Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4534/17.0T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RP201811054534/17.0T8MTS.P1
Data do Acordão: 11/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ªSECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º683, FLS.229-238)
Área Temática: .
Sumário: I - Mantendo-se vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância da matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos impugnados.
II - Não se verifica essa desconformidade quando as testemunhas apresentam uma versão dos factos que não permite confirmar a versão apresentada pelo autor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Cabeça-de-Casal-RMF-4534/17.0T8MTS.P1
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Juiz Desembargador Relator: Ana Paula Amorim
Juízes Desembargadores Adjuntos: Manuel Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto[1] (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)
I. Relatório
Na presente ação declarativa, que segue a forma de processo comum, em que figuram como:
- AUTORA: B…, residente na Rua …, …., …, …. - …, MATOSINHOS; e
- RÉUS: C…, residente na Av. …, …, …. – … MAIA; e D…, residente na Rua …, …. – …, …, Matosinhos, …. - … …
pede a autora que se designe a autora como cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de E…, mãe de autora e réus e a condenação dos réus a reconhecê-la como tal.
Alegou para o efeito e em síntese que, pese embora não ser a filha mais velha da falecida E…, foi a autora que viveu em comunhão de mesa e habitação com a sua mãe durante 30 anos até ao referido óbito, ocorrido a 05/12/2016.
Entende a autora que tem preferência para tal cargo, atenta a ordem por que o art. 2080º nº 1 do Código Civil defere o cargo de cabeça-de-casal, o que pretende ver reconhecido face à oposição dos demais herdeiros legais.
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Citados os réus contestaram, defendendo-se por impugnação.
Alegaram para o efeito que não corresponde à verdade que a autora habitasse com a mãe no 1º andar do nº … sito na Rua …, em …, pois sempre viveu e vive no rés-do-chão desse prédio, tratando-se de prédios independentes e autónomos entre si. A partir de 2002 passou a pagar a renda pela ocupação do … do prédio.
Os réus alegaram que os cuidados com a limpeza da habitação e mais tarde com a higiene, limpeza e alimentação da mãe eram prestados pela empregada F…, sendo certo que todos os filhos que se deslocavam amiúde a casa de sua mãe, ajudando-a nas deslocações e tarefas.
Quanto ao cabecelato, entendem que deve ser exercido pela ré C…, por se tratar da filha mais velha, cargo pelo qual a autora apenas se interessou quando se apercebeu que poderia receber, diretamente e sem intermediários, as rendas decorrentes de um contrato de arrendamento entretanto celebrado.
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Proferiu-se despacho saneador, com identificação do objeto do litígio e indicação dos temas da prova.
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Realizou-se o julgamento, com gravação da prova e observância das formalidades legais.
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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:
“ Com fundamento no atrás exposto, julgo totalmente improcedente a presente ação, por não provada, absolvendo os réus dos pedidos contra si formulados.
Custas:
Custas pela autora, nos termos do art. 527º nº 1 do Código de Processo Civil”.
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A Autora veio interpor recurso da sentença.
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Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:
I - Em igualdade de circunstâncias e no caso da existência de 3 filhos herdeiros, deve ser nomeado para o cargo o filho que vivia com o "de cujus" há pelo menos um ano da data do óbito.
II - Se um dos filhos prova que vivia em comunhão de mesa e habitação com o "de cujus", há mais de um ano, deve ser esse filho o nomeado.
III - O termo viver, na sua amplitude, quer dizer a pessoa que dá assistência, trata, medica, dorme na mesma casa e tem centralizada a sua vida na mesma habitação da "de cujus".
IV - Tanto mais que os outros 2 filhos, confessadamente, vivem noutras freguesias.
V - Se um dos herdeiros prova esses requisito e diz que quer ser nomeado cabeça de casal em detrimento do herdeiro mais velho, deve o Tribunal atribuir-lhe tal cargo.
VI - Deve ser alterada a resposta do item 4 dos factos provados, para a redação que foi proposta com base nos depoimentos das testemunhas G… e H… indicadas pela A. e nas testemunhas F… e I… indicadas pelos RR..
Termina por pedir, nos termos do disposto no artº 640, nºs 1 e 2 do C.P.C., a alteração da resposta à factualidade provada e não provada no sentido que a A. vivia com a mãe há mais de 1 ano antes do seu óbito e, a sentença revogada e substituída por outra que julgue a ação provada por procedente.
