Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
435/12.6TASJM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: CRIME
INSOLVÊNCIA NEGLIGENTE
PECULATO
NE BIS IN IDEM
CONCURSO APARENTE
MEDIDA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
NULIDADE DA SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
ROL DAS PENAS DE SUBSTITUIÇÃO
Nº do Documento: RP20180207435/12.6TASJM.P1
Data do Acordão: 02/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º6/2018, FLS.10-32)
Área Temática: .
Sumário: I - Para o preenchimento dos elementos do tipo de insolvência negligente é despiciendo questionar se os gastos tinham ou não retorno ou se este era ou não esperado.
II - Como se a arguida pudesse apropriar-se do dinheiro alheio e usá-lo a seu bel - prazer e proveito, correndo, por conta dos donos o risco de ausência de retorno para a arguida do que gastou do dinheiro deles.
III - Se a arguida foi julgado e condenada pelo crime de peculato, por se ter apropriado e usado valores/dinheiro, alheios em seu proveito, que lhe haviam sido entregue em razão das suas funções de solicitadora e agente de execução e, aqui está a ser julgada por não ter solvido as usas responsabilidades, por não ter dinheiro para o efeito.
IV - Sendo assim, a realidade fáctica que emerge de ambos os processos diferente, em qualquer uma das perspectivas, quer social, quer jurídica, consubstanciando crimes autónomos e distintos e visando realidades diversas, estando num em causa a gestão do património alheio (dos processo executivos) e no outro a gestão do seu património, não existe caso julgado e não se mostra violado o princípio ne bis in idem.
V - De qualquer forma a questão do eventual concurso aparente, traduzido na consumpção de crime de insolvência pelo crime de peculato, não pode ser conhecida em via de recurso, por constituir matéria nova, se não foi abordada na decisão recorrida.
VI - Ainda pode, no entanto, vir a sê-lo se depois de junta aos autos a ordenada certidão da sentença condenatória do peculato, para eventual elaboração de cúmulo jurídico, assim se vier a decidir e se a arguida impugnar tal decisão.
VII - Tendo em conta os factos na sua globalidade e local onde foram praticados e a sua envolvência social, em face da natureza económica e social do crime de insolvência, com as consequências que arrasta consigo, a reacção da ordem jurídica não se pode traduzir numa sensação de impunidade - que a pena suspensa transmite à comunidade - pondo em causa a validade da norma proibitiva e punitiva e, logo não protegendo eficazmente o bem jurídico tutelado, afectando a prevenção geral, que se afigura apenas reposta com a prisão efectiva.
VIII - No caso, em abstracto – dado que, quer o regime de permanência na habitação, quer a prestação de trabalho a favor da comunidade, pressupõem o consentimento do arguido e, tal não existir, no caso - apenas poderia ter lugar a substituição da pena de prisão ou por multa ou pela suspensão da execução da pena e esta foi-o, de forma expressa, afastada, donde não existe omissão de pronúncia em relação àquela primeira questão, pois que da fundamentação resulta claramente que apenas o cumprimento efectivo da pena de prisão pode prevenir o cometimento de novos crimes, não tendo o tribunal que percorrer sucessivamente cada um das penas de substituição abstractamente possíveis – por se verificar o pressuposto formal – em busca do pressuposto material.
IX - Isto tendo presente, ainda que, a pena é pessoal e intransmissível e que as penas de substituição não podem comprometer as finalidades da punição e, que no caso concreto a pena de multa teria pouca eficácia preventiva e, nenhum sentido faria, em função da situação concreta da arguida – actualmente detida e sem rendimentos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec nº 435/12.6TASJM.P1
TRP 1ª Secção Criminal

Acordam em conferência os juízes no Tribunal da Relação do Porto

No Proc. C.S. nº 435/12.6TASJM do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo de Competência Genérica de São João da Madeira - Juiz 2 foi julgada a arguida B….

Após julgamento por sentença de 7/9/2017 foi proferida a seguinte decisão:
“Por tudo quanto fica exposto, decide-se condenar a arguida B… na pena de 6 (seis) meses de prisão efectiva, pela prática de 1 (um) crime de insolvência negligente, p. e p. pelo art. 228º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
*
Custas a cargo da arguida, com taxa de justiça que se fixa em duas U.C.´s - arts. 513º e 514º, do Código de Processo Penal, e art. 8º/5 do Regulamento das Custas Processuais.”

Recorre a arguida a qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:
Da Matéria de Facto:
a. Por sentença datada de 07/09/2017, foi a recorrente condenada na pena de 6 meses de prisão efetiva pela prática de um crime de insolvência negligente, p. e p. pelo art.º 228/1 a) do Código Penal (CP), considerando a mesma que não só foram incorretamente julgados determinados pontos da matéria submetida a julgamento, como houve erro e omissão na valoração e apreciação da respectiva prova produzida.
b. Para a decisão recorrida, a Mm.ª Juíza a quo teve por base o facto de a arguida ter reconhecido que foi financiando as atividades do ex-companheiro, com dinheiro que lhe era confiado no exercício da sua profissão de agente de execução, situação que só ocorria pelo ascendente e pressão que este exercia sobre a mesma.
c. Que tal quantia “… foi por si gasta em proveito próprio e do seu agregado familiar…”, portanto, ”...gastos pessoais em seu proveito” – ponto 4 e 9 dos factos provados, respetivamente.
d. Integrado nesse dinheiro constava a componente de honorários da arguida que nem sequer foram considerados e, em ponto algum se fez prova de que as quantias despendidas o foram em proveito próprio, tendo sim, tal como discorre a própria sentença recorrida, servido para financiar negócios e despesas do excompanheiro.
e. Pelo que devem tais pontos ser alterados nesse mesmo sentido, o que se requer.
f. Tais negócios, ao contrário do que resulta do facto provado em 5, nomeadamente, na parte que diz “…sem nunca previamente cuidar de apurar se os mesmos seriam rentáveis…” geraram efetivamente expectativa de lucro e, portanto, de retorno do investimento que ali estava a ser feito.
g. Até para o homem médio e comum o investimento num negócio, integra e comporta um genuíno sentimento, expectativa e desejo de sucesso e retorno que aqui não pode ser excluído.
h. Tal foi profusamente referido pela recorrente, no depoimento prestado na audiência de julgamento do dia 14/06/2017 (início às 14:28:16 h e fim às 15:31:41), min.00:07:26 a 00:11:08.
i. Acresce que, conforme a própria refere, o seu ex-companheiro sempre se comprometeu a repor as quantias que esta despendeu consigo.
j. Assim, também nesta parte deve o facto referido (5) ser alterado correspondentemente, passando a constar que existiriam efetivas e reais expectativas de lucro quanto a tais negócios.
k. Questão diferente, é se o dinheiro e gastos em causa foram indevidos ou não, e isso é assunto tratado noutro processo pelo qual a arguida já foi julgada e correspondentemente condenada, encontrando-se a cumprir a respetiva pena de prisão – proc. nº 605/11.4TAOAZ que correu termos na Comarca de Aveiro – Santa Maria da Feira – Instância Central – 2ª Secção Criminal – J1.
l. Na douta sentença recorrida, dá também a Mm.ª Juíza a quo como provado, no facto 15, que a arguida “Podia e devia saber que ao proceder do modo atrás descrito, nomeadamente, ao financiar todas as iniciativas e investimentos realizados pelo seu então companheiro sem nunca cuidar de apurar se os mesmos seriam rentáveis e ao realizar as despesas pessoais acima descritas (?), estava a realizar gastos e a assumir encargos manifestamente exagerados e que não eram comportáveis com os rendimentos provenientes da sua atividade e com o seu património, nomeadamente sabia que estava a gastar todos os rendimentos auferidos por si e ainda quantias que lhe tinham sido confiadas no exercício das suas funções que pertenciam a terceiros e que a estes deveriam ser entregues e que, em consequência de tais condutas, criava um estado de insolvência e ficava impossibilitada de cumprir as suas obrigações”.
m. Pela mesma ordem de razões não se aceita, impugnando-se, a parte da presente sentença em que se dá como provado que a arguida fez os investimentos “sem nunca cuidar de apurar se os mesmos seriam rentáveis e ao realizar as despesas pessoais acima descritas”.
n. Dá-se ali como provado que a arguida “criava um estado de insolvência e ficava impossibilitada de cumprir as suas obrigações”, o que não se pode aceitar, pois a recorrente, como exposto na motivação da douta sentença, nunca se conformou nem considerou a hipótese de ficar insolvente e, sobretudo, de não ter condições de pagar aos respetivos credores.
o. Tanto que, antes de se ter ido denunciar à Câmara dos Solicitadores, procurou chegar a um acordo de pagamento com o seu principal credor, o Sr. C….
