Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1644/11.0TMPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
DEFICIÊNCIA DA MOTIVAÇÃO DA DECISÃO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Nº do Documento: RP201503051644/11.0TMPRT-A.P1
Data do Acordão: 03/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não são confundíveis nem têm o mesmo regime o vício da nulidade da sentença por falta de fundamentação e o vício da deficiência da motivação da decisão da matéria de facto.
II - Na atribuição da casa de morada de família ao abrigo do artigo 1105.º do Código Civil, o tribunal pode atender não apenas à necessidade de cada um dos ex-cônjuges e ao interesse dos filhos do casal, como ainda a quaisquer outros factores relevantes que contribuam para aferir não só da necessidade da casa mas também da justeza da decisão.
III - Nas actuais circunstâncias, a maioridade dos filhos e o facto de estes já terem porventura rendimentos próprios, não exclui que os mesmos possam continuar a integrar o agregado familiar dos pais, desde que entre eles e os pais haja uma economia comum ou mesmo apenas uma entreajuda económica.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
Processo n.º 1644/11.0TMPRT-A.P1 [Comarca do Porto/Instância Central de Gondomar]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
B…, residente em …, instaurou contra C…, residente no mesmo local, por apenso ao processo de divórcio de ambos, incidente de atribuição da casa de morada de família, requerendo que a mesma lhe seja atribuída.
Para o efeito, alegou que a casa de morada de família é uma habitação da Câmara Municipal que foi entregue ao casal de arrendamento, que desde há anos tem vindo a ser vítima de violência doméstica perpetrada pelo requerido razão pela qual acabou por requerer e obter a dissolução do casamento por divórcio, que tem necessidade da casa para nela continuar a viver não possuindo rendimentos para poder arranjar outra habitação condigna.
O requerido contestou a acção, alegando que as queixas de violência doméstica foram sendo sucessivamente arquivadas e que a requerente apenas pretende retirar a casa ao requerido, o qual tem piores condições económica do que as da requente, pelo que a casa deve ser-lhe atribuída a ele.
Após julgamento, foi proferida sentença na qual se julgou a acção procedente e se atribuiu à requerente a casa de morada de família, determinando a passagem do arrendamento para nome desta.
Do assim decidido, o requerido interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I – A douta sentença recorrida enferma da nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do C.P.C. – constituindo ainda inconstitucionalidade por violação do nº 1 do artigo 205º da C.R.P. –, uma vez que inexiste qualquer fundamentação atinente à decisão da matéria de facto.
II – Apresentou-se apenas o habitual intróito de toda e qualquer sentença que aprecie factos e respectiva prova, constituindo uma formulação genérica em que apenas se tende a revelar que se analisou a prova – mas tudo sem o demonstrar, comprovar e argumentar, no sentido de ser evidente a conjugação dos meios probatórios e a análise crítica dos mesmos que se impõe ao Tribunal, logo, sem poder produzir convencimento quanto ao acerto da decisão.
III – Não se demonstrou todo o processo lógico de análise crítica dos mesmos, por que razão mereceram credibilidade e acolhimento pelo Tribunal a quo, por que razão uns são mais credíveis do que outros, nem se especificou quais os documentos que mereceram aqueles atributos, dizendo-se tão só que se viu os documentos, que foram ponderados “na medida em que se mostraram verdadeiros e credíveis”, o que é, com o devido respeito, a mesma coisa que nada dizer, pelo que resulta, assim, é uma formulação vaga e genérica, que mais não é do que absolutamente gratuita e conveniente à protecção da sentença como alegadamente fundamentada.
IV – Dessa forma, inexiste na sentença impugnada o substracto que deveria alicerçar a decisão sobre a matéria de facto e que pudesse conduzir ao convencimento da justeza da mesma, pelo que a douta sentença em crise se mostra inquinada do apontado vício.
V – À luz dos princípios estruturantes do Direito, dos preceitos legais aplicáveis e das melhores doutrina e jurisprudência, a sentença recorrida não respeitou a exigência legal de fundamentação, pois que, do seu teor, não consta qualquer exercício minimamente adequado a produzir o seu convencimento nem sequer a demonstrar o processo de raciocínios lógicos que conduziu a eventual decisão justa, pelo que resulta uma decisão que é imposta aos seus destinatários pela simples opção do Tribunal a quo mas cuja construção na mente do julgador fica naquela encerrada.
VI – Fica assim a Recorrente impedida não só de avalizar a eventual justeza da decisão sobre a matéria de facto, mas também de impugnar – como é seu direito – a análise das provas carreadas para os autos e nas quais se teria estribado o Tribunal a quo para formular a mencionada decisão.
VII – Deste modo, não tendo a douta sentença em mérito respeitado o dever de fundamentação que impendia sobre o Tribunal a quo, vê-se inelutavelmente ferida de nulidade – que expressamente se alega e invoca para todos os efeitos legais, nos termos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do C.P.C. –, mais enformando inconstitucionalidade por violação do preceituado no nº 1 do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa, devendo como tal ser declarada.
VIII – Não obstante a existência do apontado vício, não se pode deixar de impugnar, por mera cautela de patrocínio, o incorrecto julgamento da matéria de facto quanto aos pontos 2), 3), 4), 5), 6), 8), 9), 13) e L) da factualidade considerada provada, ainda que fortemente restringido pelo facto de desconhecer quais os meios de prova e qual a análise destes feita e o raciocínio que conduziram à respectiva decisão, desconhecendo-se quais os elementos probatórios que alicerçaram a comprovação de cada um dos factos provados.
IX – Quanto aos factos provados em 2), 3), 4), 5) e 6), o recorrente apenas pode presumir ter-se o Tribunal a quo baseado no teor da sentença de fls. 38 a 42 dos autos de divórcio entre os aqui A. e R.
X – No entanto, naquela apenas foram dados como provados por confissão, isto é, por falta de contestação e de contraditório dos depoimentos por estar em causa, naqueles autos, a dissolução do casamento entre os ora recorrente e recorrida, ao que, não tendo o aqui recorrente qualquer interesse na manutenção do matrimónio, este não contestou a aludida acção nem contraditou os factos invocados nem os depoimentos produzidos.
XI – Todavia, não podia aqui o Tribunal a quo servir-se daqueles factos, confessados em acção diversa da presente, uma vez que o artigo 421º do C.P.C. preceitua que se podem aproveitar os depoimentos e os arbitramentos produzidos noutro processo – por identidade de razão, os factos nele provados –, desde que tenha havido possibilidade de contraditório, mas já assim não poderá suceder no caso previsto no nº 3 do artigo 355º do Código Civil, isto é, não se podendo aproveitar num outro processo a confissão de factos feita noutro.
XII – Como se diz na doutrina citada supra, “Compreende-se que a parte só tenha confessado por estarem em jogo interesses de pouca monta. Por isso, tem de admitir-se que poderá ser diferente a sua atitude noutro processo em que os valores sejam mais elevados” – no caso presente, não tendo o ora recorrente qualquer interesse em contrariar o pedido de divórcio formulado pela ali A., estava em jogo, naquela acção, um interesse que não só pouco ou nada representava para o ali R., como ainda o mesmo até comungava daquele interesse, por também vir a pretender ver dissolvido o seu matrimónio.
XIII – Já na presente acção, tendo os interesses em jogo especial importância e pertinência para o ora recorrente, dada a carência premente de que lhe seja atribuída a casa de morada de família – o que, mais que não fosse, facilmente se inferiria pelo acto de dedução de contestação e pelo teor desta –, não se lhe podem opor os factos confessados noutro processo e deles não se podia servir o Tribunal a quo, o que se torna ainda mais flagrante quando a demais prova produzida nestes autos e citada supra não só não os corrobora, como ainda os contraria.
