Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
357/17.4T8VGS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO
LEGITIMIDADE ACTIVA
Nº do Documento: RP20180711357/17.4T8VGS.P1
Data do Acordão: 07/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 839, FLS 149-152)
Área Temática: .
Sumário: I - A ação em que o autor, na qualidade de herdeiro dos seus falecidos pais, pede que se declare sem efeito uma escritura de justificação notarial e que se declare também que os prédios nela descritos não pertencem à ré, sua irmã, mas sim à herança indivisa aberta por óbito dos pais, não carece de ser proposta igualmente pelo seu cônjuge ou com o consentimento deste.
II - É que nesta ação não está em causa a possibilidade de perda ou oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, mas tão-somente o não ingresso desses bens no património hereditário.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 357/17.4 T8VGS.P1
Comarca de Aveiro – Juízo de Competência Genérica de Vagos
Apelação
Recorrente: B...
Recorrida: C...
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Maria de Jesus Pereira

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
O autor B..., residente na Rua ..., nº .., ..., ..., na qualidade de herdeiro de D... e mulher E..., intentou a presente ação com forma de processo comum contra a ré C..., residente na Rua ..., nº .., ..., tendo pedido que:
a) se declare impugnado e sem qualquer efeito todo o teor da escritura de justificação celebrada no dia 30.10.2017, no Cartório Notarial da Mealhada, que se encontra a fls. 75 e ss., do livro de notas para escrituras diversas número 31-H, na qual a ré outorgou como justificante, condenando-se esta a reconhecê-lo, com as legais consequências;
b) se declare que os prédios descritos na escritura de justificação celebrada no dia 30.10.2017, inscritos na matriz predial rústica da União das Freguesias ... sob os artigos 1705 e 1709, não pertencem, nem alguma vez pertenceram à ré, por pertencerem à herança indivisa aberta por óbito dos pais do autor e da ré;
c) se declare que são falsas as declarações prestadas e constantes da escritura de justificação celebrada no dia 30.10. 2017, com todas as consequências legais;
d) se ordene o cancelamento de quaisquer registos que, eventualmente, possam ter sido, ilegalmente, efetuados do supra citado ato, com as legais consequências.
Nesse sentido, alega o autor que as declarações constantes da escritura de justificação são falsas e que os dois prédios dela constantes pertencem à herança dos pais do autor e da ré.
Nunca estiveram estes na posse e fruição da ré e os falecidos pais nunca lhe fizeram qualquer doação verbal.
A ré, na sua contestação, veio arguir a exceção dilatória de ilegitimidade ativa, uma vez que sendo o autor casado deveria a presente ação ter sido proposta também contra o seu cônjuge, nos termos dos arts. 34º do Cód. do Proc. Civil e 1682º-A do Cód. Civil.
Pretende assim a sua absolvição da instância.
Impugnou também a factualidade alegada na petição inicial
O autor apresentou réplica, onde, quanto à matéria de exceção, veio alegar que nos presentes autos se visa a proteção de imóveis que pertencem à herança aberta por óbito dos pais de autor e ré, não havendo nem alienação, nem oneração dos mesmos.
Pugna, assim, pela improcedência de tal exceção.
Por decisão proferida em 8.5.2018, a Mmª Juíza “a quo” julgou procedente a invocada exceção dilatória de ilegitimidade ativa e absolveu a ré da instância, contra o que se insurgiu o autor interpondo o presente recurso.
Finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
A) No artigo 2091º do C.C. “Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.”
B) No artigo 2133º do mesmo Código diz-se quem são os herdeiros e a ordem por que são chamados.
C) No artigo 34º do C. P. Civil que “Devem ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com consentimento do outro, as ações de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos (…)”.
D) A presente acção é uma acção de impugnação de justificação notarial e, como tal, é uma acção de mera apreciação negativa – artigo 10º nº 1, 2 e 3 alínea a) do C.P.C.
E) Na Douta decisão de que ora se recorre veio o tribunal “a quo” fundamentar a sua decisão com base, não só mas também, no artigo 34º do C. P. Civil que estatui “devem ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro, as acções de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos (…). “
F) Ora, com todo o respeito que nos merece opinião diversa não é o caso dos presentes autos.
G) Com a presente acção não resulta perda ou oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, bem pelo contrário, a presente acção pretende salvaguardar bens que pertencem à herança dois pais do aqui recorrente e recorrida, bens esses que não são património do Autor marido.
H) O recorrente marido está a exercer um direito que lhe é conferido pelo artigo 2091º do Código Civil, que diz expressamente que pode ser exercido por todos os herdeiros.
I) Ora, o Autor é o único herdeiro e tem legitimidade para desacompanhado até dos demais herdeiros (o que não é o caso dos presentes autos) pedir a totalidade dos bens.
J) É incongruente que o Autor não tenha legitimidade para impugnar a escritura de justificação notarial, que visa salvaguardar a integridade do património hereditário.
K) Não estamos perante uma acção que deva ser proposta por ambos os cônjuges – artigo 34º do C. Civil, mas sim uma acção em que o herdeiro tem legitimidade por si – artigo 2091º, 2078º e 2133º do C. Civil.
L) Por outro lado, e sem prescindir do supra alegado, sempre a Meritíssima Juiz “a quo” poderia proferir despacho saneador para suprir a excepção dilatória ao abrigo dos artigos 590º nº 2 alínea a) e 591º nº 1 alínea b) do C.P.C.