p. Atente-se no seu depoimento prestado na audiência de julgamento do dia 14/06/2017 (início às 14:28:16 h e fim às 15:31:41) do min. 00:20:42 a 00:28:48; do min. 00:35:17 a 00:42:44; do min. 00:49:18 a 00:51:49 e do min. 01:02:05 a 01:02:39.
q. É que foi feita prova bastante de que a recorrente, à altura dos factos tinha cerca de 3.000 processos pendentes no seu escritório de agente de execução e que, as contas correspondentes a esse exercício mantinham um saldo médio de 1 milhão de euros.
r. Atente-se nos depoimentos das testemunhas D… e Dr. E…, ambos prestados na audiência de julgamento do dia 10/07/2017, com início às 16:06:20 h e fim às 16:34:18h e início às 16:43:22h e fim às 17:04:46h, respetivamente (D…, do min. 00:01:37 a 00:03:02, do min. 00:05:52 a 00:07:06 e do min. 00:07:43 a 00:09:43) (Dr. E…, do min. 00:02:57 a 00:14:32).
s. Ora, nenhum destes factos a Mm.ª Juíza deu como provados ou relevou, mencionando brevemente e acrescentando, sem especificação ou sustentação factual ou documental, que apesar disso “o que sobressaiu foi que foi usando quantias como se fosse suas e gastando-as exageradamente, tendo em conta os valores em falta e o curto tempo decorrido”.
t. Ainda, o reconhecimento de que a arguida “afinal” tinha contabilidade organizada em nada relevou para a decisão.
u. Quando se trata de matéria de insolvência, tudo gira à volta de um conhecimento rigoroso de toda a vertente financeira, patrimonial, ativo e passivo, de crédito e capacidade de gerar riqueza, em suma, da análise por um lado da contabilidade e respetivo histórico e por outro do negócio e/ou atividade e consequente valor.
v. A arguida foi considerada insolvente, sendo este um facto irrefutável, mas tal teria que ser sustentado com prova inequívoca que a mesma se colocou nessa situação por negligência (no presente caso) sendo obrigatória a sustentação de tal afirmação num quadro, nomeadamente, económico-financeiro que caracterizaria a arguida como tal, o que não foi feito. Ora,
w. Em primeiro lugar, da contabilidade nada se soube ou sequer foi analisado no âmbito do presente processo.
x. Em segundo lugar, nunca em nenhum momento foi a atividade da arguida analisada na perspetiva da sua dimensão e potencialidade de criar riqueza e condições de liquidar débitos e efetuar pagamentos no âmbito da estrita atividade de agente de execução.
y. Em nenhum local é referido, analisado ou valorado o que aconteceu aos cerca de 3000 processos que se encontravam pendentes tramitados pela arguida, os honorários a que tinha legal e legitimamente direito e lhe pertenciam, a consequente e constante entrada de dinheiro nas respetivas contas correntes, os saldos e respetivas variações.
z. Ainda, de todos os milhares de processos desses exequentes e executados a serem tramitados pela arguida, com exceção do Sr. C…, nem um consta da relação de credores da sua insolvência, o que significa que aquela não só não prejudicou qualquer outro credor como, perante o reconhecimento de tal testemunha (Sr. C…) que nunca recebeu nada, também esta reconheceu que nada fez perante a Câmara dos Solicitadores.
aa. Em terceiro lugar, foi totalmente desvalorizado o facto da arguida, nas suas contas de execução, manter um saldo médio de cerca de 1 milhão de euros.
bb. Em quarto lugar, o Sr. Administrador de Insolvência, voluntariamente e sem ninguém lhe perguntar, em sede de testemunho, informou os autos que, pouco tempo após a declaração de insolvência (nos termos e nas condições supra referidas) recebeu um telefonema do F… onde lhe perguntaram o que deveriam fazer com um saldo de €500.000,00 que se encontrava numa das contas profissionais da arguida.
cc. Para o efeito, atente-se no depoimento da testemunha, Dr. G…, prestado na audiência de julgamento no dia 14/06/2017 das 15:32:26 h às 15:56:51h, do minuto 00:08:30 a 00:17:22.
dd. Meses depois da arguida ter sido impedida de exercer a sua atividade, o rendimento ou entradas de dinheiro nas suas contas são uma evidência e não podem deixar de relevar para efeitos de aferir da condição da insolvente e da capacidade da mesma em solver.
ee. Tudo isto só prova e demonstra que, a par dos bens apreendidos pela massa insolvente, o valor da pendência que tramitava e respetivos resultados e o que a recorrente tinha nas suas contas AE, teria saldo suficiente para pagar, nomeadamente, ao credor C…. Acontece que,
ff. O montante em causa foi apreendido pela Câmara dos Solicitadores, no âmbito do processo disciplinar instaurado à arguida, estando unicamente na disponibilidade daquela proceder ao competente pagamento dos créditos/débitos decorrentes da atividade da agente de execução.
gg. Atendendo a todo o exposto, falhou a sentença recorrida na apreciação da prova, desconsiderando elementos essenciais, nomeadamente, quanto à prova testemunhal e documental, que a serem tomados em conta, produziriam um resultado diferente do que aqui se recorre e a falta de certeza não poderá ser usada contra a arguida mas sim a seu favor.
Da Matéria de Direito:
hh. Não se demonstram verificados, nomeadamente, os pressupostos que preenchem o tipo de ilícito em causa para punir a recorrente, desde logo, atendendo ao facto de que foi feita prova de haver uma expectativa real e efetiva de lucro nos investimentos feitos pela recorrente nos negócios do excompanheiro, e ainda de que a recorrente, com referência ao momento anterior à sua suspensão tinha meios e aspiração legítima para suprir a alegada impossibilidade de cumprir com as suas obrigações.
ii. Assim, ao contrário do que se pode ler na motivação da sentença em crise, não houve grave incúria ou imprudência, ou despesas manifestamente exageradas (que não nos moldes referidos de perspetiva convicta de retorno).
jj. Por um lado, não foi atendida a prova produzida nos termos expostos, e por outro e consequentemente, carece a condenação de que aqui se recorre de prova suficiente, violando-se assim também os princípios da prova e do inquisitório.
kk. Os deveres e diligências a que a recorrente estava obrigada no âmbito da sua atividade profissional, a sua infração/ violação, os gastos realizados, a lesão das expectativas dos credores, entre outros pressupostos, já foram debatidos e objeto de julgamento em processo próprio (ponto k), onde foi condenada em pena de prisão efetiva.
ll. Uma punição com base nestes e no mesmo sentido, configuraria, ademais, uma violação do princípio elementar e garantia constitucional de ne bis in idem, consagrado no art. 29/5 da CRP.
Assim não se entendendo e sempre sem prescindir,
mm. Quer a escolha, quer a medida da pena que foram aplicadas à recorrente, mostram-se excessivas, violando os princípios da proporcionalidade, necessidade e adequação, socialidade e o princípio da preferência pelas reacções criminais não detentivas face às detentivas.
nn. No presente caso, a recorrente, à data dos factos era primária, não tendo antecedentes criminais, fator que exclui a forte necessidade de prevenção especial que a Mm.ª Juíza a quo reputou de fundamental para a determinação da medida da pena.
oo. Mais, ao abrigo do procedimento disciplinar que lhe foi instaurado, bem como, do processo de insolvência (cível), a recorrente foi suspensa, expulsa e, consequentemente, proibida de exercer a função que exercia ou qualquer outra relacionada.
pp. A recorrente encontra-se a cumprir pena de prisão efetiva de 4 anos e 6 meses pela prática de um único crime, que é o de peculato.
qq. Assim, não se pode perceber até que ponto é que uma pena de multa, ou uma pena privativa suspensa na sua execução, não garantam de forma eficaz as necessárias e específicas exigências de prevenção especial e geral no caso concreto.
rr. Olvida ainda a Mm.ª Juíza a quo qualquer circunstância atenuante e os elementos essenciais da alegada infração supra referidos que depõem a favor da arguida, nomeadamente, o facto de a arguida ter dois filhos, um deles menor e outro em idade escolar que vivem com a avó materna, sem a presença da figura materna que, na pior das hipóteses, tem ainda pela frente, pelo menos, 2 anos de prisão.
ss. Não foi tido em conta que a arguida, a cumprir pena de prisão, tem tido um comportamento exemplar, pró-ativo, trabalhando nesse contexto para ajudar os filhos e a mãe financeiramente.
tt. Situações estas vertidas e analisadas pelo relatório social que a sentença reproduz mas sobre o qual não se debruça ou considera relevante.
uu. E onde se expõe e foi patente nas declarações da própria arguida/recorrente, o seu arrependimento, conformação com a pena que tem e está a cumprir e vontade de mudar o rumo da sua vida, nomeada e principalmente, em favor dos seus filhos.
vv. Todas estas circunstâncias serviriam e servem, no mínimo e a considerar-se a aplicação da pena de prisão, para que o Tribunal opte pela sua suspensão (art.º 50 do CP).
