Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1451/08.8TJPRT.P1
Nº Convencional: JTRP00043871
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: COMPRA E VENDA DE BEM FUTURO
BENS DE CONSUMO
CONTRATOS COLIGADOS POR NEXO FUNCIONAL
Nº do Documento: RP201004201451/08.8TJPRT.P1
Data do Acordão: 04/20/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO - LIVRO 367 FLS. 185.
Área Temática: .
Sumário: I- O acordo segundo o qual alguém se compromete a fornecer um bem a fabricar segundo modelo por si apresentado, mediante o pagamento de um preço, consubstancia um contrato de compra e venda de bem futuro.
II- No contrato de compra e venda de bens de consumo, abrangidos pelo âmbito do DL 67/2003, os direitos do comprador por desconformidades da coisa vendida são independentes uns dos outros, estando a sua utilização apenas condicionada pela impossibilidade manifesta do seu exercício ou abuso de direito.
III- É possível que o comprador peticione a resolução do contrato, sem primeiro pedir a eliminação dos defeitos ou a substituição do bem vendido.
IV- No caso de contratos coligados por nexo funcional, a resolução do contrato principal determina automaticamente a resolução do contrato dependente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 1451/08.8TJPRT.P1 do 4º Juízo – 3ª Secção dos Juízos Cíveis do Porto
Relatora: Sílvia Pires
Adjuntos: Henrique Antunes
Ana Lucinda Cabral
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Autora: B……………..
Ré: C……………., L.da.
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Acordam na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

A Autora intentou a presente acção sob o regime do processo experimental regulado no DL n.º 108/06, pedindo:
a) que seja julgado resolvido o contrato de compra e venda celebrado entre Autora e Ré;
b) a condenação da Ré a devolver-lhe a quantia paga pela aquisição dos sofás - € 4.788 -, acrescida de juros contados desde a citação até integral pagamento;
c) a condenação da Ré a pagar-lhe, a título de indemnização, a quantia de € 247, acrescida de juros contados desde a citação até integral pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese:
Em 30 de Novembro de 2007, deslocou-se às instalações da Ré, e após verificar os modelos de sofás aí expostos, procedeu à aquisição de dois sofás, marca D……….., modelo Richebourg Luxor, destinados a ser instalados na sua habitação e para utilização do seu agregado familiar, pelo valor global de € 4.788.
Na altura da encomenda, a Autora entregou à Ré a quantia de € 1.259, tendo sido entre ambas acordado que os sofás seriam entregues no prazo de 60 dias.
A entrega dos mesmos ocorreu no dia 28 de Fevereiro de 2008.
Nesse mesmo dia a Autora apercebeu-se que os sofás apresentavam uma cor diferente da escolhida, tendo, de imediato, dado conhecimento dessa divergência aos funcionários da Ré, os quais procederam à pulverização de um líquido nos sofás, dizendo que após a aplicação desse produto, os mesmos retomariam a cor e rugosidade escolhidas pela Autora.
Acreditando em tal informação a Autora procedeu ao pagamento do resto do preço.
Quando procedeu à experimentação, pela primeira vez, dos sofás após a secagem do referido produto, constatou que, quando alguém se sentava neles, quer as almofadas dos assentos, quer as da zona das costas bem como os apoios dos braços não retomavam a sua forma originária, denotando um aspecto de muito usados, demonstrando, assim, uma qualidade e resistência diferente dos modelos escolhidos e queridos na data da respectiva compra.
Acrescenta que, para além das divergências já assinaladas, constatou outras desconformidades nos sofás, tendo das mesmas dado conhecimento à Ré, comunicando-lhe também que pretendia devolvê-los contra o reembolso da quantia despendida.
A Ré, apesar de ter reconhecido as assinaladas anomalias nos sofás, apenas assumiu proceder à alteração dos respectivos enchimentos, não garantindo, no entanto, o seu conforto, solução que a Autora não aceitou.

A Ré contestou, defendendo-se por impugnação, contrariando a versão fáctica apresentada pela Autora.
Conclui pela improcedência da acção.

