Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5036/15.4T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DÉFICE FUNCIONAL PERMANENTE
DANOS PATRIMONIAIS FUTUROS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÔMPUTO DA INDEMNIZAÇÃO
do Documento: RP201805155036/15.4T8PRT.P1
Data do Acordão: 05/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º828, FLS.72-84)
Área Temática: .
Sumário: I - A indemnização pelos danos patrimoniais futuros decorrentes de um défice funcional permanente deve ser calculada a partir das tabelas normalmente utilizadas para o efeito, com recurso à equidade para correcção e adequação do seu valor ao caso concreto.
II - É de fixar a indemnização por danos patrimoniais futuros quando estes são aceites pelo devedor e resultem parcialmente provados, sendo a sua liquidação feita, em última análise, segundo a equidade.
III - A compensação pelos danos não patrimoniais deve ser fixada equitativamente, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, aludidas no art.º 494.º do Código Civil, e considerando que não deve ser miserabilista, mas significativa, a fim de responder actualizadamente ao comando do art.º 496.º do mesmo Código e constituir uma efectiva possibilidade compensatória.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto - Juiz 1.

Processo n.º 5036/15.4T8PRT.P1
Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto – 2.ª Secção:
I. Relatório
B…, casado, residente na …, Murça, instaurou a presente acção declarativa com processo comum contra a Companhia de Seguros C…, S.A., cuja denominação foi mandada corrigir em face da sua alteração para D… – Companhia de Seguros, S.A., com sede no Largo …, .., Lisboa, pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe:
a) A quantia de 59.967,10€ a título de danos patrimoniais;
b) A quantia de 40.000,00€ a título de danos não patrimoniais;
c) A quantia a liquidar em execução de sentença referente a tratamentos futuros de fisioterapia;
d) Juros de mora à taxa legal sobre todas as quantias peticionadas desde a data de citação e até efectivo e integral pagamento.
Posteriormente, em 13/4/2017, liquidou o pedido formulado na alínea c), reclamando, a título de tratamentos de fisioterapia, a quantia de 1.960,00€ já despendida desde a entrada da PI em juízo até àquela data, e, ainda, a quantia de 54.390,00€ referente a tratamentos de fisioterapia futuros a partir dessa data.
Para esse efeito, alegou que foi vítima de um acidente de viação causado pelo condutor de um veículo segurado na ré, único culpado pelo acidente, do qual resultaram danos patrimoniais e não patrimoniais que descreveu e quantificou.

A ré contestou, aceitando o circunstancialismo em que o acidente ocorreu, mas impugnando parte dos danos alegados, invocando o ressarcimento de alguns e o exagero dos danos patrimoniais e não patrimoniais peticionados, concluindo pela procedência da acção em conformidade com a prova a produzir.

O Centro Distrital do Porto do Instituto da Segurança Social, I.P. reclamou a quantia de 37.002,49€ que pagou ao Autor a título de subsídio de doença respeitante aos períodos de 11/12/2012 a 31/10/2014 e prestações compensatórias dos subsídios de férias e natal, que a ré contestou, por impugnação, concluindo com na contestação da acção.

Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, foi fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas da prova, sem reclamações.
Após instrução da causa, com a realização de perícia médico-legal ao autor, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal aplicável.

Finalmente, em 27/12/2017, foi elaborada douta sentença, onde se decidiu julgar a acção parcialmente procedente e condenar a ré a pagar ao autor:
a) “a quantia global de €24.479,64, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal anual dos juros civis, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento”;
b) “a quantia de €51.940,00, correspondente ao valor que o Autor despendeu e irá despender em tratamento de fisioterapia, em consequência directa das lesões sofridas aquando e por causa do acidente”;
c) “a quantia de €20.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal anual dos juros civis, contados desde a data da sentença até efectivo e integral pagamento”.
No mais, a acção foi julgada improcedente.

Inconformados com o assim decidido, interpuseram recurso de apelação, quer o autor, quer a ré, os quais apresentaram as correspondentes alegações com as seguintes conclusões:
A) Do autor:
1- Não obstante suportar a douta sentença no facto do A. ter ficado a padecer de uma IPG de 10 pontos, tal factualidade, certamente por lapso, não consta da matéria de facto dada como provada;
2- Tal factualidade foi alegada pelo A. na PI sendo que se reveste de manifesta relevância para a decisão nos autos.
3- Tal matéria mostra-se sobejamente provada, designadamente através de exame médico pericial de fls… no qual o tribunal suportou a sua convicção.
4- Da mesma forma consta do texto da douta sentença.
5- Em conformidade, deverá ser aditada tal matéria à factualidade dada como provada nos autos, sugerindo-se a seguinte redação: “Neste momento, o A. apresenta um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica fixável em 10 pontos;”
6- A título de IPG e como danos patrimoniais, entendeu o tribunal recorrido ser de atribuir ao A. um valor indemnizatório de 20.000,00€ apenas, valor este que, face à matéria factual constante dos autos, se mostra manifestamente escasso para ressarcir o A. por todos os danos patrimoniais emergentes da perda de capacidade aquisitiva.
7- O A. ficou a padecer de uma IPG de 10 pontos quando tinha 38 anos de idade apenas e auferia um rendimento mensal da ordem dos 1.856,00€.
8- O A. tinha uma esperança de vida de pelo menos 41 anos e ficou afetado na sua capacidade de ganho quer ao nível do desempenho profissional quer ao nível do desempenho pessoal.
9- Deve assim ser atribuída uma indemnização emergente de IPG e a título de danos patrimoniais nunca inferior a 40.000,00€, assim se alterando a douta sentença proferida nesta parte.
10- A título de danos não patrimoniais, entendeu o tribunal a quo ser de compensar o A. pelo seu padecimento, em quantia de 20.000,00€ apenas, valor que se entende como manifestamente insuficiente para ressarcir o A. por todo o sofrimento passado, presente e futuro emergente do sinistro dos autos.
11- Considerando a matéria de facto dada como provada a qual aqui se dá por integralmente reproduzida, que a fixação da compensação tem também como função a punição do agente causador e bem assim a necessidade de considerar a situação económica do agente causador o qual engloba na sua esfera o capital seguro, capital esse que tem precisamente como função o justo ressarcimento dos lesados,
12- deverá a douta sentença ser alterada, condenando-se a R. a pagar ao A. a quantia de pelo menos 30.000,00€ a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data de citação e até efetivo e integral pagamento.
