumo e como tal sujeito ao respectivo regime – DL 359/91, de 21.09 (diploma que veio a ser revogado pelo DL n.º133/2009, de 2.06). Na verdade, estamos perante um contrato de crédito ao consumo, sob a forma de mútuo oneroso comercial, liquidável em prestações, cfr. art.º 2.º, al. a) do DL 359/91, de 21 de Setembro.
Também, correctamente, considerou-se em 1.ª instância que não tendo o vendedor que, em 3.05.2007, contratou com e executado a celebração da proposta de financiamento em apreço, data em que este a assinou, entregue ao executado uma cópia ou exemplar dessa proposta, foi violado o disposto no art.º 6.º n.º1 do DL 359/91, de 21.09, o que ao abrigo do que preceitua o art.º 7.º n.º1 do mesmo diploma legal, implica a nulidade do contrato.
Na verdade, prescreve o n.º 1 do art. 6.º do DL 359/91, de 21.09 — diploma que se aplica aos contratos de crédito ao consumo, segundo a definição dada pelo art. 2.º, al. a), ou seja, “o contrato por meio do qual um credor concede ou promete conceder a um consumidor um crédito sob a forma de diferimento de pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou qualquer outro acordo de financiamento semelhante”, e procede à transposição para o direito interno das Directivas do Conselho das Comunidades Europeias n.ºs 87/102/CEE, de 22 de Dezembro de 1986, e 90/88/CEE, de 22 de Fevereiro de 1990 (art.º 1.º) — que “o contrato de crédito deve ser reduzido a escrito e assinado pelos contraentes, sendo obrigatoriamente entregue um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura”.
Por sua vez, o n.º 1 do art.º 7.º estatui que “o contrato de crédito é nulo quando não for observado o prescrito no n.º 1 … do artigo anterior", acrescentando o n.º 4 do mesmo artigo que “inobservância dos requisitos constantes do artigo anterior presume-se imputável ao credor e a invalidade do contrato só pode ser invocada pelo consumidor”.
Assim, resulta dos preceitos legais citados que a inobservância de algum dos requisitos prescritos no n.º 1 do art.º 6.º, onde se inclui a não entrega de um exemplar ao consumidor no momento da respectiva assinatura, gera a nulidade do contrato, fazendo a lei presumir que essa falta é imputável ao credor.
Segundo Gravato Morais, in “Contratos de Crédito ao Consumo”, pág. 105 e 107 “se ao consumidor não é entregue um exemplar do contrato de mútuo, do contrato de abertura de crédito ou do contrato de locação financeira, na data da respectiva assinatura, tais negócios são considerados nulos”. E questionando se a entrega posterior do exemplar do contrato pode sanar esta nulidade, além de invocar outras razões, responde: “… se se entendesse que a entrega posterior sanasse a invalidade, esta seria uma forma expedita e eficaz do ponto de vista do credor) de ultrapassar a exigência legal. Nesta hipótese, o consumidor poderia até invocar o instituto da fraude à lei (art.º 19.º do DL 359/91)”.
Ora, assim sendo, dúvidas não restam de que o referido contrato está ferido de nulidade, pela não entrega ao apelante de um exemplar do contrato no momento da sua assinatura, e que essa nulidade não ficou sanada com o seu envio pelo correio em momento posterior.

Mas mais se considerou em 1.ª instância que, não obstante a verificação da referida nulidade, o executado/apelante ao vir agora invoca-la, age em abuso de direito, razão pela qual não se deve declarar a referida nulidade, nem consequentemente se obstar ao exercício coercivo da quantia exequenda devida pelo incumprimento do contrato.
É contra o assim entendido por último que ora se insurge o apelante, mas sem razão.
Ora, como se afirmou no longínquo Ac. do STJ de 30.10.2007, in www.dgsi.pt - “Na ponderação de saber se houve abuso do direito – art. 334.º do Código Civil – excepção material de conhecimento oficioso – o Tribunal deve actuar com prudência quando se está perante uma relação de consumo, onde é patente a desigualdade de meios entre o fornecedor dos bens ou serviços e o consumidor, sendo de equacionar se, ao actuar como actuou, a Autora, prevalecendo-se de superioridade negocial em relação a quem recorreu ao seu crédito, não infringiu ela mesmo, em termos censuráveis, os deveres cooperação, de lealdade, e informação, em suma os princípios da boa-fé”.
Preceitua o art.º 334.º do C.Civil que: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Pelo que não é suficiente que o titular do direito exceda os limites referidos, sendo necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores. Mas, por outro lado, não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, isto é, não é necessário que tenha a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo seu fim social ou económico, bastando que, na realidade (objectivamente), esses limites tenham sido excedidos de forma nítida e clara, verificando-se assim, sem dúvidas, que o nosso Direito acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito.
Como refere o Prof. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, pág. 536:
“Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder”. Ou, nas palavras do Prof. Manuel de Andrade, in “Teoria Geral das Obrigações” pág. 63: É necessário concluir-se que o direito é exercido ”em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.
A figura do abuso de direito assenta, essencialmente, no princípio geral de que "as pessoas devem ter um certo comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros”, cfr. Coutinho de Abreu, in “Do Abuso de Direito”, pág. 55.
Um dos comportamentos que tem sido apontado como variante do abuso de direito e que aliás se vem evidenciando o mais vulgar nos dias que correm, por violação manifestamente excessiva dos limites impostos pelo princípio basilar da boa-fé, é o denominado “venire contra factum proprium”, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, pág. 299.
Pode definir-se como o exercício de uma posição jurídica contrária ao comportamento anteriormente assumido e em que fundadamente a outra parte confiou.