XIV – Ainda que assim não sucedesse, devendo o Juiz ater-se à “matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito” (formulação do artigo 511º, nº 1, do C.P.C. que vigorou até 1/9/2013), aquela factualidade não tem pertinência para a descoberta da maior necessidade da casa de morada de família de um dos ex-cônjuges sobre a do outro.
XV – Devem assim aqueles factos serem considerados «NÃO PROVADOS» ou, em alternativa, serem considerados irrelevantes para a matéria fáctica a apurar.
XVI – Quanto aos factos provados em 6), 9) e L), resultou manifestamente falso da prova testemunhal – incluindo uma testemunha da A. – produzida em audiência e especificada supra que o Requerido não contribuísse com os parcos proventos que obtivesse para as despesas do agregado familiar, antes que este, sempre que obtivesse algum rendimento, com ele contribuía para as despesas do seu agregado.
XVII – Destarte, deve-se consignar no facto provado 6) que «O Réu, sempre que efectua biscates ou obtinha qualquer rendimento, contribuía para as despesas domésticas»; no facto provado 9) que «O agregado da requerente, além dos contributos que o Requerido vai prestando, tem ainda um contributo regular mensal da filha destes D…»; e, no facto provado L), que «A filha de A. e R., D…, assim como o seu neto ainda menor, passaram a integrar o agregado familiar, sendo que não só essa filha se sustenta a si e ao neto de A. e R. como ainda contribui para as despesas do agregado».
XVIII – No que concerne ao facto provado em 8), não se pode perder de vista que a quantia que a Requerente indicou ao constituir a sua causa de pedir (9,78€/mês), por verdadeira, foi aceite pelo Requerido, sendo com absoluta surpresa e estranheza que se compulsa a declaração de prova de que o valor daquela renda mensal se cifre em 33,34€.
XIX – A mera indicação, feita na sentença recorrida, do documento que alegadamente suporte a aludida declaração não justifica a sua comprovação, além de que aquele, junto pela Requerente e sem alegação cabal das razões subjacentes a hipotético aumento, se reporta ao mês de Janeiro de 2014, mais nenhum elemento documental tendo sido junto relativamente aos meses de Abril de 2012 (data de início do presente incidente) até Abril de 2013 (data da realização da audiência de discussão e julgamento), como aos meses corridos desde Abril de 2013 até Abril de 2014 (data da prolação da sentença recorrida), pelo que carece de sentido que, dos 24 meses em que a presente lide decorreu, sentença revidenda se louve em documento relativo a apenas um (1) daqueles, mesmo ultrapassando a alegação da própria Requerente.
XX – Por outro lado – e mesmo que assim se não decida –, o que o documento de fls. 121 comprova é o pagamento – de 33,34€ de renda alusiva ao mês de Janeiro de 2014 – por parte do ora recorrente!
XXI – Deste modo, não se pode aceitar a quantia constante da prova do facto 8), devendo julgar-se no sentido de a mesma se cifrar em 9,78€, ou, se assim se não entender, aceitando-se o suporte naquele documento para a comprovação do facto provado 8), deve dar-se como provado que «Tem sido o requerido quem tem pago o valor da renda, no valor atual de €33,34 mensais (fls. 121)» ou, se assim se não entender, que «Foi o requerido quem pagou o valor da renda do mês de Janeiro de 2014, no montante de €33,34».
XXII – Relativamente ao facto provado em 13), diz-se que a Requerente aufere rendimentos mensais que não ultrapassam, em média, os €200, quando a prova produzida demonstrou exuberantemente que tal valor peca por defeito e em grande margem.
XXIII – O corolário lógico dos elementos citados supra e conjugados entre si, isto é, o teor dos depoimentos prestados e estes conjugados com as regras da experiência e da lógica determinam que podia o Tribunal, embora sem encontrar um valor exacto, concluir com absoluta segurança que «a Requerente trabalha em limpezas domésticas, auferindo uma média mensal não inferior a 400 euros», sentido no qual deve ser julgado o quesito em apreço.
XXIV – Por outro lado, entendemos ter o Tribunal a quo irrelevado factos que foram apurados e que eram determinantes para as várias soluções de direito plausíveis, designadamente a situação económica de A. e R., em ordem a apurar qual das partes carece mais da atribuição da casa de morada de família, necessariamente em detrimento da parte com melhor situação económico-financeira e social.
XXV – Foi produzida laboriosa prova, que se transcreveu e citou supra, por forma a que o Tribunal o determinasse, e não o fez com a singela, vaga, genérica – e conveniente – menção de que “Não se prova: Toda a restante matéria alegada por um e por outra”.
XXVI – Atento o critério estabelecido pelo artigo 1793º do C.C., incumbia ao Tribunal a quo a declaração de prova do cônjuge com a melhor condição financeira e social e ainda que tivesse a maior viabilidade de reconstruir a sua vida noutra habitação que não a objecto destes autos, sendo forçoso concluir – em face dos elementos documentais carreados para os autos e dos depoimentos citados tanto em II supra, como no capítulo III supra – que a necessidade da Requerente B…, confrontada com a da do Requerido C…, é consideravelmente inferior e mais sacrificável que a deste.
XXVII – A pertinência da prova de tal quesito fáctico revela-se – fosse em que sentido fosse – na necessidade de a ele o Tribunal subsumir o direito aplicável, tal como se revelante se mostra às soluções de direito que ambas as filhas de A. e R. são já maiores de idade, com a sua formação pessoal completada, pelo que (mais que não fosse, em abstracto) não são dependentes dos seus pais.
XXVIII – Deve assim ser consignado como provado que «A Requerente, fruto dos seus proventos e da sua integração social, tem melhor situação económico-financeira do que o Requerido e melhor viabilidade de estabelecer a sua normal vivência sem que lhe seja atribuída a casa de morada de família» e que «Ambas as filhas de Requerente e Requerido são já maiores de idade e com formação completada».
XXIX – Na crítica à motivação da sentença recorrida na sua parte jurídica dão-se por integralmente reproduzidos, brevitatis causa, os argumentos expendidos quanto ao recurso da matéria de facto, nomeadamente (mas sem exclusão dos demais) os atinentes aos factos considerados não provados.
XXX – Compulsado o substracto da mesma, afigura-se-nos inequívoco que a parca fundamentação aduzida na sentença revidenda a este propósito não é, sequer, susceptível de produzir convencimento sobre as razões que determinaram a decisão proferida.
XXXI – Devidamente escalpelizada a fundamentação deste particular, resulta que a sua maior parte é uma introdução abstracta ao regime aplicável (supostamente, «introdução» é um trecho breve, e não o corpo maior de um texto), seguida de um brevíssimo parágrafo com singela referência a alguns factos provados, para a seguir se afirmar – com toda a peremptoriedade! – que “não há dúvidas” do sentido a decidir!
XXXII – Mas isto sem a devida subsunção dos factos ao direito, sem demonstração da aplicação dos factos às várias soluções plausíveis da questão de direito, sem demonstração do raciocínio que conduziu ao detrimento das soluções não acolhidas na decisão final; ao invés, o que resulta é uma decisão que opta por uma preferência sem a justificar, demonstrar e argumentar de maneira a que se torne inquestionável, uma decisão formal, que se impõe apenas pela autoridade de quem a emana, pelo que o que mais pode restar são dúvidas.
XXXIII – Enferma assim a douta sentença revidenda, e dando aqui por integralmente reproduzidas a doutrina e a jurisprudência a este respeito citadas supra, de manifesta falta de fundamentação, o que lhe determina nulidade – que expressamente se alega e invoca para todos os efeitos legais, nos termos do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 615º do C.P.C. –, bem como inconstitucionalidade por violação do preceituado no nº 1 do artigo 205º da Constituição da República Portuguesa, devendo como tal ser declarada.