18 - A douta sentença viola o disposto nos artigos 562, 562, 564, 565, 566, todos do CC, entre outros.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V/Exªs mui doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente com as legais consequências, com o que se fará sã e inteira Justiça!”
B. Da ré:
1ª. Deve ser revogada a douta sentença na parte em que, sob a alínea b), condena a ré/recorrente a pagar o valor de 49.980,00, correspondente ao valor que o A. irá despender em tratamento de fisioterapia.
2ª. Porquanto, como decorre do item 28 da douta sentença (fls 5) e do relatório pericial, vem apenas dado como provado que, no tocante a ajudas técnicas permanentes, o autor carece de tratamentos regulares de fisioterapia, cuja frequência e duração serão determinadas pelo médico fisiatra.
3ª. Extravasando os factos dados como provados, a douta sentença condena na realização de três tratamentos por ano, de 20 sessões cada.
4ª. Sem, prescindir sempre se diga que o modo como foi contabilizado o valor correspondente às referidas despesas de tratamento de fisioterapia, enferma de vários erros:
4.1 Erro de cálculo puro:
- 60 sessões por ano à ordem de €20,00 cada sessão daria um valor de €1.200,00 por ano e não de €1.470,00, o que multiplicado por 34 anos ascenderia ao valor em singelo de €40.800,00, e não os €49.980,00 resultantes da sentença.
4.2. Falha nos pressupostos para o cômputo da indemnização:
Com efeito o cálculo da indemnização global foi efetuado de modo singelo, limitando-se a uma mera operação matemática de multiplicação, sem levar em linha de conta o facto de o A. receber por inteiro, de uma só vez e antecipadamente o valor que eventualmente irá gastar ao de forma parcelar ao longo dos anos com a probabilidade de tais tratamentos virem a ser suportados, pelo menos parcialmente pela segurança social, ou seja sem ter em conta o fator indexante, pelo que tendo em conta o exposto, o valor em causa não poderia ser superior a €26.600,00.
5. A douta sentença recorrida violou o disposto nos nº.s 3 e 4 do artº 607º do CPCivil e nos artºs 562º, 564º-2 e 566º-3 do CCivil.
PELO EXPOSTO E PELO MUITO QUE DOUTAMENTE SERÁ SUPRIDO, DEVE DAR-SE PROVIMENTO AO RECURSO EM CONFORMIDADE COM AS CONCLUSÕES QUE ANTECEDEM, COMO É DE JUSTIÇA”.

Cada uma das partes contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso da sua opositora.

Os recursos foram admitidos como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, modo de subida e efeito que foram mantidos pelo Relator no despacho liminar.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito dos presentes recursos.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões dos recorrentes (cfr. art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do actual CPC), não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, as questões que importa dirimir consistem em saber:
1. Se deve ser alterada a matéria de facto no sentido indicado pelo autor/apelante;
2. Se a indemnização pela perda da capacidade deve ser aumentada para 40.000,00€, como defende o autor;
3. Se a indemnização pelos tratamentos futuros de fisioterapia não é devida ou se deve ser reduzida, como sustenta a ré:
4. E se a compensação pelos danos não patrimoniais deve ser aumentada para 30.000,00€, como entende o autor.
II. Fundamentação
1. De facto
Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos[1]:
1- No dia 11 de Dezembro de 2011, cerca das 09:15 horas, na Travessa …, em Gondomar, ocorreu um grave acidente de viação provocado pelo veículo de matrícula .. - .. - JJ, propriedade de E… e na altura conduzido por F….
2- Na Travessa …, no sentido descendente, Gondomar/ …, circulava o A., de velocípede sem motor.
3- Juntamente com outros ciclistas;
4- A via apresenta o piso em paralelepípedos.
5- Em frente ao número de polícia .. da Trav. …, o .. - .. - JJ começou a derramar uma grande quantidade de óleo do cárter;
6- Após o condutor circular pela via cerca de 66,5 metros, foi encostar o mesmo no ….
7- Em tal percurso, ficou no pavimento uma grande mancha de óleo derramado do cárter do JJ de 66,5 metros de comprimento e 1 metro de largura.
8- O condutor do JJ encostou o carro e abandonou o local.
9- Sem previamente assinalar tal produto, nem colocando sequer o sinal triangular indicativo de perigo.
10- Por tal rua circulava o A. juntamente com outros ciclistas que não se aperceberam de tal perigo.
11- O A. escorregou no óleo o que provocou uma aparatosa queda.
12- Resultando em graves lesões corporais no Autor.
13- O condutor do JJ assumiu a culpa, culpa essa que desde logo foi assumida pela própria R. que sempre liquidou os tratamentos médicos e parte dos salários ao Autor.
14- O proprietário do .. - .. - JJ havia transferido para a R. a responsabilidade civil por danos causados a terceiros na condução por aquele automóvel, através de contrato de seguro válido e plenamente eficaz à data do sinistro, contrato esse titulado pela apólice nº ……….
15- O A. foi transportado ao Hospital G…, onde lhe foi diagnosticado:
a) traumatismo do cotovelo direito;
b) traumatismo do antebraço direito;
16- Ficou internado em tal hospital com diagnóstico de fractura exposta dos ossos do antebraço direito;
17- Foi operado e fez redução e osteossíntese dos ossos do antebraço com placas;
18- Por complicações, foi novamente operado em 29 de Março de 2012;
19- Em 27 de Novembro de 2012, por pseudartrose dos ossos do antebraço, foi novamente operado.
20- Foi-lhe dada alta clínica em 31-10-2014;
21- Neste momento, apresenta como sequelas:
a) Dificuldade em dormir por falta de posição;
b) Dificuldade em pegar em pesos com a mão direita;
c) Dor no cotovelo e antebraço direito;
d) Dificuldade em levar a mão direita à nuca e fazer a sua higiene pessoal e a barba;
e) Dificuldade em lavar os dentes;
f) Dificuldade na condução automóvel;
h) Impossibilidade de condução de bicicleta.
22- O A. é dextro.
23- O Autor tinha 38 anos de idade.
24- O Autor exercia a profissão de vendedor de ferramentas para a construção civil;
25- Durante 11,5 meses que trabalhou em 2011, teve um rendimento bruto de 17.792,00€.
26. O Autor recebeu da Segurança Social a quantia de 37.002,49€ a título de subsídio de doença.
27- Recebeu o A. a título de adiantamento de salários da R., a quantia de 10.000,00€;
28- Durante os cerca de 34 meses de baixa, o A. fez mais de 270 tratamentos de fisioterapia que a R. já pagou;
27-A. No futuro, o A. terá que efectuar tratamentos regulares de fisioterapia para o resto da sua vida para analgesia, manutenção de mobilidade e funcionalidade;
28-A. Deverá realizar um total não inferior a 40 sessões por ano bem como as consultas médicas inerentes.
