Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
75898/20.5YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
RUPTURA DE NEGOCIAÇÕES
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE FORMAÇÃO MÉDICA
Nº do Documento: RP2023062975898/20.5YIPRT.P1
Data do Acordão: 06/29/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Se a causa de pedir eleita e o pedido formulado são um contrato e o direito à contraprestação nele prevista, o tribunal não pode julgar a acção com fundamento na ruptura das negociações e no direito de indemnização decorrente dessa ruptura.
II - Se a parte contrata a prestação de um serviço para uma determinada data, depois adia a sua prestação para nova data a indicar por ela e mais tarde desiste em definitivo da sua realização, incorre em incumprimento definitivo do contrato, caso em que permanece vinculada ao pagamento da contraprestação devida à prestadora do serviço.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2023:75898.20.5YIPRT.P1
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Sumário:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


I. Relatório:
A..., Lda., pessoa colectiva com número único de matrícula e de identificação fiscal ...10, com sede em Matosinhos, instaurou acção judicial contra B..., Lda., pessoa colectiva com número único de matrícula e de identificação fiscal ...70, com sede em ..., Oeiras, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe o capital de €106.112,10, acrescido de juros de mora de €305,25.
Para o efeito alegou, em suma, que celebrou com a ré um contrato de fornecimento de bens e serviços, na sequência do qual, a pedido da ré, prestou-lhe os serviços descritos nas facturas que junta, mas a ré não lhe pagou o valor das correspondentes facturas, o qual ascende ao montante do pedido.
A ré foi citada e apresentou contestação, defendendo a improcedência da acção e alegando para o efeito que não celebrou o contrato de fornecimento que a autora alega, não solicitou à autora, ao abrigo do alegado contrato, a prestação dos serviços ou o fornecimento dos mencionados nas facturas, nenhum bem ou serviço lhe foi fornecido ou prestado pela autora após a data de celebração do alegado contrato, não recebeu as facturas que a autora alega ter emitido, nem o seu pagamento lhe foi pedido.
Realizado julgamento foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente e a ré condenada pagar à autora a quantia de €9.015,90, acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa comercial desde a citação até integral pagamento.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1 - Vem o presente recurso interposto da decisão da Meritíssima Juíza a quo que que julgou o pedido parcialmente procedente.
2- Existe na decisão recorrida um, manifesto erro na apreciação da matéria de facto, e, ainda uma errónea aplicação do direito.
3- Efectivamente, a sentença recorrida não considerou assentes os factos 1 a 5 (factos não provados) que deveriam ter sido dado como provados, em virtude da existência de prova testemunhal e documental nesse sentido.
4 - A sentença recorrida violou os artigos 227.º, n.º 1, 562º, 563º, 762.º, n.º 2 e 798º todos do CC, porquanto entendeu que o incumprimento do contrato por parte de ré apenas implicava uma indemnização decorrente das despesas por esta sofridas e cuja prova de pagamento entendeu por exigível.
5 - Na verdade, o evento que obriga à reparação é o incumprimento: não o surgimento da obrigação inadimplida, embora seja evidente que, sem esta, nada teria sucedido.
6 - Deste modo, evidente se torna que a principal sanção estabelecida para o não cumprimento consiste, portanto, na obrigação imposta ex lege ao devedor de indemnizar o prejuízo causado ao credor, mas este prejuízo compreende tanto o dano emergente como o lucro cessante (artigo 564.º) – todo o interesse contratual positivo, na hipótese de a obrigação provir de contrato.
7 - O não cumprimento (inadimplemento ou inadimplência do devedor) da obrigação tem, assim, como principal consequência, abstraindo da realização coactiva da prestação, nos casos em que ele é viável (artigo 817.º do Código Civil), o nascimento de um dever secundário de prestar que tem por objecto, mas a não só a reparação dos danos causados ao credor, mas também a prestação debitória incumprida, no caso em apreço, o pagamento dos cursos de 2020.
8 – Portanto, todas as vantagens legítimas de que o contraente fiel foi despojado devem ser indemnizadas, incluindo as que adviriam do regular cumprimento do contrato: o chamado interesse positivo.
9 - Ora, a sentença recorrida apenas atendeu ao chamado interesse negativo, olvidando o interesse positivo.
10 - Por outro lado, acresce que é indiscutível que no cumprimento das respectivas obrigações, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem as partes proceder de boa fé.
11 - Age de boa fé quem o faz com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte, por via de uma conduta honesta e conscienciosa, com correcção e probidade, sem prejudicar os interesses legítimos daquela (Ac. do STJ de 28/09/2006).
12 - Tanto na negociação/formação como no cumprimento/execução dos contratos e, bem assim, no exercício de direitos correspondentes, devem as partes conformar-se com o princípio da boa-fé (cf. artigos 227.º, n.º 1, e 762.º, n.º 2, ambos do CCiv).
13 - Diremos mesmo que tal comportamento, pode ser lido à luz do instituto jurídico do abuso de direito, que, como figura geral, está consagrado no artigo 334º do Código Civil, na vertente do denominado “venire contra factum proprium”, que se inscreve também no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
14 - Assim sendo, como efectivamente é, a apelada ao ter criado na apelante a confiança de que iria realizar os cursos de 2020, tendo inclusive agendado previamente datas para estes, não agiu esta de boa fé, tanto mais que até ao final de 2019 (altura em que os curso já estavam todos combinados e agendados) nunca abordou a questão da não realização destes cursos.
15 - Nada tendo mencionado, naturalmente inculcou na autora a confiança que os cursos de 2020 se iriam realizar, podendo esta actuar com sempre tinha actuado até então.
16 - Este comportamento da ré, violador do princípio da boa fé e da tutela da confiança, determina assim que a pretensão indemnizatória da autora seja legitima.
17 - Deste modo, deveria a sentença recorrida ter indemnizado a autora pelas vantagens legitimas que esta perdeu pelo incumprimento do contrato por parte da ré, devendo assim ter indemnizado a primeira no valor constante da factura cujos serviços, embora solicitados, a ré ilegitimamente prescindiu.
18 – Pelo que, deverá ser revogada a decisão recorrida, substituindo-se a mesma por uma que jugue a presente acção totalmente procedente por provada e condene a ré conforme peticionado em sede de petição inicial.
A ré respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso.
Nas suas alegações procedeu à ampliação do âmbito do recurso, nos termos do artigo 636.º, nºs 1 e 2, e interpôs recurso subordinado, nos termos do artigo 633.º do Código de Processo Civil.
Para o efeito formulou as seguintes conclusões:
Quanto à apelação
A. Pelos motivos detalhadamente descritos no corpo da alegação, relativamente ao recurso da matéria de facto:
a. O facto "[a]s facturas FAC1/19 e FAC1/20 tenham sido enviadas por correio para a ré pela autora" deve permanecer não provado;
b. O facto "[a] emissão da factura FAC1/19 por parte da autora resulte de um pedido da ré para a realização no ano de 2020 de 2 cursos intermédios de Cirurgia Laparoscópica, 1 curso avançado em Cirurgia Laparoscópica, um curso de histeroscopia, 1 curso de histerectomia, 1 curso colorectal" deve permanecer não provado;
c. O facto “[t]enha sido em Setembro de 2019 que a ré solicitou à autora o curso básico de Laparoscopia mencionado na Factura FAC1/19" deve permanecer não provado; e
d. Os factos "[a] autora tenha celebrado contratos com os seus fornecedores/formadores para a realização de cursos no ano de 2020 paro a ré” e “[t]enha desde logo procedido ao pagamento dos bens/serviços destinados a cursos a realizar no ano de 2020 para a ré" devem permanecer não provados.
B. No que diz respeito à matéria de Direito:
a. Resulta claro da Sentença, contrariamente ao que a Apelante pressupõe, que a Apelada não incumpriu o Contrato - não existindo qualquer obrigação de adjudicação de cursos -, sendo consequentemente inaplicáveis as considerações que a Apelante teceu em torno das disposições legais aplicáveis a um incumprimento que não existiu, não foi declarado na Sentença e a Apelante não se esforçou por demonstrar em apelação; e
b. A Apelada identificou uma situação de potencial conflito de interesses no final de 2019 e, de boa-fé, transmitiu-a, então, à Apelante e ao seu Beneficiário Efectivo, continuando conversações para ultrapassar o problema que em nada resultaram. Neste contexto, imputar à Apelada uma violação das regras de boa-fé não faz qualquer sentido;
c. Foi a Apelante que actuou ilicitamente e em abuso de direito ao pretender ser paga por cursos que (i) não se realizaram; (ii) que não lhe foram adjudicados; (ii) que a Apelada não estava obrigada a adjudicar-lhe; e (iv) num contexto em que tal adjudicação potencialmente exporia a Apelada a riscos nos seus processos de contratação pública decorrentes do referido potencial conflito de interesses.
Quanto à ampliação do objecto do recurso
C. Nos termos do artigo 636.º do CPC, a Apelada pode, na sua alegação e a título subsidiário, impugnar decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto, não impugnados pela Apelante, prevenindo a hipótese de procedência das questões por este suscitadas.
D. A Apelante impugna a decisão de facto da Sentença, designadamente o respectivo facto n.º 11: "[o] curso básico de Laparoscopia mencionado na factura FAC1/19 foi solicitado pela ré".
E. Na motivação da Sentença não se fez qualquer específica referência ao meio de prova que permitiu que o referido facto fosse dado como provado.
F. Perpassados todos os depoimentos prestados nos autos que incidiram sobre esta questão, rigorosamente ninguém autonomizou o referido "curso básico de Laparoscopia mencionado na factura FAC1/19" dos restantes cursos incluídos na mesma factura.
G. Da motivação da Sentença, a páginas 8 e 9, resulta, em sentido aparentemente contrário ao que resulta provado no facto n.º 11, que: "... a não realização, no âmbito deste último contrato, de quaisquer cursos no ano de 2020 por decisão da ré [foi] comunicada à autora em Abril desse ano (cf. arts. 19.º e 20.º da Contestação), na sequência de conversações que vinham mantendo, necessariamente depois de finais de 2019 (altura reconhecida pela ré como aquela em que tomou conhecimento da questão), acerca da incompatibilidade a que se refere o artigo 16.5 da Contestação" - destaque nosso.