XXXIV – Sem prescindir, tendo o recorrente demonstrado a errada interpretação e aplicação do direito compulsada na douta sentença, pugna por decisão que, à luz dos critérios do artigo 1793º, se revele justa.
XXXV – Caso não proceda a requerida alteração da matéria de facto, crê o recorrente ser ostensiva a sua paupérrima e precaríssima situação económica, designadamente comparada com a da recorrida, o que impõe o julgamento de ser ele quem apresenta maior necessidade na atribuição requerida.
XXXVI – Na procedência do recurso quanto à matéria de facto, a superioridade dos proventos e da sua capacidade de obtenção por parte da recorrida, bem como o estabelecimento de uma nova relação afectiva, demonstram uma maior capacidade da Requerente em se estabelecer sem que lhe seja atribuída a casa que foi morada da família do que aquela que caracteriza o Requerido.
XXXVII – Ao que acresce, como na hipótese antecedente, a veemente e vital carência do Requerido por uma habitação consentânea com os seus exíguos – ou inexistentes! – rendimentos, numa proporção que não assiste à Requerente.
XXXVIII – Por fim, não se podem perder de vista os argumentos jurídicos expendidos pela A. no petitório e dos quais o Tribunal a quo fez tábua rasa, mas que se impunha que conhecesse.
XXXIX – Trazendo-se aqui à colação os preciosos ensinamentos do douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado supra e que encontra plena pertinência aos moldes do caso dos presentes autos, impõe-se a solução propugnada pelo ora Recorrente, a “única adequada à situação dos autos, visto ser a requerente quem, nitidamente, em mais difícil situação económica se encontra, e quem, a ter de abandonar a casa, mais dificilmente conseguiria obter outra habitação”.
XL – Sendo certo que uma das partes nos presentes autos terá de ser preterida, a ponderação a que se deve proceder é a da situação económica e social que impõe ao Tribunal maior tutela do direito.
XLI – Nessa esteira, não só se reitera a precaríssima condição do ora recorrente, como também se salienta inexistir, na douta sentença revidenda, qualquer explicação ou argumentação atinente à preterição dos interesses do Requerido – ou seja, a demonstração que o recorrente ora fez de que a Requerente fica consideravelmente menos prejudicada com aquela preterição do que o Requerido.
XLII – Deve, assim, concluir-se que, à luz dos preceitos legais vigentes sobre a situação sub judice, a justiça se realiza com a atribuição da casa de morada de família ao ora Recorrente.
XLIII – Ao decidir como decidiu, a douta sentença – além das normas que, violadas, determinam a declaração das nulidades invocadas supra – violou o disposto nos artigos 1793º; 1105º, nº 2, e 335º, ambos do Código Civil, bem como o preceituado nos n.os 3 e 4 do artigo 607º do C.P.C.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso colocam este Tribunal perante o dever de resolver as seguintes questões:
i) Se a sentença é nula, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do novo Código de Processo Civil, por falta de fundamentação de facto e de direito.
ii) Se houve erro na apreciação da prova e deve ser alterada a matéria de facto.
iii) Se as circunstâncias factuais do caso concreto justificam que o arrendamento da casa de morada de família seja atribuído ao requerido.

III. Da nulidade da sentença:
O recorrente sustenta que a sentença recorrida não cumpriu o dever de fundamentação e, por isso, é nula por falta de fundamentação (artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil) e enforma de inconstitucionalidade por violação do n.º 1 do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa.
No que concerne à inconstitucionalidade o recorrente olvida que o que pode padecer do vício da ofensa a disposições ou princípios constitucionais são as normas legais aplicadas ou o modo como as mesmas são interpretadas aquando da sua aplicação na decisão judicial. Nessa medida, não existem decisões inconstitucionais, existem normas inconstitucionais por si ou em função do modo como são interpretadas na decisão que as aplica. Pode invocar-se a inconstitucionalidade de uma norma aplicada na decisão, seja por si mesma ou em função do modo como foi interpretada e aplicada na decisão, não pode invocar-se a inconstitucionalidade da decisão em si mesma.
O juízo de inconstitucionalidade que venha a recair sobre as normas, não torna a decisão que as aplicou nula, obriga sim à reformulação da decisão expurgando-a da norma inconstitucional aplicada ou da interpretação da mesma que mereceu esse juízo de desconformidade à Constituição. Assim, não vindo especificada pela recorrente qual a norma (ou a interpretação de que norma) concretamente aplicada na decisão que viola o disposto no n.º 1 do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa, não pode deixar de soçobrar de imediato esta questão suscitada no recurso.
No tocante à nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto também se nos afigura que o recorrente carece de razão porquanto não são confundíveis o vício da falta de fundamentação da sentença geradora do vício da nulidade da sentença e o vício da falta de fundamentação da decisão da matéria de facto cuja consequência e regime está previsto no artigo 662.º, n.º 2, alínea d), do novo Código de Processo Civil.
Como sabemos, no anterior Código de Processo Civil eram distintos e estavam separados no tempo o despacho com a decisão sobre a matéria de facto e a sentença. Naquele despacho o Juiz decidia a matéria de facto, declarando quais os factos que o tribunal julgava provados e quais os que julgava não provados e, em sede de motivação, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (artigo 653.º, n.º 2, do Código de Processo Civil). Na sentença a elaborar posteriormente o Juiz não tinha de repetir esse passo, bastava-lhe indicar os factos que foram julgados provados e que irão servir de fundamentação de facto da decisão a proferir.
Também eram distintos os vícios daquele despacho e os vícios da sentença. Relativamente à decisão da matéria de facto, a lei previa que essa decisão podia padecer de quatro vícios: a deficiência da resposta, a obscuridade da resposta, a contradição entre as respostas e a falta de motivação da decisão. Uma vez lida a decisão e feito o exame da mesma pelos mandatários, estes podiam reclamar contra a deficiência, obscuridade ou contradição da decisão ou contra a falta da sua motivação, cabendo ao tribunal decidir as reclamações apresentadas (artigo 653.º, n.º 4, do antigo Código de Processo Civil).
Podia, porém, suceder que esses vícios não fossem objecto de reclamação e/ou não fossem sanados pelo tribunal e fosse proferida sentença com a decisão da matéria de facto a padecer de tais vícios. Nessa situação, cabia à parte suscitá-los no recurso da sentença, mediante impugnação da decisão da matéria de facto.
Feita essa impugnação, havia que distinguir os vícios. Se este fosse o da falta ou insuficiência da motivação da decisão, a Relação podia, a requerimento da parte, determinar que o tribunal de 1.ª instância a fundamentasse devidamente (artigo 712.º, n.º 5, do Código de Processo Civil) e, feita essa melhoria da fundamentação, passava-se ao conhecimento do restante objecto do recurso.
Se, pelo contrário, o vício consistisse em deficiência, obscuridade ou contradição da decisão, a Relação confrontava-se com duas possibilidades: se estivessem no processo todos os elementos probatórios que serviram de base à decisão, a Relação devia proceder à correcção da decisão introduzindo na matéria de facto as modificações correspondentes e prosseguindo para a apreciação do restante objecto do recurso; se a Relação não dispusesse da totalidade desses elementos, anulava a decisão proferida na 1.ª instância e, por inerência, a sentença, regressando os autos à 1.ª instância para repetição do julgamento na parte afectada (artigo 712.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).
Em qualquer das circunstâncias a sentença não era nula, podia era existir um vício, prévio à sentença e prejudicial em relação a ela, que era específico da própria decisão da matéria de facto e cujos efeitos ou eram sanáveis, pela Relação ou por mero aperfeiçoamento incidental da 1.ª instância, ou não eram sanáveis, caso em que determinavam o regresso dos autos à fase do julgamento com a inutilização do processado posterior. A falta de fundamentação da decisão da matéria de facto não tinha pois o regime dos artigos 659.º, n.º 2, e 668.º, n.º 1, alínea d), do antigo Código de Processo Civil, mas o estabelecido no artigo 712.º, n.º 5, do mesmo diploma, que regia precisamente sobre o problema de a decisão estar ou não devidamente fundamentada.