29. Em 2016 e 2017, o Autor despendeu a quantia de 1.960,00€ em tratamentos de fisioterapia.
30. O Autor despendeu € 20.00 por cada sessão de fisioterapia e €45 por cada consulta de fisiatria.
31. O A. sofreu fortes dores aquando do acidente, durante as 04 operações a que foi submetido e sofrerá para o resto da sua vida.
32. Do acidente resultou para o A. duas cicatrizes no antebraço que o desfeiam.
33[2] - O A. praticava diversos desportos, como ciclismo, futebol e corrida;
34- Dadas as lesões sofridas, abandonou o ciclismo e o futebol.
35- Em duas das operações, teve de fazer enxertos ósseos;
36- Tem dores frequentes quando transporta pesos e mesmo a sua pasta de trabalho;
37- Por força das suas limitações, o A. sente-se diminuído nas suas capacidades e encara o futuro com ansiedade.
38- Andou em tratamento durante quase três anos, fez fisioterapia durante todo este tempo.
39- Efetuou 4 operações;
40- Teve quatro períodos de internamento;
41- Era uma pessoa alegre e bem disposta.
42- Após o acidente, devido às dores e limitações passou a ser uma pessoa agressiva com a família e amigos;
43. O A. é beneficiário da segurança social com o nº ………...
2. De direito
2.1. Da alteração da matéria de facto
O autor/apelante pretende o aditamento à matéria de facto provada do valor do défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 10 pontos, o qual foi considerado na sentença, com base no relatório da perícia médico-legal, mas sem constar nos factos provados, como devia, tanto assim que alegara como IPG no art.º 23.º da petição inicial.
No relatório da perícia médico-legal realizada ao autor, em 30/11/2015, junto aos autos, de fls. 152 a 155 v.º, consta, no que aqui importa considerar, que:
“Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica (refere-se à afectação definitiva da integridade física e/ou psíquica da pessoa, com repercussões nas actividades da vida diária, incluindo as familiares e sociais, e sendo independente das actividades profissionais, corresponde ao que vinha sendo tradicionalmente designado por Incapacidade Permanente Geral … e referido na Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, como dano biológico). Este dano é avaliado relativamente à incapacidade integral do indivíduo (100 pontos), considerando a globalidade das sequelas (corpo, funções e situações de vida) e a experiência médico-legal relativamente a estes casos, tendo como elemento indicativo a referência à Tabela Nacional de Incapacidades em Direito Civil (Anexo II do Dec-Lei 352/07, de 23/10)….
Nesta conformidade, atendendo à avaliação baseada na Tabela Nacional de Incapacidades e considerando o valor global da perda funcional decorrente das sequelas e o facto destas não afectando o examinado em termos de autonomia e independência, são causa de sofrimento físico, atribui-se um Défice Funcional Permanente de Integridade Físico-Psíquica fixável em 10 pontos”.
Não há razão para não aceitar estes considerandos e conclusões, tanto mais que se trata de uma perícia forense.
Como é óbvio, este défice é relevante para a decisão da causa, tanto assim que já foi considerado na sentença.
Importa, pois, fazê-lo constar dentre os factos provados.
Nestes termos e visto o disposto no art.º 662.º, n.º 1, do CPC, adita-se aos factos provados o seguinte:
44. Em 30/11/2015, o autor apresentava um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 10 pontos.
2.2. Da perda da capacidade
Importa recordar que o único pressuposto da obrigação de indemnizar que está em causa no recurso é o dano e, dentro deste, no que agora importa considerar, só os danos futuros, indemnizáveis nos termos do n.º 2 do art.º 564.º do Código Civil, e a correspondente indemnização pela perda da capacidade de ganho, decorrente da tradicionalmente designada incapacidade permanente geral, também conhecido por dano biológico, e, segundo a mais recente nomenclatura, por “défice funcional permanente da integridade físico-psíquica”.
Como temos vindo a afirmar noutros arestos[3], «neste tipo de danos patrimoniais, enquadram-se as perdas de rendimento sofridas pelo lesado em consequência da perda da capacidade de ganho, cabendo aqui não apenas o prejuízo causado a nível de repercussão de perda de rendimentos do trabalho até se atingir a idade da reforma, mas todos os outros danos para além dela.
Uma incapacidade permanente geral, compatível com o exercício da actividade profissional habitual, mas exigindo esforços suplementares para a desenvolver, é causa de danos patrimoniais futuros indemnizáveis.
E mesmo que ela não se traduza na perda de remuneração efectiva no momento actual, nem por isso deixa de poder ser contemplada em termos de danos futuros, pelas repercussões que necessariamente tem ao nível da saúde e ocupação do lesado. O esforço suplementar que lhe será exigido devido à incapacidade importará mais desgaste, mais limitações e precárias condições de saúde previsíveis.
O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que os danos futuros decorrentes de uma lesão física “não [se] reduzem à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem numa lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física; (…) por isso mesmo, não pode ser arbitrada uma indemnização que apenas tenha em conta aquela redução. (…)”[4].
É que, para além da redução da capacidade de trabalho, o lesado vê afectado o seu direito à integridade física, constitucionalmente consagrado (art.º 25.º, n.º 1, da CRP) e que se traduz numa das manifestações da tutela geral da personalidade (art.º 70.º do C. Civil).
A incapacidade permanente constitui um dano biológico violador daquele direito.
O mesmo perspectiva-se como “diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na vida pessoal e profissional de quem o sofre”, sendo “sempre ressarcível, como dano autónomo, independentemente do seu específico e concreto enquadramento nas categorias normativas do dano patrimonial ou não patrimonial”[5].
Logo que se verifique, o dano biológico merece tutela, quer ao nível compensatório, quer ao nível indemnizatório, quer a ambos.
Uma vez que a incapacidade parcial permanente afecta a potencialidade física do lesado e determina a perda de faculdades físicas e intelectuais, assumindo cariz dinâmico, compreendendo vários factores, sejam actividades laborais, recreativas, sexuais, sociais e sentimentais, com natural repercussão na vida de quem o sofre, tal incapacidade constitui um dano futuro[6].