A proibição do “venire contra factum proprium” ou a proibição da chamada conduta contraditória, ou seja, aqui abrange-se o chamado “dar o dito por não dito”, e radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, pois pressupõe duas atitudes espaçadas no tempo, sendo a primeira (factum proprium) contraditada pela segunda atitude, o que constitui, atenta a reprovabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e de correcção, uma manifesta violação dos limites impostos pela boa-fé. A proibição de comportamentos contraditórios é de aceitar quando o venire contra factum proprium atinja proporções juridicamente intoleráveis, traduzido em chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito.
A confiança digna de tutela deve ser objectivamente motivada, e é aquela que resulta de uma apreciação objectiva do conjunto dos actos e comportamentos das partes no quadro económico e social em que se desenvolve o processo de constituição e exercício das relações jurídicas entre elas.
Essa confiança deve basear-se em conduta da outra parte que, objectivamente considerada, revele intenção de se vincular a determinado modo de agir futuro, e foi com base nessa conduta concludente que a contraparte criou expectativas legítimas, nela confiando e investindo, orientando a sua vida em conformidade.
Assim contraria o princípio da boa-fé que alguém exerça um direito em contradição com conduta sua anteriormente assumida, frustrando as legítimas expectativas da outra parte que adquiriu convicção fundada de que aquele não viria a adoptar conduta contrária no futuro. “A confiança digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo: numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura”, cfr. Prof. Baptista Machado, Tutela da Confiança e venire contra factum proprium”, in RLJ 118, pág. 171.
O mesmo Prof., in “Obra Dispersa”, vol. I, págs. 415 a 418, refere que o efeito jurídico próprio do instituto só se desencadeia quando se verificam três pressupostos:
1. Uma situação objectiva de confiança: uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura;
2. Investimento na confiança: o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposições ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos se a confiança legítima vier a ser frustrada;
3. Boa-fé da contraparte que confiou: a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando de boa fé e tenha agido com cuidado e precaução usuais no tráfico jurídico.
Em suma, o “venire contra factum proprium” traduz-se de um modo geral, na pretensão de alguém extinguir certa relação subjectiva, recorrendo ao direito de anular, resolver, revogar ou denunciar o negócio que lhe serviu de fonte, depois de fazer crer à parte contrária, por acção ou por omissão, que não iria exercer tal direito
Ora, a questão colocada pelo apelante não é nova, sendo conhecidas sobre ela divergências doutrinais e jurisprudenciais, sendo certo que as partes vêm agora indicar jurisprudência no sentido da posição que defendem, omitindo, contudo, a que lhes é desfavorável.
No entanto, entendemos que, em geral, inexiste qualquer divergência de fundo quanto à essência do instituto do abuso de direito, o que existe é uma análise divergente, em face de cada caso concreto e das suas particulares circunstâncias, relativamente ao cumprimento, ou omissão, dos deveres por parte do financiador.
Pelo que é pela análise das circunstâncias do caso em apreço nos autos à luz do que acima se deixou consignado quanto ao instituto do abuso de direito, mais precisamente na sua modalidade de “venire contra factum proprium” que se poderá conclui se o executado/apelante ao alegar a nulidade do contrato por violação por parte da exequente do dever de entrega de um exemplar do contrato ao consumidor no momento da respectiva assinatura, imposto pelo art.º 6.º n.º1 do DL 359/91, de 21.09, está a agir ou não em manifesto abuso de direito.
Atentos a factologia assente nos autos, acima sintetizada, e considerando que apenas depois de ter sido demandado por via da execução de que este é um apenso, veio o executado/apelante, por oposição à execução, é que a executado dizendo que, porque a exequente (ou quem agiu por ela à ocasião) lhe não entregou um exemplar do contrato no momento da respectiva assinatura, ele é nulo, requerendo que o tribunal extraia desse facto as legais consequências, “in casu” obstando ao pagamento coercivo da quantia alegadamente em dívida.
Não esquecendo que o executado/apelante é incontestavelmente a parte mais fraca e na prática a mais desprotegida no contexto negocial em apreço e que o legislador com a imposição ao proponente dos deveres previsto no art.º 6.º n.º1 do DL 359/91, de 21.09, simultaneamente com o estabelecimento de sanções para o caso do seu incumprimento, quis precisamente proteger essa parte. Mormente, tendo e vista, como se refere na decisão recorrida, o exercício do direito à livre revogação “a entrega do exemplar no momento da assinatura do contrato impõe-se” pois que “estando o exercício de tal direito sujeito a um prazo, é imperioso, tendo em vista salvaguardar de forma plena o esclarecimento consumidor, que esteja na posse do exemplar durante o período dito de reflexão”.
Dúvidas não restam de que o referido contrato está ferido de nulidade, pela não entrega ao apelante de um exemplar do contrato no momento da sua assinatura, e que essa nulidade não ficou sanada com o seu envio pelo correio em momento posterior. Contudo, depois de ponderados todos estes factos e circunstâncias, não temos quaisquer dúvidas em afirmar que o comportamento do executado/apelante é clamoroso e violador das regras da boa-fé, isto é, manifestamente abusivo, pois que contradiz directamente o seu anterior comportamento.
Todo o comportamento anterior do executado (anterior à execução de que este é um apenso), apresenta-se como uma manifesta auto vinculação ao contrato de crédito, o que indubitavelmente levou a exequente, legitimamente, isto é de boa-fé, a firmar a convicção de que o executado nunca iria invocar o incumprimento daquele dever de entrega de um exemplar à ocasião da assinatura do contrato, com vista a obstar ao pagamento coercivo da quantia em dívida, após a resolução contratual. Daí que a exequente investindo na confiança que assim lhe foi transmitida pelo comportamento do executado e com base nela tenha orientado a sua actividade futura contando com o cumprimento desse contrato, sendo certo que o actual e contraditório comportamento do executado/apelante além de frustrar aquela confiança, causará prejuízos à exequente que se revelam mais extensos do que se o executado tivesse exercido aquele seu direito há mais tempo.