Sucede que uma das alterações introduzidas na estrutura do processo declarativo comum pela reforma do Código de Processo Civil proveniente da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, consistiu na eliminação do “momento processual exclusivamente reservado para uma pronúncia do juiz sobre a matéria de facto”, passando a ser “na própria sentença, em sede de fundamentação de facto, que o juiz deverá declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, por referência à prova produzida, por um lado, e por referência aos demais elementos dos autos, por outro” – cf. Exposição de Motivos da proposta de lei n.º 113/XII –.
Em consonância com esse desiderato o artigo 653.º do antigo Código, que regia sobre o julgamento da matéria de facto antes da elaboração da sentença, deixou de ter correspondência no novo Código, e o artigo 607.º do novo Código, que sucedeu ao artigo 659.º do antigo e rege sobre a elaboração da sentença, passou a conter, nos seus números 4 e 5, normas próprias sobre a decisão da matéria de facto e sua motivação.
Por outro lado, o artigo 615.º do novo Código, correspondente ao artigo 668.º do antigo, manteve as causas de nulidade da sentença tal qual as mesmas eram definidas no antigo Código, com excepção apenas do aditamento das situações de ambiguidades ou obscuridade que tornem a decisão ininteligível que antes eram fundamento do pedido de aclaração da sentença e que com a eliminação do incidente da aclaração passaram a ser fundamento de nulidade da sentença.
Finalmente o artigo 662.º do novo Código, relativo ao modo como a Relação pode conhecer dos erros ou vícios da decisão da matéria de facto, prevê que a Relação pode anular a decisão da 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados. O mesmo regime, portanto, que vinha dos nos. 4 e 5 do artigo 712.º do antigo Código.
Perante esta evolução legislativa, a motivação que lhe subjaz e a manutenção da previsão dos vícios da decisão da matéria de facto e da sentença propriamente dita e do regime de conhecimento dos mesmos pela Relação, cremos bem que se mantém o regime que vigorava no anterior Código de Processo Civil:
i) Existe falta de fundamentação de facto da sentença, gerando a nulidade desta, nos casos em que a sentença não exibe os factos em se baseia a solução jurídica levada à decisão;
ii) Se da sentença constam os factos a que a decisão fez aplicação do direito, não falta aquela fundamentação nem a sentença é nula;
iii) Se a fixação da matéria de facto, que incorpora a sentença mas constitui um momento prévio à fundamentação de facto da sentença padecer de deficiência, obscuridade, contradição ou falta de motivação da decisão, segue-se o regime do artigo 662.º, n.º 2, alíneas c) e d), do novo Código de Processo Civil, cabendo à parte interessada, no recurso da sentença, o ónus de impugnar a decisão da matéria de facto e sustentar a presença desses vícios;
iv) Confrontada com essa arguição (ou mesmo oficiosamente), a Relação só pode anular a decisão se não tiver à sua disposição todos os meios de prova que lhe permitiriam sanar, por si mesma, a deficiência, obscuridade, contradição;
v) Nos demais casos (o vício é um desses, mas a Relação tem à sua todos os meios de prova; o vício é a falta de fundamentação) a Relação não pode anular a decisão da 1.ª instância, cabendo-lhe sanar ela mesma o vício, excepto se se tratar de falta da “devida” fundamentação caso em que poderá ordenar à 1.ª instância que acrescente a fundamentação em falta, prosseguindo depois com o conhecimento do objecto do recurso.
Nessa medida, a arguição pelo recorrente da nulidade da sentença recorrida improcede necessariamente. Embora o recorrente não o haja requerido, uma vez que por força do n.º 2 do artigo 662.º do novo Código de Processo Civil se trata de matéria de conhecimento oficioso, o que esta Relação deve decidir é se é necessário determinar que a 1.ª instância fundamente devidamente a resposta a algum facto essencial para o julgamento da causa.
A decisão da matéria de facto foi fundamentada pela Mma. Juíza a quo em dois momentos distintos da sentença. A circunstância de essa fundamentação estar dividida em duas passagens separadas é algo que apenas contende com a elegância da peça (elemento ao qual se deve, por certo, atribuir importância, mas que, como é obvio, não perturba a materialidade da peça jurídica) e não representa qualquer vício ou irregularidade.
A Mma. Juíza a quo escreveu que a sua decisão de julgar provados os factos que a seguir enuncia se deveu “aos elementos constantes dos autos e processo principal, nomeadamente sentença de fls. 38-42 de divórcio, documentos de fls. 7, 8; documentos de fls. 9-13 (cópia do contrato de arrendamento da casa de morada de família), informação de fls. 50 e 51 (comprovativo do não relação laboral da requerente com as entidades aí referidas), informação de fls. 53 (dados da segurança social relativos ao requerido); cópia do despacho de acusação, onde consta a medida de coação imposta ao requerido, e à prova testemunhal produzida, sendo que as testemunhas arroladas pela requerente e requerido têm conhecimento pessoal e direto das condições de vida quer da requerente quer do requerido, nomeadamente que a requerente efetua trabalhos na área da limpeza, e o requerido faz biscates na área da agricultura e da construção civil; as testemunhas arroladas pela requerente e as duas testemunhas arroladas pelo requerido confirmaram que o mesmo continua aparecer alcoolizado em casa, que é a requerente quem suporta a quase totalidade das despesas com o agregado familiar”.
Mais à frente, após especificar os factos provados e declarar não provada “toda a matéria restante”, acrescentou que “O tribunal baseou-se na experiência do julgador na apreciação dos factos e análise critica que deles faz e ainda nos documentos juntos, tudo com a preocupação da maior isenção e na descoberta da verdade material dos factos em ordem a decidir com a máxima justiça, ainda que esta possa, aos olhos de uma das partes ou de ambas, não ter sido encontrada. Os factos dados como provados e não provados assentam sobretudo da análise dos documentos juntos e nos que foram admitidos. O Tribunal ponderou os documentos e na medida em que se mostraram verdadeiros e credíveis e que alicerçaram a convicção quanto aos factos assentes. Os factos não provados resultam da total ausência de prova a esse respeito”.
Reconhecemos que a fundamentação exposta recorre a lugares comuns da formação da convicção do julgador que não representam fundamentação específica e suficiente para nenhum caso concreto, constituindo somente uma descrição das coordenadas do processo mental de decisão e não uma explanação individualizada do que se extraiu de cada um dos meios de prova e uma explicação específica dos motivos pelos quais se entendeu atribuir-lhes capacidade de demonstração do facto e do grau de demonstração do facto que se lhes atribuiu, que é, no fundo, aquilo que constitui a fundamentação de uma decisão da matéria de facto.
Todavia, lendo em conjunto os dois segmentos da fundamentação apresentada cremos bem que esta tem um grau de concretização suficiente para que os destinatários possam, se não conhecer na íntegra o processo lógico da decisão do julgador, pelo menos compreender os elementos probatórios a que ele se ateve. Sendo, no caso, curta a matéria de facto e reduzidos os meios de prova produzidos, a singeleza da fundamentação apresentada não obstou a que o recorrente pudesse impugnar a decisão da matéria de facto (até porque para o efeito lhe bastou assinalar os meios de prova que motivam decisão diversa da que foi proferida) nem impede que esta Relação, confrontada com essa impugnação, tenha de formar a sua própria convicção acerca dos meios de prova produzidos (tarefa para a qual acaba por ser inócua a fundamentação produzida pela 1.ª instância ou aquela que, na sequência da determinação de aperfeiçoamento, esta lhe poderia ainda acrescentar). Eis porque se nos afigura não dever ordenar a baixa dos autos à 1.ª instância para aperfeiçoamento da motivação da decisão da matéria de facto.