Apurar se tal dano biológico deve ser valorizado no âmbito do dano patrimonial ou do dano não patrimonial depende da repercussão que tenha tal incapacidade no lesado, independentemente da prova deste sofrer ou vir a sofrer diminuição dos seus proventos futuros. Tal dano deve ser indemnizado na vertente patrimonial se for de concluir que a incapacidade funcional ou fisiológica, repercutindo-se nuclearmente na diminuição da condição física, resistência e capacidade de esforços por parte do lesado, irá implicar, previsivelmente, maior penosidade, dispêndio e desgaste físico na execução de tarefas e, assim, se for de considerar que exigirá do lesado um esforço suplementar físico e psíquico para obter o mesmo resultado da sua actividade[7].
Esta conclusão assenta na consideração de que a ressarcibilidade do dano biológico tem como base e fundamento não só a “relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança ou reconversão de emprego pelo lesado, enquanto fonte actual de possíveis e eventuais acréscimos patrimoniais, frustrada irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar”, como a “acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo o compensar e ultrapassar” as deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas[8].
“O dano biológico assumirá cariz patrimonial (além do que possa relevar em termos de dano não patrimonial) não só quando a limitação implique efectiva ou previsível perda de rendimentos laborais, mas também quando (independentemente dessa perda efectiva ou previsível de rendimentos) demande esforços acrescidos relativamente àqueles que o normal desempenho das actividades laborais já acarretaria, independentemente daquela limitação – neste último caso, mesmo que seja previsível que o rendimento auferido com o exercício de actividade laboral não sofra alteração, valorizar-se-á a circunstância de tal não diminuição de rendimentos ter como correspectivo um acréscimo de esforço corporal e/ou intelectual, na exacta medida do grau de incapacidade, não compensado com qualquer acréscimo de retribuição, sendo por isso adequado atender e valorizar pecuniariamente tal maior esforço ou dispêndio de energia, que assumirá assim a categoria de dano patrimonial futuro.
Para lá do que signifique na diminuição da qualidade de vida do lesado (nas inibições que cria, na diminuição da possibilidade de exercer actividades lúdicas, nas manifestações negativas que possa assumir no relacionamento social, familiar e interpessoal do indivíduo, etc.), a valorizar no âmbito do dano não patrimonial, impor-se-á também valorizar o dano biológico ao nível do dano patrimonial (sem que isso signifique uma repetição ou duplicação de valorização do mesmo dano) quando ele se repercuta na actividade laboral do lesado – seja directamente, implicando perda efectiva ou previsível de rendimentos, seja quando implique ao lesado maior esforço e dispêndio de energia para não sofrer diminuição de rendimentos”[9]».
Dito isto, vejamos o caso dos autos.
Na sentença recorrida, foi fixada a quantia de 20.000,00€ a título de indemnização pelo défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 10 pontos, com base nos critérios que indica.
O autor sustenta que aquela indemnização deve ser aumentada para 40.000,00€, essencialmente com base nos mesmos critérios.
O dano decorrente do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica ou pela incapacidade parcial permanente existe e é indemnizável nas duas vertentes – patrimonial e não patrimonial -, como já se disse.
Efectivamente, como resulta do que se deixou dito, o dano biológico não se reduz à incapacidade de trabalho, existindo outras variantes para além das consequências laborais que não podem deixar de se integrar no dano patrimonial futuro.
Neste caso, atentos os considerandos expostos e os factos provados, nomeadamente o grau do défice funcional permanente de 10 pontos, considera-se que este dano se repercute, não só na vertente não patrimonial, mas também na patrimonial e, nesta, ainda fora do âmbito do foro laboral.
O autor exercia a profissão de vendedor de ferramentas para a construção civil e, embora seja compatível com o exercício daquela profissão, a incapacidade de que ficou a padecer demanda esforços suplementares. Tal incapacidade afecta-o, não só no exercício da sua actividade profissional, mas também em toda a sua vida e prolongar-se-á para além da idade da reforma.
Vejamos, pois, qual o montante de tal indemnização.
Para este efeito, teremos em consideração o grau de deficiência ou de incapacidade encontrado nesta acção, fixado na sentença e aceite pelas partes, que é de 10 pontos e seguiremos o entendimento que temos vindo a sustentar em vários acórdãos[10], por uma questão de coerência e porque não vislumbramos razões para o alterar.
«São sobejamente conhecidas as dificuldades que se vêm encontrando, desde há muito, no cálculo dos danos futuros, quanto a esta matéria.
Inicialmente, recorreu-se ao uso das tabelas financeiras, utilizadas no foro laboral para a determinação de pensões de vida por incapacidade permanente. Porém, este método, desde muito cedo, manifestou-se insatisfatório por não permitir atender às multiplicidades e especificidades das várias situações concretas. Procurando fazer face a estas objecções foram sendo introduzidos factores de correcção, tais como a idade da vítima, idade limite da reforma e a evolução da taxa de juro.
O então Desembargador, depois Conselheiro, Sousa Dinis propôs uma fórmula de cálculo na qual, tomando em linha de conta a taxa de juro, introduziu três factores de ajustamento – a idade da vítima, uma redução de 1/3 do rendimento anual bruto do sinistrado, equivalente ao montante que este, em princípio, gastaria consigo e um desconto fixado com recurso à equidade de forma a evitar um enriquecimento ilegítimo à custa do lesante (cfr. CJ – STJ - , ano V, tomo II, págs. 11 a 17).
A jurisprudência dominante passou a proceder ao cálculo desta indemnização com recurso à equidade, ponderando, nomeadamente, a duração de vida, já que ela não termina com a vida activa, a progressão profissional do trabalhador, a evolução dos salários, os índices de produtividade, a variação da taxa de juro e a inflação (cfr. Acórdãos do STJ, de 15/12/98, in CJ – STJ -, ano VI, tomo III, pág. 155, de 16/03/99, in CJ – STJ -, ano VII, tomo I, pág. 167 e de 2/12/2013, processo n.º 1110/07.9TVLSB.L1.S1, já citado).
Para este efeito, importa ter presente que o que se pretende não é a fixação de um montante puramente arbitrário, mas antes a fixação de um valor com recurso à equidade, feita segundo o prudente arbítrio dentro dos limites tidos por provados (cfr. art.º 566.º, n.º 3, do C. Civil).