Manifestamente o executado, depois de ter cumprido o contrato durante quase de dois anos, e mesmo quando já em incumprimento quanto às obrigações decorrentes do contrato assumido, quando interpelado pela exequente para cumprir, nada fez, pelo que só agora (em sede de oposição à execução) vir invocar a nulidade por violação do dever de entrega de um exemplar à data da assinatura, não está a actuar como uma pessoa de bem, honestamente e com lealdade, mesmo que disso não tenha consciência.
Nesta situação há manifesto abuso do direito por parte do executado/apelante, o que impede o exercício do direito de pedir a nulidade do contrato por inobservância do dever de entrega de um exemplar do contrato no momento da respectiva assinatura e, por essa via, conseguir uma vantagem económica.
Finalmente sempre se dirá que pensamos que o assim considerado conduz a uma solução mais justa e equilibrada, neutralizando o exercício de um direito que contraria claramente os princípios da boa-fé e que salvaguarda a relação de confiança criada entre as partes no contrato sub judice.
Pelo que terá de concluir-se que, apesar da verificação da nulidade do contrato por incumprimento por parte da exequente do dever imposto no art.º 6.º n.º1 do DL 359/91, de 21.09, deverá negar-se ao executado/apelante a produção dos respectivos efeitos, por constituir um claro abuso de direito, dado exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, nos termos do disposto no art.º 334.º do C.Civil. Logo, nenhuma censura nos merece o, quanto a esta questão, decidido em 1.ª instância.
Improcedem as respectivas alegações do apelante.
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3.2. Da excepção de abuso de preenchimento da livrança exequenda.
Insiste ainda o apelante em entender que se verifica um preenchimento abusivo da livrança dada à execução, e isto porque não houve qualquer pacto de preenchimento negociado e celebrado inter partes; e, a existir, consta de cláusulas gerais do contrato que, “ex vi legis”, têm de ser excluídas deste, por violação do regime estatuído no D.L. 446/85, de 25.10, concretamente, por não terem sido cumpridos os deveres de informação e de comunicação.
Ora sobre tal questão entendeu a 1.ª instância que, em primeiro lugar que o executado/apelante para concluir pela violação do pacto de preenchimento da livrança exequenda, tinha de ter alegado (no fundo, afirmado quando, por que valor e em que circunstâncias poderia a exequente preencher a livrança), o que não fez, e em segundo lugar que não tendo o executado/apelante arguido a falsidade da assinatura, nem do próprio documento de onde consta o contrato, impõe-se considerar que o documento faz prova das declarações que constam imediatamente antes da aposição da assinatura, por as declarações dele constantes serem atribuídas ao executado e contrárias aos seus interessem, concretamente a declaração que consta 1.ª página do contrato, imediatamente antes da assinatura do executado, onde se pode ler que: “O(s) Cliente(s) declara(m) conhecer todas as condições e cláusulas do presente contrato de crédito (composto pelas presentes Condições Particulares e pelas Condições Gerias constantes do verso ou de anexo ao presente documento), sobre as quais foi/foram devidamente informado(s), tanto por lhe(s) ter sido dado a ler, como por lhe(s) ter sido fornecido um exemplar do mesmo no momento da sua assinatura”.
Em suma, concluiu o tribunal recorrido pelo cumprimento por parte da exequente dos deveres de comunicação e de informação impostos pelos art.ºs 5.º e 6.º do DL 446/85, de 25.10.
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Vejamos.
No caso em apreço, o título dado à execução é uma livrança, subscrita pelo executado/opoente/apelante. Estamos, pois, atento o título executivo, perante uma acção cambiária.
Assim sendo, a obrigação cartular, e o correspondente direito, tem precisamente os limites que o conteúdo objectivo do documento lhe assinala, sendo irrelevantes as convenções extra-cartulares para o portador que lhes tenha sido estranho. Ela reveste a natureza formal e abstracta, sendo, por conseguinte, independente de qualquer “causa debendi”, válida por si e pelas estipulações nela expressas, ficando o signatário vinculado pelo simples facto da aposição da sua assinatura no título, cfr. Pinto Coelho, in “Lições de Direito Comercial”, 2.º fasc. II, As Letras, pág. 45. Por tal razão, pode-se e comumente afirma-se que a obrigação cambiária que serve de base à execução é como se fosse uma obrigação sem causa; o que de certo modo resume o conjunto dos princípios caracterizadores da letra de câmbio e da livrança, enquanto títulos de crédito - incorporação da obrigação no título, literalidade, abstracção, independência recíproca das diversas obrigações incorporadas no título e autonomia do direito do portador que é considerado credor originário, cfr. Abel Pereira Delgado, in “Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, Anotada”, pág. 105.
Do teor do documento junto a fls. 31 e 32 dos autos, - contrato de crédito n.º …… – não impugnado pelo opoente/apelante nos termos do disposto no n.º1 do art.º 544.º do C.P.Civil, consta a convenção executiva firmada entre a exequente e o subscritor da livrança, assim como consta do ponto 10 das condições gerais o pacto ou convenção de preenchimento da livrança entregue em branco, subscrita pelo apelante, emitida para garantia do cumprimento das obrigações emergentes do contrato, autorizando a exequente a completar o preenchimento do título, quando o entendesse conveniente, fixando-lhe a data de emissão e de vencimento, o local de emissão e de pagamento e indicando o montante tudo quanto constituísse o seu crédito sobre o referido subscritor. Esse contrato e pacto de preenchimento encontra-se subscrito e assinado pela exequente e pelo apelante.