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Os réus vieram apresentar resposta ao recurso, no qual formularam as seguintes conclusões:
1 - A mui douta sentença proferida pelo Tribunal a quo não merece censura e/ou reparo.
2 - A resposta dada, pelo Tribunal a quo, ao ponto 4, resulta, tanto das declarações de parte dos recorridos, como da prova testemunhal apresentada em sede de audiência final.
3 - Os elementos probatórios apresentados pela recorrente não puderam (por não saberem) afirmar que a recorrente residiu com a sua mãe, no 1.º andar do prédio sito na Rua …, …., em …, baseando o seu testemunho em convicções pessoais.
4 - Da prova documental – arrendamento do R/C - resulta confirmado o local onde residia a recorrente.
5 - O cargo de cabeça de casal deve ser atribuído, de entre os herdeiros legais do mesmo grau de parentesco, e em igualdade de circunstâncias, ao mais velho, sendo a Ré C… quem deve exercer tais funções, por ser a mais velha dos 3 irmãos.
Assim sendo, como é, deve manter-se a resposta dada pelo Tribunal a quo ao ponto 4 – “A Autora viveu com a mãe em comunhão de mesa e habitação até data não apurada.” – mantendo-se a sentença recorrida, que julga improcedente a ação, absolvendo os Recorridos do pedido contra si formulado.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- reapreciação da decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova;
- mérito da causa.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:
1.No dia 05/12/2016, na sua residência sita na Rua …, nº …., da União das freguesias de …, … e …, faleceu no estado de viúva E…, conforme documento da fl. 4v, cujo conteúdo se dá por reproduzido.
2. A autora B… é filha da referida E…, conforme documento da fl. 5, cujo conteúdo se dá por reproduzido.
3. Os réus são também filhos de E… e irmãos da autora, conforme documento da fl. 6v, cujo conteúdo se dá por reproduzido.
4. A autora viveu com a mãe em comunhão de mesa e habitação até data não apurada.
5. Tendo-a tratado nos seus últimos anos de vida, pois ela ficou acamada.
6. Fazendo-lhe a higiene, administração de medicamentos e cuidados que ela carecia.
7. Os réus têm a vida deles sedeada noutras freguesias.
8. Surgiu recentemente a oportunidade de fazer um arrendamento de uma parte da casa que autora e réus herdaram da sua mãe.
9. A ré C… tem vindo a assumir e exercer o cargo de cabeça de casal, por ser a filha mais velha.
10. E…, mãe de autora e réus, viveu no 1º andar do prédio sito na Rua …, nº …., em …, Matosinhos.
11. O prédio mencionado em 10, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 3376º-U é um edifício com dois pisos, independentes entre si.
12. A falecida E… tinha ao seu serviço F… para efetuar limpeza na casa, numa primeira fase de cuidados.
13. Entre 2011/2012 E… sofreu um AVC, passando a mencionada F… a prestar-lhe também cuidados pessoais a tempo inteiro, nomeadamente alimentação, higiene, tratamento de roupas, acompanhamento pessoal, etc.
14. A ré C… deslocava-se a casa de sua mãe, em média uma vez por mês, tendo dificuldades em aceder ao imóvel, por dele não ter as chaves, e por a autora não facilitar o contacto com aquela.
15. E sempre que necessário acompanhava a mãe a consultas e exames no hospital, a centros de reabilitação física.
16. O réu D… viveu com a sua mãe até Fevereiro de 2013.
17. Pese embora tenha passado a residir noutra morada, deslocava-se a casa de sua mãe 2 vezes ao dia: ora para ajudar a levantar e dar-lhe o pequeno almoço, ora para lhe dar o almoço e, por fim, o jantar e deitá-la.
18. A autora também ajudava nos cuidados de sua mãe.
19. O óbito de E… determinou, desde logo, obrigações declarativas fiscais que a autora não quis assumir, facto que sublinhou perante os seus irmãos/réus.
20. A irmã mais velha, a ré C… deu cumprimento à participação do óbito junto do Serviço de Finanças de Matosinhos – 2, no dia 18 de Janeiro de 2017.
21. Munindo-se para tanto da documentação necessária, incluindo a da autora, que lha forneceu, sem oposição ou reservas.
22. No dia 18/09/2017 a ré C… outorgou contrato de arrendamento relativamente ao prédio onde viveu E…, comunicado à Autoridade Tributária a 23/09/2017, conforme documento das fls. 19 e 20, cujo conteúdo se dá por reproduzido.