É claro que, tal como decorre deste último normativo, o julgamento segundo a equidade tem de respeitar os “limites que [o tribunal] tiver por provados”. E baseando-se em mera culpa a responsabilidade em que incorreu o causador do acidente e estando agora em causa a determinação do montante a pagar para ressarcimento de danos futuros, como tem afirmado repetidamente o Supremo Tribunal de Justiça (v.g. acórdãos de 28/10/1999, proc. nº 99B717, de 2/2/2002, proc. nº 01B985, de 25/6/2002, proc. nº 02A1321, de 27/11/2003, proc. nº 03B3064, de 15/1/2004, proc. nº 03B926, de 8/3/2007, proc. nº 06B4320 e de 14/2/2008, proc. nº 07B508, todos disponíveis em www.dgsi.pt), a equidade desempenha um papel corrector e de adequação da indemnização decretada às circunstâncias do caso, nomeadamente quando, como é frequente, os tribunais recorrem a “cálculos matemáticos e [a] tabelas financeiras”. Esse recurso à equidade não afasta, porém, a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma uniformização de critérios, não incompatível, naturalmente, com a devida atenção às circunstâncias do caso (cfr. Ac. do STJ de 20/10/2011, processo n.º 428/07.5TBFAF.G1.S1, disponível no mesmo sítio).
A jurisprudência maioritária converge no sentido de que a indemnização deve representar um capital produtor de um rendimento que se extinga no fim do previsível período de vida activa da vítima e que seja susceptível de garantir, durante esta, as prestações correspondentes à perda de ganho.
Sendo a estimativa desse dano feita com recurso à equidade, não pode prescindir-se do que normalmente acontece, no que respeita à duração da vida activa, à flutuação do valor do dinheiro, às expectativas de aumentos salariais e de progressão na carreira, etc.
Porque a previsão assenta sobre danos verificáveis no futuro, relevam sobremaneira os critérios de verosimilhança ou de probabilidade, de acordo com o que, no concreto, poderá vir a acontecer segundo o curso normal das coisas.
Por tudo isto, é evidente que as tabelas e fórmulas matemáticas não são suficientes para o apuramento da justa indemnização. Mas também não deve olvidar-se a sua utilidade como instrumento de trabalho na aproximação de um montante indemnizatório que, em resultado da conjugação de algumas variáveis, possa ser apontado como o adequado para a situação concreta.
A fórmula matemática utilizada no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 4/4/1995, publicado na CJ, ano XX, tomo II, pág. 23, foi usada em muitas decisões, e continua a ser, pelas garantias que fornece quanto ao referido objectivo pelo número de variáveis que contempla.
Todavia, os critérios utilizados mais recentemente nalguns acórdãos do STJ permitem determinar melhor, a nosso ver, o valor desses danos (v.g. acórdãos de 4/12/2007 e de 30/6/2009, proferidos nos processos n.ºs 07A3836 e 1995/05.3TBVCD.S1, respectivamente, acessíveis em www.dgsi.pt e, ainda, o citado acórdão de 2/12/2013).
Tais critérios, com os quais concordamos, e que temos vindo a adoptar noutros processos, assentam basicamente nas seguintes ideias:
“a) o montante indemnizatório deve começar por ser procurado com recurso a processos objectivos (através de fórmulas matemáticas, cálculos financeiros, aplicação de tabelas), por forma a que seja possível determinar qual o capital necessário, produtor do rendimento, que, entregue de uma só vez, e diluído no tempo de vida activa do lesado, proporcione à vítima o mesmo rendimento que antes auferiria se não tivesse ocorrido a lesão ou a compense pelo maior grau de esforço desenvolvido;
b) a esse valor deve ser deduzido uma parte correspondente àquela que o lesado já despendia consigo próprio antes da lesão;
c) é preciso ter em conta que o valor resultante das fórmulas matemáticas ou tabelas financeiras dá-nos porém um valor estático, porque parte do pressuposto que o lesado não mais evoluiria na sua situação profissional; não conta com o aumento de produtividade; não inclui no cálculo um factor que contemple a tendência, pelo menos a médio e longo prazo, quanto à melhoria das condições de vida do país e da sociedade; não tem em consideração a tendência para o aumento da vida activa para se atingir a reforma; não conta com a inflação; nem tem em conta o aumento da própria longevidade.
Daí que a utilização das fórmulas matemáticas, ou tabelas financeiras só possa servir para determinar o “minus” indemnizatório, o qual, terá posteriormente de ser corrigido com vários outros elementos, quer objectivos quer subjectivos, que possam conduzir a uma indemnização justa.
Em termos de danos futuros previsíveis, a equidade terá a palavra decisiva, correctora, ponderando todos os factores atrás enunciados.
Ao fazer intervir a equidade, não poderá ainda o Juiz deixar de atender à natureza da responsabilidade (se ela é objectiva, se fundada na mera culpa, na culpa grave ou no dolo), à eventual concorrência de culpas, à situação económica do lesante e do lesado, e, por fim, às indemnizações jurisprudencialmente atribuídas em casos semelhantes” (cfr. citado acórdão de 4/12/2007).
Relativamente aos métodos objectivos, até então utilizados com base nas fórmulas matemáticas usadas no acórdão do STJ de 5/5/1994, publicado na Colectânea de Jurisprudência do STJ, ano II, tomo II, pág. 86, e no citado acórdão da Relação de Coimbra, foram substituídos por uma tabela elaborada a partir da fórmula utilizada naquele aresto, mediante a aplicação do programa informático Excell, que ali se mostra transcrita e para a qual remetemos, sendo fastidioso reproduzi-la aqui.
Temos, assim, como certo que as tabelas financeiras não são suficientes para o apuramento da justa indemnização, embora constituam um bom método de trabalho objectivo para, a partir delas, se fazer o respectivo cálculo. E que a relevância da incapacidade não pode ser avaliada, a nosso ver, apenas com referência à vida activa provável dos lesados, já que se deve considerar também o período posterior à normal cessação da actividade laboral, com referência à esperança média de vida (cfr., neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 17/6/2008, processo n.º 08A1266, e de 20/10/2011, processo n.º 428/07.5TBFAF.G1.S1, já citado, ambos disponíveis em www.dgsi.pt), muito embora também haja quem considere os 70 anos como limite de vida activa, o qual deve ser considerado como elemento a ponderar, mas sem desprezar tudo o resto que vai para além dela”.
Também temos como certo que há lugar à dedução de uma parte dos rendimentos correspondente àquela que o lesado gastaria consigo próprio antes da lesão, pois sempre teria de os suportar, com ou sem indemnização.
A retribuição a considerar no cálculo que importa fazer é a retribuição anual de 16.282,00€ (=1.163,00 x 14), que foi a considerada para efeitos das perdas salariais, não questionadas pelas partes, com base no facto provado em 25 e na declaração de IRS.