A livrança em causa, completada no seu preenchimento pela exequente encontra-se, sem dúvidas, no domínio das relações imediatas, ou seja, no domínio das relações entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato (relações sacador-sacado, sacador-tomador, tomador primeiro endossado, etc.), isto é, no âmbito das relações nas quais os sujeitos cambiários o são concomitantemente das convenções extracartulares, isto é, o título não entrou em circulação pelo que não há a defender quaisquer terceiros de boa-fé, e daí que não se aplique aqui as regras da abstracção, literalidade e autonomia do título.
Sempre se dirá ainda que como se refere no Ac. do STJ de 3.05.2005, in www.dgsi.pt, o contrato ou pacto de preenchimento é “O acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede do pagamento, a estipulação de juros, etc.”. E refere-se no Ac. do STJ de 13.04.2011 in www.dgsi.pt que “O pacto de preenchimento é um contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos deve ocorrer a completude do título cambiário, no que respeita aos elementos que habilitam a formar um título executivo, ou que estabelece em que termos se torna exigível a obrigação cambiária”.
Este acordo, ou pacto de preenchimento, pode ser expresso ou induzir-se perante certos factos provados (tácito), reporta-se à obrigação cartular em si mesma, que pode ou não coincidir com a obrigação que esta garante (obrigação extracartular ou subjacente), e que daquela é causal ou subjacente.
Segundo o disposto no art.º 10.º da LULL – Violação do pacto de preenchimento – aplicável às livranças por força do art.º 77.º: - “Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má-fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave”.
Pelo que o preenchimento do título (letra ou livrança em branco) diz respeito não só ao acordo de preenchimento, (isto é, ao contrato que, como todos, deve ser pontualmente cumprido, art.º 406.º n.º1 do C.Civil); mas também o seu regular preenchimento em obediência ao pacto é o “quid” que confere força executiva ao título, especialmente, quanto aos requisitos de certeza, liquidez e exigibilidade.
Importa ter presente que o preenchimento abusivo da livrança foi suscitado pelo ora recorrente no âmbito do procedimento incidental de oposição a execução e, sendo esta oposição uma contra-acção do executado à acção executiva da exequente, com vista a impedir a execução ou a obstar à produção dos efeitos do título executivo, é sobre o oponente/executado que recai o ónus de alegação e prova da inexistência de causa debendi ou do direito da exequente ou de factos impeditivos, modificativos ou extintivos daquele direito, cfr. art.º 342.º n.º. 2, do C.Civil. Pelo que, invocando o executado/ /oponente o preenchimento abusivo de uma livrança, tem de alegar e provar os factos que consubstanciam o dito preenchimento abusivo, por se tratar de matéria que constitui excepção peremptória, enquanto facto impeditivo do direito invocado pelo portador do título, cfr. art.ºs 342.º n.º 2, do C.Civil e 576.º do C.P.Civil. Pois que a livrança em branco, cuja admissibilidade resulta dos art.ºs 10.º e 77.º da LULL, destina-se normalmente a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior, pelo que a sua entrega assinada em branco faz presumir que é acompanhada dos poderes necessários para o seu preenchimento de acordo com o denominado pacto ou acordo de preenchimento, cabendo, pois, ao executado/oponente o ónus de provar que o seu preenchimento está em desacordo com o que fora convencionado pelas partes.
“In casu” o executado/apelante poderia opor à exequente a excepção material do preenchimento abusivo da livrança exequenda. Mas como bem se refere na decisão recorrida, para se poder aquilatar se ocorreu na realidade violação do pacto ou convenção de preenchimento, incumbia ao executado/apelante, além do mais, alegar que subjacente à entrega da livrança em branco, existia uma determinada convenção de preenchimento, que a exequente ao completar o preenchimento do título havia violado e não o fez.
Destarte, improcede a excepção de direito material do preenchimento abusivo da livrança exequenda.
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Todavia há que apurar se a cláusula que consta das condições gerais do contrato, (cláusula 10.ª) pode suportar o preenchimento que a exequente fez da livrança exequenda, e isto, desde logo, porque estamos perante uma cláusula contratual geral inserta num formulário pré-elaborado e apresentado ao aderente.
Ora, o contrato de crédito ao consumo, (como é o contrato em apreço nos autos subjacente à emissão da livrança exequenda), em relação ao qual o mutuário apenas tem a opção de aceitar ou rejeitar em bloco o conteúdo contratual que lhe é proposto, dentro do tipo contratual desejado pelas partes, como é o caso do contrato dos autos, constitui um contrato de adesão. Pelo que tendo-se recorrido às cláusulas contratuais gerais, o contrato, está submetido ao regime jurídico instituído pelo DL 446/85, de 25.10, com as alterações introduzidas pelo DL 220/95, de 31.08 e DL 249/99 de 7.07.
E, por isso, para que as cláusulas gerais e pré-estabelecidas se possam considerar parte integrante desses contratos é necessário que sejam aceites pela outra parte, o que só pode, evidentemente, ocorrer se esta tiver conhecimento dessas componentes da proposta negocial, pois que sem esse conhecimento não se pode falar de uma livre, consciente e correcta formação de vontade, daí que o dever de comunicação, na íntegra, dos projectos negociais, seja uma simples decorrência do princípio da boa-fé contratual, cfr. art.º 227.º do C.Civil.
Como bem evidencia o Prof. Oliveira Ascensão, in “Teoria Geral do Direito Civil”, vol. III, pág.364, “O contrato de adesão é uma manifestação fatal da sociedade de massas.
