Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
36/22.0MBMTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAÚL CORDEIRO
Descritores: PROCESSO PENAL
DEVER DE COOPERAÇÃO
FINALIDADE
RECUSA DE COOPERAÇÃO
CONSEQUÊNCIAS
COBERTURA
DESPACHO JUDICIAL
RECURSO AUTÓNOMO
IRRECORRIBILIDADE
REJEIÇÃO DO RECURSO
Nº do Documento: RP2024020636/22.0MBMTS-A.P1
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL (DECISÃO SUMÁRIA)
Decisão: REJEIÇÃO DO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, POR IRRECORRIBILIDADE DO DESPACHO RECORRIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A codificação adjectiva civil prevê a consagração legal do dever de cooperação para a descoberta da verdade, sendo tal regime aplicável, naturalmente, às pessoas singulares e colectivas, mesmo que não sejam partes na causa, tendo também aplicação no campo do processo penal, quando seja necessário obter informações ou elementos de terceiros estranhos ao processo.
II – A inobservância de tal dever de cooperação, na vertente de recusa de colaboração com a justiça, tem como sanção a aplicação de uma multa ao incumpridor.
III – O despacho que aplica, ou não, uma tal multa, não integra uma questão de natureza penal, isto no sentido de que não tem a ver com o objecto do processo, nem tão pouco com uma questão processual penal, e daí que não seja aplicável o princípio geral da recorribilidade enunciado no artigo 399.º do CPP.
IV – Sobre o tema da recorribilidade das decisões relativas a custas processuais, sejam na jurisdição civil, seja na penal, tem-se entendido que o valor a considerar para a admissibilidade do recurso deve ser igual a 50 UC, em conformidade com a previsão do artigo 31.º, n.º 6, do Regulamento das Custas Processuais.
V – No entanto, se é certo que cabe recurso da condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional, pois que, conforme tem sido entendido pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, o objectivo legal é o de introduzir uma regra geral de recorribilidade, em um grau, das decisões de condenação nesse tipo de sanções, fora dos casos de litigância de má-fé, independentemente do valor da causa ou da sucumbência, já ali não tem cabimento o recurso autónomo de despacho que se absteve de condenar a parte ou outro interveniente processual ou acidental em qualquer uma dessas sanções pecuniárias.
VI – Isto porque, não estando em causa a apreciação de questões relativas ao mérito da causa ou à tramitação processual, a não aplicação de multa no referido contexto não legitima o recurso da parte contrária ou de outro sujeito processual a pugnar por tal sancionamento, o mesmo se dizendo o Ministério Público, ainda que este tenha como atribuições, além do mais, o velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com as leis.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: DECISÃO SUMÁRIA DE 06-02-2024. (Recurso pelo MP de despacho do JIC em que este se absteve de condenar a A... em multa, a promoção daquele, por alegada recusa de colaboração com a justiça, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPC / Rejeição liminar, por a decisão não ser recorrível).

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            Decisão sumária (arts. 417.º, n.º 6, al. b), e 420.º, n.º 1, al. b), do CPP):

           O Ministério Público interpôs recurso do despacho de 23-05-2023, proferido, no Inquérito n.º 36/22.0MBMTS, pelo Exm.º Juiz do Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos – Juiz 1, o qual, na sequência de promoção nesse sentido, se absteve de condenar a A..., SA (doravante A...), em multa, por alegada recusa de colaboração com a justiça no fornecimento de informação que lhe foi solicitada, com relevo para a investigação (ref.ª 448658474).

           Terminou a motivação respectiva, com as seguintes conclusões:

            “1.ª O MP promoveu a condenação em multa processual da A..., SA, por falta de colaboração com o tribunal, nos termos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável, ex vi artigo 4.° do Código de Processo Penal, dado que, mesmo notificada sob a referida cominação, não forneceu no prazo fixado informação imprescindível para a investigação.

2.ª No exercício do contraditório e em tempo útil, a A... desculpou-se com o elevado número de pedidos do Tribunal.

3.ª O Mm.º JUIZ a quo indeferiu o promovido, conforme despacho que se transcreve: “Em face da informação e das explicações apresentadas pela A..., abstemo-nos de condenar em multa a A..., atendendo aos princípios da necessidade e proporcionalidade, da confiança, da boa-fé e da cooperação.”

4.ª O MP não se conforma com o decidido.