H. Do facto provado n.º 17 resulta ainda, em sentido aparentemente contrário ao que resulta provado no facto n.º 11, que: "[e]m Abril de 2020, a ré determinou que não houvesse adjudicação de cursos à autora para o ano de 2020 até que AA deixasse de cumular a qualidade de Director de Serviço de um Hospital Público e a qualidade de beneficiário efectivo da R" - destaque nosso.
I. Tudo revisto e ponderado, a Apelada considera que o Tribunal a quo só pode ter formulado a sua convicção no seguinte lapso de análise:
a. Encontra-se junto aos autos um anúncio de um curso básico de laparoscopia, ministrado pela Apelante, a realizar em 9 e 10 de Novembro de 2020 - cf. documento n.9 5 do requerimento da Apelada de 09.12.2021, a fls. 127;
b. Tal anúncio foi junto pela Apelada, no referido requerimento, precisamente para demonstrar que a Apelante ministrava, legitimamente (porque não vinculada à Apelada por qualquer vínculo de exclusividade), a terceiros, os mesmos cursos que ministrava à Apelada e que consumiriam horas de formadores, animais e serviços conexos, não podendo toda a respectiva contratação pela Apelante ser imputada aos cursos da Apelada;
c. Nenhuma dúvida pode haver de que o curso mencionado no referido anúncio - a realizar em 9 e 10 de Novembro de 2020 - não foi pedido pela Apelada à Apelante, uma vez que se encontra agendado mais de meio ano após aquela ter comunicado a esta a não adjudicação de cursos para o ano de 2020- cf. facto provado n.º 17.
J. Assim, porque não assente em qualquer meio de prova, antes -provavelmente - baseado numa incorrecta análise do documento n.º 5 do requerimento da Apelada de 09.12.2021, a fls. 127, deve o facto n.º 11 da Sentença ser carreado à lista de factos não provados.
Quanto ao recurso subordinado
K. Da Sentença resulta a condenação da Apelante Subordinada a pagar à Apelada Subordinada a quantia de€ 9.015,90 (nove mil e quinze euros e noventa cêntimos), acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa para juros comerciais em cada momento em vigor sobre a referida quantia, contados desde a citação e até integral pagamento.
L. A Sentença não especificou, como detalhadamente se descreveu no corpo da alegação, os fundamentos de facto que fundamentam a decisão de condenação da Apelante Subordinada, o que é causa de nulidade da mesma - cf. artigo 615 °, n.2 1, alínea b), do CPC.
M. Com efeito, para que se possa proferir uma decisão fundamentada, nos termos do artigo 607.º do CPC, n.º 3, do CPC, será necessário que da Sentença resultem especificadas as respostas a estas questões, todas suscitadas ao longo do processo pelas Apelante e Apelada Subordinadas:
(i) Quanto ao curso de histeroctomia de 2019 e aos cinco suínos ao mesmo alocados:
a. Foram encomendados pela Apelante Subordinada?
b. Em caso afirmativo, o quê, a quem e quando?
c. O curso realizou-se em 2019?
d. Em caso negativo, a quem se ficou a dever o adiamento?
e. Quando ocorreu o adiamento?
f. A Apelante Subordinada encomendou animais à Apelada Subordinada para tal curso?
g. Em caso afirmativo, quando, quantos e por que montante?
h. A Apelada Subordinada suportou alguns custos para a realização de tal curso?
i. Em caso afirmativo, quando e quanto?
(ii) Relativamente aos outros três suínos:
a. A Apelante Subordinada encomendou-os à Apelada Subordinada?
b. A Apelada Subordinada suportou com eles algum custo?
c. Em caso afirmativo, quando e quanto?
N. Adicionalmente, impugna-se o facto provado n.º 14 da Sentença porque dar-se como provado que "[a] emissão da factura FAC1/20 resulta do facto de [...] ainda não ter sido facturado o Curso de Histerectomia relativo ao ano de 2019 (e respectivos animais) encomendado pela ré à autora” é o mesmo que dizer que algo ocorreu porque ainda não tinha ocorrido. Nada neste trecho é relevante para os autos, devendo, consequentemente, tal ser eliminado da factualidade provada.
O. E impugna-se ainda o segundo trecho do facto provado n.º 14 da Sentença porque dar-se como provado que "[a] emissão da factura FAC1/20 resulta do facto de ter sido ultrapassado o número de animais inicialmente previstos, adquiridos e pagos durante o ano de 2019” nada diz quanto à única coisa que releva: a quem é devido o pagamento. Como é razoavelmente óbvio, a obrigação de pagamento nasce antes da facturação e, sobre aquela o facto nada diz.
P. A questão ora em apreço não pode, obviamente, ser decidida nos termos que resultam da Sentença, onde, quanto a o curso de histeroctomia, apenas se deu como provado que a factura respectiva foi emitida porque ainda não o fora previamente e, quanto aos restantes três suínos, porque foi ultrapassado o número de animais inicialmente previstos, adquiridos e pagos (desconsiderando-se que foram previstos, adquiridos e pagos a outrem, que não quem, entretanto, surgiu a facturar os animais adicionais).
Q. Sem prejuízo de ser evidente o incumprimento do artigo 607.º, n.º 3, do CPC, bem como a respectiva nulidade da Sentença por falta de fundamentação, a Apelante Subordinada não pretende que o processo retorne à Primeira Instância para suprimento destes vícios, antes requerendo que este Tribunal da Relação, a bem da economia processual, os supra - por ter ao seu dispor todos os elementos probatórios para o efeito -, nos termos do artigo 662.º do CPC.
ré Pelos motivos detalhadamente descritos no corpo da alegação, relativamente ao recurso da matéria de facto, na parte relativa ao curso de histeroctomia de 2019, requer-se que os seguintes factos sejam aditados, respectivamente:
(i) à lista dos factos provados:
a. O curso de histeroctomia de 2019, encomendado pela ré à autora nos termos descritos no Anexo II do Contrato e do orçamento ao mesmo junto, não foi realizado na data agendada para o efeito; e
b. autora e ré acordaram o seu reagendamento para data a definir em 2020;
(ii) à lista dos factos não provados:
a. As circunstâncias do reagendamento do curso de histeroctomia de 2019 para 2020;
b. A encomenda de animais à autora, por parte da ré, por conta do curso de histeroctomia de 2019; e
c. Eventuais custos em que a autora incorreu em resultado do adiamento do curso de histeroctomia de 2019.
S. Pelos motivos detalhadamente descritos no corpo da alegação, relativamente ao recurso da matéria de facto, na parte relativa à utilização de três suínos além dos inicialmente previstos, requer-se que os seguintes factos sejam aditados, respectivamente:
(i) à lista dos factos provados:
a. Nos cursos que a ré realizou nas instalações da autora foram por aquela utilizados três suínos além dos inicialmente previstos;
(ii) à lista dos factos não provados:
a. A existência de um acordo entre autora e ré para o fornecimento de suínos em caso de ultrapassagem do número inicialmente estimado; e
b. Despesas incorridas pela autora pelo fornecimento à ré de suínos após ultrapassagem do número inicialmente estimado.
T. Aqui chegados - e como facilmente se antecipa à luz da impugnação de facto -, tornam-se despiciendas grandes considerações sobre a responsabilidade contratual da Apelante Subordinada face à Apelada Subordinada.
U. Com efeito, apenas se tendo provado que as partes acordaram um adiamento de um curso para 2020, que depois não se realizou atendendo à decisão que consta do facto provado n.9 17, quando muito poderia discutir-se se a Apelada Subordinada teria direito ao ressarcimento de eventuais despesas que tivesse incorrido. Todavia, tais despesas não foram provadas, como acima melhor se detalhou.
V. O mesmo se diga quanto aos três suínos utilizados em excesso. Tendo-se provado não ter sido a Apelada Subordinada quem os forneceu, ficou por provar por que motivo haveria esta de facturar os usados em excesso.
W. A Sentença recorrida, ao decidir como decidiu, violou os artigos 1154.º, 762.º, 763.º e 798.º do CC, devendo ser revogada e substituída por outra que absolva a Apelante Subordinada integralmente.
Nestes termos e nos restantes de direito aplicáveis, deve: (i) improceder o recurso interposto pela A...; e (ii) proceder o recurso subordinado, sendo a Sentença recorrida revogada e substituída por outra que absolva, na íntegra, a B... do pedido.
A autora respondeu à matéria da ampliação do objecto do recurso e do recurso subordinado, defendendo a improcedência das questões suscitada e pugnando pela manutenção do decidido.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se a sentença recorrida é nula.
ii. Se a fundamentação de facto deve ser alterada.
iii. Quais são a causa de pedir e o pedido da acção.
iv. Se entre as partes foi celebrado um contrato de prestação de serviços tendo por objecto os serviços mencionados nas facturas.
v. Se é devido o pagamento do preço do serviço relativo ao curso contratado para 2019, adiado para 2020 e não realizado.


III. Nulidades da decisão recorrida:
A ré defende no seu recurso que a sentença é nula por falta de fundamentação, sustentando que para o conhecimento do mérito relativamente à factura que foi condenada a pagar são necessários outros factos que não constam da fundamentação de facto da sentença.
Salvo melhor opinião, não tem razão.
Sempre foi entendido que só é causa de nulidade da sentença a falta absoluta de fundamentação, a ausência de toda a fundamentação necessária, situação que não ocorre quando existe fundamentação, mas a mesma é débil, escassa, insuficiente.
Já o Professor Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 5, pág. 140, escreveu que «o que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto».
Desse modo, uma errada, insuficiente ou incompleta fundamentação não afecta o valor legal da decisão qua tale. Como esclarecem, a propósito, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição actualizada, pág. 687 e segs: «para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta embora esta se possa referir aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito». Como dizem Lebre de Freitas e outros, in Código de Processo Civil Anotado, 2ª edição, 2008, Coimbra Editora, pág. 703, «há nulidade […] quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão […] Não a constitui a mera deficiência de fundamentação”. Também Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, pág. 141, sustenta que “da falta absoluta de motivação jurídica ou factual - única que a lei considera como causa de nulidade -há que distinguir a fundamentação errada, pois esta, contendendo apenas com o valor lógico da sentença, sujeita-a a alteração ou revogação em recurso, mas não produz nulidade». Finalmente também Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Processo Civil, pág. 221, defende que «esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (art. 208º, n.º 1, CRP; art. 158º, n.º 1)»
Para estarmos perante o vicio da falta de fundamentação de facto é necessário que o juiz não tenha concretizado os factos que considera provados e em que funda a sua decisão. Quanto à fundamentação de direito, o julgador não tem que analisar todas as razões jurídicas que cada uma das partes invoque em abono das suas posições, embora lhe incumba resolver todas as questões suscitadas pelas partes. A fundamentação da sentença contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio a solução adoptada pelo julgador. Embora não seja indispensável, é de toda a conveniência que na sentença se especifiquem as disposições legais que fundamentam a decisão; essencial é que se mencionem os princípios, as regras, as normas em que a sentença se apoia.