O contrato de adesão oferece por outro lado grandes perigos. A parte que predispõe os termos contratuais está naturalmente tentada a considerar muito mais os seus interesses que os do aderente. Os contratos de adesão costumam ser assim caracterizados por uma defesa exaustiva dos interesses do emitente, e um desinteresse marcado pelo que respeita ao aderente”.
Sobre a importância da comunicação do conteúdo negocial, no caso dos contratos de adesão, refere Ana Prata in “Notas sobre responsabilidade pré-contratual”, pág. 51, que: - “Os deveres de informação e de esclarecimento designadamente os relativo a ao conteúdo contratual, sua composição e seu significado, assumem particular relevância quando se esteja perante dois sujeitos cujo poder negocial se apresente desequilibrado, revestindo então essas obrigações maior amplitude para aquela das partes que detenha uma posição negocial susceptível de lhe permitir impor à contraparte cláusulas, que esta, em consequência da sua debilidade contratual, não aperceba no seu integral significado ou de que, mais simplesmente, nem sequer tome conhecimento”.
As cláusulas gerais contratuais apenas são consideradas integrantes do contrato desde que a respectiva aceitação pelo aderente, tenha sido precedida da sua comunicação informada (integral e adequada) por parte de quem propõe tais cláusulas, cfr. art.ºs 4.º, 5º e 6º do DL 446/85 de 25.10
De harmonia com o disposto no referido art.º 5.º:
“1. As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las.
2. A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a sua extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.
3. O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante determinado que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais”, tinha o proponente a obrigação de comunicar ao aderente o conteúdo integral das cláusulas gerais insertas no contrato.
Tal como vem sendo entendido pela generalidade da Jurisprudência e da Doutrina, exige-se do proponente, para esse efeito, um comportamento activo, de modo a possibilitar ao aderente o conhecimento adequado, completo e efectivo das referidas cláusulas contratuais. É o proponente que tem de tomar a iniciativa e não se quedar pelos pedidos de esclarecimento que o aderente possa formalizar, cfr. Ac. do STJ de de 13.05.2008, de 28.04.2009 e de 7.7.2009, Ac. da Relação do Porto de 24.04.2008, Ac. Relação de Lisboa de 5.02.2009, todos in www.dgsi.pt, Almeno de Sá, in “Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva sobre Cláusulas Abusivas”, pág. 190, Almeida Costa e Menezes Cordeiro, in “Cláusulas Contratuais Gerais” e Gravato Morais, in “Contratos de Crédito ao Consumo”, pág. 107.
Como referem Almeida Costa e Meneses Cordeiro, in “Cláusulas Contratuais Gerais”, pág. 25. “O dever de comunicação é uma obrigação de meios: não se trata de fazer com que o aderente conheça efectivamente as cláusulas, mas apenas de desenvolver, para tanto, uma actividade razoável. Nessa linha, o nº2, esclarece que o dever de comunicação varia, no modo da sua realização e na sua antecedência, consoante a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas. Como bitola, refere-se a lei à possibilidade do conhecimento completo e efectivo das cláusulas por quem use de diligência comum. Encontra-se aqui uma afloração do critério geral de apreciação das condutas em abstracto e não em concreto”.
O art.º 6.º do citado DL impõe também ao proponente um dever de informação, segundo o qual:
“1. O contratante determinado que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique.
2. Devem ainda ser prestados todos os esclarecimentos razoáveis solicitados”.
Exige-se, portanto, ao proponente, que desenvolva uma actividade razoável dirigida ao aderente, que permita a esse, entendido como um homem médio, em circunstâncias normais, abstractamente, ter efectivo conhecimento do conteúdo contratual, das obrigações e deveres que vai assumir, assim como dos direitos que lhe irão assistir. Incluindo-se neste dever de informação, designadamente, a prestação de todos os esclarecimentos razoáveis solicitados pelo aderente.
A violação destes deveres pelo proponente determina, por força do disposto no art.º 8.º als a) e b) do DL 446/85, de 25.10, não determina a invalidade do contrato, mas apenas exclusão das respectivas cláusulas do contrato, vigorando na parte afectada as normas supletivas aplicáveis, com recurso, se necessário, às regras de integração dos negócios jurídicos, a menos que mesmo assim ocorra uma indeterminação insuprível de aspectos essenciais ou um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa-fé, caso em que o contrato será nulo, cfr. art.º 9.º n.ºs 1 e 2 do mesmo diploma.
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“In casu” provou-se que o processo tendente à celebração do contrato de crédito em apreço nos autos foi conduzido por um funcionário do “E…, Ld.ª”. O executado. Em 3.05.2007, assinou uma proposta de financiamento e documentação avulsa que o vendedor lhe explicou destinar-se a instruir a proposta, na qual foi objecto de discussão entre o executado e o vendedor o valor e o número das prestações mensais. Esse mesmo documento foi assinado por representante da exequente em data posterior.
Mais se provou que no espaço prévio à assinatura do executado no documento referido consta: “O(s) Cliente(s) declara(m) conhecer todas as condições e cláusulas do presente contrato de crédito (composto pelas presentes Condições Particulares e pelas Condições Gerias constantes do verso ou de anexo ao presente documento), sobre as quais foi/foram devidamente informado(s), tanto por lhe(s) ter sido dado a ler, como por lhe(s) ter sido fornecido um exemplar do mesmo no momento da sua assinatura”. Tal efectivamente resulta do rosto do documento que titula o referido contrato, junto a fls.31-32 dos autos, incluída nas designadas “Condições Particulares” do contrato, que são negociadas entre as partes.