É ainda de considerar que a repercussão da tradicionalmente denominada incapacidade permanente ou do défice funcional permanente no cálculo da indemnização só ocorre depois da cessação dos défices temporários, total e parcial, que, no caso, se verificou em 31/10/2014 (data da alta cínica – cfr. facto provado n.º 20).
Assim, porque, nessa data, tinha 41 anos de idade, pois nasceu em 9/1/1973 (cfr. certidão de fls. 37), ainda teria que trabalhar durante mais cerca de 29 anos até atingir os 70 anos, limite da vida activa que vem sendo considerado.
Seguindo os critérios apontados pelo citado acórdão do STJ de 4/12/2007, que perfilhamos, temos:
O factor correspondente aos referidos 29 anos é de 19,18845.
Aplicando este factor ao rendimento anual de 16.282,00€ e considerando a taxa de incapacidade permanente ou de défice de 10 pontos/100, obtemos o valor de 31.242,63€ (=16.282,00 x 19,18845 x 0,10).
A este valor há que descontar a importância que o lesado gastaria consigo, mesmo sem acidente.
Tem vindo a entender-se que, à falta de dados objectivos que suportem melhor critério, esse valor deve corresponder a uma percentagem que se situe entre o 1/3 e 1/4 dos rendimentos, consoante a pessoa em causa seja solteira ou casada.
Deste modo, tendo em conta que o autor é casado, visto que assim foi identificado, na petição inicial e aquando do exame médico e perante a administração fiscal, fazemos incidir a percentagem de 1/4 de dedução sobre aquele valor, o que dá 23.431,98€ [=31.242,63 – (31.242,63 x 1/4)].
Este valor constitui o “minus” indemnizatório, sendo, a partir dele, que deve ser fixada a indemnização, com recurso à equidade, destinada a desempenhar um papel corrector e de adequação da indemnização no caso concreto, considerando todos os outros factores que as ditas fórmulas não contemplam e que se repercutirão, previsivelmente, em termos de perdas patrimoniais, designadamente:
- o prolongamento da IPP para além da vida activa, já que a perspectiva de longevidade está, neste momento, pouco acima dos 78 anos para os homens, com tendência para subir (segundo os dados fornecidos pela Pordata);
- a tendência, acabada de verificar após a crise, quanto à melhoria das condições de vida do país e da sociedade e do próprio aumento de produtividade;
- a inflação, ainda que baixa;
- a progressão profissional e a inerente remuneração.
Considerando todos estes factores, atendendo a que o lesado em nada contribuiu para o acidente de que foi vítima e tendo presente os padrões que vêm sendo utilizados em recente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, afigura-se-nos que o montante adequado para a indemnização dos danos decorrentes do referido défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é de 30.000,00€, pelo que se fixa neste montante.
É, pois, este o valor que o autor pode obter a título de indemnização pelo défice funcional permanente, na vertente de dano patrimonial futuro.
2.3. Dos tratamentos de fisioterapia futuros
A ré começou por sustentar no recurso que interpôs que não é devida indemnização pelos tratamentos de fisioterapia futuros por falta de factos provados que a sustentem.
Relativamente a esta matéria, mostra-se provado que:
No futuro, o A. terá que efectuar tratamentos regulares de fisioterapia para o resto da sua vida para analgesia, manutenção de mobilidade e funcionalidade” (n.º 27-A da fundamentação de facto); e
Deverá realizar um total não inferior a 40 sessões por ano bem como as consultas médicas inerentes” (n.º 28-A da fundamentação de facto).
A discordância da apelante reside no facto de a sentença ter condenado na realização de três tratamentos por ano, de vinte sessões cada.
É certo que, na sentença recorrida, foi considerado esse número de tratamentos e sessões e, com base neles, foi calculado o valor de 49.980,00€.
Para o efeito, foi invocada a informação médica de fls. 168, prestada em jeito de relatório complementar, onde consta que “As sessões de tratamento deverão ser definidas pelo Médico Fisiatra, mas é habitual neste tipo de sequelas fazer três tratamentos de vinte sessões cada, por ano”.
Estes factos não constam dentre os factos provados, como devia (cfr. art.º 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC), mas tão só na aludida informação.
Tal informação foi prestada no âmbito de uma perícia, que, como prova pericial, é sempre livremente apreciada pelo tribunal, juntamente com as restantes provas que forem produzidas sobre os factos que dela são objecto (cfr. art.ºs 489.º do CPC e 389.º do Código Civil).
A perícia efectuada não foi a única prova produzida, já que, segundo a motivação da decisão de facto, foram inquiridas sobre a mesma matéria, nomeadamente sobre o número de sessões de tratamento e a sua necessidade/desnecessidade, as testemunhas H… e I…, em sentido contraditório.
Estamos impossibilitados de reapreciar os seus depoimentos e aquela prova pericial, e proceder a uma eventual alteração desta matéria, visto que não foi impugnada, muito menos com observância dos ónus impostos pelo art.º 640.º, n.ºs 1, als. a), b) e c) e 2, al. a), do CPC.
A mencionada informação não respeita propriamente a um juízo científico, pois que se baseia num juízo de habitualidade, fazendo, ainda assim, depender as sessões de tratamento de uma prescrição ou definição pelo médico fisiatra.
A necessidade da sua definição resulta do incidente de liquidação deduzido pelo autor a fls. 204-205, cuja matéria foi impugnada pela ré (cfr. fls. 244-245).
Não é caso de desconsideração destes danos futuros, como pretende a ré no seu recurso, visto que eles foram dados como provados nos termos constantes dos n.ºs 27-A e 28-A, acima transcritos.
E não seria caso de manter a liquidação daqueles danos como consta da sentença, visto que falta a prova dos três tratamentos por ano, em 60 sessões, e das três consultas médicas de fisiatria.
É evidente que o ónus da prova destes factos é do autor, por serem constitutivos do direito que invoca (cfr. art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil).
Acontece, porém, que a ré/recorrente acabou por aceitar as 60 sessões por ano, durante 34 anos, a 20,00€ por sessão, imputando à sentença apenas um erro de cálculo, entendendo que o resultado seria de 40.800,00€ (=60x20x34) e não de 49.980,00€ como nela consta.
Temos, assim, que dar como assente que o número de sessões anuais é de 60 e que o valor de cada uma delas é de 20,00€, que é o valor dado como provado no n.º 30 da fundamentação de facto, quanto ao que despendeu o autor por cada uma das sessões já recebidas.