No que concerne à nulidade por falta de fundamentação de direito é manifesta a improcedência do recurso.
Em primeiro lugar, porque constitui jurisprudência[1] e doutrina[2] assente que só gera a nulidade da sentença a absoluta falta de fundamentação de direito, isto é, quando a sentença não contém o mínimo de fundamentação de direito, o que não se confunde com a exposição pelo juiz de uma fundamentação errada, nem com a exposição de uma fundamentação espartana, pobre ou mesmo medíocre, sendo certo que, embora seja conveniente fazê-lo, a decisão nem tem de indicar os preceitos legais de que faz aplicação, bastando para o efeito que se perceba da fundamentação quais as regras ou princípios jurídicos em que se apoia.
Em segundo lugar porque a sentença recorrida apresenta claramente uma fundamentação de direito bastante para a decisão que constitui o seu epílogo. Nela, a Mma. Juíza a quo, de modo espartano mas seguramente compreensível e apreensível, explica os critérios legais de que depende a atribuição da casa de morada da família e faz a aplicação desses critérios aos factos que julgou provados, explicando perfeitamente a sua interpretação das condições económicas dos ex-cônjuges e o modo como as mesmas integram aqueles critérios.
Em suma e concluindo a sentença não enferma das nulidades que lhe vêm injustamente assacadas.

IV. Da impugnação da decisão da matéria de facto:
Pretende o recorrente que devem ser julgados não provados os factos dos pontos 2 a 5 do elenco dos que a 1.ª instância julgou provados. Para o efeito, argumenta que o tribunal não podia atender aos factos que foram julgados provados na acção de divórcio, a que a presente está apensa, porque aqueles só foram ali considerados provados por confissão do réu e esta não tem valor neste processo e porque de qualquer modo a matéria não tem interesse para efeitos da presente acção.
Esta alegação do recorrente, queremos crer, só pode dever-se a falta de atenção. A acção de divórcio é uma acção sobre o estado das pessoas em que estão em causa factos relativos a direitos indisponíveis que são, como tal, insusceptíveis de confissão. Por isso, basta ler o processo de divórcio para verificar que, como não podia deixar de ser, os factos que ali foram julgados provados o foram após audiência de julgamento com produção de meios de prova e com fundamento na prova produzida, conforme motivação expressa da própria sentença, e não na sequência de qualquer confissão do réu (!).
O recorrente está igualmente equivocado quando cita o artigo 421.º do Código de Processo Civil para sustentar que os factos julgados provados no processo de divórcio não podem ser aproveitados neste processo.
O referido normativo não se refere ao aproveitamento de factos noutro processo, refere-se ao aproveitamento de meios de prova, o que é substancialmente diferente. Os factos que num processo podem ser aproveitados são os alegados pelas partes e os que o tribunal pode levar em consideração em função dos meios de prova produzidos ou, sendo caso disso, averiguar oficiosamente. A isso se referem os artigos 5.º (processo comum) e 986.º (processos especiais de jurisdição voluntária) do Código de Processo Civil. Já os meios de prova a considerar num processo são, em princípio, apenas os nele produzidos, como sucede com qualquer outro acto compreendido na tramitação do processo.
O artigo 421.º constitui uma excepção a esta regra, ao permitir que a prova por depoimentos e a prova pericial, mas já não os demais meios de prova, possam ser aproveitados noutro processo e, portanto, aí possam ser levados em consideração na fundamentação do tribunal sobre a matéria de facto que lhe é lícito conhecer no novo processo, apesar de terem sido produzidos num processo anterior. Trata-se, portanto, não de uma situação em que os factos tenham valor para além do processo onde foram produzidos, mas em que os meios de prova podem ser atendidos fora do processo onde foram produzidos, naturalmente para demonstração dos factos que constituem o objecto deste.
As únicas objecções que a própria norma faz a esse aproveitamento prendem-se com o meio de prova do depoimento de parte quando o mesmo gerou a confissão de factos, a qual fora do processo onde foi produzida já só pode valer como confissão extrajudicial, e com o regime de produção dos meios de prova em ambos os processos, sendo que se no primeiro esse regime oferecer menor garantia do que no segundo, neste a prova produzida no primeiro valerá apenas como princípio de prova. Não atribui, pois, a norma, ao contrário do que defende o recorrente, qualquer relevância aos interesses das partes em jogo para efeitos da sua aplicabilidade, esta depende somente da circunstância de no primeiro dos processos o regime de produção da prova assegurar às partes garantias de intervenção nessa produção e de condicionamento do resultado da actividade probatória não inferiores às do segundo processo, situação que se verificava manifestamente no caso atendendo a que o processo principal é uma acção de divórcio e este um processo de jurisdição voluntária.
O que permitiu e bem o aproveitamento dos factos julgados provados na acção de divórcio não foi o artigo 421.º do Código de Processo Civil mas antes a chamada autoridade do caso julgado, ou seja, a repercussão entre as partes no processo do caso julgado formado pela decisão que decretou o divórcio com fundamento nos factos que ali se apuraram, a qual se estende para além do próprio processo e impede as mesmas partes de discutirem depois noutra acção os mesmos fundamentos a propósito de uma questão relativamente à qual a anterior se apresente como questão prejudicial (cf. por todos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.05.2014, relatado por João Bernardo no processo nº 1722/12.9TBBCL.G1.S1, in www.dgsi.pt). De todo o modo, como esta não é a questão suscitada pelo recorrente para fundamentar a alteração da decisão da matéria de facto, a mesma está fora do objecto do recurso, não cabendo aqui tomar posição sobre a mesma.
Sustenta ainda o recorrente que esta matéria não é relevante para a decisão de mérito pelo que deve ser julgada não provada ou desconsiderada na decisão. Não tem razão, contudo, pois a falta de relevância de um facto para a decisão de mérito nunca constituirá razão para o facto ser julgado não provado, quando muito para o tribunal não se pronunciar sobre o mesmo, e, como veremos oportunamente, o facto em apreço tem mesmo relevância para a decisão de mérito.
O recorrente impugna de seguida a decisão relativa aos factos 6, 9 e 14, reclamando a alteração da redacção desses factos de modo a traduzir que ele também contribuía para as despesas domésticas e que isso também sucedia com a filha que integra o agregado familiar, a qual se sustenta a si própria e ao seu filho.
Ouvimos a totalidade dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento. A testemunha que revelou melhor razão de ciência para depor sobre tais factos (como o próprio mandatário referiu no decurso da inquirição) é a filha da requerente e do requerido (E…). No seu depoimento, esta relatou (parte do depoimento que o recorrente expurgou da respectiva transcrição) que o pai se alimenta dos géneros alimentícios que a mãe compra com o produto exclusivo dos seus rendimentos a fazer limpezas, que a irmã está a viver em casa dos pais com um filho menor mas só entrega €50 mensais para as despesas, sendo a mãe que suporta o resto, que o pai não contribui para as despesas com água ou luz. As testemunhas F… e G…, respectivamente filha e mulher de um falecido irmão do requerido, as quais vivem na Maia e não em …, mostraram à saciedade que apenas têm conhecimento do que lhes foi contados pelos próprios e não por conhecimento directo, pelo que a afirmação de que o requerido depois de ter ficado sem emprego e ter passado a fazer apenas alguns biscates ainda comprava algumas coisas para casa (sendo certo que a contribuição para as despesas da casa não se pode esgotar numa compra ocasional de um qualquer produto alimentar) surge não apenas como desprovida de razão de ciência bastante e mesmo contrária à realidade das coisas uma vez que sendo alcoólico, estando frequentemente embriagado e tendo como única fonte de rendimento os biscates que faz (e que as testemunhas acentuam que são ocasionais e relativos a tarefas indiferenciadas), se mostra altamente provável que todo o dinheiro que consiga arranjar seja gasto em bebidas alcoólicas, razão pela qual, aliás, a filha E… revelou que chegou a ter de levar o pai ao médico e ser ela a comprar-lhe os medicamentos.
