Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3908/16.8JAPRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: CRIME DE ABUSO SEXUAL DE MENOR DEPENDENTE
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
UNIDADE RESOLUTIVA
Nº do Documento: RP201903133908/16.8JAPRT.P2
Data do Acordão: 03/13/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 792, FLS 147-186)
Área Temática: .
Sumário: I - A categoria do “crime de trato sucessivo” foi criada pela jurisprudência para obviar a uma incerteza quando, sabendo embora o tribunal que o crime de abuso sexual de menor dependente p. e p. pelo art.º 171º do C. Penal foi praticado, não consegue contabilizar de forma precisa o número de crimes de abuso sexual cometidos.
II - É nestes casos que alguma jurisprudência tem optado por considerar que houve apenas um crime de abuso sexual praticado diversas vezes, ao longo do tempo e, por isso, designado como “crime de trato sucessivo”.
III - Integram o “crime de trato sucessivo” aqueles casos em que se possa afirmar a existência de uma unidade de resolução criminosa, uma “unidade resolutiva”, pretendendo com esta expressão, em detrimento daquela outra “unidade de resolução”, acentuar a existência de uma pluralidade de resoluções e uma conexão temporal entre os actos realizados.
IV – Não há unidade resolutiva que abarque toda a actuação do arguido quando os actos perpetrados pelo arguido se foram progressivamente tornando mais abusivos e com actos cada vez mais intrusivos, prolongando-se por um período de, pelo menos, um ano, com alguns actos suficientemente delimitados no tempo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Rec. Penal n.º 3908/16.8JAPRT.P2
Comarca do Porto
Juízo Central Criminal do Porto.

Acordam, em Conferência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I-Relatório.
Após ter sido declarado nulo o anterior Acórdão do Tribunal a quo, quer por falta de apreciação crítica da prova quer por omissão de pronúncia, através de Acórdão deste Tribunal datado de 12.09.2018, no Processo Comum Coletivo n.º 3908/16.8JAPRT, do Juízo Central Criminal do Porto, juiz 4, foi proferido novo Acórdão onde o arguido B..., melhor identificado no Acórdão a fls. 1254, foi condenado nos seguintes termos:
«- Face ao exposto, ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O PRESENTE TRIBUNAL COLETIVO em julgar parcialmente provados e procedentes, nos termos referidos, a acusação pública e o pedido cível formulados nos autos contra o arguido e, consequentemente:
1.- Condenar o arguido:
i).- Pela prática, sobre a pessoa da queixosa C..., de um crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão;
ii).- Pela prática, sobre a pessoa da mesma queixosa, de um crime de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelo artigo 172.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;
iii).- Em cúmulo jurídico das penas mencionadas nas alíneas antecedentes, na pena única de 6 (seis) anos de prisão;
2.- Condenar o arguido no pagamento das custas e demais encargos deste processo, na parte crime, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC;
3.- Condenar ainda, o arguido, a pagar à queixosa e demandante cível C..., a título de indemnização pelos danos de natureza não patrimonial por esta sofridos em virtude da sua conduta, a quantia de € 25.000 (vinte e cinco mil euros), acrescidos de juros moratórios, à taxa legal, a contar da data da publicitação da presente decisão e até efetivo e integral pagamento da quantia em apreço;
4.- Absolver o arguido do demais que contra ele foi aqui civilmente peticionado;
5.- Condenar arguido e demandante cível nas custas da instância cível, na proporção dos respetivos decaimentos, e sem prejuízo das isenções de que beneficiem;
6.- Determinar continue o arguido a aguardar os ulteriores trâmites do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva, que só se extinguirá assim com o trânsito em julgado do presente acórdão (artigo 214.º, n.º 1, alínea e), primeira parte, do Código de Processo Penal);
7.- Determinar a devolução, quando solicitada, dos objetos apreendidos nos autos ao arguido, sem prejuízo do disposto nos artigos 186.º, n.º 4, do Código de Processo Penal – constituindo a presente decisão notificação, ao mesmo arguido, nos termos e para efeitos do preceituado no n.º 3 do mesmo artigo – e 34.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento das Custas Processuais;
8.- Advertir expressamente o arguido de que conforme decorre expressamente do artigo 214.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, até à extinção da pena que ora lhe foi imposta, continua ele sujeito às obrigações decorrentes da medida de coação de termo de identidade e residência que prestou nos autos (e nomeadamente, de que as posteriores notificações lhe serão feitas por via postal simples para a morada indicada naquele termo, nos termos legalmente previstos, se e quando restituído à liberdade);
9.- Alfim, ordenar a oportuna remessa de boletins ao Registo Criminal.»