23. A autora celebrou com a falecida E… um contrato de arrendamento relativo ao rés-do-chão do imóvel sito na Rua …, nº …., em data não apurada do ano de 2002.
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- Factos não provados -
1. Que o referido em 4 dos factos provados tenha tido a duração de 30 anos e que ocorreu até ao óbito de E….
2. A autora fazia a alimentação e limpeza de roupas da sua mãe.
3. Só muito esporadicamente os réus iam ver a mãe mas sempre de fugida.
4. A autora sempre viveu e vive no rés-do-chão do prédio referido em 10 dos factos provados.
5. O prédio referido em 10 apresenta iguais circunstâncias às existentes numa propriedade horizontal, pese embora tal configuração exista apenas no processo de obras da Câmara Municipal de Matosinhos.
6. E… viveu em economia absolutamente separada da sua filha, aqui autora.
7. E desde, pelo menos o ano de 2002, a autora pagava rendas a sua mãe pela ocupação do r/ch do prédio identificado em 10.
8. Nenhuma oposição exerceu a Autora quanto ao exercício das funções de cabeça de casal pela Ré C…, até sensivelmente início de Setembro de 2017.
9. A partir da celebração do arrendamento referido em 22 dos factos provados, de viva voz e com a presente demanda, a autora reivindica para si o cargo de cabeça-de-casal.
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Consignou-se:
Toda a demais matéria constante dos articulados que, por conter matéria opinativa, conclusiva ou de direito, nos abstemos de transcrever para a presente sentença.
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3. O direito
- Reapreciação da decisão de facto -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos I a VI, suscita o apelante a reapreciação da decisão da matéria de facto quanto aos factos que se julgaram provados, sob o ponto 4 e factos não provados, sob o item I.
O art. 640º CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“ 1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
O presente regime veio concretiza a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova[2].
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso - , motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e o apelante veio impugnar a decisão da matéria de facto, com indicação dos pontos de facto impugnados, prova testemunhal ( com transcrição na motivação do recurso das passagens relevantes ) a reapreciar e decisão que sugere.
Nos termos do art. 640º/1/2 do CPC consideram-se reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto.
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Nos termos do art. 662º/1 CPC a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto:
“[…]se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação cumpre considerar, como refere ABRANTES GERALDES, que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, “tem autonomia decisória”. Isto significa que deve fazer uma apreciação crítica das provas que motivaram a nova decisão, de acordo especificando, tal como o tribunal de 1ª instância, os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador[3].
Nessa apreciação, cumpre ainda, ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[4].
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos das testemunhas, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º CC e art. 607º/5, 1ª parte CPC.
Como bem ensinou ALBERTO DOS REIS: “ […] prova […] livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei”[5].
Daí impor-se ao julgador o dever de fundamentação das respostas à matéria de facto – factos provados e factos não provados (art. 607º/4 CPC).
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes do despacho em que se respondeu à matéria da base instrutória que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância[6].
Contudo, nesta apreciação, não pode o Tribunal da Relação ignorar que, na formação da convicção do julgador de 1ª instância, poderão ter entrado elementos que, em princípio, no sistema da gravação sonora dos meios probatórios oralmente prestados, não podem ser importados para a gravação, como sejam aqueles elementos intraduzíveis e subtis, como a mímica e todo o pro­cesso exterior do depoente que influem, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhe, existindo, assim, atos comportamentais ou reações dos depoentes que apenas podem ser percecionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que não podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal, que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador[7].
Por outro lado, porque se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados[8].
Atenta a posição expressa na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pelas partes e
confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[9].
Justifica-se, assim, proceder a uma análise crítica das provas com audição dos registos gravados.
Ponderando estes aspetos cumpre reapreciar a prova face aos argumentos apresentados pelo apelante, tendo presente o segmento da sentença que se pronunciou sobre a fundamentação da matéria de facto.
Procedeu-se à audição do CD que contém a prova gravada e analisados os depoimentos prestados, bem como, os documentos juntos aos autos conclui-se que a decisão sobre a matéria de facto, quanto aos concretos pontos objeto de impugnação não merece censura.
A impugnação da decisão de facto é dirigida à matéria nuclear da ação e que se prende com o facto de saber se à data do óbito da mãe de autora e réus, a apelante vivia em comum com a mãe há pelo menos um ano e na casa de habitação do “de cujus”.