M) Assim, ao decidir como decidiu, violou a Meritíssima Juiz as disposições legais vertidas nos artigos 2091º, 2078º e 2133º do C. Civil e 590º nº 2 alínea a) e 591º nº 1 alínea b) do C.P.C., pois não deveria ter julgada verificada a excepção dilatória de ilegitimidade activa, devendo antes ter promovido os ulteriores trâmites processuais.
A ré apresentou contra-alegações, nas quais se pronunciou pela confirmação do decidido.[1]
Cumpre então apreciar e decidir.
*
FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
*
A questão a decidir é a seguinte:
Apurar se o autor, na qualidade de herdeiro dos seus falecidos pais, pode, desacompanhado da sua mulher, propor ação de impugnação de escritura de justificação notarial outorgada pela ré, sua irmã.
*
Os elementos factuais e processuais relevantes para o conhecimento do presente recurso constam do antecedente relatório.
*
Passemos à apreciação jurídica.
O art. 34º do Cód. de Proc. Civil, onde estão previstos diversos casos de litisconsórcio necessário legal, resultantes do casamento[2], estabelece o seguinte no seu nº 1:
«Devem ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com consentimento do outro, as ações de que possa resultar a perda ou a oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos, incluindo as ações que tenham por objeto, direta ou indiretamente, a casa de morada de família
No caso dos autos, verifica-se que a ação intentada pelo autor se configura, num primeiro plano, como de impugnação judicial de escritura de justificação notarial, uma vez que este pretende que tal escritura, celebrada em 30.10.2017, seja declarada sem efeito, que se declarem como falsas as declarações dela constantes e que se declare ainda que os prédios nela descritos não pertencem à ré.
Ora, estas ações, em que se impugna o facto justificado notarialmente constituem ações de simples apreciação negativa, nas quais se pretende tão-só que se declare a inexistência de uma relação ou de um facto juridicamente relevante. Limita-se, pois, a atividade judicial a retirar de um estado de incerteza grave e objetiva o direito ou facto jurídico, verificando, em juízo, a sua inexistência.[3]
Porém, da leitura dos pedidos formulados pelo autor, mais concretamente do pedido b), constata-se que este não se limita a pedir que que seja declarado que os dois prédios descritos na escritura de justificação notarial não pertencem à ré. Pretende ainda que seja declarado que os mesmos pertencem à herança indivisa aberta por óbito dos pais de autor e ré.
Ou seja, o autor, para além dos pedidos próprios de uma ação de impugnação de justificação notarial, formula também pedido através do qual reivindica para a herança a propriedade de dois imóveis.
Acontece que, conforme decorre do atrás citado art. 34º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, devem ser propostas por ambos os cônjuges, ou por um deles com o consentimento do outro, as ações de que possa resultar perda ou oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos.
Mas esse, pese embora a posição assumida na decisão recorrida, não é o caso dos autos.
Com efeito, na presente ação não está em causa a possibilidade de perda ou oneração de bens que só por ambos possam ser alienados ou a perda de direitos que só por ambos possam ser exercidos.
O que se pretende é tão-somente salvaguardar bens que pertencem à herança dos pais do autor e da ré e que não se integram no património do autor marido, sendo que este está a exercer um direito que lhe é conferido pelo nº 1 do art. 2078º do Cód. Civil.
Preceitua-se neste artigo que, existindo vários herdeiros qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este lhe possa opor que tais bens não lhe pertencem por inteiro.
E se o pode fazer desacompanhado dos demais herdeiros, lógico é que também o possa fazer desacompanhado do seu cônjuge.
É que “in casu” não estão em apreciação bens imóveis pertencentes ao casal ou a um dos cônjuges e, por isso, a improcedência da ação proposta pelo autor não tem como efeito a perda ou a oneração de bens integrados no seu património, mas apenas o seu não ingresso no património hereditário.
Assim, a ação proposta pelo autor não se engloba no universo de ações a que se refere o art. 34º do Cód. de Proc. Civil, podendo intentá-la desacompanhado do seu cônjuge.
Deste modo, ao invés do defendido pela Mmª Juíza “a quo”, entendemos que não se verifica a exceção dilatória de ilegitimidade ativa invocada pela ré, o que significa a procedência do recurso interposto e a normal prossecução dos autos.
*
Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. de Proc. Civil):
.....................................................................
.....................................................................
.....................................................................
*
DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelo autor B... e, em consequência:
a) revoga-se a decisão recorrida;
b) julga-se improcedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa arguida pela ré;
c) determina-se o normal prosseguimento dos autos.
Custas do presente recurso a cargo da ré/recorrida

Porto, 11.7.2018
Rodrigues Pires
Márcia Portela
Maria de Jesus Pereira
_____________
[1] A circunstância de o recurso, por manifesto lapso cometido pelo autor/recorrente, ter sido interposto com referência ao Tribunal da Relação de Coimbra, e do qual a ré/recorrida nas suas contra-alegações pretende extrair consequências em termos de incompetência, pugnando, inclusive, pela absolvição da instância, mostra-se irrelevante, uma vez que os autos foram acertadamente remetidos para o Tribunal da Relação do Porto, em cuja área de competência se situa a comarca de Aveiro.
[2] Cfr. Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, 2015, Almedina, pág. 73.
[3] Cfr. Ac. Rel. Coimbra de 8.11.2011, proc. 39/10.8 TBMDA.C1, disponível in www.dgsi.pt.