Novamente, sem prescindir, e caso se entenda que existe fundamento e preenchimento dos pressupostos de punibilidade,
ww. Tal como suscitado em sede de exposições introdutórias e alegações, a presente ação penal está intimamente ligada com o proc. nº 605/11.4TAOAZ em que a arguida foi condenada pela prática de um crime de peculato.
xx. A arguida foi condenada, essencialmente, pelos mesmos factos pelos quais vem agora a ser condenada ao abrigo deste novo processo e, tendo em conta o comportamento global da arguida, os factos em apresso e, essencialmente, o desvalor jurídico-penal e criminalmente relevante da sua atuação, apesar do eventual preenchimento de dois tipos de ilícito, há um que prevalece claramente (in casu, o crime de peculato) e que consome o crime de insolvência negligente pelo qual a recorrente foi julgada.
yy. A consideração de um eventual cúmulo jurídico nunca poder-se-á fazer nos termos de um cúmulo efetivo ou próprio mas sim aparente ou impróprio, que a não ser assim considerado poderá levar a uma situação de violação do princípio ne bis in idem.
zz. Nas palavras do ilustre Professor Doutor Figueiredo Dias “… se, face às normas concreta e efectivamente aplicáveis, vários tipos legais se encontrarem preenchidos pelo comportamento global haverá concurso, mas não necessariamente concurso efetivo ou puro. Este pode não existir se se verificar que à pluralidade de normas efectivamente aplicáveis corresponde, apesar dela, um sentido jurídico-social de ilicitude material dominante, verificando-se então um concurso aparente ou impuro. (…) Um qualquer sistema de soma das penas aplicadas a cada crime para determinação da moldura do concurso aparente, mesmo que só do seu máximo, nos termos do art. 77.º-2, deve considerar-se afastada, uma vez que não só um tal sistema implicaria a violação frontal da ideia mestra que rege esta forma de concurso, como tal poderia importar – ou importaria as mais das vezes – uma violação inconstitucional do princípio ne bis in idem, na vertente da proibição da dupla valoração. A aludida ideia mestra a que se submete o concurso aparente só pode conduzir a que se tome como moldura penal do concurso aquela que corresponde ao sentido (...) dominante de desvalor do ilícito, determinante de uma tendencial ou aproximativa unidade global do facto; a qual será simultaneamente a que corresponde ao singular ilícito típico ao qual seja aplicável a moldura penal mais grave.” , in casu, a pena aplicada ao crime de peculato. Termos em que,
aaa. Deve considerar-se a falta de preenchimento de pressupostos configuradores do crime de insolvência negligente, absolvendo dessa forma a arguida.
bbb. Assim não se considerando e aplicando-se uma pena à arguida, por todas as circunstâncias descritas, mostra-se adequado, suficiente e proporcional a todas as exigências em causa, a aplicação de uma pena não privativa em detrimento da privativa. Sendo que,
ccc. Deverá ser sempre considerado o referido cúmulo jurídico impróprio ou impuro sob pena de se violarem grosseiramente as mais fundamentais garantias jurídico-penais que assistem à aqui recorrente.
Ao ter decidido, como decidiu, o Tribunal a quo violou, nomeadamente, os arts. 70, 71, 50 e 228/1 a) do CP, bem como, os arts. 124 do CPP e 29 da CRP.

O MºPº respondeu ao recurso defendendo a sua improcedência;
Nesta Relação o ilustre PGA emitiu parecer no sentido da nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto às penas de substituição não detentivas e procedência do recurso quanto à suspensão da pena de prisão.
Foi cumprido o artº 417º2 CPP

Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferência.
Cumpre apreciar.
Consta da sentença recorrida (transcrição):
“II - FUNDAMENTAÇÃO:
A- FACTOS PROVADOS:
Da acusação:
1-A arguida exerceu a actividade de solicitadora e agente de execução até 17 de Outubro de 2011, com escritório na Rua …, n.º …, …, em Oliveira de Azeméis, altura em que foi suspensa de funções no âmbito de um processo disciplinar instaurado pela Câmara dos Solicitadores, vindo a ser, posteriormente, expulsa desta mesma Câmara.
2- A arguida possuía contabilidade organizada para a actividade desenvolvida, tendo declarado o rendimento global de 46.186,21€, 89.916,96€ e 65.663,49€, nos anos de 2009, 2010 e 2011, respectivamente.
3- No exercício das atribuições inerentes a agente de execução, foi depositada na conta com o NIB …. …. …. …. …. ., por si titulada, durante o ano de 2007, no âmbito do processo executivo n.º 1921/07.5TBVCD, que correu termos no extinto 1º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Vila do Conde, a quantia global de 507.693,71€, relativa a valores ali penhorados e a prestação de caução.
4- Tal quantia, que havia sido depositada à ordem da arguida, na qualidade de agente de execução, foi por si gasta em proveito próprio e do seu agregado familiar, do qual faziam parte dois filhos menores e H…, com quem residiu em comunhão de cama, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, durante cerca de quinze anos e até meados de 2011.
5- Desde, pelo menos, o ano de 2007 e até meados de 2011, sem nunca previamente cuidar de apurar se os mesmos seriam rentáveis, a arguida custeou ensaios de projecção e realização laboral em sectores diversificados, nomeadamente calçado, artes e imobiliário, do seu companheiro H….
6- Nomeadamente, a arguida pagou todas as despesas inerentes ao propósito do mencionado H… auscultar as oportunidades de mercado na área da construção civil no Brasil, nomeadamente as despesas com viagens, alojamento, alimentação e lazer, de valor não apurado mas superior aos valores acima mencionados em 2º. 7- A arguida suportou ainda os custos despendidos com a constituição de uma sociedade de mediação imobiliária por parte de H…, que operava através de um contrato de franchising da I…, assim como as subsequentes despesas com a remodelação do espaço destinado ao funcionamento da imobiliária, de valor não apurado mas superior aos valores acima mencionados em 2º.
8- Tais investimentos avultados não obtiveram qualquer retorno de dividendos, acabando todos eles por se revelarem ruinosos.
9- Durante os anos de 2007 a 2011, a arguida fez pelo menos uma viagem de lazer ao Brasil e outros gastos pessoais em seu proveito e de H…, muito para além do que os proventos do seu trabalho lhe permitiriam custear, nomeadamente de valor superior aos valores acima mencionados em 2º.
10- A arguida foi declarada insolvente por sentença proferida a 3 de Abril de 2012, no processo de insolvência de pessoa singular n.º 59/12.8TBOAZ, que correu termos no extinto 3º Juízo do Tribunal Judicial de São João da Madeira, transitada em julgado.
11- Nessa data, a arguida possuía um passivo que ascendia a 781.690,91€, tendo sido ali reclamados e reconhecidos, entre outros, os seguintes créditos devidos:
- à J…, SA, no montante de 83.349,63€;
- ao F…, no montante de 26.887,57€;
- à K… de Oliveira de Azeméis, no montante de 61.341,63€;
- a C…, no montante de 527.993,71€; e
- às ex-trabalhadoras, no montante de 23.292,06€.
12- No âmbito do referido processo de insolvência de pessoa singular n.º 59/12.8TBOAZ foi aberto incidente de qualificação da insolvência, vindo a ser proferida sentença, transitada em julgado, que qualificou como culposa a insolvência da arguida, e, em consequência, foi a mesma declarada inibida para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de três anos.
13- As acções supra descritas, levadas a cabo pela arguida, foram causa directa e necessária da impossibilidade de cumprir as suas obrigações ou do seu estado de insolvência e da consequente decisão judicial que a declarou insolvente.
14- A arguida sabia ser devedora, além de outras, das quantias acima discriminadas em 11º.
15-Podia e devia saber que ao proceder do modo atrás descrito, nomeadamente, ao financiar todas as iniciativas e investimentos realizados pelo seu então companheiro sem nunca cuidar de apurar se os mesmos seriam rentáveis e ao realizar as despesas pessoais acima descritas, estava a realizar gastos e a assumir encargos manifestamente exagerados e que não eram comportáveis com os rendimentos provenientes da sua actividade e com o seu património, nomeadamente sabia que estava a gastar todos os rendimentos auferidos por si e ainda quantias que lhe tinham sido confiadas no exercício das suas funções que pertenciam a terceiros e que a estes deveriam ser entregues e que, em consequência de tais condutas, criava um estado de insolvência e ficava impossibilitada de cumprir as suas obrigações.