A falta de fundamentação da decisão, seja ela um mero despacho ou uma sentença, há-de revelar-se por ininteligibilidade do discurso decisório, por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira. Juiz nenhum pode decidir “porque sim” ou “porque acha”, toda a decisão judicial tem de proceder à determinação rigorosa das normas aplicáveis ao caso, proceder à interpretação cabal das mesmas e aplicá-las ao conflito, tarefas que devem resultar da fundamentação. Tendo isso presente não custa concluir que a sentença recorrida possui fundamentação de facto e de direito.
Situação diferente dessa é a de a fundamentação de facto ser insuficiente para a apreciação do mérito da causa em relação a um dos pedidos. Trata-se igualmente de uma situação anómala, mas que já não se reconduz à nulidade da sentença.
O tribunal não tem de julgar a totalidade dos factos alegados; só tem de julgar os factos que são indispensáveis para a boa decisão da causa, ou seja, todos os factos necessários para apreciar a causa de pedir apresentada pelo autor e as excepções opostas pelo réu. Portanto, se o tribunal não julgar, provado ou não provado, um facto que se mostre indispensável para essa finalidade, o vício com que nos deparamos é o da insuficiência da matéria de facto, ou, se quisermos, da fundamentação de facto.
Este vício não determina a nulidade da sentença, determina quando muito, se o tribunal de recurso assim o entender, a necessidade de determinar a ampliação da matéria de facto, observando-se o disposto nas alíneas c) dos n.ºs 2 e 3 do artigo 662.º do Código de Processo Civil: sendo indispensável a ampliação da matéria de facto, a decisão proferida na 1.ª instância é anulada (ainda que o tribunal de recurso tenha à sua disposição a totalidade dos meios de prova, note-se) e repete-se o julgamento mas apenas na parte respeitante à ampliação, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, para evitar contradições.
A anulação da decisão não é efeito de a decisão ser nula, a anulação é a consequência processual da necessidade de ser proferida uma nova depois de os novos factos serem decididos e acrescentados (na medida em que forem julgados provados) à respectiva fundamentação de facto. Logo é incorrecto pretende que se declare a nulidade da sentença e em simultâneo que se ordene a ampliação da matéria de facto: esta pressupõe que a sentença não seja nula e que apenas haja uma insuficiência da matéria de facto.
Diferente é igualmente a situação de a motivação da decisão sobre a matéria de facto (segmento distinto da fundamentação de facto da sentença propriamente dita) ser insuficiente. Também se trata de uma situação processual anómala, indevida, mas não equivale à nulidade da sentença. O regime de conhecimento e sanação dessa deficiência está previsto na alínea d) do n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil e não compreende nem a decisão de que a sentença é nula, nem, ao contrário da deficiência anteriormente focada, qualquer anulação do processado: estando em causa um facto essencial o processo vai apenas à 1.ª instância para que o juiz a quo aperfeiçoe a motivação da decisão, profira a motivação devida, e regressa à Relação para que esta conheça do recurso.
Sendo assim, como nos parece, por ora deve concluir-se pela improcedência da arguição da nulidade da sentença.


IV. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
A] Impugnação da autora (recurso Principal):
A recorrente impugnou a decisão de julgar não provados os seguintes factos que entende deverem ser julgados provados:
1. As facturas FAC.1/19 e FAC.1/20 foram enviadas por correio para a ré pela autora.
2. A emissão da factura FAC.1/19 por parte da autora resultou de um pedido da ré para a realização no ano de 2020 de 2 cursos intermédios de Cirurgia Laparoscópica, 1 curso avançado em Cirurgia Laparoscópica, 1 curso de histeroscopia, 1 curso de histerectomia, 1 curso colorectal.
3. Em Setembro de 2019 a ré solicitou à autora o curso básico de Laparoscopia mencionado na Factura FAC.1/19.
4. A autora celebrou contratos com os seus fornecedores/formadores para a realização de cursos no ano de 2020 para a ré.
5. E procedeu desde logo ao pagamento dos bens/serviços destinados a cursos a realizar no ano de 2020 para a ré.
Mostram-se cumpridos os requisitos específicos desta impugnação, consagrados no artigo 640.º do Código de Processo Civil, pelo que nada obsta à apreciação da mesma.
O facto 1 prende-se com o envio das facturas 1/19 e 1/20 à ré. A Mma. Juíza a quo justificou a decisão de julgar não provado este facto com a circunstância de a «prova testemunhal produzida, como seja a de BB no sentido de que as facturas em causa FAC1/19 e FAC1/20 foram enviadas por correio mostrou-se igualmente insuficiente».
Podemos ir mais longe na motivação, assinalando o seguinte que de acordo com as regras da experiência justifica perfeitamente a decisão: se, como se apurou, as anteriores facturas eram enviadas por correio electrónico ou entregues em mão, porque haviam estas de ser enviadas de modo diferente?; se na data em que as facturas foram emitidas as partes já tinham trocado correspondência da qual resultava um impasse na sua relação comercial e a afirmação da ré de que não iria continuar a recorrer à colaboração da autora, que sentido fazia enviar as facturas de modo diferente do habitual e sem guardar comprovativo desse envio?; se as facturas tivessem sido enviadas o que podia impedir a ré, em consonância com a posição que assumira naquela correspondência e o cuidado que a redacção desta revela, de as devolver de imediato por as considerar injustificadas ou indevidas?; o que pode justificar que a autora não tenha então insistido com a ré para saber qual a posição desta em relação às facturas antes de avançar com o requerimento de injunção?
O conjunto destas perplexidades não apenas retira valor probatório ao depoimento da testemunha BB, como justifica que no caso fosse exigível à autora, para satisfazer o ónus probatório e ultrapassar a dúvida relevante para operar a regra de julgamento, possuir meio documental que comprovasse o envio das facturas, o que não sucede, permitindo claramente a dúvida sobre se as facturas não foram emitidas apenas para instruir o requerimento de injunção e porque foi essa a estratégia processual delineada para confrontar a ré. Refira-se ainda que ao contrário do que refere a recorrente, o depoimento de CC, desde que devidamente ouvido, não confirma a recepção das facturas em causa.
No facto 2 apura-se se a emissão da factura 1/19 «resultou de um pedido da ré» para a realização no ano de 2020 dos cursos mencionados nesta factura (com excepção do primeiro).
O primeiro aspecto a observar é que a redacção do facto, que vem da sentença, mas que a impugnante defende que deverá ser mantida, embora recebendo a decisão oposta (não provado › provado), é deficiente.
O que importa para a decisão sobre o mérito da causa não é de que resultou (o que causou) a emissão da factura (que é sempre, sem mais, a decisão do emitente), mas sim se os bens ou serviços mencionados na factura foram contratados pelas partes no negócio subjacente e a parte emitente da factura cumpriu a sua prestação, tornando-se credora do preço ou remuneração ajustada como contrapartida dessa prestação.
Essa falha, aliás, já estava presente quer no requerimento inicial (no qual a autora não alega que forneceu os bens e serviços mencionados nas facturas, mas apenas que «a requerida não procedeu ao pagamento total dos bens/serviços elencados nas facturas») quer no articulado corrigido (no qual a autora alega o que depois foi vertido para a redacção deste facto, isto é, que «a emissão da factura … resulta de um pedido da Ré … confirmando a realização [dos cursos indicados] para o ano de 2020, tudo conforme o previsto na cláusula 3.1.1. do supra-referido Protocolo de Formação»).
O que interessa saber é se ao abrigo do contrato-quadro existente entre as partes [leia-se o dito «Protocolo de Formação» que em rigor tem a epígrafe de «Protocolo de Colaboração»], a ré contratou a autora para executar os serviços definidos nesse contrato com vista à realização, no ano de 2020, dos cursos indicados pela autora, sabendo-se à partida que como esses cursos não foram realizados (facto 18) a prestação a cargo da autora não foi (ao menos parcialmente) cumprida (com as consequências a ver posteriormente, se for caso disso).
O primeiro aspecto que interessa para apurar essa factualidade respeita ao que o próprio contrato-quadro, ao abrigo do qual eram depois contratados os serviços específicos relacionados com os cursos de formação cirúrgica, define sobre o modo como essa contratação devia ter lugar.
Esse protocolo «estabelece os termos e condições a que obedece a colaboração das partes com vista à promoção de formação médica em cursos de treino em cirurgia» (cl. 1.1.); que a ré «poderá contratar [a autora] para que … lhe preste serviços de formação médica» (cl. 3.1.1.); que os cursos a que respeitam esses serviços realizar estarão sujeitos «aos termos e condições que sejam acordados casuisticamente» (cl. 3.1.3.).
Em particular quanto à contratação, estabelece que os serviços a prestar pela autora terão o objecto « que venha a ser estabelecido em cada Encomenda de Serviços» (cl. 3.1.4.); que a «contratação [da autora] … depende da apresentação [pela autora] de uma proposta de execução e respectivo orçamento detalhado para cada curso e da aceitação de ambos [pela ré] na sequência de um pedido apresentado para o efeito [pela ré]», sendo que esse orçamento «deverá contemplar o valor discriminado de cada curso incluindo o valor de cada serviço prestado nesse âmbito» (cl. 3.1.5.); que quando a ré aceitar «a proposta e o orçamento [apresentadas pela autora] remeterá a esta última a respectiva encomenda de serviços, nos termos da minuta que se junta como anexo II» e «uma vez assinada, a Encomenda de Serviços regula os termos e condições a que obedece a prestação dos serviços no caso concreto», sem prejuízo de a minuta de serviços do anexo poder ser adaptada em função das necessidades de cada curso e dos serviços a contratar (cl. 3.1.6.); que «as Encomendas de Serviços .. apenas [serão] válidas se assinadas por ambas as Partes» (cl. 3.1.7.).