Deste modo, o valor a gastar com os tratamentos do autor será de 40.800,00€ (=60x20x34).
Relativamente às consultas médicas, apenas consta dos factos provados que “Deverá realizar … as consultas médicas inerentes” (cfr. n.º 28-A da fundamentação de facto).
A ré/recorrente já não aceitou as despesas inerentes a estas consultas.
Apesar disso, as mesmas são também devidas, porque previsíveis e foram dadas como provadas nos termos que acabaram de se referir (cfr. art.º 564.º, n.º 1, do Código Civil).
Impõe-se, assim, a sua liquidação, tanto mais que já foi formulado o respectivo pedido.
A liquidação deste dano e a fixação da respectiva indemnização deve ser feita de acordo com a equidade, nos termos do art.º 566.º, n.º 3, do Código Civil, dentro dos limites tidos por provados.
Nos factos provados apenas consta o valor de cada consulta, de 45,00€ (cfr. facto provado sob o n.º 30). No entanto, é possível presumir, naturalmente e de acordo com critérios de verosimilhança, que será realizada uma consulta por cada vinte sessões de tratamentos, o que se traduz em três consultas por ano (60:20=3). Multiplicado este número de consultas por 45,00€, obtém-se o valor de 135,00€, correspondente ao que será despendido anualmente em consultas. Multiplicando este valor pelo número de anos que provavelmente restarão ao autor, obtém-se o valor de 4.590,00€ (=135x34).
Deste modo, somando o valor dos tratamentos (40.800,00€) e o das consultas (4.590,00€), obtém-se o valor de 45.390,00€ (=40.800,00+4590,00).
Não há que considerar qualquer eventual tratamento ou consulta por parte da Segurança Social, não só porque não está provado que isso venha a acontecer, como é óbvio, mas também porque jamais seria de imputar àquela entidade a responsabilidade pelo seu pagamento.
Há, no entanto, que ter em atenção que o autor irá receber aquele valor por inteiro, de uma só vez, ainda sem realizar a correspondente despesa, com a possibilidade de nem sequer a concretizar. E que poderá dispor daquele dinheiro como lhe aprouver, aplicando-o inclusivamente, o que lhe proporcionará algum rendimento, embora cada vez mais diminuto, como é do conhecimento geral, em face da evolução das taxas de juro e da própria economia.
Assim, para evitar eventuais enriquecimentos injustos do autor à custa da ré, há que reduzir aquele montante para 40.000,00€.
2.4. Dos danos não patrimoniais
A existência de danos não patrimoniais já foi reconhecida na sentença e eles são evidentes em face dos factos provados.
As partes também não questionam a sua existência.
Quanto ao montante da correspondente compensação, fixado na sentença em 20.000,00€, diverge o autor, sustentando que deve ser aumentado para 30.000,00€.
Importa, pois, determinar o valor adequado à necessária compensação.
O art.º 496.º, n.º 3 do Código Civil manda fixar equitativamente o montante da indemnização pelos danos não patrimoniais, tendo em atenção as circunstâncias aludidas no art.º 494.º, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas, as respectivas sequelas e os correspondentes sofrimentos.
A doutrina e a jurisprudência portuguesas têm teorizado sobre os modos de expressão do dano não patrimonial, realçando o “quantum doloris” (que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária), o “dano estético” (que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima), o “prejuízo de afirmação social” (que respeita à inserção social do lesado nas suas variadíssimas vertentes - familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural e cívica), o “prejuízo da saúde geral e da longevidade” (que valoriza os danos irreversíveis na saúde e bem estar da vítima e o corte na expectativa de vida, avultando aqui o dano da dor e o défice de bem estar), e o “pretium juventutis” (que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a primavera da vida).
A ponderação do parâmetro referenciado no art.º 494.º relativo à situação económica do lesante revela-se aqui desprovida de sentido, visto que não é o património do lesante, mas o de um terceiro, no caso o da seguradora para quem transferiu a responsabilidade civil, a suportar o pagamento da indemnização.
Tal indemnização deverá sempre equivaler à quantia considerada necessária para proporcionar ao lesado prazeres compensatórios do dano[11], já que tem como objectivo compensá-lo daqueles danos, através de uma quantia em dinheiro que lhe permita um acréscimo de bem-estar e de acesso a bens recreativos e culturais, enquanto naturais contrapontos das dores e angústias passadas e futuras, da perda da auto-estima, da frustração da sociabilidade, etc.[12]
E, na sua fixação, deverá ter-se presente que equidade não é sinónimo de arbitrariedade, pelo que a solução não deve assentar em critérios puramente subjectivos do julgador, mas traduzir “a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei”, devendo o julgador “ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida…”[13].
Nesta matéria, a jurisprudência tem evoluído no sentido de considerar que a compensação deverá constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista, mas significativa, a fim de responder actualizadamente ao comando do art.º 496.º e constituir uma efectiva possibilidade compensatória[14].
Por outro lado, a doutrina nacional tem vindo a reconhecer que a indemnização dos danos não patrimoniais não reveste natureza exclusivamente ressarcitória, desempenhando também uma função preventiva e uma função punitiva, devendo o seu valor ser fixado com recurso à equidade, ponderando-se, entre outras circunstâncias, a culpa do agente e a sua situação económica, bem como a do lesado[15].
Os danos não patrimoniais sofridos pelo autor, a considerar no presente caso, decorrem dos factos provados sob os n.ºs 15 a 23, 28, 27-A, 28-A e 31 a 42 que nos dispensamos de transcrever, novamente, aqui, complementados pelo relatório da perícia médico-legal de fls. 152 a 155 v.º, importando apenas realçar, em síntese, que:
Em consequência do embate, o autor sofreu lesões (fractura dos ossos do antebraço direito) que lhe determinaram assistência hospitalar e tratamentos de fisioterapia; fizeram-lhe quatro operações, duas delas para enxertos ósseos, e esteve internado durante quatro períodos; ficou com duas cicatrizes no antebraço que o desfeiam e com limitação da mobilidade; teve um défice funcional temporário total de 4 dias e parcial de 1052 dias, com repercussão na actividade profissional de 1056 dias e ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 10 pontos.
Ficou com um dano estético permanente de grau 2 numa escala de sete graus de gravidade crescente, devido às cicatrizes.
Sofreu dores e continuará a sofrer para o resto da sua vida, sendo o “quantum doloris” de grau 5 numa escala de 7.
Sentiu e sente-se triste e tornou-se agressivo para com a família e amigos.
Devido às lesões que sofreu abandonou o ciclismo e o futebol, ficando com uma repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de grau 1.