Apreciando os factos impugnados.
No ponto 4 julgou-se provado:
4. A autora viveu com a mãe em comunhão de mesa e habitação até data não apurada.
No item I dos factos não provados, consignou-se:
1. Que o referido em 4 dos factos provados tenha tido a duração de 30 anos e que ocorreu até ao óbito de E….
Na fundamentação da decisão de facto considerou-se:
“ O Tribunal formou a sua convicção com base em toda a prova produzida em sede de audiência final, seja depoimento de parte da autora, seja declarações de parte dos réus, seja testemunhal, seja ainda documental, tudo aliado às regras da experiência comum e conjugado com as regras da razoabilidade e senso comum e ainda com o princípio da livre apreciação da prova.
Assim, os factos 1 a 12 foram dados como provados por acordo das partes, conforme resulta dos respetivos articulados, tratando-se de factos alegados pela autora e aceites pelos réus ou por ter resultado pacífico da prova oral produzida em sede de audiência final.
O facto 13 resultou assente, com base no somatório dos depoimentos dos réus e depoimento da testemunha F…, os quais confirmaram este facto, muito particularmente a testemunha F…, que teve uma postura coerente, desapaixonada e convincente, merecendo credibilidade, neste ponto.
Os restantes factos dados como provados resultaram do somatório de toda a prova produzida, seja o depoimento de parte da autora, as declarações de parte dos réus e todas as testemunhas, na parte em que prestaram declarações que se apresentaram como diretas, objetivas, congruentes e coincidentes entre si.
A matéria constante do facto 22 teve por base as mesmas declarações de parte, conjugadas com o teor do documento junto nas fls. 19 e 20, tudo atestando a existência de um contrato de arrendamento.
A matéria constante do facto 23 dado como provado teve por base as declarações de rendimentos junta nas fls. 56 a 98, de onde se retira, do anexo H, a existência do arrendamento, corroborado pelos réus.
Importa agora explicar a motivação do Tribunal relativamente aos factos não provados e que correspondia a aspetos que também se encontravam por apurar.
A verdade é que sobre tais matérias foi produzida prova de diferente natureza, ou seja, depoimento de parte, declarações de parte, e prova testemunhal, as quais apresentaram contradições relevantes. Ou seja, sobre o essencial a apurar, traduzido no facto de saber se a autora viveu ou não com a sua mãe até à data do óbito, ininterruptamente, não foi produzida uma prova escorreita, inequívoca e clara que pudesse convencer o Tribunal.
Houve quem dissesse que sim e quem dissesse que não.
Foi dito por uns que a autora sempre viveu com a mãe, mas foi dito por outros que vivia no rés-do-chão. Foi dito que tinha roupa nas duas habitações, mas a maior parte estava em baixo. O correio recebê-lo-ia ora em cima, ora em baixo. E por fim, mas não menos importante, a questão de existir um contrato de arrendamento entre mãe e filha, o qual serviu para aumentar a dúvida do Tribunal.
A explicação dada pela autora para tal contrato (que seria para proteger esta filha da ganância dos réus), para além de não ter sido corroborada por ninguém, não nos mereceu credibilidade. E uma vez que o Tribunal não logrou detetar quem falava verdade e quem a ela faltava, restou dar os respetivos factos como não provados, uma vez que não nos convencemos de nenhuma das versões. Ou seja, e em suma, ficou o Tribunal sem saber se a autora viveu ou não com a mãe no último ano de vida de E…, razão pela qual, nesta parte, se deram como não provadas ambas as versões.
De resto, não se provou o demais contido nos articulados por conter matéria de direito ou conclusiva”.
Pretende a apelante a alteração da decisão de facto no sentido de se julgar provada a matéria do item I dos factos não provados, com o aditamento no ponto 4 dos factos provados da expressão “ até à morte da mãe”.
Para fundamentar a alteração apoia-se em excertos dos depoimentos das testemunhas G…, H… (e não “Soares” como consta da identificação em ata), F… e I…. Contudo, os excertos dos depoimentos das testemunhas, descontextualizados e sem o confronto com a demais prova, não permitem atribuir o relevo probatório que a apelante lhes confere.
A testemunha J… vizinho da falecida E… referiu que sempre conheceu a autora a residir com a mãe no 1º andar do prédio. Disse que a casa do rés-do-chão estava mobilada mas não vivia lá ninguém e que a mesma casa esteve arrendada até dois mil e tal.