Este Protocolo estabelece ainda que entrou «em vigor na data da sua assinatura e permanecerá em vigor pelo período de 3 anos (“Período Inicial de Vigência”)» (cl. 7.1.) e que, integrado pelos «respectivos Anexos, bem como qualquer Encomenda de Serviços, constitui a totalidade do acordo estabelecido entre as Partes quanto à matéria que constitui o seu objecto e prevalece sobre e revoga todos os contratos ou acordos anteriores quanto a esse mesmo objecto…» (cl. 10.5.).
Existe, portanto, uma regulamentação detalhada de um processo de contratação composto por vários passos cumulativos. Especificamente, a contratação dos serviços da autora pela ré exigia (1) que a ré dirigisse à autora um pedido de prestação dos serviços atinentes a um ou vários cursos determinados, (2) que em resposta a autora apresentasse à ré uma proposta de execução e respectivo orçamento detalhado para cada curso mencionado naquele pedido, (3) que a ré aceitasse a proposta e o orçamento apresentadas pela autora (o que pressupõe que podia haver negociações e o acordo final diferir da proposta inicial), (4) que em manifestação dessa aceitação remetesse à autora a respectiva encomenda de serviços, com indicação dos termos e condições a que obedeceria a prestação dos serviços acordada no caso concreto», (5) que essa encomenda fosse assinada por ambas as partes para documentar o respectivo acordo.
Pode dizer-se que nada impedia que esta regulamentação prévia dos trâmites da contratação fosse na prática abandonada ou esquecida e, por razões práticas ou relacionadas com o comportamento no terreno dos funcionários e colaboradores da ré, a contratação viesse efectivamente a ser realizada em moldes diferentes e/ou mais simples.
Todavia, é necessário ter presente que este Protocolo foi celebrado com data de 16/04/2019 e, segundo ele mesmo estabelece (e a autora ao assiná-lo aceitou), constitui a totalidade do acordo estabelecido entre as partes quanto à matéria que constitui o seu objecto e prevalece sobre e revoga todos os contratos ou acordos anteriores quanto a esse mesmo objecto.
Ora se, como defende a autora, a contratação dos cursos para um determinado ano era feita até ao final do ano imediatamente anterior e este Protocolo foi celebrado em Abril de 2019, isso significa que a contratação dos cursos para o ano de 2020 foi a primeira a estar subordinada ao processo de contratação acabado de negociar e estabelecer entre as partes através do Protocolo. Por essa razão não é possível invocar uma prática anterior implicitamente revogatória das condições fixadas nesse contrato-quadro, qualquer prática anterior deixou de ser invocável perante a subscrição deste novo Protocolo que veio substituir e revogar tudo quando se passava anteriormente entre as partes.
Acresce que aparentemente até nem seria como a autora alega porque o Protocolo data de 16 de Abril de 2019 e tem anexa a encomenda de serviços para o próprio ano de 2019, a qual remete para os orçamentos da autora também anexos, os quais têm datas entre 11 de Março e 4 de Abril de 2019, o que embora seja apenas um indício parece revelar que as partes começaram por colocar em prática o que o Protocolo estabelece.
A autora fez prova da realização destes passos da contratação? Claramente não. O mais de que se fez prova foi do que se revela nos pontos 12 e 13 da matéria de facto provada e cuja decisão não foi impugnada, isto é, de que as partes começaram a falar sobre os cursos a realizar no ano de 2020 e que a ré pediu e a autora chegou mesmo a indicar-lhe, ainda antes do final de 2019, por correio electrónico, as datas que estava a pensar para a realização dos cursos no ano seguinte.
O depoimento de BB não permite de modo algum concluir no sentido da contratação dos serviços em causa («adjudicação» nas palavras da autora e do seu mandatário). Em primeiro lugar porque, desde que devidamente escutado o depoimento, o que a testemunha tendeu a dizer de forma espontânea foi que teve contactos com a CC e que neles falaram sobre as datas para os cursos (afirmação confirmada pelo mail), tendo recebido indicações para ir «preparando as coisas», «alinhavando isso», e só quando de forma sugestiva lhe foi perguntado não o que falaram exactamente mas se a CC lhe «adjudicou esses cursos todos» ela respondeu que «adjudicou», não tendo havido o cuidado de lhe perguntar que palavras ou expressões foram usadas, o que era indispensável para aferir se o contrato foi celebrado ou não (se houve «adjudicação»).
No seu depoimento a CC não confirma que tenha feito qualquer adjudicação dos cursos, pelo contrário nega que o tenha feito e que o procedimento alegado pela autora fosse o praticado pela ré; o que a testemunha confirma são, na sequência do estudo pela equipa comercial das necessidades formativas para o ano seguinte, contactos com a funcionária da autora com vista à tomada de decisão sobre os cursos a realizar, decisão essa que não chegou a ser tomada porque entretanto o departamento de «compliance» da ré recusou a contratação da autora por causa do conflito de interesses que detectou na autora relacionado com as funções públicas do seu beneficiário efectivo, o Dr. AA.
Este depoimento não apenas se mostra compatível com o que está no contrato, como o contrário não parece plausível se tivermos em conta que esta funcionária da ré só assumiu o cargo de responsável da ré pela formação em Portugal em Outubro de 2019 (trabalha na ré desde 2005 com a categoria de «vendedora» e nessa qualidade acompanhava os clientes nos cursos realizados pela autora para a ré, mas só em Outubro de 2019 passou a ser a responsável pelo departamento da formação, tendo para o efeito tido acesso ao Protocolo celebrado em Abril de 2019), circunstância que torna pouco verosímil que ela, mal tendo assumido essas funções, pudesse de imediato passar a actuar à revelia das cláusulas do Protocolo e a assumir decisões de contratação que nos termos do Protocolo careciam da apresentação e aprovação prévias de orçamentos e da intervenção de outros departamentos da ré.
Assim, auditada a prova produzida, somos de opinião que o facto em apreço (não com a redacção assinalada, mas com a redacção que seria relevante) não pode ser julgado provado, decisão que foi também a da 1.ª instância e aqui se mantém.
De seguida a recorrente menciona o facto do ponto 3, assinalando somente que estando já provado facto do ponto 11 do elenco dos factos provados, aquele facto também devia ter sido julgado provado.
Cremos estar perante um equívoco: no ponto 11 foi julgado provado que o curso foi solicitado pela ré; o que no ponto 3 foi julgado não provado é apenas a data em que essa solicitação teria sido feita (em Setembro de 2019). Portanto, não se trata do mesmo facto, nem há entre os factos qualquer relação lógico-ontológica que determine que a prova de um imponha a prova do outro.
Aceitando a recorrente o facto do ponto 11, o seu recurso devia incidir somente sobre a questão da data, mas, para isso, conforme decorre do disposto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, necessitava de indicar os meios de prova concretos que permitiriam julgar provada essa data, o que a recorrente não fez.
Nessa medida, a decisão sobre o facto do ponto 3 permanecerá inalterada.
Finalmente temos os factos dos pontos 4 e 5, cuja decisão vem abordada em conjunto por ambas as partes, método que aqui se segue. Trata-se agora de saber se para realizar cursos para a ré em 2020 a autora celebrou contratos com os seus fornecedores/formadores e pagou logo os bens/serviços destinados a tais cursos.
Estes factos foram julgados não provados essencialmente com base na leitura de que dos documentos apresentados pela autora «não resulta que tenha sido feita qualquer despesa ou o seu montante», «a afectação do formador contratado aos cursos da ré e, neste caso, em que medida» ou ainda que tais documentos são «manifestamente insuficientes para demonstrar a realização de despesas em benefício da ré». Resulta assim que o tribunal a quo avaliou os documentos e considerou que os mesmos são insuficientes para demonstração da realização de despesas com os cursos a realizar para a .
Esta observação da Mma. Juíza a quo é absolutamente certeira. Não se encontra junto nenhum documento que revele uma despesa especificamente dirigida aos cursos a realizar para a ré, sendo certo que a autora não trabalhava exclusivamente para a ré e realizava cursos idênticos para outras entidades. Os documentos juntos referem-se indistintamente à contratação de serviços para a actividade da autora, os quais sendo embora necessários para a realização dos cursos para a ré, eram igualmente necessários para realizar cursos para outras entidades, contexto que impede a associação dos documentos aos cursos do Protocolo com a ré que é aquilo que se menciona nos factos em discussão.
Acresce que o documento relativo ao fornecimento de animais não tem qualquer valia para o caso uma vez que ficou provado, designadamente por confissão do legal representante da autora (cf. assentada) que no ano de 2019 os animais não eram adquiridos pela ré à autora, mas sim a outra entidade (que curiosamente se identifica nas facturas como sociedade de mediação … imobiliária), à qual a ré pagava o respectivo preço, e não resultou provado que o Protocolo em vigor entre as partes na data relevante para o caso incluísse o fornecimento pela autora de animais à ré, no âmbito dos cursos de formação a realizar, aspecto que aliás se apura mediante a mera leitura do Protocolo onde não há qualquer alusão a esse aspecto.
Acresce ainda que não colhe de todo a explicação apresentada pela autora para não juntar os documentos comprovativos dos pagamentos que presumivelmente indicarão a factura/recibo de suporte e permitirão obter a discriminação das datas em que os serviços foram prestados ou os bens fornecidos e, por essa via, associar os serviços aos cursos onde foram utilizados.
Com efeito, resultando dos documentos já juntos os valores a pagar aos fornecedores de bens ou serviços e, no caso dos contratos de formação, mesmo as condições para a prestação do serviço, não se vê qual o aspecto da relação comercial entre estes e a autora que esta poderia ter interesse em conservar em segredo para, como diz pretender, impedir a ré de alcançar o objectivo a que se propõe de saber quanto custavam à autora tais serviços/bens.
Pelo contrário, isto indicia fortemente que os documentos juntos estão relacionados com a actividade da autora no seu conjunto (alguns tempos de formação contratada excedem em muito o necessário para a realização dos cursos em causa) e não especificamente com os cursos indicados no Protocolo com a ré e que a autora terá logrado afectar esses serviços/bens aos cursos que não obstante a atitude da ré conseguiu realizar, sendo esse o motivo pela qual não possui nenhum documento comprovativo de um pagamento por conta dos cursos que pretendia ter realizado para a ré.
Os depoimentos indicados pela autora permitem suprir essa insuficiência? Manifestamente não.