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Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso apresentando a motivação de fls. 1309 a 1364, que rematou com as seguintes conclusões:
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Responderam quer a assistente C... quer a demandante civil D... conforme respostas, respectivamente, de fls. 1391 e 1392, e 1393 e 1394, pedindo a improcedência de todas as colusões de recurso e a manutenção do Acórdão.
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Nesta Relação, o Excelentíssimo PGA pugnou pela negação de provimento ao recurso emitindo Parecer fundamentado com o seguinte teor:
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Cumprido o artigo 417º, n.º2 do CPP, não houve resposta.
Colhidos os vistos, e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II- Fundamentação.
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
São as seguintes as questões a decidir:
- Questão da Inexistência do despacho do juiz Presidente e alteração substancial de factos.
- Nulidade da sentença por insuficiência de fundamentação ou de apreciação crítica - nos termos do artigo 374º, n.º 2 e 379º, n.º1 al. a) do CPP. Inconstitucionalidade.
- Vícios do artigo 410º, n.º2 als. a), b) e c).
- Impugnação da matéria de facto.
- Errada subsunção jurídica dos factos.
- Medida das penas parcelares excessivas.
- Medida da pena única.
- Suspensão da execução da pena.
- Montante da Indemnização do PIC.
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2. Enumeração dos factos provados, não provados, sendo que, porque questionada directamente, oportunamente será reproduzida a respectiva motivação.
«A. Factos provados:
11.- Discutida a causa, resultaram provados os factos seguintes:
11.1).- O arguido B... é membro da F... em Portugal, e integrou, por muitos anos, a comunidade dos respetivos crentes que se reúne na Igreja ..., sita no n.º .... da Rua ..., no Porto, onde era conhecido como «irmão B1...»;
11.2).- Devido aos seus conhecimentos de música, o arguido, enquanto membro da aludida comunidade, lecionou, a título voluntário, aulas de música e de violino a crianças e adultos nisso interessados, designadamente com vista a integrarem a orquestra que anima os atos de culto celebrados no referido templo religioso;
11.3).- Há cerca de dez anos a esta parte o arguido passou a lecionar aulas de música e de violino também a membros do sexo feminino da dita comunidade;
11.4).- Aproveitando tal circunstância, o arguido, designadamente no interior da aludida Igreja ..., sujeitou algumas das suas alunas, e concretamente a aqui queixosa C..., contra a sua respetiva vontade, a contactos de natureza sexual, com vista à satisfação do seu instinto sexual;
11.5).- A aqui queixosa C..., nascida a 21/01/2001, desde que tinha cerca de 11 anos e pelo menos até ao dia 12/11/2015, frequentou a F... em Portugal, participando nos cultos e eventos a eles associados que ocorrem na referida Igreja ..., tendo tido, a partir dos seus 13 anos, aulas de violino com o arguido B..., precisamente com vista a ingressar na já mencionada orquestra e contribuir, com a sua prestação musical, para o apoio ao culto;
11.6).- Tais aulas decorriam pelo menos uma vez por semana e, consoante a disponibilidade do arguido e dos respetivos alunos, normalmente mais uma ou duas vezes, de acordo com um horário flexível;
11.7).- No caso da aludida C..., as aulas decorriam, por regra sempre antes da hora do jantar, iniciando-se pelas 17 horas e 30 minutos ou pelas 19 horas;
11.8).- Durante o período em que decorreram as aulas que ministrou à queixosa C..., o arguido tratava-a por «C1...», afirmando, perante terceiros, que ela era «a aluna preferida dele»;
11.9).- Em data não concretamente apurada do ano de 2014, no decurso de mais uma aula com a queixosa C..., e estando esta sentada, o arguido, estando de pé, colocou-se ao lado dela e roçou a sua zona genital no braço e ombro daquela, comportamento que manteve durante alguns instantes;