Fez mais de 270 tratamentos de fisioterapia, durante cerca de 34 meses de baixa, e terá que efectuar tratamentos regulares de fisioterapia para o resto da sua vida para analgesia, manutenção de mobilidade e funcionalidade.
O “quantum doloris” situa-se num grau acima do médio.
Médio é o “prejuízo de afirmação social”, bem como o “prejuízo de saúde geral”, atendendo sobretudo à sua idade, à desvalorização pelo défice funcional permanente e à sua actividade profissional.
De acordo com este quadro fáctico, tendo em conta aquela multiplicidade de danos não patrimoniais, a sua idade, a sua condição socio-económica média, o valor aquisitivo da moeda e os valores que vêm sendo atribuídos a este título pelo STJ para casos semelhantes, bem como os que temos vindo a fixar em casos idênticos[16], e considerando, ainda, que em nada contribuiu para a eclosão do sinistro e a produção dos danos, afigura-se-nos mais justa e equilibrada a importância de 25.000,00€, como compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelo autor em consequência do acidente, pelo que se fixa neste montante.
Este valor vence juros moratórios a partir da data da sentença, e não da citação como pretende o autor, por ser aquele o momento que se considerou para a fixação actualizada da compensação pelos danos não patrimoniais, tendo presente, como refere o art.º 611.º, n.º 1, do CPC, a “situação existente no momento do encerramento da discussão”, e em conformidade com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2002, de 9/5/2002, publicado no Diário da República, I Série-A, de 27/6/2002, segundo o qual “Sempre que a indemnização pecuniária, por facto ilícito ou pelo risco, tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente) e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.

Resulta de tudo o exposto que ambos os recursos procedem parcialmente:
- o do autor mediante o aumento de 20.000,00€ para 30.000,00€ pela indemnização devida pela perda da capacidade aquisitiva e de 20.000,00€ para 25.000,00€ pela compensação pelos danos não patrimoniais;
- o da ré pela redução de 49.980,00€ para 40.000,00€ a título de indemnização pelos tratamentos de fisioterapia futuros.
Quanto ao mais, será de manter a sentença, desde logo, por não ter sido impugnada.
Sumariando:
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................................................................
................................................................
................................................................
III. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar ambos os recursos parcialmente procedentes e, em consequência, condenar a ré a pagar ao autor:
1. A quantia de 30.000,00€, a título de indemnização dos danos patrimoniais pela perda da capacidade de ganho;
2. A quantia de 40.000,00€, a título de indemnização pelos tratamentos de fisioterapia futuros e respectivas consultas médicas;
3. A quantia de 25.000,00€ como compensação dos danos não patrimoniais.
Estas quantias são acrescidas dos juros moratórios, nos termos fixados na sentença, que se mantém na parte restante, por não ter sido impugnada no recurso.
*
Custas em ambas as instâncias por autor e ré, também apelantes e apelados, na proporção do respectivo decaimento.
*
Porto, 15 de Maio de 2018
Fernando Samões
Vieira e Cunha
Maria Eiró
____
[1] Aditando aos n.ºs 27 e 27 a letra “A”, em face da sua repetição.
[2] A partir daqui, na sentença recorrida, aumentou-se a numeração numa dezena, certamente por lapso, que ora se corrige.
[3] Cfr., nomeadamente os acórdãos de 28 de Outubro de 2015, proferido no processo n.º 928/08.0TBSJM.P2 e de 16 de Dezembro de 2015, processo n.º 2303/13.5TBVFR.P1, que aqui seguiremos de perto, atenta a similitude das situações e porque não há razões para alterar qualquer entendimento neles perfilhado.
[4] Cfr. acórdão de 30/10/2008 proferido no processo n.º 07B2978 e também os acórdãos do mesmo Tribunal de 28/10/1999, proc. n.º 99B717, de 25 de Junho de 2002, proc. nº 02A1321, de 30/9/2010, proc. n.º 935/06.7TBPTL.G1.S1, de 7/6/2011, proc. n.º 3042/06.9TBPNF.P1.S1 e de 20/11/2014, proc. n.º 5572/05.0TVLSB.L1.S1 todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[5] Cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 16/12/2010 e de 6/12/2011, nos processos 270/06.0TBLSD.P1.S e 52/06.0TBVNC.G1.S1, ambos no mesmo sítio da internet.
[6] Cfr. acórdãos do STJ de 19/5/2009, processo n.º 298/06.0TBSJM.S1 e de 2/12/2013, processo n.º 1110/07.9TVLSB.L1.S1, acessíveis no mesmo sítio.
[7] Ac. do STJ de 17/1/2008, processo n.º 07B4538, disponível no mesmo sítio, para além do último referenciado.
[8] Cfr. citados acórdãos do STJ de 16/12/2010 e de 6/12/2011.
[9] Cfr. acórdão desta Relação, de 28/3/2012, processo n.º 1692/05.0TBMCN.P1, em que o aqui relator interveio como 2.º Adjunto.
[10] Nomeadamente nos já citados, de 28 de Outubro de 2015 e de 16 de Dezembro de 2015, donde também foi extraída a transcrição que segue.
[11] Cfr. Ac. da RP de 6/11/90, CJ, ano XV, tomo V, pág. 186.
[12] Cfr., entre outros, o Ac. do STJ de 6/7/2000, CJ – STJ -, ano VIII, tomo II, pág. 144.
[13] Cfr. Ac. do STJ de 10/02/98, na CJ – STJ -, ano VI, Tomo I, pág. 65.
[14] V.g. Acs. do STJ de 25/6/2002, na CJ – STJ – ano X, tomo II, pág. 128, de 28/6/2007, processo n.º 07B1543, de 17/1/2008, processo n.º 07B4538 e de 7/6/2011, processo n.º 160/2002.P1.S1 em www.dgsi.pt.
[15] Cfr. Antunes Varela, Obrigações, I, 10.ª ed., págs. 605 a 608, 906 e 934; Almeida Costa, Obrigações, 9.ª ed.., págs. 549 a 554 e 723; e Capelo de Sousa, O direito geral de personalidade, 1995, págs. 458 e 466, como também temos vindo a citar e transcrever – cfr. os nossos citados acórdãos de 28/10/2015 e 27/1/2015.
[16] V.g. processos n.ºs 107/08.6TBCHV.P1, 5243/09.9TBVNG.P1, 918/06.7TBESP.P1 e 2236/11.0TBVCD.P1, estes disponíveis em www.dgsi.pt.