Em primeiro lugar porque o que as testemunhas e o legal representante descreveram foi o procedimento habitual da autora, a forma como ela desenvolve na sua organização a contratação de formadores e fornecedores, o que procura fazer com antecedência para não ter dissabores e controlar mais facilmente os custos inerentes, mas nenhuma delas sabe ou afirmou que essa contratação seja feita logo na totalidade, que não haja ajustes ao longo do ano, designadamente por a actividade projectada ter sido maior ou menor do que aquela que veio a ser possível realizar.
Em segundo lugar, porque também nenhuma delas afirmou que os contratos documentados ou referidos nos documentos (e já vimos que o dos animais, por exemplo, não tem qualquer ligação com a ré) se reportam especificamente aos cursos mencionados no Protocolo com a ré, isto é, tenham sido celebrados para a realização desses cursos.
Logo, o único facto que pode ser julgado provado, por dele haver prova bastante, é apenas o seguinte que aqui agora se decide aditar à fundamentação de facto:
«20. Até ao fim de 2019, seguindo a sua prática habitual, a autora celebrou contratos com formadores e fornecedores para dispor de meios para realizar os cursos que projectava realizar em 2020, assumindo a obrigação de lhes pagar a respectiva remuneração ou preço.»

B] Impugnação da ré (ampliação do objecto do recurso e recurso subordinado):
A ré usou a faculdade prevista no artigo 636.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, da impugnação da decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto para prevenir a hipótese de procedência das questões suscitada pela autora no recurso principal.
Nos termos da própria norma, esta faculdade é exercida sempre a título subsidiário, ou seja, só deve ser apreciada no caso de se verificar a hipótese que ela visa prevenir. Por esse motivo não é ainda possível ou necessário apreciar a impugnação da decisão relativa ao ponto 11 da matéria de facto, o que se relega para momento oportuno, se for caso disso.
No seu recurso subordinado, a ré impugna ainda a decisão proferida sobre o ponto 14 da matéria de facto, defendendo que o mesmo seja «eliminado da factualidade provada», que esta seja ampliada com novos factos que traduzem a realidade que na sua opinião se demonstrou, bem como que sejam incluídos no elenco dos factos não provados vários outros factos que na sua opinião não se demonstraram.
São necessários dois esclarecimentos prévios ao conhecimento da impugnação.
Tanto quanto interpretamos a posição da recorrente, em causa não está propriamente uma ampliação da matéria de facto, mas sim a modificação da redacção do facto do ponto 14, substituindo-a por uma nova redacção que espelhe a prova produzida, se necessário dividida por mais que um ponto.
Esta precisão é necessária porque nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil, se a pretensão fosse uma verdadeira ampliação da matéria de facto, isto é, o alargamento da fundamentação de facto a (novos) factos que não foram objecto de julgamento no tribunal recorrido, estaria vedado a esta Relação conhecer dos novos factos e, aceitando a necessidade destes, impunha-se-lhe anular a sentença recorrida.
Na verdade, aquela norma legal reza assim: «a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…) c) anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta».
A norma regula duas situações distintas: a da decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto se mostrar deficiente, obscura ou contraditória e a de ser necessário ampliar a matéria de facto. Nesta última situação a Relação só pode anular a decisão a fim de que o tribunal de 1.ª instância proceda à instrução e julgamento dos factos que a Relação mande aditar aos já antes julgados. Só na primeira situação é que há duas saídas possíveis: se não constarem do processo todos os elementos que permitam a alteração da decisão proferida, isto é, não constar do processo o registo de todos os meios de prova atendidos e a atender, a relação tem de anular a decisão proferida pela 1.ª instância para que seja esta a eliminar ou sanar as deficiências, obscuridades ou contradições (já que, como é obvio, se não dispõe da totalidade da prova não está em condições para ser ela a fazê-lo); à contrário sensu, se esses elementos constarem do processo a Relação não pode anular a decisão da 1.ª instância e deve ela mesma proceder à eliminação ou sanação das deficiências, obscuridades ou contradições que encontrar.
Na interpretação das conclusões das alegações que fazemos, o que vem pedido não é uma ampliação da matéria de facto, mas sim uma modificação da decisão sobre a matéria de facto, a qual pode ser por nós conhecida.
O segundo esclarecimento prende-se com o pedido de que sejam levados aos factos não provados, factos que até ao momento não constam dos factos provados. Trata-se, a nosso ver, de uma pretensão absolutamente inócua.
Se um determinado facto não se prova, tudo se passa como se o mesmo não tivesse sido sequer alegado, não sendo possível formular qualquer conclusão de facto a partir dos factos julgados não provados, designadamente por uma interpretação à contrário.
Como refere Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, 2015, volume II, pág. 347, «a conclusão negativa acerca de um determinado ponto temático probatório apenas significa não se ter provado esse ponto, não que se tenha provado o facto contrário, tudo se passando como se aquele facto não tivesse sido sequer alegado (articulado). Daí não poder, em tal hipótese haver colisão, deficiência ou obscuridade entre decisões parcelares positivas e negativas».
Por outro lado, a aplicação do direito aos factos apenas pode recair sobre matéria de facto que resulte provada. As disposições normativas abstractas associam consequências ou efeitos jurídicos (estatuição) a uma determinada ocorrência da via real (hipótese). Na realização da tarefa de subsunção ou qualificação jurídica o julgador aplica uma previsão normativa à realidade fáctica que a discussão da causa permitiu apurar. O silogismo judiciário em que consiste essa tarefa tem como premissa maior a norma jurídica aplicável e como premissa menor a hipótese concreta que se extrai dos factos provados, sendo a conclusão o resultado lógico da integração da hipótese concreta na previsão do preceito jurídico aplicável.
Os factos referidos nas conclusões da alegação do recurso subordinado como devendo ser julgados não provados, mas que não constam da matéria de facto provada, como aqui sucede, nunca poderão ser usados para alicerçar a aplicação do direito aos factos, designadamente em prejuízo da recorrente, não tendo assim qualquer interesse aditá-los aos factos não provados porque em termos práticos é já isso mesmo que resulta da fundamentação de facto da sentença recorrida.
Feitos estes esclarecimentos, importa agora verificar se a redacção do facto 14 deverá ser alterada, julgando-se provado não o que consta da sua redacção actual, mas o que consta da redacção preconizada pela recorrente.
Dito isto vejamos se o facto do ponto 14 se encontra mal julgado. A sua redacção é a seguinte: «a emissão da factura FAC1/20 resulta do facto de ter sido ultrapassado o número de animais inicialmente previstos, adquiridos e pagos durante o ano de 2019 e do facto de ainda não ter sido facturado o Curso de Histerectomia relativo ao ano de 2019 (e respectivos animais) encomendado pela ré à autora».
Esta redacção do ponto corresponde ao alegado pela autora na petição inicial aperfeiçoada. Ela é, no entanto, deficiente porque apenas discrimina a origem dos valores dos bens ou serviços facturados, não esclarece os aspectos que importava esclarecer para compreender a factura 1/20 e apurar a exigibilidade dos serviços/bens nele indicados e cujo preço conduz ao montante facturado, sendo certo que, como é evidente, não basta apresentar uma factura para se ter direito ao valor nela inscrito, é indispensável justificar a origem e a natureza do direito de crédito cuja satisfação se procurou com a emissão da factura (que é só uma formalidade contabilística e fiscal, nada interferindo com a relação jurídica do direito de crédito).
A factura em causa reporta-se a «1 Curso de Histerectomia» no valor de 2.530,00€, «5 Suínos (Curso de Histerectomia)» no valor de 3.000,00€ e «3 Suínos (Ultrapassada previsão do ano de 2019)» no valor de 1 800,00€». A autora parece, portanto, pretender que lhe seja pago o preço do serviço de realização do curso, o preço dos animais para esse curso (5) e o preço de outros animais (3) usados nos cursos realizados ao longo desse ano em excesso relativamente ao que estava «previsto».
Em relação ao curso as partes aceitam que o mesmo foi encomendado pela ré à autora (consta do orçamento apresentado pela autora anexo ao próprio Protocolo e integrante da Encomenda de Serviços), era para ser realizado em 2019, que foi adiado para ser realizado em nova data já em 2020, que essa data não chegou a ser indicada pela ré à autora. Quanto ao fundamento do adiamento as testemunhas divergem, havendo quem refira questões relacionadas com o n.º de inscritos e quem se refira a questões relacionadas com o impedimento de um formador e a maioria diz não se recordar exactamente da razão pela qual ele foi adiado para o ano seguinte. Por conseguinte, nesta parte, a redacção do facto deve ser modificada para reflectir o que se apurou com suficiente segurança.
Em relação aos suínos usados nesse curso, se o curso não foi realizado em princípio também não terão sido usados animais (há sempre a possibilidade de haver preparações de natureza irreversível já iniciadas aquando do adiamento, o que não foi alegado ou demonstrado).
Como quer que seja, o orçamento n.º ...19 apresentado pela autora para esse curso e que consta em anexo ao Protocolo em vigor à data como parte da Encomenda de Serviços menciona em nota que «no presente orçamento não estão incluídos os animais e os materiais».
Essa menção não impedia que eles tivessem sido encomendados depois pela ré à autora. Porém nos termos da cláusula 3.1.4 do Protocolo «os serviços prestados pelo A... … poderão incluir, consoante o que venha a ser estabelecido em cada Encomenda de Serviços … a disponibilização de animais e de cadáveres de animais …». Por outras palavras, o Protocolo exigia que a encomenda fosse feita na Encomenda e, como vimos, não foi, sendo que é o próprio texto da encomenda que assinala que «o montante referido no(s) orçamento(s) em anexo constitui a contrapartida total que a B... pagará ao A... pela prestação dos Serviços, englobando todos os custos em que esta incorra no âmbito da presente Encomenda de Serviços».
Ora a verdade é que não foi produzido qualquer meio de prova demonstrativo de que por outra via e apesar do Protocolo, a ré encomendou à autora o fornecimento de animais para esse curso. Pelo contrário, foi referido por várias vezes que embora a pedido da ré, a partir de certa altura o fornecimento passou a ser feito por outra empresa (a já mencionada …consultora imobiliária!) «pertencente» ao legal representante da autora, razão pela qual as coisas eram na prática tratadas entre as mesmas pessoas, mas sendo fornecedora desses animais essa outra empresa, que, como tal, era quem emitia as facturas e recebia o pagamento do respectivo preço por ser a credora. Também este aspecto deve ser incluído na redacção modificada do ponto 14.