11.10).- Pese embora tal comportamento a incomodasse, a queixosa C..., dado o ascendente do arguido sobre ela e a sua posição na comunidade que integravam, não reagiu, nem contou a ninguém o que havia sucedido, atitude que, pelas mesmas razões, manteve relativamente aos demais factos que a seguir se descrevem;
11.11).- A partir de então, e por um período de pelo menos um ano, durante as aulas em que se encontravam presentes apenas o arguido e a queixosa C..., aquele passou, contra a vontade desta, a adotar comportamentos similares ao descrito, tendo intensificado, à medida que o tempo foi passando, os contactos de natureza sexual que com ela mantinha;
11.12).- Assim, a partir de determinada altura o arguido passou a introduzir as mãos por baixo da roupa da queixosa C..., incluindo da roupa interior que ela então trajasse, apalpando-lhe os seios e a vagina, e posteriormente começou a introduzir-lhe dedos na vagina, movendo-os e assim manipulando tal zona do corpo da queixosa;
11.13).- Também a partir de data não concretamente apurada o arguido começou por pedir à queixosa C... que lhe acariciasse o seu pénis com as mãos, inicialmente sobre a roupa que vestia e, posteriormente, diretamente, alturas em que o retirava das suas calças para o efeito;
11.14).- Também a partir de data não apurada começou o arguido a ordenar à queixosa C... que metesse o seu pénis na boca dela;
11.15).- Sempre que a queixosa se recusava a fazê-lo, o arguido, agarrando-a pelos cabelos, na zona da nuca, forçava-a a baixar a cabeça e obrigava-a a cumprir com as suas ordens, o que a queixosa, dadas as circunstâncias e temendo a reação do arguido, acabava por fazer;
11.16).- Durante o período em que durou o seu descrito comportamento o arguido contactava, com frequência, a queixosa C... (designadamente mediante envio de mensagens SMS), alegadamente com vista à marcação das aulas de violino, ocasiões essas que, muitas vezes, aproveitava exclusivamente para manter com esta os contactos de natureza sexual já descritos;
11.17).- Muitas vezes, enquanto agia nos moldes descritos, o arguido dizia à queixosa C... que tinha «um corpo muito bonito», ou que tinha «umas pernas muito bonitas»;
11.18).- Face à confiança que depositavam no arguido, os pais da queixosa C... permitiam que este levasse a filha a casa, no seu veículo automóvel, quando as aulas terminavam;
11.19).- No entanto, em algumas dessas ocasiões, o arguido, ao invés de conduzir a queixosa C... a casa, levava-a para zonas isoladas, onde aproveitava para lhe apalpar os seios e a vagina, e para lhe introduzir os seus dedos na vagina, ao mesmo tempo que lhe pedia para que lhe acariciasse e manipulasse o pénis;
11.20).- Em data não concretamente apurada, e com vista a manter com a queixosa C... relações de cópula, o arguido colocou, no chão da sala onde deveria decorrer a aula de música desse dia, algumas mantas;
11.21).- Assim que a queixosa entrou na sala o arguido despiu-a, tendo-se igualmente despido, após o que mandou aquela deitar-se no chão e colocou-se sobre ela, aprestando-se a introduzir-lhe o seu pénis na vagina;
11.22).- Porque na ocasião a queixosa se debateu, no entanto, o arguido não logrou concretizar os seus propósitos;
11.23).- No dia 12/11/2015, no período compreendido entre as 21 e as 22 horas, quando se encontrava alegadamente a dar uma aula de violino à menor C..., o arguido ordenou-lhe que se encostasse ao órgão aí existente, tendo-lhe levantado o vestido que ela envergava, posto o que se colocou de joelhos, à frente dela, e lhe começou a beijar a barriga e a vagina;
11.24).- Quando se encontrava nessa situação foram o arguido e a queixosa surpreendidos pela chegada ao local de E..., que posteriormente informou do sucedido os responsáveis da F..., que de imediato dispensaram o arguido das suas funções e o aconselharam a não frequentar os atos de culto da comunidade, o que ele acatou;
11.25).- No dia 10/05/2017, pelas 13 horas e 40 minutos, o arguido tinha no interior da sua habitação, então sita na Rua ..., n.º .., 3.º Esquerdo, Traseiras, no Porto, os objetos seguintes:
i) Um computador portátil;
ii) Diversos suportes de gravação, designadamente uma pen drive;
iii) Um telemóvel;
iv) Equipamentos informáticos e de telecomunicações;
11.26).- No computador portátil existiam vários vídeos de pornografia, visualizados na Internet;
11.27).- O arguido conhecia perfeitamente a idade da aludida C... à data em que ocorreram os factos atrás descritos;
11.28).- Ao atuar da forma descrita, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, ciente da natureza sexual dos contactos que manteve com a referida C..., assim a prejudicando no que ao normal desenvolvimento da sua sexualidade respeita;
11.29).- Por outro lado, o arguido atuou aproveitando-se do ascendente que detinha sobre a mencionada C..., decorrente da posição que ocupava na comunidade religiosa que integravam e da diferença de idades entre eles;
11.30).- O arguido tinha perfeito conhecimento do caráter ilícito e criminoso dos seus comportamentos;
11.31).- Em virtude do comportamento do arguido a queixosa C... sentiu medo, ansiedade e depressão, sensação de desamparo, e foi assaltada por sentimentos de estigmatização, rejeição e vergonha;
11.32).- Para além disso, tal comportamento determinou ainda, à mesma queixosa, perda de autoconfiança, com consequente baixa autoestima, contribuindo para o agravar do seu isolamento social;
11.33).- Em virtude dos factos descritos a queixosa C... passou a ter problemas de sono e dificuldades no relacionamento com familiares e colegas e amigos;
11.34).- A queixosa C..., no âmbito dos presentes autos, deslocou-se a vários locais;
11.35).- Em virtude do ocorrido consigo, e porque se sentia hostilizada por alguns dos membros da comunidade que integrava, a queixosa C... passou a frequentar o culto noutra Igreja da F..., a de ...;
11.36).- Do relatório social relativo ao arguido, elaborado pelos serviços de reinserção social por solicitação do Tribunal, que se encontra junto a fls. 784 e segs., refere-se, no que aqui interessa:
i) O processo de crescimento/desenvolvimento de B... e da irmã mais velha decorreu no seio do agregado familiar de origem, descrevendo a dinâmica familiar de forma positiva e marcada por laços de afectividade;
ii) A situação socioeconómica foi descrita como capaz de fazer face às necessidades da família, ao longo dos anos, com os proventos auferidos pelo pai como empregado administrativo numa empresa têxtil e a mãe como modista, contudo nunca permitiu efetuar grandes poupanças;
iii) Os progenitores adotaram um modelo educativo onde ambos assumiam papel preponderante, com imposição de regras, embora com posturas educativas distintas, o pai mais autoritário, por contraponto com a mãe mais permissiva, com recurso à advertência, retirada de privilégios e pontualmente ao castigo físico;
iv) O percurso escolar do arguido foi iniciado em idade regulamentar, tendo-o abandonado aos 13 anos com a conclusão do 7.º ano de escolaridade, registando neste percurso retenções que atribui a pouco empenho no estudo das matérias ministradas e faltas às aulas para poder permanecer junto do grupo de pares sem qualquer atividade estruturada;
v) Com o abandono do sistema de ensino, iniciou o percurso profissional como aprendiz de serralheiro, sendo também comum efetuar recados para a empresa dentro e fora das instalações da mesma;
vi) Segundo refere, durante o período em que esteve na empresa foi incentivado a retomar os estudos, o que viria a efetivar aos 15 anos de idade acabando por concluir, mais tarde, o curso industrial na Escola ..., no Porto;
vii) Por volta dos 22 anos de idade o arguido tomou a decisão de sair da empresa onde laborava, na procura de melhores condições de trabalho e salariais, passando a exercer atividade na empresa «G...», onde permaneceu cerca de 3 anos;
viii) B... refere que foi efetuando algumas formações em áreas com interesse para o seu trabalho, nomeadamente ao nível da cronometragem e de métodos e tempos de trabalho, que lhe foram permitindo mudanças de emprego, quer na área têxtil, quer na área da industrial automóvel, na empresa «H..., SA», onde permaneceu cerca de 11 anos, até 1998;