Em resultado da avaliação destes depoimentos e pelas razões acabadas de aduzir, afigura-se-nos que a decisão relativa ao facto 6 está correcta e deve ser confirmada (que era assim à data do divórcio já estava aliás decidido no próprio processo de divórcio).
No tocante aos factos 9 e 14 justifica-se alterar os factos julgados provados de modo a incluir nos mesmos a participação de €50 mensais da filha que vive na casa de morada de família. Assim, altera-se a redacção destes factos, passando esta a ser a seguinte:
“9) O agregado da requerente conta tão-somente com o vencimento desta e com o valor de €50 que a filha D… lhe entrega mensalmente, uma vez que o requerido não contribui com qualquer quantia para o mesmo.
14) A filha da requerente e do requerido, D…, assim como o filho desta, ainda menor, passaram a integrar o agregado familiar, entregando aquela à requerente o valor de €50 mensais, e suportando a requerente as demais despesas.”
O recorrente impugna depois a decisão de julgar provado o facto 8. Pensamos que neste particular o recorrente não tem razão.
A circunstância de a requerente ter alegado que o valor da renda era de €9,78 não impedia o tribunal de julgar provado um valor superior, caso viesse, como veio a apurar que a renda tinha um valor superior, uma vez que o facto em si mesmo, relevante para a decisão de mérito, é a obrigação de pagamento de renda pelo gozo da casa de morada de família enquanto o valor da renda é a mera expressão monetária desse encargo. Acresce que nos termos do n.º 1 do artigo 611.º do Código de Processo Civil sem prejuízo das restrições quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão. E, finalmente, que sendo a acção um processo de jurisdição voluntária, o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações que julgar convenientes (n.º 2 do artigo 986.º). Assim, sendo o valor da renda passível de actualização regular e tendo decorrido entre a instauração da acção e a prolação da sentença dois anos, nada obstava a que o tribunal julgasse provado o valor da renda em vigor no momento mais próximo possível da sentença.
Não é igualmente correcto que o valor alegado pela requerente na petição inicial tenha sido aceite pelo requerido na contestação e, consequentemente, se deva considerar definitivamente confessado e por isso não carecido de prova. Com efeito, no artigo 20.º da contestação o requerido impugnou expressamente o artigo 10.º da petição inicial onde a requerente alegou o valor da renda, muito embora se deva reconhecer que já não impugnou o artigo 12.º onde entre outros factos se repete a referência ao montante da renda.
Por outro lado, o documento de folhas 121 parece perfeitamente suficiente para julgar provado o valor da renda actualizado à data de Janeiro de 2014, porquanto foi emitido pela entidade que tem a qualidade de senhorio (a Câmara Municipal), menciona que constitui recibo do pagamento da renda de uma habitação no conjunto habitacional de … que é o local de residência das partes (face aos rendimentos que possuem e residência que têm não é razoável supor que as partes possam ter outra habitação arrendada) e está devidamente numerado e carimbado pelos serviços camarários pelo que é de presumir a sua autenticidade e fidelidade, já que não cremos que a Câmara Municipal pudesse passar um recibo de uma quantia que não tivesse recebido ou receber uma renda social por valor muito diferente daquele que lhe é devido.
Já o facto de mencionar como beneficiário do documento o requerido em vez da requerente não é significativo porquanto é conhecida a prática de colocar no recibo de renda não o nome da pessoa que efectua o pagamento mas o primeiro dos arrendatários (que é o requerido) e não de todos estes, já que o objectivo primacial do recibo é o de servir de comprovativo do cumprimento da obrigação de pagamento da renda. Por isso, afigura-se-nos bem mais relevante que seja a requerente a portadora do documento, num sinal claro de que foi ela a efectuar o pagamento que a Câmara comprova através do recibo que lhe entregou. Não pode deixar, aliás, de se anotar a contradição (entre outras) em que incorre o recorrente: se, como alegou, não tem emprego, não tem rendimentos, nem recebe subsídios, como pode pretender que é ele que paga a renda?
Por todas estas razões entendemos dever manter a decisão relativa a este facto.
No tocante ao facto 13 já nos parece que o recorrente tem razão. Com efeito, a prova produzida não permite de forma alguma balizar em “não mais de €200 mensais” o valor médio dos rendimentos da requerente. Pelo contrário, foi referido nos depoimentos que a requerente é trabalhadora, faz limpezas para várias “patroas” ou em várias casas e ainda a limpeza de zonas comuns de pelo menos três condomínios, além de que a filha declarou que mesmo quando o pai ficou desempregado nunca lhes faltou comida em casa, num sinal claro de que a requerente obtém necessariamente mais de €200 mensais de rendimentos do trabalho. Muito embora o processo não forneça elementos seguros para quantificar o valor dos seus rendimentos e estejamos perante uma actividade na qual não é habitual a emissão de facturas ou de recibos, é razoável aceitar o valor apontado pelo recorrente de €400 mensais uma vez que estes representam apenas €100 por semana, ou seja, um rendimento correspondente a somente 20 horas de trabalho semanais (4 horas por dia útil) à razão de €5/hora que é absolutamente compatível com o número de recebedores desse trabalho antes mencionados.
Reclama ainda o recorrente que se julgue provada matéria que foi julgada não provada.
Ao indicar o que, a seu ver, deve ser julgar provado, o recorrente afirma que “deve ser consignado como provado que «A Requerente, fruto dos seus proventos e da sua integração social, tem melhor situação económico-financeira do que o Requerido e melhor viabilidade de estabelecer a sua normal vivência sem que lhe seja atribuída a casa de morada de família»”. É fácil de ver que esta afirmação é puramente conclusiva, não descrevendo um acontecimento do mundo empírico (um facto), mas encerrando somente uma formulação opinativa ou juízo de valor a partir de uma realidade concretamente não descrita e, portanto, insusceptível de verificação. Como é óbvio, essa é a conclusão que o tribunal deve poder retirar a partir de factos concretos que tenha apurado, pelo que não pode constar do elenco da matéria de facto, destinado a conter factos e não julgamentos.
Quanto às filhas da requerente e do requerido, a matéria de facto provada é bastante para concretizar devidamente que uma das filhas ainda faz parte do agregado familiar (se a outra filha já não faz parte do agregado nenhum interesse tem acrescentar que é adulta) mas já é mãe e tem inclusivamente rendimentos próprios que lhe permitem comparticipar nas despesas da casa. Não carece, pois, de qualquer acrescento nesse aspecto.

V. Os factos:
Estão definitivamente provados os seguintes factos:
1) Autora e réu encontram-se casados canonicamente, sem convenção antenupcial desde 30 de Dezembro de 1986, tendo-se divorciado por sentença datada de 17.04.2012.
2) Desde há quinze anos a esta parte, o réu com frequência quase diária apresentava-se na casa de morada de família alcoolizado.
3) Dirigindo para autora os seguintes nomes: "andas a polir as esquinas", "vaca", "filha da puta", "parva", "estúpida".
4) Desde o ano de 2010, que o réu agride semanalmente a autora, bate-lhe, causando-lhe lesões que necessitam de tratamento médico, sendo também habitual pô-la fora de casa, não lhe permitindo o regresso à mesma.
5) O réu chega a casa todos os dias bêbado, bate com as portas, amassa as fechaduras, parte os móveis e a louça e tudo que encontra pela frente.
6) O réu apesar de efectuar biscates, não contribui com qualquer quantia para as despesas domésticas.