Finalmente temos a questão dos animais usados a mais no conjunto dos cursos realizados em 2019. Vale para o efeito o que acima se expôs em relação aos animais especificamente para o curso de Histerectomia, sendo certo que a exclusão do fornecimento de animais surge anotada nos demais orçamentos para cursos que envolviam a utilização de animais vivos.
A mensagem de correio electrónico de 9/9/2020 enviada pela colaboradora da ré CC à autora altera esta conclusão? Não. Já se referiu que as coisas eram na prática tratadas entre as mesmas pessoas devido à ligação entre o legal representante da autora e a empresa fornecedora dos animais. Por isso não tem nada de especial que ela solicitasse a emissão da factura, sabendo que, seguindo a prática que vinha de antes, os destinatários encarregar-se-iam de emitir a factura em nome da empresa fornecedora dos animais.
Concluindo agora, decide-se alterar a redacção do ponto 14 da matéria de facto, substituindo-a pelo seguinte:
«14. A ré encomendou à autora a realização em 2019 do Curso de Histerectomia mencionado na factura 1/20, o qual foi adiado desse ano para o seguinte e acabou por não se realizar por a ré não ter dado nova indicação para a sua realização em 2020.
14.A. Ao longo de 2019, nos cursos realizados pela autora para a ré, foram utilizados mais 3 suínos que os inicialmente previstos.»

V. Fundamentação de facto:
Encontram-se definitivamente julgados provados os seguintes factos:
1. A autora é uma sociedade comercial que se dedica entre outras coisas à ministração de formação, investigação e treino na área de cirurgia experimental.
2. No âmbito da sua actividade, nos inícios de 2005 a autora iniciou relações comerciais com a ré.
3. Essas relações traduziram-se no arrendamento anual, mediante contraprestação mensal, de uma sala utilizada pela ré.
4. Com data de 8/03/2018 a autora celebrou com a ré um acordo denominado de “Acordo de Parceria e Colaboração Formativa” donde consta, além do mais, que
“Fica estabelecido que a B... definirá anualmente com A... o plano anual de formação que assentará nas seguintes áreas:
Laparoscopia – Cursos Básicos, Intermédios e Avançados;
Bariátrica – Cursos de Cirurgia
Coloretal – Cursos de Cirurgia Ginecologia – Cursos de Cirurgia.
Esta parceria de formação estabelece que a B... dará apoio à realização dos cursos na parte logística, inscrições, alojamento e aquisição de animais.
O valor estimado anual para a realização do plano de formação para 2018, 2019 e 2020 é de 80.000€ (oitenta mil euros) caso se cumpra a totalidade do plano.
A verba referente à aquisição dos animais para a realização dos cursos será paga no primeiro trimestre de cada ano e terá um valor estimado anual de 42.000€ (quarenta e dois mil euros)”.
5. Com data de 16/04/2019, as partes celebraram um acordo que denominaram de “Protocolo de Colaboração” donde, além do mais, constam as cláusulas seguintes:
“1. Objecto
1.1 O presente Protocolo estabelece os termos e condições a que obedece a colaboração das Partes com vista à promoção de formação médica em cursos de treino em cirurgia minimamente invasiva nas instalações do A....
1.2. As Partes acordam que a colaboração referida no número anterior disporá de duas vertentes:
a) A disponibilização de equipamento pela B... ao A..., conforme melhor descrito na Cláusula 2;
b) A contratação pela B... ao A... da prestação de serviços de formação médica, conforme melhor descrito na Cláusula 3;
3. Serviços de Formação Médica.
3.1 Serviços
3.1.1. As Partes acordam que a B... poderá contratar o A... para que este lhe preste serviços de formação médica, tendo como propósito a realização de outros cursos de formação nas instalações do A....
3.1.2. Os cursos referidos no número anterior serão da inteira responsabilidade da B..., cabendo exclusivamente a esta a definição do respectivo conteúdo e a selecção dos participantes.
3.1.3.O A... permitirá que a B... realize, nas suas instalações, os cursos referidos na Cláusula 3.1.1., sujeitos aos termos e condições que sejam acordados casuisticamente, e estes deverão ser acreditados pelo A....
3.1.4. Os serviços prestados pelo A... objecto da presente Cláusula poderão incluir, consoante o que venha a ser estabelecido em cada Encomenda de Serviços a que se refere a Cláusula 3.1.6. infra:
a) A disponibilização de animais e de cadáveres de animais e da respectiva assistência veterinária a animais;
b) A disponibilização de uma ou mais salas devidamente equipadas, e com as condições adequadas à realização de cada curso, nomeadamente no que respeita à disponibilização de materiais e equipamentos, nomeadamente equipamentos audiovisuais;
c) A contratação de formadores que participem nos cursos, responsabilizando-se ainda por efectuar o pagamento dos seus respectivos honorários.
d) A disponibilização de certificados de participação aos profissionais de saúde que participem nos cursos;
e) A organização de demais aspectos logísticos, como por exemplo a organização de coffee-breaks e almoços ou o alojamento de participantes nos cursos.
3.1.5. A contratação do A... para efeitos da realização de cursos nos termos previstos na presente cláusula depende da apresentação pelo A... de uma proposta de execução e respectivo orçamento detalhado para cada curso e da aceitação de ambos pela B... na sequência de um pedido apresentado para o efeito pela B... O orçamento deverá contemplar o valor discriminado de cada curso incluindo o valor de cada serviço prestado nesse âmbito pelo A....
3.1.6. Sempre que a B... aceite a proposta e o orçamento do A..., remeterá a esta última a respectiva encomenda de serviços, nos termos da minuta que se junta como anexo II ao presente Protocolo (“Encomenda de Serviços”). Uma vez assinada, a Encomenda de Serviços regula os termos e condições a que obedece a prestação dos serviços no caso concreto. As Partes declararam e reconhecem que o Anexo II é de natureza indicativa, podendo a Encomenda de Serviços ser adaptada em função das necessidades de cada curso e dos serviços a contratar pela B... ao A....
3.1.7. As Encomendas de Serviços constituirão um Anexo ao presente Protocolo, dele fazendo parte integrante, apenas sendo válidas se assinadas por ambas as Partes.
3.2 Pagamento e facturação
3.2.1. Pela prestação dos serviços objecto da presente Cláusula, a B... pagará ao A... os montantes que venham a ser estabelecidos nas respectivas Encomendas de Serviços, seja a título de preços ou despesas, nos termos e condições também aí acordados.
3.2.2. Este montante será pago pela B... ao A... no prazo de 60 (sessenta) dias após a emissão da respectiva factura pelo A..., comprometendo-se o A... a emitir e remeter o respectivo recibo à B... O A... apenas deverá proceder à emissão da factura após a realização do curso a que a mesma se reporta.
4. Recursos Materiais e Humanos
4.1. O A... obriga-se a afectar os recursos necessários e adequados à execução dos serviços prestados no âmbito do presente Protocolo (“Serviços”) nomeadamente, e se aplicável:
(a) Recursos materiais, incluindo tecnológicos, designadamente de hardware e software, que se mostrem necessários à realização dos Serviços …
(b) Recurso humanos, devendo estes ser devidamente qualificados, ter perfil, experiência e demais requisitos necessários ao bom desempenho dos Serviços (doravante designados “Colaboradores”).
4.2. As Partes declaram e reconhecem que os Colaboradores dependerão exclusivamente do A..., quer jurídica, quer economicamente, recebendo deste as ordens e instruções referentes à boa prestação dos Serviços e devendo exclusivamente obediência ao mesmo.
4.4. Considerando o disposto no n.º 4.2. da presente cláusula, as Partes declaram e reconhecem que os Colaboradores serão remunerados exclusivamente pelo A..., não tendo a B... qualquer responsabilidade a este título.
7. Vigência e Resolução
7.1. O presente Protocolo entra em vigor na data da sua assinatura e permanecerá em vigor pelo período de 3 anos (“Período Inicial de Vigência”).
10.5. Este Protocolo, do qual fazem parte integrante os respectivos Anexos, bem como qualquer Encomenda de Serviços, constitui a totalidade do acordo estabelecido entre as Partes quanto à matéria que constitui o seu objecto e prevalece sobre e revoga todos os contratos ou acordos anteriores quanto a esse mesmo objecto…”.
6. Do Anexo I supra referido consta que “Nos termos do Protocolo, o A... obriga-se a disponibilizar anualmente 15 (quinze) cursos à B...:
1. 10 (dez) cursos de iniciação à sutura, com a duração de 1 (um) dia, contando com a participação de 18 formandos a seleccionar pela B...
2. 5 (cinco) cursos de iniciação à laparoscopia, com a duração de 1 (um) dia, contando com a participação de 10 formandos a seleccionar pela B...
7. Do anexo II supra-referido, consta que “Este Anexo contém a Encomenda de Serviços prevista na Cláusula 3.1.6. do Protocolo para Prestação de Serviços celebrado entre a B... e o A....
Encomenda de serviços colocada ao abrigo do protocolo celebrado entre a B... e o A...
1. Curso
1.1 As Partes acordam que a B... irá realizar, nas instalações do A..., os cursos cujo orçamento se encontra junto ao presente Anexo.
2. Preço
O montante referido no(s) orçamento(s) em anexo constitui a contrapartida total que a B... pagará ao A... pela prestação dos Serviços, englobando todos os custos em que esta incorra no âmbito da presente Encomenda de Serviços.
3. Prazos de Pagamento
A B... procederá ao pagamento do montante referido no(s) orçamento(s) nos termos previstos na Cláusula 3.2 do Protocolo”.
8. Os orçamentos juntos ao supra-referido anexo II, todos com a indicação da data de 2019, referem-se um ao Curso Básico de Cirurgia Laparoscópica, no valor de 5.571,90 €; um ao Curso Intermédio em Cirurgia Laparoscópica, no valor de 7.503,00 €; um ao Curso Avançado em Cirurgia Laparoscópica, no valor de 10.565,70 €; um ao Curso de Histeroscopia, no valor de 4.969,20 €; um ao Curso de Histerectomia, no valor de 3.111,90 € e um ao Curso Colorectal, no valor de 6.211,50 €.
9. Dos supra-referidos orçamentos consta que “No presente orçamento não estão incluídos os animais e os materiais”.
10. Foi no âmbito do protocolo de colaboração supra-referido celebrado entre a autora e a ré em 16 de Abril de 2019, que a autora emitiu as facturas FAC1/19 e FAC1/20.