ix) O arguido refere que a saída da empresa decorreu por sua vontade, tendo à data negociado uma indeminização que lhe viria a permitir iniciar, em sociedade, e em data que não conseguiu precisar, um negócio com uma lavandaria industrial;
x) Este negócio não se revestiu de sucesso por falta de entendimento entre os sócios, pelo que decidiu sair, passando a efetuar trabalhos, pontualmente e sem vínculo contratual, como consultor;
xi) B... solicitou a reforma aos 55 anos de idade, desde então passou a ocupar grande parte do seu tempo com a música, atividade que iniciou aos 8 anos de idade e foi mantendo ao longo dos anos, afirmando ter concluído o curso complementar de violino no conservatório, dando aulas de violino na F... em Portugal, igreja ... onde era também responsável pelo «ministério da música» (sic) – responsável pela orquestra;
xii) B... refere que desde os 7 anos de idade, por decisão dos progenitores passou a frequentar a F... em Portugal, uma vez que foi nessa altura que se converteram a esta Igreja;
xiii) O arguido contraiu matrimónio a 12/08/1977, tendo desta união 2 descendentes que contam atualmente 37 e 33 anos de idade;
xiv) B... e cônjuge referem que a situação financeira do casal foi, ao longo dos anos, permitindo fazer face às necessidades do agregado, com períodos de maior ou menor desafogo, sendo que nos últimos anos subsistiam com as respetivas reformas;
xv) À data dos factos que integram o objeto do presente processo, o arguido residia com o cônjuge e o descendente mais novo, a filha mais velha encontra-se autonomizada do agregado, na morada constante nos autos, situação que sofreu alteração, a 18/11/2015, quando o cônjuge tomou conhecimento dos factos que deram origem ao presente processo e solicitou que o arguido abandonasse de imediato a casa morada de família, dando início ao processo de divórcio, que veio a ser decretado no dia 27/11/2015;
xvi) Até aos factos na origem do presente processo, arguido e ex-cônjuge descrevem uma relação positiva, relatando o ex-cônjuge o empenhamento de B... nas suas funções de marido e de pai;
xvii) Numa fase inicial da separação, o arguido afirma ter pernoitado cerca de 3 semanas na sua viatura, arrendando posteriormente um quarto na ..., n.º .., no Porto, situação que manteve até à prisão;
xviii) Segundo o arguido, foi chamado, em data que não consegue precisar mas que situa alguns dias antes de terem dado conhecimento dos factos que originaram o presente processo ao ex-cônjuge, por responsáveis da F... em Portugal, dando conta de que tiveram conhecimento da situação, pelo que desde esse dia ficou afastado do «ministério da música», entregou as chaves que estavam na sua posse e foi-lhe ainda solicitado que deixasse de frequentar aquele espaço, pelo que desde então não voltou àquele lugar de culto;
xix) Esta informação foi confirmada pelo responsável máximo da F... em Portugal, da Rua ..., que afirmou que até esse momento o arguido vinha assumindo postura tendencialmente correta e educada com os demais, reconhecendo que por vezes tinha pontos de vista distintos dos responsáveis, nomeadamente no que concerne à forma como a orquestra ia sendo gerida;
xx) Da entrevista com a ex-cônjuge e descendentes resulta informação de que numa fase inicial, ao terem conhecimento dos factos, assumiram uma postura de rutura total face ao arguido, que com o tempo veio a ser amenizada, após uma conversa que descrevem como frontal e franca, com os filhos e, no passado mais recente, com o ex-cônjuge, pelo que se foi produzindo uma reaproximação gradual, que resultou em convívios uma vez por semana com os filhos e algumas deslocações a casa do ex-cônjuge, na sequência de problemas de saúde que esta vivenciou;
xxi) Os descendentes referem que o apoiam na qualidade de pai, considerando que cabe à justiça julgar B... e que este conta com o seu apoio, seja qual for o desfecho do presente processo;