De acordo com esta declaração — que o executado/apelante não pode alegar que desconhecia porque está aposta imediatamente antes da sua assinatura (e se não a leu sibi imputet, é falta de diligência sua) — o executado não só tomou conhecimento das cláusulas constantes das “Condições Gerais” do contrato, constantes da 2.ª folha do documento, como em 18.05.2007, recebeu da exequente uma cópia da proposta de financiamento, agora contrato de financiamento, contendo a globalidade dessas cláusulas.
E como se refere na decisão recorrida a propósito desta questão, se“(…) toda a autoria do documento (no que respeita à sua pré elaboração) é da exequente, não se pode tratar de igual forma as declarações contratuais e as declarações proferidas aquando da celebração do contrato, sendo certo que, quanto a estas, nada impede antes se impõe convocar o disposto no art.º 376.º, n.º1 e 2, do Código Civil. Ou seja, não tendo o opoente arguido a falsidade da assinatura, nem do próprio documento, impõe-se considerar que o documento faz prova das declarações que constam imediatamente antes da aposição da assinatura, por as declarações, dele, constantes serem atribuídas ao executado e contrárias aos seus interesses”.
É, assim, evidente que o executado/apelante não fez qualquer prova sobre o alegado preenchimento abusivo da livrança. O qual, todavia, se mostra conforme com o disposto na cláusula 10.ª das Condições Gerais do contrato, onde se estabelece que “O Cliente e, se aplicável, o(s) respectivo(s) Avalista(s) autoriza(m) a C… a preencher, caso exista, qualquer livrança ou outro documento ou garantia por si subscrito/avalizado e não integralmente preenchido, designadamente no que se refere á data de vencimento, local de pagamento e aos valores, até ao limite das responsabilidades assumidas pelo(s) Cliente(s)/Avalista(s) perante a C…, por força do presente contrato, e em dívida na data de vencimento, acrescidos de todos e quaisquer encargos com a selagem dos títulos”.
Face a este mandato conferido à exequente pelo ora executado/apelante, é inconsequente e despropositado o alegado abuso de preenchimento da livrança exequenda.
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Resta, pois, aferir se a dita cláusula é inoponível ao apelante, ao abrigo do disposto nas als. a) e b) do art. 8.º do DL 446/85, de 25.10, na redacção dada pelo DL 249/99, de 7.07, por incumprimento pela exequente dos deveres de comunicação e informação previstos nos art.ºs 5.º e 6.º do mesmo diploma legal. Que constituem a desconformidade com a lei que o apelante aponta à sentença recorrida e cujo ónus da prova compete à exequente, cfr. art.º 5.º, n.º 3, do mesmo DL.
No que se refere ao dever de comunicação, temos provado que “in casu” houve uma fase preliminar da contratação que foi levada a efeito pelo vendedor do Stand onde o apelante adquiriu o veículo, o qual lhe explicou necessariamente os aspectos essenciais do financiamento (valor e número de prestações), de forma que assim habilitado a tomar uma decisão o executado/apelante acabou por aceitar celebrar o contrato, assinando-o. Mas, de facto, não se provou, em concreto, o que o vendedor, não obstante ter-se provado que estava habilitado pela exequente a celebrar contratos de financiamento em nome dela, comunicou ao ora apelante detalhadamente as cláusulas contratuais do mesmo. Ou seja, não se provou, em concreto, que ele facultou ao executado a leitura do documento de onde constam todas as cláusulas do contrato de crédito em apreço, incluindo as “Condições Gerais” que constam da 2.ª página do dito documento, e se consequentemente foi assim que o executado tomou assim conhecimento das referidas “Condições Gerais” e, de seguida, assinou a referida proposta/contrato inteirado convenientemente de todas elas.
É certo que o executado/apelante alegou nos autos que nunca lhe foram lidas e/ou explicadas, por quem quer que fosse, as denominadas “Condições Gerais de Financiamento para Aquisição a Crédito”, que constam da 2.ª página do contrato que recebeu da exequente no dia 18.05.2007. Consequentemente competia à exequente o ónus de provar que tinha cumprido, de forma completa, clara e perceptível, os deveres de comunicação e de informação, nos exactos termos que estão definidos nos art.ºs 5.º e 6.º do DL 446/85, de 25.10.
Todavia e como foi decidido em 1.ª instância, atenta a factologia assim provada nos autos, não nos repugna dela concluir que o referido vendedor teve junto do executado/apelante, um comportamento activo, de modo a possibilitar-lhe o conhecimento adequado, completo e efectivo das referidas cláusulas contratuais, entendido este como um homem médio, em circunstâncias normais, abstractamente, teve assim efectivo conhecimento do conteúdo contratual, das obrigações e deveres que ia assumir, assim como dos direitos que lhe iriam assistir. Aliás o executado ora apelante declarou expressamente conhecer todas as condições e cláusulas do contrato de crédito (composto pelas presentes Condições Particulares e pelas Condições Gerias constantes do verso ou de anexo ao presente documento), sobre as quais foi devidamente informado, tanto por lhe ter sido dado a ler.
E quanto ao dever de informação, não consta alegado que o executado/apelante tivesse suscitado alguma dúvida razoável sobre o conteúdo dessas cláusulas contratuais, que era pressuposto do dever de informação por parte da exequente, previsto no art.º 6.º do regime legal supra citado. Na verdade, está provado nos autos que após a celebração do contrato, a exequente diligenciou pelo envio ao executado/apelante de carta de boas vindas, juntamente com plano de pagamentos, fornecendo ainda indicação de linha de apoio ao cliente para quaisquer questões suscitadas e que, apesar dos vários contactos estabelecidos posteriormente (entre 15.05.2007 e 2009), o ora apelante nunca manifestou junto da exequente quaisquer dúvidas, renitências ou discordâncias relativamente ao montante em dívida ou ao teor do contrato celebrado.