11. O curso básico de Laparoscopia mencionado na factura FAC1/19 foi solicitado pela ré.
12. No dia 11/12/2019, comunicando à ré que estava a organizar o ano seguinte e a marcar datas na agenda, algumas das quais já dispunha, a autora interpelou-a sobre o que estava a pensar fazer, na sequência do que esta solicitou àquela o envio de datas, pedido que esta satisfez, no dia imediato, nos seguintes termos: “Curso Básico: Março: 16/17 Curso Intermédio: Maio: 04/05/06 Novembro: 09/10/11”.
13. Para além do supra-referido em 12) existiram outros contactos com vista ao agendamento de cursos para o ano de 2020.
14. A ré encomendou à autora a realização em 2019 do Curso de Histerectomia mencionado na factura 1/20, o qual foi adiado desse ano para o seguinte e acabou por não se realizar por a ré não ter dado nova indicação para a sua realização em 2020.
14-A. Ao longo de 2019, nos cursos realizados pela autora para a ré, foram utilizados mais 3 suínos que os inicialmente previstos.
15. A autora teve AA, médico cirurgião e Director do Centro Hospitalar ..., como sócio fundador.
16. A C..., Lda., de que AA é sócio gerente, é sócia da autora desde 13/03/2010.
17. Em Abril de 2020, a ré determinou que não houvesse adjudicação de cursos à autora para o ano de 2020 até que AA deixasse de cumular a qualidade de Director de Serviço de um Hospital Público e a qualidade de beneficiário efectivo da ré.
18. Os cursos discriminados na factura 1/19 não foram realizados.
19. No ano de 2019 os animais não eram adquiridos pela ré à autora, antes eram adquiridos, através da autora, pela ré à MCM que os facturava à ré.
20. Até ao fim de 2019, seguindo a sua prática habitual, a autora celebrou contratos com formadores e fornecedores para dispor de meios para realizar os cursos que projectava realizar em 2020, assumindo a obrigação de lhes pagar a respectiva remuneração ou preço.

VI. Matéria de Direito:
A] Recurso (principal) da autora:
Na espartana sentença recorrida, a ré foi condenada a pagar o valor da factura 1/20 com o fundamento de que «no âmbito de uma relação contratual estabelecida entre as partes, a A. prestou à R., a seu (da R.) pedido, serviços que consistiram na preparação de um curso de histerectomia», forneceu-lhe os «suínos encomendados» (para esse curso) mais «suínos utilizados no ano de 2019 para além do inicialmente previsto para os cursos da ré», e por esse motivo face à «celebração … de um acordo de prestação de serviços, a esta, enquanto beneficiária dos mesmos, cabe, o pagamento do respectivo preço na sua totalidade (art. 1154.º, 762.º e 763.º do CC)».
Depois, em relação à factura 1/19, manifestou-se que «não resultando da matéria assente que a A. tenha suportado qualquer outro custo ou despesa com serviços prestados à R., a acção, no mais, tem necessariamente de improceder».
É deste segmento da sentença que vem naturalmente interposto recurso pela autora.
A fundamentação da sentença é, com todo o devido respeito, pouco clara, não se percebendo se se entende que não foi celebrado um contrato tendo por objecto os serviços mencionados nessa factura, se entende que foi celebrado mas a autora não demonstrou ter executado a sua prestação em função do que teria direito à contrapartida ou se entende que a autora teria de ter demonstrado que suportou custos ou despesas com a execução da sua prestação para ter direito ao pagamento do respectivo valor.
Na linha dessa ambiguidade jurídica, a autora, ao impugnar a parte da sentença que lhe é desfavorável, parece sustentar que o seu pedido alicerçado na factura 1/19 deverá proceder porque em consequência do incumprimento do contrato por parte da ré a autora tem o direito não apenas a receber a prestação que estava prevista no contrato como ainda à reparação dos danos que sofreu calculados segundo o chamado interesse contratual positivo.
Para proceder à qualificação jurídica dos factos importa começar por ultrapassar a referida ambiguidade ou falta de clareza.
A presente acção teve origem num requerimento de injunção ao qual foi deduzida oposição, e no qual a requerente alegou que «a requerida não procedeu ao pagamento total dos bens/serviços elencados nas facturas n.º 19 e 20, com data de emissão a 8 de Setembro de 2020 e vencimento em 9 de Setembro do corrente ano».
Posteriormente, no articulado de aperfeiçoamento do requerimento de injunção, a autora alegou que:
«5. … no âmbito do protocolo de colaboração celebrado entre a autora e a Ré em 16 de Abril de 2019, … a autora emitiu as facturas [1/19 e 1/20]
9. A emissão da factura FAC1/19 por parte da autora resulta de um pedido da Ré de Setembro de 2019, … confirmando a realização de [sete cursos]
10. Os referidos cursos constavam do … Protocolo estando o respectivo … valor previamente fixado contratualmente.
11. Posteriormente existiram inúmeros contactos entre a autora e Ré com vista ao agendamento dos cursos por esta contratados, …
12. … a emissão da factura FAC1/20 resulta do facto de ter sido ultrapassado o número de animais previstos no Protocolo de Colaboração acima mencionado durante o ano de 2019 e ainda do facto de ainda não ter sido facturado o Curso de Histerectomia relativo ao ano de 2019 (e respectivos animais).
14. Logo após a contratação por parte da Ré, em Setembro de 2019, dos cursos para o ano de 2020, a autora celebrou com os seus fornecedores/formadores os competentes contratos …»
Resulta assim do alegado que a causa de pedir eleita pela autora para fundamentar o seu pedido é constituída pelos factos jurídicos que consubstanciam a celebração de contratos de prestação de serviços entre a autora, na qualidade de prestadora, e a ré, na qualidade de beneficiária desses serviços. O pedido, por sua vez, corresponde à contraprestação contratualmente assumida pelos serviços contratados. Desse modo, embora não o assumindo frontalmente, a autora colocou-se na posição de ter realizado a prestação de serviços que lhe foi contratada e ter direito à respectiva contrapartida, nas suas palavras «previamente fixada contratualmente», a que corresponde o valor indicado nas facturas 1/19 e 1/20 apresentadas.
É esta a causa de pedir e é este o pedido da acção. A causa de pedir da acção não é, portanto, constituída pelo incumprimento por parte da ré de um contrato ou contratos de prestação de serviços e pelo dever de indemnização dos danos causados por esse incumprimento. Daí que não seja possível decidir a acção com base nesta diferente causa de pedir e julgar procedente um pedido de indemnização que manifestamente não foi formulado.
Se duas sociedades comerciais estabelecem negociações para a celebração de um contrato (no âmbito de um quadro previamente estabelecido de regulação do respectivo relacionamento comercial ou não) acontecerá uma de duas coisas: ou as negociações são profícuas e as sociedades celebram o contrato que estiveram a negociar ou as negociações não chegam a bom porto e nenhum contrato é celebrado.
Se o contrato não é celebrado, naturalmente nenhuma das sociedades pode exigir da outra o cumprimento de deveres de prestação que estiveram a ser negociados e que integrariam o contrato. Quando muito, se a ruptura das negociações for acompanhada de determinado circunstancialismo, a parte que rompeu as negociações pode incorrer em responsabilidade pré-contratual, caso em que a outra poderá exigir a reparação dos danos que sofreu em virtude desse rompimento injustificado das negociações.
Se o contrato é celebrado caímos no âmbito da chamada responsabilidade contratual e o incumprimento por parte de uma delas ou de ambas terá as consequências previstas no Código Civil no capítulo relativo ao não cumprimento das obrigações. E, nesse caso, para saber que consequências a parte que não cumpriu o dever de prestação a que se obrigou terá de suportar, é necessário saber se o incumprimento é definitivo ou temporário, se é total ou parcial e a quem é imputável a impossibilidade de cumprimento ou o cumprimento defeituoso, uma vez que as consequências jurídicas variam entre essas várias hipóteses.
Pergunta: está provado que a autora e a ré celebraram um contrato de prestação de serviços tendo por objecto a prestação em 2020 dos serviços de formação médica (cursos) elencados na factura 1/19? A resposta é negativa: nenhum facto provado revela que foi celebrado um contrato com esse objecto.
Se não se provou a celebração de um contrato, a ré não pode ser condenada a pagar à autora a contrapartida pela prestação desses serviços, que é aquilo que está pedido na acção, com fundamento, como vimos já, na celebração do contrato. E também não pode ser condenada a pagar qualquer indemnização pelo não cumprimento pela simples razão de que se não há contrato não é possível falar em consequências do incumprimento … do mesmo. Logo, toda a argumentação da recorrente acerca do incumprimento e dos danos passíveis de serem indemnizados com fundamento na responsabilidade pelo incumprimento é inconsequente do ponto de vista jurídico.
Do mesmo modo é inconsequente a argumentação baseada na boa fé. Se não houve contrato o mais que pode colocar-se é a questão da responsabilidade pela ruptura das negociações. E aí sim a boa fé é importante e pode mesmo ser decisiva para qualificar a ruptura como ilegítima e gerar a obrigação de indemnização. Só que esta indemnização apenas pode ser obtida através de uma acção cuja causa de pedir seja precisamente a responsabilidade pré-contratual, o que não é o caso da presente acção, sendo certo que o tribunal não pode julgar os pedidos com base numa causa de pedir distinta da alegada, sob pena de incorrer em nulidade.
É certo que no facto do ponto 11 se encontra provado que um dos serviços de formação médica (o curso básico de Laparoscopia) mencionados na factura 1/19 foi «solicitado» pela ré. A decisão de julgar provado este facto foi, todavia, impugnada pela ré na ampliação do objecto do recurso, razão pela qual importa neste momento ver se é necessário conhecer dessa impugnação.
Cremos, no entanto, que tal não é necessário porque ainda que aquele facto se mantenha provado nem por isso estão reunidas condições para julgar procedente o pedido da autora (em relação ao valor deste serviço). Com efeito, não basta a uma das partes alegar que foi celebrado um determinado contrato para reclamar o pagamento da contrapartida da sua prestação. Para isso necessita ou de alegar e demonstrar que executou a sua prestação (o que a autora não alegou e sabemos que não aconteceu porque segundo o ponto 18 nenhum dos cursos incluídos nessa factura foi realizado) ou que ofereceu a sua prestação e ela só não foi recebida ou concretizada por motivos imputáveis à contraparte. Na verdade, só quando, por causa imputável ao credor, a prestação se tornar impossível ou não for cumprida em definitivo, o credor se mantém obrigado ao pagamento da contraprestação (artigo 795.º, n.º 2, do Código Civil).