xxii) O ex-cônjuge manifesta face àquele sentimento que descreve como «tenho pena dele, é pai dos meus filhos, mas como homem nunca mais o aceito» (sic);
xxiii) O arguido subsistia, desde a separação e até à reclusão, com a sua reforma no valor de cerca de € 1.336 líquidos, tendo como encargos fixos mensais o pagamento do quarto onde vivia, no valor de € 150 mensais;
xxiv) B... refere que ia ajudando os filhos naquilo que era necessário, expressando forte contentamento pelo facto de ser avô há 9 meses;
xxv) B..., no âmbito do presente processo, ficou sujeito à medida de coação de prisão preventiva no dia 11/05/2017, encontrando-se, desde então, preso no Estabelecimento Prisional instalado junto à Polícia Judiciária do Porto, adotando comportamento de acordo com as normas da instituição, procurando manter-se ocupado em atividades realizadas dentro da instituição prisional;
xxvi) O arguido refere como única relação de intimidade significativa a que ocorreu com o ex-cônjuge, considerando que este relacionamento sempre foi satisfatório, em seu entender, para ambos;
xxvii) Em termos de projeto de vida futura, o arguido, restituído à liberdade, pretende manter relação de proximidade com os descendentes, e se possível com o ex-cônjuge, reconhecendo contudo que o retomar da relação marital está excluído por aquela e pretende voltar a frequentar a F... em Portugal, mas não na Rua ...;
xxviii) Na zona de residência, até à data dos factos, o arguido é reconhecido, sendo desconhecida a sua situação processual e o facto de não ser visto, naquela zona, há já algum tempo, é associado à circunstância de se ter separado do cônjuge;
xxix) Naquele meio social o arguido sempre assumiu postura educada e cordial, por esse facto não é alvo de rejeição;
xxx) B... verbaliza constrangimento, face a este que afirma ser o seu primeiro confronto com o sistema de Administração da Justiça Penal, receando as consequências que daqui lhe podem advir, nomeadamente a possível aplicação de uma pena privativa da liberdade, que o afaste dos filhos;
xxxi) Em abstrato e face à natureza dos factos subjacentes ao presente processo, verbaliza juízo de censurabilidade e ilicitude, reconhecendo assim a existência de vítimas e identificando os danos subjacentes;
xxxii) O presente processo teve repercussões negativas ao nível da sua inserção sociofamiliar, com o divórcio do cônjuge e, numa fase inicial, o afastamento dos filhos, que foi ultrapassado, bem como o facto de se ver confrontado com o sistema de Administração da Justiça;
xxxiii) O arguido manifesta receio de que possa vir a ser alvo de rejeição social, no futuro, se as pessoas tiverem conhecimento dos factos pelos quais se encontra acusado;
xxxiv) Em caso de condenação, o arguido manifesta adesão a uma medida a executar na comunidade;
xxxv) O processo de desenvolvimento de B... decorreu no agregado familiar de origem, com dinâmica genericamente equilibrada;
xxxvi) O arguido não investiu inicialmente, na sua formação escolar, que veio a completar mais tarde, na Escola ..., tendo por isso dado início à inserção laboral em idade muito precoce, que foi decorrendo de forma mais ou menos estável, até ao momento em que saiu da empresa «H..., S.A.», reformando-se aos 55 anos de idade;
xxxvii) As repercussões negativas do presente processo refletiram-se no facto de se ver confrontado com o sistema de administração da justiça penal, no divórcio do cônjuge e, numa fase inicial, no afastamento dos filhos, que foi ultrapassado, e no temor de poder vir a ser alvo de rejeição social no futuro, se as pessoas tiverem conhecimento dos factos pelos quais vem acusado;
xxxviii) Em caso de condenação, B... revela necessidades ao nível da interiorização do desvalor e ilicitude da sua conduta, bem como dos conceitos normativos que regem o relacionamento entre indivíduos de diferentes idades, designadamente, as interações pessoais que respeitem a auto determinação sexual, devendo submeter-se a intervenção especializada na área da sexologia;
11.37)- Do certificado de registo criminal relativo ao arguido, junto a fls. 772, nada consta.