16- Sabia também que a movimentação indevida de valores que lhe tinham sido confiados no exercício das suas funções enquanto agente de execução que pertenciam a terceiros e que a estes deveriam ser entregues e a apropriação para si desses valores por forma a suportar os gastos e despesas acima referidas acarretaria a sua responsabilidade disciplinar e consequente suspensão, expulsão e encerramento do seu escritório e impossibilidade de pagar aos seus credores, como efectivamente sucedeu. 17º Agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou que:
17- A arguida encontra-se a cumprir pena de prisão e não tem rendimentos.
18- Consta do relatório social o seguinte:
“O processo educativo de B… decorreu num agregado familiar com dinâmica estruturada e sem constrangimentos económicos. A mãe exerceu funções em cartório notarial e o pai em repartição de finanças.
Após ter concluído o ensino secundário, a arguida optou pela frequência do curso em solicitadoria, entre 1994 e 1997, actividade que viria a exercer em Oliveira de Azeméis.
Posteriormente, em 2003, frequentou também formação como agente de execuções, enquanto valorização pessoal e profissional e de reajustamento às vicissitudes sócio-laborais.
No contexto profissional, obteve uma expressiva bolsa de trabalho e de clientes, que lhe permitiu abarcar encargos assumidos para com colaboradores dependentes, bem como obter proventos económicos mensais favoráveis, situação que, contudo, se reverteu em consequência de factores que a própria considera serem externos à sua actividade laboral.
Em 1996/7, reunindo condições económicas satisfatórias, B… autonomizou-se da família de origem, tendo para o efeito adquirido em seu nome, uma vez que o companheiro estava inibido de o fazer, um apartamento de tipologia 3 no centro urbano de S. João da Madeira, mais
Especificamente na Av. Eng.º …. Aí residiu por dezoito anos, aproximadamente, com o companheiro, H…, e com os dois filhos que viriam a nascer fruto dessa relação.
Em 2009/10, a arguida frequentou, no período nocturno, a licenciatura de Solicitadoria num estabelecimento de ensino no Porto, tendo sido coadjuvada pela mãe no que diz respeito aos cuidados dos filhos. Não concluiu o curso por antecipação das consequências da situação jurídica em que viria a envolver-se.
No decurso da vivência conjugal, B… refere a opção de ter assumido financiamentos repetidos alegadamente para custear projectos de realização profissional do então companheiro em sectores diversificados, mas que redundaram em fracasso.
O surgimento de processos judiciais, no contexto acima referido, colaboraram para a dissolução da união de facto, em 2011, congelamento de contas bancárias, penhoras, suspensão de funções profissionais e expulsão da Ordem dos Solicitadores.
II - Condições sociais e pessoais
A situação acima descrita repercutiu-se negativamente no âmbito das suas funções, maculando a sua imagem e a impossibilidade de manter actividade nessa área, procurando, desde então, alternativas de trabalho remunerado dependente que pudessem satisfazer as necessidades do seu agregado, deparando-se, contudo, com dificuldades na sua concretização. Acrescente-se também que o companheiro não contribuía economicamente para a educação dos filhos, cujo apoio, no valor de 150€, a arguida deixou de receber em Maio/2014. Nesse sentido, viu-se obrigada a recorrer ao apoio materno para suprir encargos inerentes à aquisição de bens essenciais e à funcionalidade doméstica.
Com a perda do imóvel, por via da situação jurídica, que habitava até então, mudou-se com os filhos menores para a habitação na morada constante dos autos.
Impulsionada pelas suas características pessoais de dinamismo, B… obteve colocação laboral como técnica comercial, em Dez./2013, na empresa L…, efectuando um percurso desde experiências em part-time e comissionista, como vendedora/angariadora de clientes e com vínculo contratual em Nov./2014, com remuneração equivalente ao salário mínimo nacional, que exerceu em diversas localidades próximas a São João da Madeira. Acrescia às suas receitas o valor referente ao abono de família, na altura 126€.
No seu quotidiano priorizava a garantia duma vivência minimamente estabilizada aos filhos, tentando preservá-los de momentos pessoais de desesperança ou atitudes de revolta, embora os descendentes e familiares próximos se apercebessem das mudanças em curso. Procurou preservar uma atitude pessoal positiva e voltada para a resolução de problemas face às adversidades e condicionalismos, procurando ajustar o seu modo de vida às suas condições reais.
III - Impacto da situação jurídico-penal
B… deu entrada no M… em 26.10.2015 à ordem do processo nº 605/11.4TAOAZ da Comarca de Aveiro – Santa Mª da Feira – Instância Central – 2ª Secção Criminal – J1, no qual foi condenada pela prática do crime de peculato na pena de seis anos de prisão. Após recurso ao Supremo Tribunal de Justiça, julgou-se parcialmente procedente o recurso interposto, condenando a arguida na pena de 4 anos e 6 meses de prisão.
Com a sua reclusão, a mãe deixou a sua habitação e passou a residir no imóvel sito à Rua …, de forma a prestar apoio aos descendentes da arguida. Nesse sentido, a progenitora tem-se constituído num importante suporte a nível afectivo e económico tanto para a arguida como também para os descendentes, esforçando-se pela manutenção dos laços entre mãe e filhos.
Neste momento, o agregado é constituído pela mãe, 75 anos, reformada, e os dois filhos da arguida, 18 e 16 anos, ambos estudantes, preparando-se o filho mais velho, após candidatura, para ingressar no curso superior de Relações Internacionais numa escola do Reino Unido, tendo para o efeito conseguido bolsa de estudo da instituição de ensino daquele país. A satisfação das necessidades básicas dos seus elementos é assegurada pela reforma da mãe e de viuvez que totalizam 2.100€.
B… perspectiva de futuro obter colocação laboral não se coibindo de aceitar propostas que considera poderem estar abaixo das suas competências e conhecimentos adquiridos com o seu exercício profissional, desde que possa obter valores que possam suprir as necessidades da família. Por outro lado, considera ter adquirido em meio prisional outras competências em áreas diversificadas, como por exemplo no artesanato, costura, que poderão igualmente se constituir numa mais-valia.
Face à prática criminosa pela qual cumpre pena de prisão, embora considere ter existido susceptibilidades pelas condições vivenciadas na altura, assume a sua autoria e reconhece a respectiva reacção penal, bem como a existência de vítimas.
IV – Conclusão
O processo educativo de B… decorreu em ambiente estruturado e sem registo de dificuldades de natureza económica, perdurando até ao presente a coesão, solidariedade e laços de afectividade entre os seus elementos.
Dotada de conhecimentos obtidos tanto com a formação académica como no exercício da sua profissão, que lhe proporcionou satisfação pessoal e proventos económicos para um nível de vida equilibrado, a arguida viu-se inibida de dar continuidade à sua profissão com o despoletar de processo judicial com sérios prejuízos ao nível da qualidade de vida proporcionada aos descendentes e que culminou na aplicação de pena de prisão, que implicou na reorganização da estrutura e dinâmica familiar.
A cumprir pena de prisão pela primeira vez, B… reconhece a respectiva reacção penal face à prática criminosa, reconhecendo a existência de vítimas.
Em contexto prisional, tem-se esforçado para superar emocionalmente o impacto da situação de privação de liberdade e impossibilidade de acompanhamento do processo educativo dos filhos através do investimento em actividades que a recompense do ponto de vista da aquisição de novas competências.
A progenitora tem assumido um papel fundamental nesse processo, conseguindo proporcionar aos descendentes da arguida a satisfação das suas necessidades básicas e contribuindo para a manutenção dos laços afectivos, mostrando-se receptiva para receber a arguida quando for restituída à liberdade.”
19- O credor C… não recebeu qualquer quantia.
20- Por sentença do Tribunal de São João da Madeira de 30.05.2011, foi condenada na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 10,00 euros pela prática em 27.11.2011, de um crime de detenção de arma proibida, p.e.p. pelo artigo 85 da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, já extinta.
21- Por acórdão do Tribunal Judicial de Oliveira de Azeméis, de em 21.05.2015, transitada em julgado em 18.06.2015,condenada pela prática em 26.09.2007, de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 375 do C.Penal, na pena de 4 anos e seis meses de prisão.
Não provados:
1º Fossem várias as viagens ao Brasil de lazer que a arguida realizou.
2º A arguida com as referidas condutas sabia que criava um estado de insolvência e conformou-se com esse resultado.