5.ª Desde logo, por a justificação da requerida não ter base legal (não está prevista no n.º 3 do art. 417.º do CPP), e por ser exigível a uma empresa que opera no mercado e que tem grandes lucros, que possua os meios técnicos e humanos necessários para, em tempo útil, prestar as informações pedidas pelo Tribunal

6.ª A actual exigência de uma pronta colaboração das operadoras telefónicas é imprescindível para a investigação criminal, face à declaração da inconstitucionalidade com força geral dos arts. 4.º e 6.º da Lei n.º 32/2008, de 17/07, por força do Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 268/22, de 19 de Abril.

7.ª As informações referentes a dados de tráfego apenas podem ser fornecidas ao Tribunal, ao abrigo do disposto nos arts. 187.º e 189.º, n.º 2, [do CPP], art 6.° da Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, e art. l0.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, ou seja. as guardadas nos últimos 6 meses.

8.ª A resposta tardia ao pedido, que era imprescindível para a descoberta da verdade, colocou em causa a eficácia da investigação, violando-se, assim, o disposto no art. 20.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

9.ª Daí que a condenação em multa promovida se afigure, no caso em apreço, de acordo com os princípios de necessidade, adequação e proporcionalidade.

10.º O douto despacho recorrido violou o disposto no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no art. 4.º do Código de Processo Penal.

DEVE, assim, ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, substituindo-o por outro que condene a A... em multa por falta de colaboração com o Tribunal,

Fazendo-se a costumada Justiça!” (fls. 39 a 44 dos autos).


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Admitido tal recurso por despacho de 09-06-2023, não foi apresentada resposta, tendo, contudo, o Exm.º Juiz sustentado o despacho recorrido, suscitando previamente a questão da irrecorribilidade do mesmo (ref.ªs 449269992 e 456125087).

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           Remetidos os autos a esta Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual, manifestou discordância quanto à subida imediata do recurso, sustentado que o mesmo deveria subir a final, pelo que não deverá conhecer-se agora do mesmo e determinar-se a sua baixa ao tribunal a quo para subida diferida (ref.ª 17723527).

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Cumpre apreciar.

           A lei processual estabelece que o relator profere decisão sumária sempre que, além do mais, o recurso dever ser rejeitado, o que ocorrerá quando se verifique causa que deveria ter determinado a sua não admissão, nos termos do n.º 2 do artigo 414.º do Código de Processo Penal (CPP), limitando-se tal decisão a identificar o tribunal recorrido, o processo e os seus sujeitos e a especificar sumariamente os fundamentos da decisão (arts. 417.º, n.º 6, alínea b), e 420.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do mesmo Código).

            O despacho recorrido é do seguinte teor:

           “Em face da informação e das explicações apresentadas pela A..., abstemo-nos de condenar em multa a A..., atendendo aos princípios da necessidade e proporcionalidade, da confiança, da boa-fé e da cooperação.

Notifique e devolva os autos ao DIAP.” (ref.ª 448658474).

Por sua vez, o despacho de sustentação, em que se suscitou a questão da irrecorribilidade daquele, é do seguinte teor:

“Ex.mos Senhores Desembargadores

Da questão prévia da irrecorribilidade do despacho sob recurso:

O despacho recorrido não confere ao Ministério Público uma sucumbência que possibilite o presente recurso.

No caso aqui em apreço, considerando as alegações do Digno Recorrente, está em causa a não condenação da A... numa multa de montante entre 0,5 UC e 5 UC, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e do artigo 27.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais.

Sobre o tema da recorribilidade das decisões relativas a custas processuais tem-se entendido que o valor a considerar para a admissibilidade do recurso deve ser igual a 50 UC, em conformidade com a previsão do artigo 31.º, n.º 6, do Regulamento das Custas Processuais.

O Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 06-12-2022, no Proc. n.º 20714/13.4YYLSB, refere-se à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça:

“Nesse Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, tirado em 19.05.2016, afirma-se com sentido inequívoco no sumário [:] «1. Ao abrigo do disposto no art.º 27.º, n.º 6, do RCP, independentemente do valor da causa ou da sucumbência, é admissível recurso, ainda que apenas em um grau, das decisões que condenem em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional. 2. Tal regime recursório encontra justificação na natureza e nos efeitos das decisões sancionatórias, reclamando o duplo grau de jurisdição que já se encontrava especialmente assegurado para as decisões de condenação em litigância de má-fé nos termos do art.º 542.º, n.º 3, do CPC. 3. O recurso à analogia pressupõe a existência de uma lacuna, não sendo a mesma detectada relativamente ao recurso de decisões que se pronunciem sobre a imputação ou quantificação de taxas de justiça e de encargos judiciários em geral. 4. Sem prejuízo da decisão do incidente de reclamação da conta cuja impugnação recursória está sujeita ao regime especial previsto no art.º 31.º, n.º 6, do RCP, as demais decisões relacionadas com taxas de justiça ou encargos judiciários obedecem ao regime geral do art.º 629.º, n.º 1, do CPC, sendo o recurso dependente quer do valor da acção, quer do valor da sucumbência, em conexão com a alçada do tribunal de que se recorre.»

[…] «A solução que decorre do art.º 27.º, n.º 6, do RCP, ainda que tenha sido expressa numa formulação que peca pela ambiguidade, apenas encontra justificação quando esteja em causa a aplicação de multas, outras penalidades ou taxas de justiça excepcional. O facto de estar subjacente a tais situações um determinado comportamento processual que é objecto de penalização, justifica a reapreciação da respectiva decisão por via recursória fora da regra geral constante do art.º 629.º, n.º 1, do CPC. Um outro regime recursório excepcional também está revisto para o incidente de reclamação da conta, nos termos do art.º 31.º, n.º 6, do RCP, admitindo recurso se o montante exceder 50 Ucs. Ora, não faz qualquer sentido a aplicação analógica daquela disposição a decisões em que esteja em causa simplesmente a aplicação das regras normais sobre a quantificação ou imputação de custos judiciais a alguma das partes. Aplicação analógica que, atenta a excepcionalidade do regime legal, é, aliás, vedada pelo art.º 11.º do CC.» [proc 100/15.2YRPRT.S1, disponível in www.dgsi.pt].

Pelo exposto, afigura-se-nos que o recurso interposto pelo Ministério Público não deve ser admitido.

Em qualquer caso, o recurso afigura-se-nos improcedente.

O inquérito só nos foi remetido em 20-03-2023, e antes do nosso primeiro despacho, registado em 11-04-2023, já havia sido junto aos autos o ofício da A..., datado de 06-03-2023 e registado em 23-03-2023, a fls. 26 dos presentes autos, informando que o equipamento com o IMEI identificado no ofício do Ministério Público não se encontrou associado a qualquer número de telefone da rede da A... no período indicado no pedido.

Assim, a informação solicitada à A... não era essencial à investigação, nem a sua demora causou prejuízo à investigação.

Acresce que no requerimento datado de 19-04-2023, registado a fls. 25 destes autos, a A... afirmou toda a disponibilidade e a sua intenção de colaboração com o tribunal.

Em face do exposto, independentemente de outras razões, consideramos válidos os fundamentos do despacho recorrido, pelo que o mantemos.

Porém, V.as Ex.as decidirão, seguramente, a melhor Justiça.” (ref.ª 456125087).

Vejamos.

O artigo 417.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) estabelece que “Todas as pessoas, sejam ou não parte na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhe for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.”

E acrescenta o seu n.º 2, invocado pelo recorrente, que “Aqueles que recusarem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis (…)”.

Trata-se da consagração legal do dever de cooperação para a descoberta da verdade, sendo tal regime aplicável, naturalmente, às pessoas singulares e colectivas, mesmo que não sejam partes na causa, tendo também aplicação no campo do processo penal, quando seja necessário obter informações ou elementos de terceiros estranhos ao processo (por remissão do art. 4.º do CPP).

Essa sanção – multa – é diferente das custas processuais.

Naquele último preceito (n.º 2 do art. 417.º) não está prevista a moldura da multa a aplicar, pelo que importa ter presente (ainda que o recorrente não o refira) o disposto no artigo 27.º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais (RCP), segundo o qual “Sempre que na lei processual for prevista a condenação em multa ou penalidade de alguma das partes ou outros intervenientes sem que se indique o respectivo montante, este pode ser fixado numa quantia entre 0,5 UC e 5 UC.

No caso presente trata-se de uma pretensa condenação em multa, por alegada recusa de colaboração com a justiça por parte da A..., sendo que o Exm.º Juiz, na sequência de promoção da Exm.ª Procuradora da República para o efeito, se absteve de aplicar qualquer sanção, invocando ter a mesma, entretanto, dado a informação e apresentado explicações para a demora, além de invocar os princípios da necessidade e proporcionalidade, da confiança, da boa-fé e da cooperação.