Ora a matéria de facto não nos revela quando foi feita a «solicitação» do curso, sendo certo que segundo o ponto 17 em Abril de 2020 a ré tomou a decisão de não «adjudicar» à autora nenhum curso para o ano de 2020. Tal como não revela a razão pela qual o referido curso («solicitado») não foi realizado, sendo certo que no ano anterior houve um que não foi realizado, mas as partes acordaram o adiamento da sua realização. Nesse contexto, mesmo que se viesse a manter a decisão de julgar provado que o curso foi objecto de um contrato de prestação de serviços celebrado entre a autora e a ré, seria impossível considerar preenchido o circunstancialismo do artigo 795.º, n.º 2, do Código Civil, único no qual, não tendo a autora executado a sua prestação, teria ainda assim direito à contraprestação peticionada nos autos.
Em suma, o recurso da autora deve ser julgado improcedente.

B] Recurso (subordinado) da ré
A ré pede a revogação da sentença recorrida na parte em que a condenou a pagar o valor da factura 1/20 que inclui a prestação dos serviços de formação médica (um curso de histerectomia) e o fornecimento de animais (5 + 3 suínos).
Em relação ao preço dos animais não restam dúvidas sobre a absolvição da ré do pedido, uma vez que em resultado da alteração da fundamentação de facto da decisão não se encontra provado que a ré tenha contratado com a autora o fornecimento dos animais, rectius, que haja sido à autora que a ré encomendou esse número de animais, razão pela qual a autora não é credora da ré do respectivo preço.
E quanto ao serviço de formação médica (curso)?
Resulta da matéria de facto que a ré contratou a autora para lhe prestar esses serviços, que a ré fixou a data para a execução do serviço (em 2019), que depois a sua execução foi adiada para o ano seguinte (2020), que o curso acabou por não ser realizado por a ré não ter dado nova indicação para a sua realização em 2020 e que em Abril de 2020, a ré determinou que não houvesse adjudicação de cursos à autora para o ano de 2020 até que AA deixasse de cumular a qualidade de Director de Serviço de um Hospital Público e a qualidade de beneficiário efectivo da ré.
O que significam estes factos do ponto de vista jurídico?
Em primeiro lugar que existe um contrato celebrado entre a autora e a ré, mediante o qual esta contratou aquela para lhe prestar o serviço em causa. Por conseguinte, não nos encontramos já perante uma mera relação de negociação ou perante um projecto de relação negocial, estamos perante um vínculo jurídico de natureza contratual que prende os respectivos contraentes às obrigações assumidas no contrato e, consequentemente, à responsabilidade pelo respectivo incumprimento (artigos 397.º, 398.º 405.º e 406.º do Código Civil).
Em segundo lugar que a prestação de serviços teve uma data certa fixada para a sua realização, mas essa data foi dada sem efeito, adiando-se a execução para data posterior a fixar. Nesse sentido, a obrigação era inicialmente uma obrigação com prazo certo e deixou de o ser fruto do adiamento decidido pela beneficiária do serviço e aceite pela prestadora do mesmo.
Num contrato é necessário determinar quando é que a obrigação contratual se vence, se torna exigível, pode ser exercitada. Com efeito, pode resultar do acordo das partes, da natureza do contrato ou da obrigação ou mesmo da lei, que a prestação possa ser exigida ou exercitada imediatamente, que só o possa ser decorrido determinado prazo ou evento ou ainda que uma vez esgotado um prazo não o possa ser mais. Daí que seja frequente distinguir-se a esse propósito entre termo obrigacional e termo legal, termo inicial e termo final, termo certo e termo incerto, termo essencial e acidental ou não essencial.
Nos termos do n.º 1 do artigo 777.º do Código Civil, se as partes não tiverem estipulado um prazo ou não resultar da lei um prazo específico para a situação, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela.
Contudo, o n.º 2 da norma prevê os casos em que pela própria natureza da prestação, por virtude das circunstâncias que a determinaram ou por força dos usos, é necessário o estabelecimento de um prazo e as partes não acordaram na sua determinação, estabelecendo que nesses casos a sua fixação é deferida ao tribunal. Nestas situações, portanto, a parte não pode fixar unilateral e extrajudicialmente o prazo que julga adequado, tem de recorrer aos tribunais solicitando a fixação judicial do prazo para o cumprimento.
No caso é essa a situação que se verifica uma vez que segundo o contrato-quadro (Protocolo) que regia a celebração de contratos entre as partes, a concretização do curso depende da colaboração e interacção entre ambas as partes na medida em que havia aspectos do curso que era realizados pela ré (v.g. as inscrições, deduz-se: os convites para a participação) e sem os quais a autora não podia executar o seu serviço.
A relevância de saber quando é que o devedor está obrigado ou pode ser obrigado a cumprir prende-se com a definição da mora e do incumprimento definitivo. O nº 2 do artigo 804.º do Código Civil prescreve que o devedor se considera constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido. Já de acordo com o artigo 805.º do mesmo diploma, tendo a obrigação prazo certo, o devedor fica constituído em mora, independentemente de interpelação judicial ou extrajudicial para cumprir, logo que se atinge o prazo fixado para o cumprimento.
Nesse sentido, uma vez que a prestação do serviço deixou de estar subordinada a um prazo certo e que era indispensável que a ré decidisse o momento da prestação, a autora necessitaria, em principio, de recorrer aos mecanismos supletivos de fixação do prazo (obtenção de um acordo ou recurso ao tribunal) para converter a inércia do credor em mora e a, partir daí, exercer os direitos correspondentes à mora do credor. Isso só deixou de ser necessário se se entender que a ré entrou em incumprimento definitivo, isto é, recusou de forma categórica o comportamento necessário para criar as condições para a autora executar a prestação a que se vinculou.
No caso foi isso que aconteceu, uma vez que em Abril de 2020, ainda antes de marcar nova data para a execução do curso contratado em 2019, mas adiado para o ano seguinte, a ré decidiu que não faria mais cursos com a autora, enquanto não houvesse uma mudança na estrutura desta, mais precisamente que deixasse de ter como beneficiário efectivo pessoa com a qualidade de Director de Serviço de um Hospital Público. Na medida em que a ré colocou essa condição como decisiva e definitiva, esta situação traduz a nosso ver uma situação de incumprimento definitivo por parte da ré em relação ao dito curso do ano anterior.
A pergunta que se pode colocar é se o argumento usado torna esse incumprimento não imputável à ré, que é, no fundo, o que esta sustenta. Na nossa opinião, a resposta é claramente negativa.
Em primeiro lugar porque o curso já estava contratado e uma vez contratado nenhuma das partes pode pretender introduzir unilateralmente no contrato deveres de prestação, condições ou modos que não foram objecto de negociação e do acordo das partes. Nos termos do artigo 406º do Código Civil, «o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contratantes ou nos casos admitidos na lei» - pacta sunt servanda. Por sua vez o artigo 762º do Código Civil, estabelece que «o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado».
Isto é assim porque o direito não protege as pessoas dos maus negócios que possam fazer, a mera imprevidência, falta de cuidado ou inépcia negocial não são fundamento legal de invalidade dos negócios jurídicos ou do direito à sua modificação. Mesmo nos negócios onerosos e comutativos, a correspondência entre as prestações das partes é a correspondência que as partes, bem ou mal, aceitaram estabelecer, não sendo imperioso para afirmar a validade do negócio que haja uma correspondência exacta entre as prestações ou que a correspondência acordada pelas partes seja válida ou adequada para qualquer outro interessado.
Para o negócio ser inválido é necessário que na formação da vontade negocial ou na sua declaração tenha ocorrido qualquer vício juridicamente relevante, ou seja, que a vontade não se tenha formado e formulado de um «modo julgado normal e são» pela ordem jurídica. O erro e o dolo são precisamente alguns desses vícios juridicamente relevantes, mas a afirmação do erro e do dolo pressupõe que estejam reunidos os respectivos pressupostos legais, sem o que apesar das consequências que possam resultar para as partes, as respectivas declarações negociais são válidas e eficazes. E isto é assim em geral nos termos dos artigos 247.º a 254.º e, em particular para o contrato de compra e venda, nos termos dos artigos 905.º e 913.º, aplicáveis ao contrato-promessa de compra e venda por força do artigo 410.º, n.º 1, todos do Código Civil.
Ora a ré não arguiu qualquer vício do contrato, nem requereu a declaração da respectiva nulidade, designadamente com o fundamento de que foi induzida em erro sobre a identidade e/ou qualidade profissional do beneficiário efectivo da autora e que esta sabia da essencialidade desse elemento para a decisão da ré de celebrar o contrato, razão pela qual não pode impor unilateralmente à contraparte condições não negociadas, nem decidir libertar-se das obrigações perante a outra parte ou modificar estas obrigações.
Em segundo lugar porque a razão usada pela ré relaciona-se com a sua própria actividade no relacionamento com o Estado ou a Administração Pública, designadamente ao nível dos contratos de fornecimento de bens e equipamentos, não com o relacionamento com particulares para efeitos da aquisição dos bens ou serviços de que necessita para o desenvolvimento do seu objecto social. Logo, o argumento nada tem a ver com este contrato, tem sim a ver com a possibilidade de outras áreas de actuação da ré serem afectadas por virtude da celebração deste contrato.
Por estas razões, nos termos do n.º 2 do artigo 795.º do Código Civil, a ré está de facto obrigada a para à autora a contraprestação do aludido curso (€2530, mais IVA no valor de €581,90), sendo certo que nos termos da norma cabia à ré demonstrar que a não execução da prestação pela autora lhe trouxe benefícios (poupanças) passíveis de serem descontados na contraprestação.
Em conclusão, procede apenas em parte o recurso subordinado.

VII. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso principal improcedente e o recurso subordinado parcialmente procedente e, em consequência, alteram a decisão recorrida, condenando a ré a pagar à autora a quantia de €3.111,90 (IVA incluído), acrescida de juros de mora, contados à taxa comercial, desde a citação até integral pagamento, absolvendo-a do restante pedido da autora.

Custas da acção e dos recursos pelas partes na proporção do respectivo decaimento.
*
Porto, 29 de Junho de 2023.
*
Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 758)
Leonel Serôdio
Isabel Ferreira




[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]