Motivação:
O Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos provados com base na apreciação crítica do conjunto da prova produzida conjugada com as regras de experiência comum, concretamente:
A arguida reconheceu que foi financiando as actividades económicas do companheiro que não foram bem-sucedidas, embora demonstrasse saber da falta de apetência do mesmo para os negócios e falta de experiência e conhecimentos e que o mesmo ainda gastava muito dinheiro com “mulheres” e em jogo, mas que acedia a fazê-lo pela ascendência que o exercia sobre si.
Descreveu as suas rotinas, passando a maior do tempo a trabalhar, inclusive, à noite, em casa, e que contava vir a repor as quantias que subtraia das partes dos processos judiciais em que intervinha, o que não conseguiu.
Não se tendo conformando com a possibilidade de ficar insolvente, tendo um sentimento de controlo.
Acabou por admitir a factualidade imputada, mas negou ter previsto cair em situação de impossibilidade de pagar os credores acreditando que movimentando um elevado número de processos conseguiria obter rendimentos para cobrir as dividas.
Não convenceu o tribunal, apresentando declarações vagas quanto à situação patrimonial, nomeadamente disse desconhecer se auferia mensalmente 10.0000 euros, líquidos ou brutos, o que não se compadece com as regras de experiência comum e o seu padrão, demonstrando ser pessoa avisada e com experiencia profissional suficiente para ter o controlo de questões patrimoniais, sobretudo, se tem dependentes a cargo, empréstimos assumidos, ser a única fonte de rendimento e deveres funcionais de zelar por dinheiro que lhe foi confiado pelo exercício de funções sobretudo quando lidava diariamente com situações insolvências.
Disse que tinha um saldo médio de um milhão de euros, mas o que sobressaiu foi que foi usando quantias como se fosse suas e gastando-as exageradamente, tendo em conta os valores em falta e o curto tempo decorrido.
Também não convenceu sobre a inevitabilidade dos gastos, sobressaindo das declarações e prestadas e do depoimento da testemunha H…, seu companheiro, que esteve sempre na sua liberdade de acção o financiar e nem o mesmo tinha ingerência na forma como a mesma exerceu a sua profissão.
A pertinente factualidade subjectiva, foi retirada, assim, por via indirecta e de acordo com as regras de experiência,
- Quanto aos depoimentos testemunhais:
A testemunha G…, Administrador de insolvência da sociedade da arguida, prestou um depoimento isento e credível.
Confirmou os elementos em que se baseou para prestar as informações juntas aos autos e para o parecer no âmbito do incidente de qualificação culposa, em conformidade com o que está documentado, o que foi valorado positivamente.
Reportou-se aos créditos graduados e ao resultado da liquidação.
Questionado aventou a possibilidade de recuperação da arguida, caso tivesse continuado a trabalhar, em cerca de 10 anos, mas sem efectuar estudo fundamentado.
A testemunha C…, empresário reformado, prestou um depoimento totalmente convincente, transmitindo sinceridade.
Descreveu os factos constitutivos do crédito, sendo que entregou a referida quantia à arguida na qualidade de agente de execução, como prestação de caução e que embora com ordem judicial para o efeito a arguida não o restituiu.
Mencionou que, depois de muitas tentativas de a contactar e recuperar a quantia, a arguida chegou a aborda-lo a mencionar que já não tinha a quantia e a tentar um acordo, o que não acedeu sendo que nem conseguiu a encarar, dado o forte impacto da actuação pela qual já foi julgada.
Referiu-se ainda ao grande abalo a todos os níveis da insolvência da arguida, e de não ter conseguido executar o património nem ter recebido no âmbito da insolvência qualquer quantia, deparando-se o Tribunal com o evidente sofrimento da vitima e a angustia de não saber se alguma vez vai recuperar alguma quantia, sendo que ficou em situação de carência económica, depois de um vida a trabalhar, valendo-lhe os sete filhos e amigos.
Foi expressivo o degaste físico e emocional que a perda do dinheiro “de uma vida” de 83 anos, representou para si e o que referiu para a sua família, atribuindo, inclusive, ao desgosto causado a perda de saúde da falecida mulher e o seu.
H…, companheiro da arguida, no essencial, prestou um depoimento credível.
Tal como as restantes testemunhas elogiou a capacidade de trabalho da arguida.
Fez menção aos negócios por si criados e que já trabalhou, e teve rendimentos, investimentos com capitais próprios e que a própria arguida teve sociedade na aquisição da I…, tendo alguns reves na vida negocial e pessoal, esta devido a depressão crónica e problemas cardíacos, encontrando-se medicado, negando ter ascendência sobre a arguida.
Tal como a arguida referiu negou que tivesse acedido a cartões de credito da arguida, sendo que a arguida sempre teve o controlo das suas quantias e as que foram gastas consigo foram-lhe entregues ou pagas directamente pela mesma.
Foi mencionando valores de investimento, nomeadamente de aquisição da I… obras no estabelecimento, estimando que a arguida ao logo dos anos indicados e anteriores, tivesse gasto consigo quantias que estimou não superior a 300 mil euros.
As testemunhas, D…, advogado/agente de execução reportaram-se às lides de trabalho da arguida, ao volume de processos do escritório onde a primeira trabalhava e o segundo estagiou e aos montantes que representavam em termos de honorários e que a arguida se tivesse continuado a trabalhar teria recebido.
Foi tida em consideração a seguinte prova documental
- Certidão de fls. 1 a 30;
- Relação de créditos de fls. 52 a 75;
- Inventário de bens e direitos apreendidos de fls. 75 a 79;
- Relatório de fls. 80 a 89;
- Cópia de sentença de fls. 93 a 96;
- Informação a fls. 117;
- Assento de nascimento a fls. 183 e 184;
- Declarações de Rendimentos (IRS – Mod. 3) de fls. 192 a 238; , de onde se extraiu além da componente contabilística e relativa ao processo de insolvência, e situação pessoal da arguida.
- Cópias de fls. 250 a 272; e
- Certidão a fls. 274 e ss..
- fotocopia de passaporte de fls. 434,
No que respeita à ausência de antecedentes criminais /sendo que a sua condenação ocorreu em Maio de 2011 e não se provou concretamente, até que mês de 2011 a arguida teve tais condutas) e condenações posteriores, foi essencial o certificado de registo criminal e no que toca à sua condição económica, profissional e familiar, foram tidas em considerações as declarações da própria arguida e o teor do relatório social
A convicção negativa fundou-se na insuficiência da prova, quanto ao conhecimento e se conformado com o estado de insolvência sendo que o Tribunal não ficou convencido da sua verificação, sendo que do passaporte junto não se verificam mais do que um carimbo e quanto à prova do contrario quanto à contabilidade organizada, pois está junto o modelo C e o administrador de insolvência admitiu que não analisou tal aspecto.”
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São as seguintes as questões a apreciar:
- nulidade por omissão de pronuncia
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O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP, Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), mas há que ponderar também os vícios e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs, 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisprudência dos Acs STJ 1/94 de 2/12 in DR I-A de 11/12/94 e 7/95 de 19/10 in DR. I-A de 28/12 - tal como, mesmo sendo o fundamento de recurso só de Direito: a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou o erro notório na apreciação da prova (Ac. Pleno STJ nº 7/95 de 19/10/95 do seguinte teor:“ é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) mas que, terão de resultar “ do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º 2 CPP, “ não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo” in G. Marques da Silva “Curso de Processo Penal”, III vol. pág. 367, e Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 742, sendo tais vícios apenas os intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais - cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100 - e constitui a chamada “ revista alargada” como forma de sindicar a matéria de facto.
De tais vícios nenhum deles é alegado e vista a decisão recorrida também não os vislumbramos.

Pese embora a nulidade suscitada pelo ilustre PGA, que a proceder levaria à anulação da decisão, importa proceder à analise das questões recursivas que com aquela nulidade não interferem.
Apreciando
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- Inexistência do crime de insolvência.
Alega a recorrente a inexistência do crime, porque que não houve grave incúria ou imprudência, ou despesas manifestamente exageradas, e tinha meios para solver as suas obrigações antes de se denunciar e suspender a actividade.

O tipo crime em causa (artº 228º CP) diz-nos que:
“1 - O devedor que:
a) Por grave incúria ou imprudência, prodigalidade ou despesas manifestamente exageradas, especulações ruinosas, ou grave negligência no exercício da sua actividade, criar um estado de insolvência; ou
b) Tendo conhecimento das dificuldades económicas e financeiras da sua empresa, não requerer em tempo nenhuma providência de recuperação; é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. (…)”
A decisão recorrida ponderou:
“Os tipos incriminadores exigem que ocorra a situação de insolvência e que esta venha a ser judicialmente reconhecida; é o que emerge em particular dos artigos 227º, nº 1, 228º, nº 1 ou 229º, nº 1, in fine, todos do Código Penal.