A questão da irrecorribilidade de tal decisão, aflorada pelo Exm.º Juiz no transcrito despacho de sustentação, tem toda a pertinência, ainda que por diferentes razões.

É sabido que lei adjectiva penal estabelece que “É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.” (art. 399.º do CPP).

Trata-se de uma norma geral – a sua epígrafe refere Princípio geral – relativa à recorribilidade das decisões no âmbito do processo penal, sendo no artigo seguinte enunciadas as excepções a tal princípio, especificando-se as decisões que não admitem recurso (art. 400.º).

Contudo, a situação que nos ocupa não integra uma questão de natureza penal, isto no sentido de que não tem a ver com o objecto do processo, nem tão pouco com uma questão processual penal, daí que não seja aplicável o referido princípio geral da recorribilidade enunciado no artigo 399.º do CPP.

A norma invocada pelo recorrente para a condenação da A... encontra acolhimento no compêndio adjectivo civil, que constitui legislação subsidiária para outras jurisdições, designadamente para o processo penal (art. 4.º do CPP).

Do mesmo passo, as normas do RCP são aplicáveis aos processos que correm termos nos tribunais judiciais – jurisdições cível, penal e laboral – e também nos tribunais administrativos e fiscais (art. 2.º), contendo tal Regulamento normas especiais relativamente à admissibilidade de recurso, designadamente ao estabelecer o n.º 6 do seu referido artigo 27.º que “Da condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional fora dos casos legalmente admissíveis cabe sempre recurso, o qual, quando deduzido autonomamente, é apresentado nos 15 dias após a notificação do despacho que condenou a parte em multa, penalidade ou taxa.”[1]

Trata-se, pois, de um regime recursivo especial relativamente ao que está consagrado nas normas processuais penais (arts. 399.º e 400.º) e processuais civis (arts. 629.º e 630.º), uma vez que este tipo de penalidade pode ter lugar em processo de qualquer das jurisdições.

No que respeita ao processo penal, ao referir-se a recorribilidade “dos acórdãos, das sentenças e dos despachos”, tal princípio geral da recorribilidade abrange, como é bom de ver, as decisões condenatórias e absolutórias, de deferimento ou de indeferimento, com a ressalva daquelas cuja irrecorribilidade estiver prevista na lei, designadamente as enunciadas no preceito subsequente (art. 400.º).

Já o transcrito n.º 6 do artigo 27.º do RCP reporta-se a recurso deduzido autonomamente, ou seja, direccionado exclusivamente à impugnação da decisão judicial relativamente à condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional.

Conforme refere Salvador da Costa, a lei “distingue entre o recurso autónomo e não autónomo, ou seja, quando ele apenas versa sobre o segmento condenatório no pagamento de alguma das referidas sanções pecuniárias, ou também sobre outros segmentos decisórios constantes de despachos, sentenças ou acórdãos.”[2]

No dito recurso autónomo não está, pois, em causa a impugnação de acto decisório do juiz que conheceu, a final, do objecto do processo ou de qualquer questão interlocutória, respectivamente designadas legalmente de sentença e despacho (art. 97.º, n.º 1, do CPP), mas tão só do sancionamento em qualquer uma dessas penalidades.

Quando se trate de recurso desse tipo de decisões, a eventual procedência do mesmo, com revogação do decidido, faz cair, por si só, a condenação em custas a que ali tenha havido lugar, nos termos da lei (n.º 4 do art. 374.º e n.ºs 3 e 4 do art. 377.º do CPP).

Mas se o recurso incide somente sobre a própria condenação em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional, o regime do mesmo é já o enunciado no dito n.º 6 do artigo 27.º do RCP, aplicável à generalidade das jurisdições. Daí que este preceito se refira a recurso “deduzido autonomamente”.

E de acordo com o mesmo preceito, cabe recurso da “condenação” em multa, penalidade ou taxa sancionatória excepcional, sendo ele apresentado nos 15 dias após a notificação do despacho condenatório.