7) Em 1 de Outubro de 2008 a Câmara Municipal …, celebrou com a requerente e o requerido contrato de arrendamento de Habitação social, relativo à casa de morada de família, sita na Rua …, nº …, ..º Dt-º tipo T3, destinada exclusivamente à habitação dos arrendatários e seu agregado familiar.
8) Tem sido a requerente quem tem pago o valor da renda, no valor actual de € 33,34 mensais.
9) O agregado da requerente conta tão-somente com o vencimento desta e com o valor de €50 que a filha D… lhe entrega mensalmente, uma vez que o requerido não contribui com qualquer quantia para o mesmo.
10) Este agregado tem despesas domésticas relacionadas com os consumos domésticos na ordem dos 73 euros mensais, a que acrescem as despesas com alimentação, vestuário, higiene e medicação da requerente.
11) O requerido saiu de casa de morada de família em Outubro de 2013, por força da medida de coação imposta de afastamento da residência.
12) O requerido efectua biscates, estando à espera da atribuição de rendimento social de inserção.
13) A requerente trabalha em limpezas auferindo uma média mensal de cerca de 400 euros.
14) A filha da requerente e do requerido, D…, assim como o filho desta, ainda menor, passaram a integrar o agregado familiar, entregando aquela à requerente o valor de €50 mensais, e suportando a requerente as demais despesas.

VI. O direito:
Constitui objecto da presente acção (hoje prevista no artigo 990.º do novo Código de Processo Civil) e questão que a final importa decidir definir a qual dos ex-cônjuges, na sequência da dissolução do respectivo casamento por divórcio, deve ser atribuíd[o arrendamento d]a casa de morada de família, a qual não pertence ao casal ou a qualquer dos ex-cônjuges mas a terceiro que com eles celebrou na pendência do casamento contrato de arrendamento.
Com este enquadramento, a questão reclama a aplicação do disposto no artigo 1105.º do Código Civil cuja redacção é a seguinte:
[Comunicabilidade e transmissão em vida para o cônjuge]
1 - Incidindo o arrendamento sobre casa de morada de família, o seu destino é, em caso de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens, decidido por acordo dos cônjuges, podendo estes optar pela transmissão ou pela concentração a favor de um deles.
2 - Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros factores relevantes. (…)
Esta norma possui a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 6/2006, de 27.02, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU).
O seu antecessor é o artigo 84.º do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15.10, cuja redacção era a seguinte:
[Transmissão por divórcio]
1 - Obtido o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, podem os cônjuges acordar em que a posição de arrendatário fique pertencendo a qualquer deles.
2 - Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a situação patrimonial dos cônjuges, as circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa, o interesse dos filhos, a culpa imputada ao arrendatário na separação ou divórcio, o facto de ser o arrendamento anterior ou posterior ao casamento e quaisquer outras razões atendíveis.
A sua fonte próxima é o artigo 1793.º do Código Civil que prevê a situação de a casa de morada de família constituir um bem comum dos ex-cônjuges ou próprio de algum deles e estatui a possibilidade de a mesma ser arrendada a um dos ex-cônjuges para manutenção da morada de família. Na situação anterior prevê-se a transmissão do arrendamento preexistente para um dos cônjuges ou a sua concentração num deles, nesta prevê-se a constituição ex-novo de um arrendamento.
A redacção do artigo 1793.º é a seguinte:
[Casa de morada da família]
1. Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
2. O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.
3 - O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.
Como é fácil de constatar entre o artigo 84.º do RAU e o artigo 1105.º do Código Civil existe uma diminuição do grau de pormenorização dos factores a que o tribunal deve atender para decidir a transmissão ou concentração do arrendamento num dos ex-cônjuges. Enquanto naquele regime a norma legal mandava atender i) à situação patrimonial dos cônjuges, ii) às circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa, iii) ao interesse dos filhos, iv) à culpa imputada ao arrendatário na separação ou divórcio, v) ao facto de ser o arrendamento anterior ou posterior ao casamento e vi) a quaisquer outras razões atendíveis, neste Código a norma legal manda atender i) à necessidade de cada um dos ex-cônjuges, ii) aos interesses dos filhos e iii) a outros factores relevantes.
Apesar dessa evolução do texto legislativo não se nos afigura que, salvo num aspecto, a nova redacção signifique que o tribunal não possa atender aos factores que a lei elencava anteriormente. Desde logo, porque, tal como a anterior, a nova norma manda atender a (quaisquer) outros factores relevantes, nos quais obviamente não podem deixar de ser atendidos aqueles que antes eram observados na decisão.
Depois, porque a interpretação do artigo 1105.º do Código Civil não pode descurar os dados legais fornecidos pelo artigo 1793.º do Código Civil (ex vi artigo 9.º, n.º 1, do mesmo diploma), no qual a utilização do advérbio “nomeadamente” significa que o tribunal deve levar em consideração pura e simplesmente todos os critérios que se mostrem relevantes para a decisão da questão, sendo os especificados na norma porventura os mais relevantes ou decisivos[3], mas não os únicos a atender. O que significa também, necessariamente, que poderão existir outros critérios com valor suficiente para afastar os especificados na norma.
Quando referimos que existe um critério que decididamente não pode mais ser atendido tínhamos em mente o critério da culpa imputada ao arrendatário na separação ou divórcio que o artigo 84.º do RAU elencava. Com efeito, com as alterações ao regime jurídico do divórcio introduzidas pela Lei nº 61/2008, de 31.10, o modelo de divórcio litigioso mudou substancialmente, passou a designar-se por “divórcio sem consentimento de um dos cônjuges” e a poder ser requerido com fundamento em causas objectivas amplas (“qualquer facto que mostre a ruptura definitiva do casamento”), a violação culposa de deveres conjugais perdeu autonomia e deixou de haver declaração de culpa dos cônjuges, pelo que o comportamento das partes na constância do matrimónio é, em geral, tido como irrelevante na determinação dos efeitos da dissolução do casamento[4].
Nessa medida, de novo por aplicação do disposto no artigo 9.º do Código Civil, não parece que deva mais relevar-se para o efeito da atribuição da casa de morada de família subsequente ao divórcio a questão da culpa dos ex-cônjuges no divórcio[5]. O que não significa, contudo, que as circunstâncias que rodearam o divórcio não possam ser chamadas a assumir relevância para a decisão, não enquanto geradoras de um juízo de censura – culpa – sobre um dos cônjuges, mas enquanto critério de justeza da decisão a tomar, que é coisa diversa.
Com efeito, constituindo o procedimento para atribuição da casa de morada de família um processo de jurisdição voluntária, para além do que dispõe o artigo 1105.º do Código Civil, o tribunal está ainda subordinado ao critério de julgamento do artigo 987.º do novo Código de Processo Civil (artigo 1410.º do antigo), ou seja, ao dever de julgar não segundo critérios de legalidade estrita, mas buscando em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna. Afigura-se-nos que a busca da solução conveniente e oportuna não pode descurar uma avaliação da justeza da decisão porquanto o direito não pode propender para decisões que se antevejam como injustas, como representando um benefício injusto para quem está em infracção a regras de convivência social e jurídica. A solução não tem, portanto, de punir o infractor, mas também não deve constituir uma recompensa para o mesmo[6].
Tem isto a ver com o facto de na génese do divórcio e da necessidade de atribuir a casa de morada de família a um dos cônjuges terem estado comportamentos do requerido que se traduzem não apenas uma violação de deveres conjugais, o que seria anódino para o caso, mas sobretudo uma violação ilícita dos direitos de personalidade da requente e da sua própria dignidade enquanto pessoa humana que chega a assumir a natureza de crime de violência doméstica.