Estamos, então, perante condições objectivas de punibilidade do agente; a ilicitude corresponde aos comportamentos previstos no tipo, mas a punibilidade é limitada pelas duas condições objectivas.
O art.15.° do Código Penal estabelece, quanto à negligência, o seguinte:
« Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com a sua realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.».
A negligência é um tipo especial de punibilidade que oferece uma estrutura própria quer ao nível do ilícito quer ao nível da culpa.
O tipo objectivo de ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído por três elementos: a violação de um dever objectivo de cuidado; a possibilidade objectiva de prever o preenchimento do tipo; e a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado.
A violação pelo agente do cuidado objectivamente devido é concretizada com apelo às capacidades da sua observância pelo “homem médio”.
Para que exista culpa negligente, com preenchimento do tipo-de-culpa, necessário é ainda que agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que se encontra obrigado.
Enquanto na negligência consciente o agente representou como possível o resultado ocorrido, mas confiou, não devendo confiar, que ele não se verificaria, na negligência inconsciente o agente infringe o dever de cuidado imposto pelas circunstâncias, não pensando sequer na possibilidade do preenchimento do tipo pela sua conduta.
No caso, ficou provado, no essencial que:
A arguida declarou o rendimento global de 46.186,21€, 89.916,96€ e 65.663,49€, nos anos de 2009, 2010 e 2011, respectivamente. E no exercício das atribuições inerentes a agente de execução, foi depositada na conta por si titulada, durante o ano de 2007, na quantia global de 507.693,71€, relativa a valores ali penhorados e a prestação de caução e foi por si gasta em proveito próprio e do seu agregado familiar, sendo que desde pelo menos, o ano de 2007 e até meados de 2011, sem nunca previamente cuidar de apurar se os mesmos seriam rentáveis, a arguida custeou ensaios de projecção e realização laboral em sectores diversificados, do seu companheiro H….
Mais se provou que suportou ainda os custos despendidos com a constituição de uma sociedade de mediação imobiliária assim como as subsequentes despesas com a remodelação do espaço destinado ao funcionamento da imobiliária, de valor não apurado mas superior aos valores acima mencionados e não obtiveram qualquer retorno de dividendos.
Durante os anos de 2007 a 2011, a arguida fez pelo menos uma viagem de lazer ao Brasil e outros gastos pessoais em seu proveito e de H…, muito para além do que os proventos do seu trabalho lhe permitiriam custear, nomeadamente de valor superior aos valores acima mencionados em 2º.
Ora, as acções supra descritas, se enquadram na grave incúria ou imprudência não se certificar do efectivo retorno dos investimentos que financiava, despesas manifestamente exageradas – viagens patrocinadas pela arguida ao Brasil e nas obras de remodelação, especulações ruinosas, ou grave negligência no exercício da sua actividade na utilização de montantes na incúria, que nos gastos exagerados que na violação grave de levadas a cabo pela arguida, foram causa directa e necessária da impossibilidade de cumprir as suas obrigações ou do seu estado de insolvência e da consequente decisão judicial que a declarou insolvente-típica objectiva descrita na referida alínea a) do artigo 227º do Código Penal.
Quanto ao elemento subjectivo, igualmente se mostra verificado visto que ao actuar da forma acima descrita, a quem competia com a necessária autonomia, gerir e dirigir a sua situação patrimonial e profissional e tendo por aquelas razoes criado a sua situação de insolvência, a arguida violou o dever de cuidado que sobre ela impendia e que conduziu à insolvência .
Esse resultado era previsível e evitável não só para uma pessoa prudente, dotado de capacidades do “homem médio”, como podia ter sido evitado pelas capacidades pessoais da arguida, dada a sua formação e experiência de vida e profissão como solicitadora e agente de execução.
Provada a ainda a declaração de insolvência sendo que a arguida foi declarada insolvente por sentença proferida a 3 de Abril de 2012, possuía um passivo que ascendia a 781.690,91€, ….”
Em face do que a alegação apenas se compreende na expectativa de que fosse alterada a matéria de facto, que não foi, pelo que se mostram preenchidos os elementos típicos do crime em análise, sendo despiciendo questionar-se se os gastos tinham ou não retorno ou este era ou não esperado, como se a arguida pudesse apropriar-se do dinheiro alheio e usá-lo a seu bel-prazer e seu proveito, correndo ainda por cima, por conta dos donos do dinheiro o risco de ausência de retorno para a arguida do que gastou do dinheiro daqueles.
Improcede esta questão

Invoca a recorrente a violação do principio ne bis in idem e a existência concurso aparente com o crime de peculato, pelo qual já foi condenada e está a cumprir pena de prisão, alegando estarem em causa os mesmos factos, e a violaçao dos deveres da sua actividade.
Apreciando
Sobre o principio ne bis in idem já tivemos oportunidade de nos debruçar, diversas vezes, incluindo no recurso desta Relação de 25/1/2017 in www.dgsi.pt, nos termos seguintes:
“O princípio ne bis in idem, tem o seu enunciado primeiro no artº 29º 5 CRP, que dispõe: “5. Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, e tem tradução em instrumentos internacionais, aceites e vinculativos para a Ordem jurídica portuguesa (artº 8º CRP) como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 (artº14.7) Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 22/11/1984 (4º do protocolo n° 7) e Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (50º) e tem como fundamento e essência a exigência da liberdade do indivíduo, o que impede é que os mesmos factos sejam julgados repetidamente, desse modo tem por finalidade limitar o poder de perseguição e de julgamento, autolimitando-se o Estado e proibindo-se o legislador e demais poderes estaduais à perseguição penal múltipla e, consequentemente, que exista um julgamento plural dos mesmos factos de forma simultânea ou sucessiva ( cf. ac RLX 13/4/2011 www.dgsi.pt), funcionando como a excepção do caso julgado, que se traduz num efeito processual da sentença transitada em julgado, impedindo que o que nela se decidiu seja atacado dentro do mesmo processo (caso julgado formal) ou noutro processo (caso julgado material), tendo em conta o principio da segurança jurídica, subjacente a todo o ordenamento jurídico.
Como comando constitucional, o que ali se proíbe “ é o duplo julgamento” “ pela pratica do mesmo crime” pretendendo “evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela pratica da infração, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela pratica do “mesmo crime” – JJ Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da Republica Portuguesa Anotada, vol.I, Coimbra ed. 2007, 4ªed. pág. 497;
Ora, como princípio inerente ao caso julgado, impõe que exista de um lado caso julgado (transito da decisão) e estejamos perante o mesmo crime, o que equivale a dizer perante o mesmo pedaço de vida real (que não apenas o seu nomem iuris) juridicamente valorado (facto típico) praticado pela mesma pessoa.
Ora há / haverá identidade de crime, se:
- o acto/ facto/ conduta for atribuída à mesma pessoa (agente do crime/ sujeito processual), para cuja compreensão não carece de explicitação, pois se trata da identidade da pessoa e se
- for o mesmo acto/ facto / conduta que lhe é atribuída, o mesmo objecto/ o mesmo pedaço da vida real e os factos serão os mesmos considerados não apenas como acção naturalística, mas também e eventualmente com apelo a critérios jurídicos sobre o objecto e o bem jurídico protegido pela norma incriminadora.
Diz-se no Ac RC de 9/03/2016, proc. 48/15.0GBLSA.C1, in www.dgsi.pt que deve ser “entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor, como um dado de facto ou acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui um crime.” e no ac. RP 29/1/2014 www.dgsi.pt “IV - Por mesmo crime deve considerar-se a mesma factualidade jurídica e o seu aspecto substancial; o crime deve considerar-se o mesmo quando exista uma parte comum entre o facto histórico julgado e o facto histórico a julgar e que ambos tenham como objecto o mesmo bem jurídico ou formem, como acção que se integra na outra, um todo do ponto de vista jurídico.”, ou no Ac RP 10/7/2013 www.dgsi.pt “II – O que se proíbe é que um comportamento espácio-temporalmente caracterizado, um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida de um indivíduo já objeto de uma sentença ou decisão que se lhe equipare possa fundar um segundo processo penal, independentemente do nomem iuris que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado.”
Dado que o principio em causa tem como pressuposto essencial o conceito de caso julgado e na ausência de um tal conceito no processo penal e independentemente de dever ou não adoptar-se a definição ou requisitos do processo civil (artºs 580º e 581º CPC) - ac. RP.9/12/2015 www.dgsi.pt, dizendo-se além do mais na fundamentação do Assento 3/2000 de 15/12/1999 DR 11/2/2000, que “o conceito de «mesmo crime», utilizado pela lei, tem tradicionalmente o sentido de enquadramento jurídico de um certo conjunto de factos e actos do agente” cremos que em face da harmonia da Ordem Jurídica, que não pode deixar de se considerar, que o conceito de mesmo crime tem que ver essencialmente não apenas com o mesmo agente (sem o qual nunca será o mesmo), a mesma vitima mas também com o mesmo facto histórico localizado no tempo e no espaço, pois que as vitimas forem diversas, poderemos estar perante vários crimes (concurso real) e se o facto histórico for praticado noutro local e tempo (espacial e temporalmente deslocado), o mesmo pode acontecer e em regra assim será.