B.-Factos não provados:
12).- Com interesse para a decisão da causa não se provaram quaisquer outros factos relevantes, designadamente os demais que, alegados na acusação pública ou no pedido de indemnização cível formulado nos autos, não se levaram à factualidade considerada como provada (particularmente se em contradição com esta) e, em especial:
12.1).- Que para além das situações mencionadas nos parágrafos 11.23) e 11.25), os factos atrás descritos ocorreram nas precisas datas constantes da acusação pública;
12.2).- Que o arguido B... transportava consigo, para as aulas de música, o seu computador pessoal, que utilizava para exibir às suas alunas filmes onde eram visíveis pessoas a manterem relações sexuais explícitas;
12.3).- Que após o evento descrito no parágrafo 11.9) o arguido passou a enviar mensagens SMS e a telefonar à queixosa com frequência maior do que a mencionada no parágrafo 11.16);
12.4).- Que o arguido, para além do que se deu como assente, agia nos moldes atrás descritos em todas as aulas que lecionava à queixosa, tendo mesmo havido situações em que nem sequer foi lecionada qualquer aula porquanto o arguido apenas aproveitou para praticar atos de natureza sexual sobre a queixosa;
12.5).- Que para além das mencionadas no parágrafo 11.17) o arguido dirigiu à queixosa outras expressões de caráter erótico;
12.6).- Que para além do comportamento descrito no parágrafo 11.15) o arguido utilizou outras condutas, e designadamente esfregar o pénis com força na cara da queixosa, para a obrigar a praticar-lhe sexo oral;
12.7).- Que o arguido exigia que a queixosa lhe agarrasse o pénis com a mão e efetuasse movimentos de vai e vem;
12.8).- Que o arguido, enquanto agia nos moldes já descritos, dizia à queixosa C...: «ai é tão bom, gostas não gostas?»;
12.9).- Que terminado cada ato sexual, o arguido ejaculava para as próprias mãos ou para cima do corpo da C..., e limpava ambos com os lenços que tinha escondidos na sala de aula, nas estantes, entre os livros;
12.10).- Que quaisquer dos atos de natureza sexual praticados pelo arguido sobre a menor C... ocorreram na arrecadação existente na sala de aula;
12.11).- Que quando lhe introduzia o pénis na boca, às vezes a queixosa C... engasgava-se e parecia que ia vomitar, mas o arguido continuava a empurrar a boca dela contra o pénis dele até ejacular;
12.12).- Que a partir do evento descrito no parágrafo 11.20), e para além dos atos atrás descritos, o arguido tentava sempre introduzir a língua na vagina da menor, penetrá-la com o pénis na vagina e no ânus;
12.13).- Que quando a queixosa C... perfez os 14 anos de idade, o arguido começou a mostrar-lhe filmes pornográficos, em que se viam maiores de 18 anos em práticas sexuais explícitas;
12.14).- Que no dia 12/11/2015 o arguido ordenou à queixosa C... que se ajoelhasse à sua frente e introduzisse o seu pénis na boca, tal como já tinha feito momentos antes;
12.15).- Que com as suas deslocações a queixosa C... suportou despesas que importaram em valor nunca inferior a € 650.»
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3.- Apreciação do recurso.
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Quanto à segunda parte da questão, parece-nos ser de meridiana clareza a sua improcedência manifesta.