Referiu, também, que a autora lhe disse que a casa, o rés-do-chão, estava arrendado à autora, mas a autora apenas passou a habitar a casa depois da missa do sétimo dia.
Disse que verificou que a casa não tinha uso, porque depois do óbito da mãe da autora foi arranjar as torneiras a pedido da autora, as quais estavam avariadas devido à falta de uso.
A testemunha H…, vizinha da falecida E… referiu que no 1º andar do prédio viviam a D. E… e os dois filhos, D… e H…. Disse, ainda, que quando o inquilino do rés-do-chão saiu, a Autora mobilou a casa, o que foi combinado com a mãe, mas vivia no 1º andar. Referiu, ainda, que ouviu contar que a autora celebrou um contrato de arrendamento do rés-do-chão.
Esclareceu que quando a mãe da autora adoeceu tinha uma senhora que cuidava da mãe, enquanto a autora trabalhava na papelaria. O irmão visitava a mãe de manhã e à noite, para a arranjar e ajudar a autora.
Referiu, por fim, que um ano antes da mãe falecer a autora fechou a papelaria e passou a cuidar da mãe.
A testemunha F…, empregada de limpeza e cuidadora da mãe da autora e réus, referiu que inicialmente trabalhou para a falecida E… como empregada de limpeza e quando adoeceu, a filha C… contratou-a para cuidar da mãe, pagando-lhe por mês €100,00. Disse que durante esse período cumpria o seguinte horário de trabalho: entrava às 07.00 h e saía as 13.00 h (quando a autora vinha almoçar), regressando depois de almoço até ás 19.00h ou 19.30 horas, altura em que chegava a autora. Contava com o auxílio do filho de E…, o corréu D…, de manhã e ao fim da tarde, para movimentar a E… e servir o jantar. A Autora durante o dia estava a trabalhar na papelaria.
Disse que a autora morava no rés-do-chão e quando a mãe começou a piorar, passou a papelaria e ocupou-se da mãe, com o auxílio da testemunha. A autora passou a dormir no seu quarto, quando a mãe estava doente.
Referiu que no rés-do-chão tinha a casa mobilada e ía para lá quando queria, mas vivia permanentemente no 1º andar. O D… também viveu no 1º andar e nessa altura, já a autora residia no rés-do-chão. E disse, ainda, “ A B… esteve sempre com a mãe e quando queria ía para a casa dela que estava mobilada”.
Esclareceu que havia duas caixas de correio e que era rececionado indistintamente nas duas caixas de correio. A roupa da “B… estava cá em baixo”. A B… recebia os amigos no 1º andar.
A testemunha I… referiu que quando o D… vivia na casa e o acompanhava encontrava sempre a autora na casa da mãe, desconhecendo se vivia sempre no 1º andar.” Não sei se vivia ou não vivia com a mãe”.
A testemunha K… referiu que numa visita à mãe da autora e réus, cerca de um ou dois anos antes de falecer, a corré C… comentou que a irmã residia no rés-do-chão do prédio, vivendo a mãe no 1º andar.
A testemunha L…, amigo do corréu D…, disse que o corréu comentou que a irmã B… residia no rés-do-chão. Encontrava-se no final da tarde com o corréu na porta da casa da mãe, porque àquela hora o corréu se encontrava naquele local porque tinha que servir o jantar à mãe.
Cumpre ter presente que recaía sobre a autora o ónus da prova dos factos por si alegados para fundamentar a preferência da sua nomeação para o cargo de cabeça-de-casal, ou seja, provar que “vivia com a falecida mãe há pelo menos um ano à data da morte” (art. 2080º/3 CC e art. 342º/1 CC).
A residência permanente será a casa onde a pessoa se fixa aí instalando a sua economia familiar com caráter estável e habitual[10].
Os depoimentos das testemunhas revelaram-se vagos e imprecisos, alguns dos quais constituem depoimentos indiretos, por ouvir dizer ou porque a fonte do conhecimento é a própria autora ou os corréus, mostrando-se por isso desvalorizados.
A testemunha I… não revelou ter qualquer conhecimento dos factos em discussão, pois o facto de ver a apelante na casa da mãe não é indiciador que essa fosse a residência permanente da apelante.