Como se expressa no ac STJ 15/03/2006, Cons. Oliveira Mendes o que se pretende evitar, com aquele principio, é a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime, pois é sobre o facto que se forma o caso julgado (pois o facto investigado pode não ser/constituir qualquer crime e numa compreensão ampla de tal principio ele abarca qualquer facto investigado e logo a acção de investigação objecto de inquérito – em face do “efeito consumptivo” do caso julgado – Damião da Cunha, José Manuel, O Caso Julgado Parcial. Porto, 2002, UCP, pág. 483 e ss), e nessa linha Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 3ª ed. págs. 48, “ o crime deve considerar-se o mesmo quando exista uma parte comum entre o facto histórico julgado e o facto histórico a julgar e que ambos os factos tenham como objecto o mesmo bem jurídico ou formem, como acção que se integra na outra, um todo do ponto de vista jurídico”
Vejamos o que aconteceu, de acordo com os dados fornecidos:
A arguida foi julgada e condenada pela prática de crime de peculato por se ter apropriado e usado valores / dinheiro, alheios em seu proveito, que lhe haviam sido entregues em razão das suas funções. Aqui está a ser julgada por não ter solvido as suas responsabilidades, por não ter dinheiro para o efeito.

Ora apesar de a pessoa/ agente dos crimes ser a mesma, e estarem interligados porque relativo à actividade da arguida (agente de execução) no crime de peculato a arguida apropria-se de valores alheios que lhe são entregues em razão das suas funções, no crime de insolvência está em causa o não ter solvido os seus compromissos, não ter dinheiro ou valores para o efeito e tal lhe ser imputável, verifica-se que a nosso ver que não estamos perante o mesmo crime, tendo apenas de comum entre ambos ser o mesmo a agente, constituindo factos diversos pois estamos perante uma diversidade actos diferentes (um é ter-se apropriado de valores alheios e outro é afinal o seu contrario, não os ter), e de bens jurídicos distintos, traduzido no peculato “na tutela de bens jurídicos patrimoniais, na medida em que criminaliza a apropriação… ilegítima de bens (…); por outro lado tutela a probidade e fidelidade dos funcionários para garantir o bom andamento e a imparcialidade da administração”, estando em causa a “ideia de legalidade da administração relacionada com a probidade (e fidelidade) dos funcionários” Comentário Conimbricense do Código Penal, III, Coimbra ed. Pág. 688/689, estando em causa a sua função / profissão pública de agente de execução in casu, e na insolvência está em causa o património, quer se entenda na vertente de tutela da património dos credores, quer o interesse publico da confiança nas relações comerciais – cf. Comentário Conimbricense cit. II, pág. 408, mas sempre numa visão de estar em causa o património pessoal do agente (os seus bens para solver os seus encargos), ou até como se escreve na sentença recorrida: “ A doutrina não é unânime quanto ao bem jurídico protegido pelos crimes insolvenciais; indicando-se desde o património do credor (v. Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, UCP, 2010, págs. 706 e 710, considera que será o património do credor, globalmente considerado) à economia em geral (v. Menezes Leitão Direito da Insolvência, p. 331) ou mesmo o interesse público na confiança das relações comerciais ( v Para Eduardo Correia (V. Actas da Comissão de Revisão do Código Penal de 1966, 62).
Crê-se ser assim de o perspectivar como um bem jurídico complexo, como é defendido por Ana Isabel de Oliveira Martins Varela Costa, na Dissertação de Mestrado de 2014, “A Responsabilidade Penal dos Administradores nos Crimes Insolvenciais: Em Especial na Insolvência Negligente” a cuja tese se adere. (…) vem perfilhar o entendimento dominante – ver: http://repositorio.ucp.pt/bitstream /10400.14 /17901/1 /Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Ana%20Varela%20Costa.pdf de que não têm como fim imediato a protecção dos direitos patrimoniais dos credores do insolvente;] outrossim, em modo mais abrangente, antes as actuações lesivas da economia do crédito ou até da economia geral resultantes de determinados comportamentos do devedor ou, até, de terceiros no seu interesse.”
Diz-se no ac RP 10/7/2013 www.dgsi.ptI – O ne bis in idem tem por finalidade obstar a uma dupla submissão de um indivíduo a um mesmo processo. II – O que se proíbe é que um comportamento espácio-temporalmente caracterizado, um determinado acontecimento histórico, um facto naturalístico concreto ou um pedaço de vida de um indivíduo já objeto de uma sentença ou decisão que se lhe equipare possa fundar um segundo processo penal, independentemente do nomem iuris que lhe tenha sido ou venha a ser atribuído, no primeiro ou no processo subsequentemente instaurado. (…)” no ac RP 28/10/2015 www.dgsi.pt: “I – O principio ne bis in idem engloba uma verdadeira proibição de dupla perseguição penal, sempre que tenha ocorrido um qualquer ato processual do Estado que represente uma tomada definitiva de posição relativamente a determinado facto penal, quer seja através de uma sentença, do arquivamento do inquérito pelo MºPº, da decisão de não pronuncia pelo Juiz de Instrução Criminal, da declaração judicial de extinção da responsabilidade criminal por amnistia, prescrição do procedimento criminal ou até por mera desistência de queixa.” e no ac RP 25/1/2017 www.dgsi.pt “II - O principio ne bis in idem, visa evitar que exista um julgamento plural do mesmo facto de forma simultânea ou sucessiva, funcionando como a excepção do caso julgado e a litispendência que constitui uma emanação daquele mesmo princípio; IV- O conceito necessário de mesmo (identidade) crime tem que ver não apenas com o mesmo agente (sem o qual nunca será o mesmo) e a mesma vítima mas essencialmente com o mesmo facto histórico localizado no tempo e no espaço;” Cf. contra ac. RP de 9/12/32015 www.dgsi.pt, com o qual como se vê não concordamos.
Ora a realidade fáctica que emerge de ambos os processos é diferente, em qualquer uma das suas perspectivas, quer social quer jurídica, consubstanciando crimes autónomos, e distintos e visando realidades diversas, estando num em causa a gestão do seu património e no outro a gestão de património alheio (dos processos executivos) pelo que não ocorre caso julgado e por isso não se mostra violado o principio ne bis in idem.
No que respeita ao eventual concurso aparente entre normas, que a recorrente levanta por querer ver consumida a punição pelo crime de insolvência, no crime de peculato, são aplicáveis as considerações infra acabadas de expor sobre a diversa natureza dos crimes, seus elementos típicos e seus bens jurídicos protegidos e constitui matéria nova, não abordada pelo tribunal recorrido que sobre ela não se pronunciou.
Como decidiu o STJ ac. 15/9/2010 proc 322/05.4TAEVR.E1. S1 “ os recursos ordinários visam o reexame da decisão proferida dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu.”, razão pela qual o STJ ( ac. de 27/10/2010 www.dgsi.pt) entende que tribunal de recurso não tem de conhecer de questão nova não decidida no tribunal recorrido.
É que sendo o recurso o meio normal de impugnação de uma decisão judicial (artº 399º CPP e 676º/1, do CPC), o mesmo como é evidente reporta-se a uma concreta decisão judicial (àquela de que se recorre) e por ela delimita o objecto do recurso e apreciação dos factos.
Como expressam, Simas Santos e Leal Henriques, in «Recursos em Processo Penal», 7ª ed., 2008, 83, “com o recurso abre-se somente uma reapreciação dessa decisão, com base na matéria de facto e de direito de que se serviu ou podia servir a decisão impugnada, pré-existente, pois, ao recurso. Como assim, visando os recursos modificar as decisões impugnadas e não criar decisões sobre matéria nova, não é lícito na motivação ou nas alegações invocar questões que não tenham sido objecto das decisões recorridas, isto é, questões novas”. No mesmo sentido, o ac. STJ 6/6/2002, in M. Gonçalves, CPP, anot. cit. pág. 856 “ Os recursos como remédios jurídicos que são, não se destinam a conhecer questões novas, não apreciadas pelo tribunal recorrido, mas sim a apurar da adequação e legalidade das decisões sob recurso…”
Assim a ausência de decisão sobre uma determinada questão, na decisão recorrida onde não foi suscitada, impede este Tribunal de sobre ela se pronunciar sempre que seja e (porque é) questão nova, e consequentemente não pode ser objecto de reapreciação: finalidade e fundamento do recurso – artº 664º CPC ex vi artº 4º CPP.