Ora, “in casu”, a factologia dos autos é suficiente para concluir que o executado/apelante teve conhecimento, antes da assinatura da proposta/contrato, de todas as cláusulas constantes das “Condições Gerais”, onde se incluía, sob a cláusula 10.ª, o mandato de preenchimento da livrança assinada e entregue à exequente em branco. Conhecimento que lhe permitia não assinar o contrato se discordava de alguma dessas cláusulas. E, assim, há que considerar válidas e eficazes em relação ao executado/apelante todas essas cláusulas. Em que se inclui a cláusula relativa ao mandato conferido à exequente para preencher a livrança (cláusula 10.ª). O que conduz à improcedência do alegado fundamento do preenchimento abusivo da livrança.
Improcedem, por isso, as respectivas conclusões do apelante.
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3.3. Da dação em cumprimento.
Persiste o executado/apelante em defender que com a entrega do veículo à exequente se operou a extinção da obrigação. Ou seja, que ocorreu uma dação em cumprimento ou em pagamento (“datio in solutum”).
A sentença recorrida entendeu que “(…)dos factos provados, ou mais precisamente, dos factos não provados, não resultou aquele assentimento do credor com vista à extinção da obrigação, pelo que a entrega do veículo, independentemente de saber se o seu valor de mercado poderia ser outro ou não (o que também não se provou), apenas teve como efeito a extinção parcial da dívida (o valor foi imputado da quantia em dívida) após a venda do veículo e pelo valor pelo qual foi vendido”.
Vejamos.
A dação em cumprimento ou “datio in solutum” consiste na realização de uma prestação diferente da que é devida, com o fim de, mediante acordo do credor, extinguir imediatamente a obrigação, cfr. art.º 837.º do C.Civil.
Conforme sublinha A. Varela, in “Direito das Obrigações”, vol II, pág. 169, “logo pela simples leitura do artigo 838.º se verifica que a dação pode ter por objecto, quer a transmissão (da propriedade) duma coisa, quer a transmissão de um (outro) direito, costumando os autores indicar, entre os direitos cuja transmissão é capaz de integrar a figura da dação, tanto o usufruto, como o crédito que o devedor tenha sobre terceiro.
Verificados os requisitos da dação em cumprimento - (que haja uma prestação diferente da que é devida; que essa prestação (diferente da devida) tenha por fim extinguir imediatamente a obrigação), - verifica-se o seu principal efeito: a extinção da obrigação.
Este efeito da dação em cumprimento coaduna-se com a sua própria natureza jurídica, pois trata-se de um acto salutório da obrigação, assente sobre uma troca ou permuta convencional de prestações. A dação pressupõe assim a realização de um “aliud”, por acordo entre as partes, para cumprir a obrigação, cfr. A. Varela, in obra citada, pág. 182.
O fim da dação consiste na extinção da obrigação (da única obrigação que persiste nas relações entre as partes); o meio dessa extinção... pressupõe uma troca concertada entre as partes - troca que se efectua no próprio momento da “datio”, cfr. - A. Varela, in obra citada, pág. 182.
Ao invés, a dação em função do cumprimento, ou dação “pro solvendo”, cfr. art.º 840.º do C.Civil, é-nos definida pelo Prof. Pessoa Jorge, in “Lições de Direito das Obrigações”, parte II, págs. 446-450, como sendo “a transmissão pelo devedor ao credor de uma coisa ou direito, com o encargo de o credor realizar o respectivo valor, pelo qual satisfará o seu crédito”. Entre os efeitos da dação em função de pagamento (ou “datio pro solvendo”) indicava esse Prof. que se contava o facto de “a dívida apenas ficar extinta mediante a boa liquidação do direito transmitido”.
A distinção da dação em pagamento (“datio pro solutum”) da dação em função do pagamento (“datio pro solvendo”) estabelecia-se no facto de naquela se processar a extinção imediata e incondicional da dívida, ao passo que nesta (“datio pro solvendo”) a extinção da dívida se achar condicionada à efectiva satisfação do direito do credor, isto é, só se dando no momento da efectiva satisfação do credor e na medida dessa satisfação.
Igualmente os Prof. Fernando Olavo, in “Direito Comercial”, I, pág. 112 e Vaz Serra, in “Dação em função de cumprimento e dação em cumprimento”, BMJ 39, citado no C.C. Anotado e Comentado, de Pires e Lima/Antunes Varela, vol II, pág. 127 referem que “na “datio pro solvendo”, a dívida não se extingue pela mera entrega da coisa, mas só pela realização efectiva do seu valor ou conteúdo”.
Por seu turno, o Prof. Menezes Cordeiro, in “Obrigações”, 2.º, pág. 211 refere que “a dação “pro solvendo” é uma dação em cumprimento condicional; há uma efectiva substituição da prestação no cumprimento, mas a extinção da obrigação só se opera caso o credor realize o valor correspondente ao montante da prestação a que tinha direito”.
Na jurisprudência, escreveu-se no Ac. do STJ de 12.10.2006, in www.dgsi.pt que “a dação em cumprimento corresponde a uma das formas de extinção das obrigações e consiste na realização de uma prestação diferente da devida com o fim de, mediante acordo do credor, extinguir imediatamente a obrigação (art.º 837.º do C.C.). É distinta da dação em função do cumprimento (dação pro solvendo), pois nesta a prestação realizada, também diferente da devida, não tem como fim a extinção da obrigação, mas apenas facilitar o seu cumprimento (art.º 840.º do C.C). O carácter extintivo da obrigação por via da prestação diferente da devida tem de resultar da vontade expressa das partes”.