Perante isso, pergunta-se, pode o requerido sair beneficiado com a situação e acabar por ficar com a casa arrendada pela Câmara Municipal (ou seja, em condições especiais por motivos de solidariedade social) e ter de ser a requerente, apesar de ser ela a vitima da violência doméstica a sair de casa e procurar uma nova casa para viver? Cremos bem que a resposta pode ser negativa em homenagem precisamente à noção de justiça que, por maioria de razão, tem de imperar em qualquer decisão judicial.
É certo que face aos factos provados o requerido tem maior a necessidade da casa que a da requerente, melhor dizendo, que as suas condições económicas são inferiores às da requerente. Enquanto esta trabalha e aufere um rendimento que lhe permite, embora com dificuldade satisfazer as suas próprias necessidades, o requerido não trabalha e limita-se a fazer biscates onde aufere rendimentos não apurados, além de que tem um problema de alcoolismo que seguramente lhe consome os poucos rendimentos que possa obter.
Sucede, no entanto, que também se provou que o requerido está à espera que lhe seja atribuído o rendimento social de reinserção e que não se provou nada que seja impeditivo da atribuição desse subsídio social ou que obste à procura de emprego por parte do requerente. Como também se provou que a requerente trabalha em limpezas, sinal de que se sujeitou à realização de trabalhos menos valorizados socialmente para poder sobreviver. O que significa que, aceitando embora que o alcoolismo é uma doença, a necessidade de um e de outro parecem afinal também resultado da atitude de um e de outro perante o trabalho, a vida e o que é necessário fazer para sobreviver. Daí que aquelas necessidades não devam ser vistas em abstracto ou numa perspectiva imóvel, mas como algo que pode mudar e para cuja mudança é necessário chamar as partes a contribuir.
Acresce que pese embora as filhas de ambos já sejam maiores, uma delas está a viver na casa de morada de família e tem com ela um filho menor. Tal significa necessariamente que independentemente da idade a filha e o neto da requerente são membros do agregado familiar desta, porquanto partilham com ela a habitação e beneficiam da casa e da alimentação que esta lhe proporciona. A circunstância de a filha ser maior e também mãe, não obsta a essa conclusão porquanto a família é hoje entendida como uma realidade polissémica, não confinada a quadros padronizados e evolutiva. Com a actual situação de crise tornou-se uma realidade comum a manutenção dos filhos em casa dos pais até muito tarde e em idade já bem adulta e mesmo o regresso dos filhos que entretanto se autonomizaram à segurança, apoio e colaboração dos pais e da casa dos pais, recompondo-se famílias cuja composição e estrutura se havia alterado. Não é pois o facto de a filha ser maior e ter já o seu próprio filho que obsta à consideração de que a mesma integra o agregado familiar da requerente.
Provou-se ainda que a filha da requerente apenas contribui com €50 mensais para as despesas domésticas. Esta quantia é insignificante e de modo algum dá para custear as despesas de alimentação da filha e do neto, pelo que a requerente tem necessariamente de suportar ela mesma, com os seus próprios rendimentos, a maior parte das despesas da filha e do neto, coisa que o requerido não poderá fazer face à ausência de trabalho e/ou rendimentos sequer para fazer face às suas despesas. Por essa razão, ao contrário do que o requerido sustenta, não é crível que a filha pudesse perfeitamente passar a viver não com a mãe, mas com o pai, já que nessa situação acabariam por ser os seus rendimentos a suportar despesas do pai em vez de a filha beneficiar dos rendimentos da mãe. No caso, essa conclusão assume particular importância devido à presença no agregado de uma criança menor (o neto) que torna absolutamente imprescindível o apoio da requerente e dificulta que esta possa ser confrontada com a necessidade de arranjar uma outra casa para si, para a filha e para o neto e prescindir da vantagem da renda social da casa de morada de família.
Entendemos, em suma, que ao facto de a necessidade económica do requerido ser superior à da requerente se devem contrapor as seguintes circunstâncias que apontam no sentido da atribuição da casa à requerente: i) esta contribui ainda decisiva e largamente para as despesas de uma filha e de um neto que consigo vivem na casa que era a de morada de família; ii) o nível de rendimentos da requente quando distribuídos por três elementos do agregado familiar justifica perfeitamente a necessidade da manutenção do benefício da renda social relativa à casa; iii) não tendo ninguém a seu cargo, será mais fácil ao requerido obter uma habitação por valores que possa pagar, designadamente com recurso aos mecanismos de apoio social disponíveis e que já requereu; iv) o comportamento do requerido traduzido na ofensa a direitos de personalidade e à dignidade pessoal da então sua mulher (que motivaram mesmo o seu afastamento de casa e da requerente por determinação judicial em processo crime), justifica, do ponto de vista ético-jurídico e dos valores que devem enformar os comportamentos, que o requerido não possa sair beneficiado por ter criado as condições que destruíram a família e, sobretudo, que a vítima de violência seja penalizada com a obrigação de ter de procurar nova casa para viver com a filha e o neto menor.
Tudo sopesado, afigura-se-nos que bem andou a decisão recorrida ao concentrar na requerente o direito ao arrendamento da casa de morada de família, pelo que a mesma deve ser confirmada.

VII. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, por conseguinte, negando provimento ao recurso, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente (tabela I-B).
Em 1.ª instância se deverá dar cumprimento ao disposto no n.º 3 do artigo 1105.º do Código Civil.
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Porto, 5 de Março de 2015.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto188)
José Amaral
Teles de Menezes
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[1] Cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22.01.2004, revista n.º 4278/03, in Sumários, 2004; Acórdão Relação Lisboa, de 01.07.99, in Boletim do Ministério da Justiça 489, pág. 396, Acórdão da Relação de Coimbra de 17.04.2012, processo nº 1483/09.9TBTMR.C1, e de 20.01.2015, processo n.º 2996/12.0TBFIG.C1, ambos in www.dgsi.pt, Acórdão da Relação do Porto de 11.10.2012, processo n.º 1744/05.6TBAMT.P1, in Boletim Interno do Tribunal da Relação do Porto, n.º 44.
[2] Cf. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, 1984, vol. V, pág. 140, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª ed., págs. 687 e 688, Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, pág. 141, Lebre de Freitas, in A Acção Declarativa, 2013, 3ª edição, pág. 333.
[3] Assim os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07-10-2003, Reis Figueira, in www.dgsi.pt, e da Relação do Porto de 14.03.95, in Colectânea de Jurisprudência, ano XX, tomo II, pág. 199).
[4] Apud Jorge Duarte Pinheiro, in Ideologias e Ilusões no Regime Jurídico do Divórcio e das Responsabilidades Parentais, Estudos em Homenagem a Carlos Ferreira de Almeida. Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-02-2012, Hélder Roque, in www.dgsi.pt.
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. IV, 2ª edição, página 570, afirmam que “para se saber a qual dos cônjuges deve ser concedida primazia na ocupação da casa..., a lei refere, com intenção declaradamente exemplificativa, dois factores: as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos dos casal”. E mais adiante: “Não se trata, efectivamente, de um resultado do ajuste de contas desencadeado pela crise do divórcio, que a lei queira resolver ainda com base na culpa do infractor, mas de uma necessidade provocada pela separação definitiva dos cônjuges, que a lei procura satisfazer com os olhos postos na instituição familiar. E o primeiro factor que a lei manda naturalmente considerar para o efeito é o da actual necessidade de cada um dos cônjuges, tendo em conta também, se for caso disso, a posição que cada um deles fica a ocupar, depois da dissolução do casamento, em face do agregado familiar" (sublinhado nosso).
[6] Escreveu Pereira Coelho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 122, pág. 137, que “a lei quererá que a casa da morada de família, decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, possa ser utilizada pelo cônjuge ou ex-cônjuge a quem for mais justo atribuí-la, tendo em conta, designadamente, as necessidades de um e de outro” (sublinhado nosso).