Conforme tem sido entendido pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, tal norma tem por objectivo introduzir uma regra geral de recorribilidade, em um grau, das decisões de condenação nesse tipo de sanções, fora dos casos de litigância de má-fé, independentemente do valor da causa ou da sucumbência.[3]

O mesmo é dizer que não tem cabimento nesta norma o recurso autónomo de despacho que se absteve de condenar a parte ou outro interveniente processual ou acidental em qualquer uma dessas sanções pecuniárias, como sucedeu no caso presente.

Efectivamente, não estando em causa a apreciação de questões relativas ao mérito da causa ou à tramitação processual, a não aplicação de multa no referido contexto não legitima o recurso da parte contrária ou de outro sujeito processual a pugnar por tal sancionamento. E o mesmo se diga do Ministério Público, ainda que o mesmo tenha como atribuições, além do mais, o velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com as leis (art. 4.º, n.º 1, al. j), do EMP).

Na verdade, o legislador, ao redigir o referido n.º 6 do artigo 27.º do RCP, considerou que apenas se justifica o recurso nos casos de condenação, conformando-se com a prudente avaliação do juiz que, perante o concreto contexto, considerou não haver fundamento para o sancionamento, nos termos do referidos artigos 517.º, n.º 2, do CPC e 27.º, n.º 1, do RCP.  

O que se pretendeu com este regime foi salvaguardar o direito ao recurso a quem foi condenado em multa ou outra penalidade. Mas já não é permitido às partes, aos sujeitos processuais ou ao Ministério Público recorrer de despacho que recusou aplicar tal condenação, pois que a lei não prevê a sua impugnação autónoma, julgando-se ser essa a interpretação correcta da norma à face dos critérios legais a atender (art. 9.º do C. Civil).

Só as decisões sancionatórias nesse domínio reclamam um duplo grau de jurisdição, o que, para a litigância de má-fé - instituto exclusivamente civilístico - também se encontra consagrado no n.º 3 do artigo 542.º do CPC.

Em síntese, nos termos do referido artigo 27.º, n.º 6, do RCP, é admissível recurso autónomo das decisões que condenem em multa, penalidade ou taxa de justiça excepcional, mas essa norma não confere direito a recorrer de decisões que recusem aplicar qualquer uma dessas penalidades, ainda que a requerimento da outra parte, de sujeito processual ou do Ministério Público, por o juiz não considerar verificados os pressupostos legais para o efeito, pois que somente as decisões condenatórias nesse domínio reclamam um duplo grau de jurisdição.

É, pois, manifesta a irrecorribilidade da decisão proferida, sendo que o despacho que admitiu o recurso não vincula este Tribunal da Relação (art. 414.º, n.º 3, do CPP). Tal circunstância implica, agora, a rejeição do recurso, nos termos do artigo 414.º, n.º 2, do CPP.

Apenas uma nota final relativamente ao sustentado no Parecer do Exm.º Procurador-Geral Adjunto, louvando-se na decisão sumária proferida, em 30-01-2024, no Processo n.º 460/22.9PAMAI-A.P1, desta mesma Secção, relativamente a questão em tudo idêntica, tendo-se aí decidido que o recurso não sobe imediatamente, mas sim a final. Efectivamente, não se trata de decisão que condenou no pagamento de quaisquer importâncias no termos do CPP, conforme impõe a alínea d) do n.º 2 do artigo 407.º para a subida imediata do recurso. Contudo, aquele entendimento pressupõe que se admita a recorribilidade da decisão em si mesma, o que não sufragamos, sendo essa uma questão prévia a ter em conta relativamente ao momento da subida do recurso.

Por tudo o exposto, decide-se rejeitar, por irrecorribilidade do despacho em causa, o recurso interposto pelo Ministério Público.

Sem tributação (n.º 3 do art. 420.º do CPP).

Notifique.


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Porto, 06-02-2024.
Raúl Cordeiro
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[1] Outra norma do RCP que estabelece um regime especial de recurso é o artigo 31.º, n.º 6, condicionando-se aqui a sua admissibilidade ao montante da conta objecto de reclamação.
[2] Cfr. Regulamento das Custas Processuais Anotado e Comentado, 2011, 3.ª Edição, Almedina, pág. 370.
[3] Cfr. Acs. do STJ de 26-03-2015 – Proc. 2992/13.0TBFAF-A.E1.S1; de 23-06-2016 – Proc. 1927/11.0TBFAR-B.E1.S2, e de 19-10-2021 – Proc. 754/19.0T8VNG-A.P1.S1, in www.dgsi.pt.