De todo o modo, verifica-se que essa é uma questão de que o tribunal de 1ª instância ainda pode conhecer, a considerá-la de conhecimento oficioso, pois tal se intui na parte final da sentença onde se determina “comunique ao processo nº 605/11.4TAOAZ do 2º Juízo criminal de Oliveira de Azeméis” e “ junte certificado de registo criminal para eventual elaboração de cúmulo jurídico”, momento que se mostra adequado para conhecer dessa questão, e em função da qual se pode interpor recurso, sendo certo que só aí se estará de posse de elementos documentais necessários para o efeito.
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A arguida foi condenada em prisão efectiva e pugna pela sua suspensão, e o Mº Pº alega a nulidade por omissão de pronúncia por não ter apreciado a aplicabilidade de outras penas de substituição.
Vejamos se ocorre omissão de pronúncia relevante.
Há omissão de pronúncia geradora de nulidade da sentença quando nos termos do artº379º 1 c) “… o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar…”
Optando pela pena de prisão esta é passível abstractamente de ser substituída por uma pena de substituição, penas essas que se inserem no movimento contra as curtas penas de prisão e beneficiam do princípio da preferência legal.
Em face a regulamentação do Código Penal no que respeita às penas principais e às penas de substituição, a regra querida pelo CP é a da substituição da pena de prisão, que apenas não deve ocorrer quando grosso modo a tal se opuserem as exigências de prevenção, e se não estabelece uma hierarquia entre as penas de substituição, não deixa através da gradação que estabeleceu em função da pena principal a substituir, de indicar que será em função dessa gradação e dos critérios de adequação e suficiência da pena de substituição, em face dos fins da pena, e das necessidades de prevenção especial (positiva) de reinserção social, e tendo presente o comando ínsito no artº 18º1 CRP (principio da proporcionalidade e do mal menor), que deve ser escolhida a pena de substituição (mormente entre duas igualmente adequadas deve optar-se pela pena de substituição não detentiva) que constituiu também o princípio ínsito no artº 70º CP quanto às penas principais (prisão e multa) - e daí em concreto apurar a mais adequada (cf. Figueiredo Dias, As Consequências jurídicas do crime, pág. 333) que pode passar como se expressa no ac. RP Proc.19/15.7PHGDM.P1 www.dgsi.pt que “…, os critérios legais de adequação e suficiência, de acordo com as necessidades de prevenção especial positiva, impõem, face ao princípio da proporcionalidade, que o tribunal escolha a pena de substituição menos grave;” sendo que em regra, a sentença “…justificando a aplicação de uma pena de substituição, entende-se que com essa opção se excluiu a aplicação de todas as outras possíveis”
No caso concreto o que existiu foi que a pena de substituição analisada – pena suspensa foi excluída.
Ora só existe omissão de pronuncia, quando há possibilidade legal de aplicar uma dada pena de substituição, e no caso, verifica-se que para além da pena suspensa abstractamente era possível aplicar a multa de substituição (artº43º CP) não sendo viável o regime de permanência na habitação (artº44º) ou o trabalho a favor da comunidade (artº 58º) uma vez que é necessário o consentimento do arguido e tal não se mostra existir. Assim a existir omissão seria apenas quanto à pena de multa, como pena não detentiva.
Só que apenas podemos considerar que existe essa omissão, quando sendo possível aplicar a pena se omite a sua ponderação e não quando também mas não é possível aplicar a pena ou “da sua fundamentação não resulte claramente que apenas o cumprimento efetivo daquela pode prevenir o cometimento de novos crimes.”- in ac TRC 29/2/2012 www.dgsi.pt, afigurando-se-nos que o julgador não tem de percorrer sucessivamente cada uma das penas de substituição abstractamente possíveis (por se verificar o pressuposto formal) em busca do pressuposto material antes de decidir pela aplicação de uma delas, mas exige-se apenas que explique a razão ou juízo que levou à aplicação ou exclusão de uma pena de substituição, que considerava viável.
Cf. RC 29/9/2013 www.dgsi.pt “2. Não faz sentido exigir que o tribunal enuncie, em abstrato, todas as penas aplicáveis e afaste, uma a uma, a sua aplicação, quando da opção fundamentada por uma elas resulta o afastamento das restantes ou quando os pressupostos das não aplicadas não se mostram verificados em concreto.”
Por outro lado é certo que as penas de substituição não podem comprometer as finalidades das penas e algumas delas têm pouca eficácia preventiva, que é no caso o que ocorre com a pena de multa, e afastava a opção pela pena de multa prevista no tipo legal, não faz sentido, em face da situação concreta da arguida (detida e sem rendimentos – sendo a pena “pessoal e intransmissível”), ponderar especificamente a substituição por esta pena, e resultando da decisão recorrida que só a prisão satisfaz as exigências de prevenção, e a prisão efectiva,- dado o seu estado de detida em cumprimento de pena incompatível com outra pena de substituição, afigurando-se-nos estar até subjacente um intuito, quiçá benéfico, para a arguida na pena única a aplicar, para a eventualidade que se ali se antevê da existência (a ser real) de um cumulo jurídico – tendo sido excluída a aplicação da pena suspensa como pena de substituição.
Improcede assim esta questão.

Deve essa pena de 6 meses ser suspensa como quer a arguida e o MºPº nesta Relação.
A sentença recorrida entendeu que não porque “Atendendo à gravidade objectiva e subjectiva e às consequências da sua actuação, e que foram várias as actuações que conduziram à insolvência, não são aceitáveis pela comunidade, deverá ser aplicada a mais grave de prisão efectiva” ou seja por razões de prevenção geral, o que nos parece correcto.

É que pese embora a pena suspensa até possa ser aplicável em face do comportamento futuro previsível da arguida, no sentido de não tornar a delinquir (juízo de prognose favorável), o que em face da proibição da actividade imposta, e do seu dinamismo, parece não ser viável (ou pelo menos essa possibilidade estará latente – constituindo um risco, mas ainda assim aceitável) a aplicação dessa pena de substituição, não poderá ser aplicada se a tal se opuserem razoes de prevenção geral.

Nesse sentido é expressiva a lição de Figueiredo Dias, em “Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, 344 de que a pena suspensa não deve ser decretada “se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime (…) visto que estão aqui em causa quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrecusáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto”.
Assim também se expressa o ac. STJ 18/12/2008, em www.dgsi.pt, que “…não são considerações de culpa que interferem na decisão sobre a execução da pena, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto da suspensão, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas” (Acórdão do 10-11-1999 – Proc.823/99, relatado pelo Cons. Armando Leandro). Efectivamente, o que se consagra naquele texto legal é nem mais nem menos do que “…um meio em si mesmo autónomo de reacção jurídica criminal, configurado como pena de substituição, que se baseia em juízo de prognose favorável ao condenado desde que não fiquem prejudicadas as finalidades da punição” (Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal (Anotado e Comentado), Quid Juris, 2008, 179)” não se podendo esquecer que “ a finalidade da pena é a protecção dos bens jurídicos e se possível, a ressocialização do agente”- STJ Ac. 18/4/2007 www.dgsi.pt/jstj.
Assim tendo em conta os factos na sua globalidade e local onde foram praticados e a sua envolvência social, em face da natureza económica e social do crime de insolvência com as consequências que arrasta consigo a reacção da Ordem Jurídica não pode traduzir-se numa sensação de impunidade que a pena suspensa transmite à comunidade, pondo em causa a validade da norma proibitiva e punitiva, e logo não protegendo eficazmente o bem jurídico protegido com a proibição, afectando a prevenção geral, que se nos afigura apenas reposta com a pena de prisão efectiva.
Improcede assim o recurso

Em relação ao recurso, é devido pagamento da taxa de justiça sempre que ocorra decaimento total, o que no caso ocorreu, pelo que se impõe na medida em que decaíram, a condenação da recorrente no pagamento da taxa de justiça, cujo valor é fixado entre 3 a 6 UC (artº 513º CPP, e artº 8º nº 9º e Tabela III do RCP), e tendo em conta o trabalho, extensão e a complexidade do processo, julga-se adequado fixar a taxa de justiça nos termos adiante assinalados;
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Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto, decide:
Julgar improcedente o recurso interposto pela arguida e em consequência mantém a sentença recorrida.
Condena a arguida no pagamento da taxa de justiça de 3 Uc e nas demais custas.
Notifique.
Dn
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Porto, 07/02/2018
José Carreto
Paula Guerreiro