Podendo ler-se ainda no Ac. do STJ de 17.03.2005, in www.dgsi.pt que “O traço característico da dação em função do cumprimento traduz-se em as partes não pretenderem a extinção imediata da obrigação do devedor e quererem que ela subsista até à satisfação integral do direito de crédito do credor, como se fosse um mandato conferido à última pelo primeiro de se pagar por via de uma coisa ou de um direito de crédito. É essencial à dação em cumprimento o acordo do credor sobre a aceitação de prestação diversa feita pelo devedor e a imediata extinção do seu direito de crédito e da correspondente obrigação do devedor”.
Vertendo estes ensinamentos para o caso dos autos, vemos que na realidade o executado/apelante havia alegado que “a entrega da viatura ocorreu pelo montante ainda em débito à data, tendo sido este o sentido da vontade negocial manifestada pelo ora opoente, assim se extinguindo a sua obrigação para com a exequente”. Acrescentando ainda que “a exoneração do executado ocorreu com a aceitação, por parte da exequente, da viatura no pressuposto de tal entrega servir para extinção integral do débito”. E ainda que “Ficou claro que a viatura foi entregue para pagamento integral da dívida, ou seja, para cumprimento da obrigação de liquidar o valor efectivamente em dívida à data, com imediata extinção da obrigação aquando da entrega”.
Todavia, vendo os factos que resultaram provados nos autos, é manifesto que o executado/apelante não logrou fazer prova do assim alegado, cfr. art.º 342.º n.º 1 do C.Civil. Ou seja, não logrou ele provar que as partes (exequente e executado) aquando da entrega da viatura pelo segundo à primeira, quiseram, na realidade, extinguir, por essa via, imediatamente, a obrigação pecuniária que aquele tinha para com esta decorrente da resolução do contrato. Na verdade, ocorreu uma prestação diferente da devida, mas não se provou que o credor, exequente, tenha aceite que, com a realização dessa prestação, se tivesse extinguido imediatamente a obrigação que era devida.
Destarte e sem necessidade de outros considerandos temos de concluir que a entrega da viatura pelo executado/apelante à exequente importou tão só uma dação em função do cumprimento ou “datio pro solvendo”. Ora, de harmonia com o disposto no n.º1 do art.º 840.º do C.Civil, a exoneração do cedente só se verifica na medida que o cessionário obtenha a cobrança do crédito cedido, ou seja, com esta “datio” a obrigação subsiste e só se vem a extinguir com a satisfação do direito do credor e, na medida em que for satisfeito.
“In casu”, o veículo entregue veio a ser vendido apenas por €2.350,00, razão pela qual a obrigação do executado/apelante mantêm-se quanto ao restante em dívida.
Improcedem, assim, as restantes conclusões do apelante.

Sumário: -I - Não tendo o vendedor que contratou com e executado a celebração da proposta de financiamento em apreço, data em que este a assinou, entregue ao executado uma cópia ou exemplar dessa proposta, foi violado o disposto no art.º 6.º n.º1 do DL 359/91, de 21.09, o que ao abrigo do que preceitua o art.º 7.º n.º1 do mesmo diploma legal, implica a nulidade do contrato.
II – Age em abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium” o executado/apelante que depois de ter cumprido o contrato durante quase de dois anos, e mesmo quando já em incumprimento quanto às obrigações decorrentes do contrato assumido, quando interpelado pela exequente para cumprir, nada fez, pelo que só agora (em sede de oposição à execução) vem invocar a nulidade por violação do dever de entrega de um exemplar à data da assinatura, não está a actuar como uma pessoa de bem, honestamente e com lealdade, mesmo que disso não tenha consciência.
III - In casu” o executado/apelante poderia opor à exequente a excepção material do preenchimento abusivo da livrança exequenda. Mas para se poder aquilatar se ocorreu na realidade violação do pacto ou convenção de preenchimento, incumbia ao executado/apelante, além do mais, alegar que subjacente à entrega da livrança em branco, existia uma determinada convenção de preenchimento, que a exequente ao completar o preenchimento do título havia violado e não o fez.
IV - As cláusulas gerais contratuais apenas são consideradas integrantes do contrato desde que a respectiva aceitação pelo aderente, tenha sido precedida da sua comunicação informada (integral e adequada) por parte de quem propõe tais cláusulas, cfr. art.ºs 4.º, 5º e 6º do DL 446/85 de 25.10
V – Tendo o executado/apelante aposto a sua assinatura imediatamente a seguir à declaração de que “(…) declara conhecer todas as condições e cláusulas do presente contrato de crédito (composto pelas presentes Condições Particulares e pelas Condições Gerias constantes do verso ou de anexo ao presente documento), sobre as quais foi devidamente informado, tanto por lhe ter sido dado a ler, como por lhe ter sido fornecido um exemplar do mesmo no momento da sua assinatura”, não pode vir alegar que a desconhecia porque está aposta imediatamente antes da sua assinatura (e se não a leu sibi imputet, é falta de diligência sua), onde se incluía, sob a cláusula 10.ª, consistente no mandato de preenchimento da livrança assinada e entregue à exequente em branco.
VI - A dação em cumprimento ou “datio in solutum” consiste na realização de uma prestação diferente da que é devida, com o fim de, mediante acordo do credor, extinguir imediatamente a obrigação, cfr. art.º 837.º do C.Civil. A dação “pro solvendo” é uma dação em cumprimento condicional; há uma efectiva substituição da prestação no cumprimento, mas a extinção da obrigação só se opera caso o credor realize o valor correspondente ao montante da prestação a que tinha direito e na medida em que o realize.

IV – Pelo exposto acordam os Juízes desta secção cível em julgar a presente apelação improcedente e em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.

Porto, 2014.11.11
Anabela Dias da Silva
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Domingues
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[1] Facto aditado, como infra se decidiu.