Existe uma contradição notória entre a alegação da autora e o depoimento das testemunhas J…, H… e F…, na medida em que a apelante defende na petição que sempre teve até à data do óbito da mãe a sua residência na casa da mãe, com quem vivia em comunhão de mesa e habitação, sem fazer qualquer alusão ao uso que estava a ser dado ao rés-do-chão do prédio, sendo certo que as aludidas testemunhas referiram que a autora ocupava o rés-do-chão do prédio desde data muito anterior ao óbito da mãe.
As testemunhas J… e H… vêm a referir que a apelante celebrou um “contrato de aluguer” e “mobilou a casa sita no rés-do-chão”, depois que o inquilino que ali se encontrava saiu. As testemunhas e os declarantes referenciaram a saída do inquilino entre 2000 e 2002, sendo que nessa data a mãe da apelante ainda não tinha adoecido, pois só em 2013 foi acometida por um AVC que a tornou incapaz de se movimentar e exigiu o apoio permanente de terceira pessoa. Em termos de
normalidade da vida equipa-se uma casa com móveis com o propósito de habitar esse espaço, sobretudo porque a apelante não era a dona do prédio e por isso, fica afastada a hipótese de dar de arrendamento tal habitação já devidamente equipada.
Acresce que a testemunha F…, pelas funções que exercia na casa da falecida E…, revelou ter um conhecimento muito preciso da utilização que a autora fazia da casa do rés-do-chão, sendo por isso justificada a relevância atribuída ao seu depoimento na fundamentação da decisão de facto. Com efeito, a testemunha apesar de reconhecer que a autora se ocupava da mãe e até pernoitava na casa da mãe, não deixou de sublinhar que a autora usava o rés-do-chão do prédio como sua habitação desde data muito anterior ao óbito da mãe.
Resta referir que as demais testemunhas – K… e L… - pouco ou nenhum conhecimento revelaram dos factos, limitando-se a transmitir o que foi referido pelos corréus ou fazendo alusão a factos instrumentais sem relevo para a apreciação dos factos essenciais.
Tal como se observa na fundamentação da decisão, o facto da falecida E… declarar as rendas em sede de IRS, por efeito do contrato de arrendamento celebrado com a autora, aliado ao facto de não se ter produzido prova que confirme as declarações da autora, quanto à justificação para a celebração do contrato, apenas permite adensar a dúvida sobre a efetiva residência da autora na casa de morada da mãe.
Conclui-se que os excertos dos depoimentos prestados pelas testemunhas e referenciados pela apelante não justificam a alteração da decisão de facto, por não serem reveladores do alegado erro na apreciação da prova, mantendo-se a decisão de facto.
Improcedem, nesta parte, as conclusões de recurso.
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- Mérito da causa -
A apelante pretende a revogação da sentença no pressuposto da alteração da decisão de facto, pois não se insurge contra a decisão de mérito. Mantendo-se a decisão de facto, nada mais cumpre apreciar ou decidir.
Improcedem, também nesta parte, as conclusões de recurso.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela apelante.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e nessa conformidade:
- julgar improcedente a reapreciação da decisão de facto;
- confirmar a sentença.
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Custas a cargo da apelante.
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Porto, 05 de Novembro de 2018
(processei e revi – art.131º/5 CPC)
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico
[2] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, Julho 2013, pag. 126.
[3] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos no Novo Código de Processo Civil, ob. cit., pag. 225.
[4] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Almedina, Janeiro 2000, 3ª ed. revista e ampliada pag.272.
[5] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol IV, pag. 569.
[6] Ac. Rel. Guimarães 20.04.2005 - www.dgsi.pt.
[7] Ac. STJ 28.05.2009 - Proc. 115/1997.5.1 – www.dgsi.pt.
[8] Ac. Rel. Porto de 19 de setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt
[9] ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Coimbra, Almedina, Setembro 2008, 2ª ed. revista e atualizada pag. 299 e Ac. STJ 20.09.2007 CJSTJ, XV, III, 58, Ac STJ 28.02.2008 CJSTJXVI, I, 126, Ac. STJ 03.11.2009 – Proc. 3931/03.2TVPRT.S1; Ac. STJ 01.07.2010 – Proc. 4740/04.7 TBVFX-A.L1.S1 (ambos em www.dgsi.pt).
[10] Cfr. LOPES CARDOSO Partilhas Judiciais, Vol. II, Almedina, Coimbra, pag. 282.