Com efeito, e como é consabido, a categoria do “crime de trato sucessivo” foi criada pela jurisprudência, para obviar a uma incerteza, quando sabendo, embora, o tribunal que o crime de abuso sexual de menor foi praticado, não consegue, todavia, contabilizar de forma precisa o número de crimes de abuso sexual cometidos [os abusos foram realizados, por exemplo, quando o menor regressava da escola; os abusos ocorreram diversas vezes por semana, sempre que o menor se encontrava com o arguido no estabelecimento onde o arguido trabalhava, etc]
É nestes casos que alguma jurisprudência tem optado por considerar que houve apenas um crime de abuso sexual praticado diversas vezes “Crime de trato sucessivo” ao longo do tempo e por isso designado como “crime de trato sucessivo”. Integram o “crime de trato sucessivo”, segundo a jurisprudência, aqueles casos em que se possa afirmar a existência de uma unidade de resolução criminosa, uma “unidade resolutiva” (pretendendo com esta expressão, em detrimento daquela outra “unidade de resolução”, acentuar a existência de uma pluralidade de resoluções) e uma conexão temporal entre os actos realizados.
Descendo ao caso concreto, não só os factos provados não espelham uma unidade resolutiva que abarque toda a actuação do arguido, porquanto os actos perpetrados pelo arguido se foram progressivamente tornando mais abusivos e com actos cada vez mais intrusivos; como se prolongaram por um período de pelo menos um ano, com alguns actos suficientemente delimitados no tempo.
Como também nos parece inequívoco que a actuação do arguido preenche, sem dúvida, dois tipos legais - número de tipos legais de crime preenchidos pelo agente, vide artigo 30º do CP – de crime, pois são algo distintos os bens jurídicos violados [no caso do menor dependente menor entre os 14 e 18 anos, o livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, mas ligado á ideia de que a liberdade de autodeterminação sexual destes menores confiados a outrem, se encontra em princípio carecida de uma protecção particular].
Por outro lado o contexto espácio temporal é distinto, os actos realizados conseguem situar-se, pelo menos alguns deles, em momentos temporais distintos e descriminados e prolongando-se por um período de pelo menos um ano.
Revelando ainda os factos que o agente procurava oportunidades, ou criou situações para a prática dos actos típicos,
Mas, como ultimamente vem sendo evidenciado, definitivo é o critério do significado social do facto. “…o substrato de vida dotado de um sentido negativo de valor jurídico penal” vide Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral Tomo I; Coimbra Editora, pag. 988, 4. § 26.
E no caso há vários sentidos sociais de ilicitude autónomos a reclamar a punição por cada um deles, ou seja, uma pluralidade de factos puníveis, não só pelo que anteriormente referimos, mas também porque até um determinado limite temporal, nomeadamente até 25.01.2015 a menor tinha idade inferior a 14 anos, portanto uma criança, e posteriormente a essa data a menor é uma adolescente mas, carecida, em função da relação de confiança estabelecida com o arguido, de uma protecção particular.
Entendemos, que no caso, há inequivocamente, vários sentidos sociais de ilicitude autónomos a reclamar a punição por cada um deles, ou seja, uma pluralidade de factos puníveis.
É claro que houve dificuldade em determinar temporalmente de forma exacta todos os factos que estiveram na base do abuso sexual, especialmente no que tange aos actos praticados antes do dia 12.11.2015, tal teve como consequência o agrupamento dos vários actos e a punição desse grupo de actos como se se estivesse apenas perante um crime de abuso sexual (visto estarmos perante uma mesma vítima).
Posto o que deixamos exposto, entendemos que não há que agrupar todos os actos praticados pelo arguido num único crime de trato sucessivo - – cfr. no mesmo sentido Helena Moniz, “Crime de trato sucessivo”? Revista Julgar Online, Abril de 2018.
Em conclusão, mantém-se a condenação pelos crimes em que o arguido vem condenado.
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III- Decisão.

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto.
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Custas pelo recorrente, nos termos dos artigos 513.º e 514º do CPP (e artigo 8º do Regulamento das custas processuais e, bem assim, tabela anexa n.º III), fixando-se a taxa de justiça em 6 [seis] UC, sem prejuízo de eventual apoio judiciário.
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Notifique.
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Elaborado e revisto pela relatora – artigo 94º, n.º 2, do CP.P.
Porto, 13 de Março de 2019
Maria Dolores da Silva e Sousa
Manuel Soares