Veio a ser proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu a Ré dos pedidos formulados.
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A Autora recorreu desta decisão, formulando as seguintes conclusões:

I – A decisão de que se apela é recorrível, tendo a recorrente legitimidade, e estando em tempo, para o efeito.
II – O contrato celebrado entre apelante e apelada, a que se reportam os autos, constitui verdadeiro contrato subsumível à legislação do direito de consumo.
III – A tutela do consumidor está para além dos quadros do direito civil, fundados no ideário liberal individualista, em que se baseia o código civil, contrária à protecção do consumidor.
IV – Do sentido e redacção vertida nos artigos 4º, nºs 1 e 5 do Decreto Lei nº 67/2003, de 8 de Abril resulta inequivocamente que perante a venda de uma coisa desconforme, o consumidor-recorrente pode escolher, sem qualquer ordem sucessória entre a reparação da coisa, a sua substituição, a redução do preço, ou a resolução do contrato.
V – Os bens alienados deveriam ser de elevadíssima qualidade [luxo], apresentado estes já na data de entrega desconformidades aparentes que não impediram a apelada de mesmo assim os entregar à recorrente, recebendo esta a totalidade do preço.
VI – As desconformidades detectadas, quer as iniciais, quer as detectadas volvidas algumas horas, pela sua natureza, extensão e gravidades, atento o tipo de bens em causa, não admitiam, com razoabilidade, a sua reparação nem a sua substituição, nem tal, mesmo em tese, seria de exigir à recorrente.
VII – A apelada não podia ficar numa posição mais vantajosa que a apelante, parte mais fraca, o que aconteceria se esta tivesse de ser onerada com reparação e ou substituição, com os transtornos que tal implicava atento a que se estava perante um bem novo [com horas], sem qualquer uso.
VIII – A apelada não alegou nem provou qualquer tentativa para resolver as desconformidades, pelo contrário, sustentou sempre, mesmos nos presentes autos, que os bens não sofriam de qualquer desconformidade.
IX – A apelada não alegou nem, consequentemente, provou qualquer conduta susceptível de tipificar, por parte da recorrente, um abuso do direito ao pretender resolução do contrato.
X – A recorrente, preconizando a tese da sentença recorrida, sempre teria de intentar, previamente, acção judicial para obter a reparação, substituição dos bens [com os graves incómodos que tal implica, nomeadamente de tempo], protegendo, assim, a parte mais forte (recorrida), o que não é de aceitar atento a que a legislação de consumo visa precisamente o oposto a sentença violou o disposto nos artigos 4º, nºs 1 e 5 do Decreto Lei nº 67/2003 de 8 de Agosto, 4º e 12º, 1 da Lei nº 24/96, de 31 de Julho e 334º do Código Civil, atento a que o sentido da melhor interpretação e aplicação destes normativos implicavam uma decisão de total procedência da acção intentada.
Conclui pela procedência do recurso.

Não foi apresentada resposta.
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1. Do Objecto do Recurso

Encontrando-se o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente cumpre apreciar a seguinte questão:
A Autora tem direito a resolver o contrato que celebrou com a Ré, com a consequente restituição das quantias que lhe entregou?
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2. Os Factos

Os factos provados são os seguintes:

I – A Ré dedica-se, com escopo lucrativo, à comercialização de sofás da marca D……….
II – Em 30.11.07, a Autora deslocou-se às instalações da Ré e, após verificar os modelos ali expostos de sofás, procedeu à aquisição de dois sofás, marca D…….., modelo Richebourg Luxor, destinados a serem instalados na sua habitação e para utilização do seu agregado familiar. - artigo 2º da petição inicial.
III – Na altura da encomenda, a Autora entregou à Ré, a quantia de € 1259, a título de adiantamento do preço dos sofás, no valor de € 4.788. - artigo 3º da petição inicial.
IV – Dos inúmeros modelos expostos, no show room da Ré, a Autora procedeu à escolha de um sofá de dois lugares, em tons de branco e um outro sofá cama, de três lugares, igualmente em pele e com a mesma tonalidade. - artigo 4º da petição inicial.
V – Os modelos escolhidos pela Autora foram anunciados pela Ré como sendo de altíssima qualidade (modelos de luxo), que respeitavam os mais elevados padrões de qualidade, quer ao nível do enchimento – conforto, quer o tipo de pele natural, quer da confecção, quer da robustez e da sua durabilidade. - artigo 5º da petição inicial.
VI – As qualidades referidas em V foram determinantes na escolha efectuada pela Autora que, assim, optou por dois sofás com o custo de € 4.788 em vez de outros sofás igualmente comercializados pela Ré ao preço de cerca de € 1000.
VII – Na altura da aquisição dos sofás, uma funcionária da Ré, procedeu à elaboração de um documento, com a menção de Contrato P00 n.º 1424, no qual apôs as referências que alegadamente correspondiam aos modelos escolhidos pela Autora, com a ref. 4109. - artigo 7º da petição inicial.
VIII – Autora e Ré acordaram que os sofás seriam entregues no prazo de 60 dias. - artigo 8º da petição inicial.
IX – No dia 28.2.08, a Ré procedeu à entrega dos sofás na habitação da Autora. - artigo 9º da petição inicial.
X – Nesse dia e, durante a colocação dos sofás pela Ré, a Autora apercebeu-se que os mesmos apresentavam, na cor, uma tonalidade diferente da escolhida – ambos os sofás apresentavam-se com uma cor branca mais natural, que corres­ponde a ref.ª no catálogo da Ré o n.º 4119, a pele denotava uma rugosidade diversa (mais fina) da escolhida e a forma também era diversa. - artigo 10º da petição inicial.
XI – Dessa divergência deu, no local, conhecimento aos funcionários da Ré. - artigo 11º da petição inicial.
XII – Os quais disseram que só após a aplicação de um produto, nos sofás, estes retomariam a cor e rugosidade escolhidas pela Autora. - artigo 12º da petição inicial.
XIII – Nesse mesmo dia os funcionários da Ré procederam à pulverização de um líquido nos sofás e alertaram a Autora que só após a sua secagem, estimada em cerca de 2 h, poderiam aqueles ser utilizados. - artigo 13º da petição inicial.
XIV – Acreditando nessas informações, a Autora procedeu ao pagamento do restante do preço em dívida, entregando à Ré, que recebeu a quantia de € 3.529, acrescida de € 247 a título de um prémio, tipo seguro, para protecção contra o aparecimento de nódoas e ou acidentes que viessem a ser causados nos sofás, comprometendo-se a Ré na reparação ou substituição destes. - artigo 14º da petição inicial.
XV – A Autora experimentou os sofás cerca de 48 h, após a secagem do produto, tendo constatado que quando alguém se sentava neles, as almofadas dos assentos, da zonas das costas e os apoios dos braços – após terem sido simplesmente tocados com os cotovelos – não retomavam a sua foram originária, denotando um aspecto de muito usados. - artigo 15º da petição inicial.
XVI – Demonstrando uma qualidade e resistência diferente dos modelos queridos e escolhidos, na data de compra, pela Autora, visionados nas instalações da Ré. - artigo 16º da petição inicial.
XVII – A Autora também constatou que as várias almofadas dos sofás, quando colocadas, não são contínuas, lineares e uniformes. - artigo 17º da petição inicial.
XVIII – Não formando um ângulo recto na zona da intersecção das costas e dos assentos, tal como os sofás que estavam em exposição. - artigo 18º da petição inicial.
XIX – A zona das costas dos sofás apresentava-se em pele aos quadrados, quando nos modelos expostos e escolhidos pela Autora estes apresentavam-se com a pele cortada em tiras verticais, cosidas umas às outras. - artigo 19º da petição inicial.
XX – A Autora deu conhecimento à Ré do constatado e referido de XV a XIX, por telefone a em 5.3.08 por escrito, comunicando-lhe que pretendia devolver os sofás contra o reembolso da quantia despendida ma sua aquisição. - artigo 20º da petição inicial.
XXI – A Ré remeteu, com data de 20.3.08, à Autora, que recebeu, a carta com o seguinte teor:
…cumpre-nos informá-la que o seu sofá apresenta-se com um aspecto considerado normal pelo que não pode ser aceite a sua pretensão de anular o contrato.
Podemos contudo proceder à alteração dos enchimentos sob orientação do cliente em relação à rigidez pretendida, alertando desde já que este processo pode também alterar o conforto dos seus sofás.
XXII – A Autora não aceitou a proposta da Ré, comunicando-lhe, mais uma vez, que pretendia a resolução do contrato. - artigo 22º da petição inicial.
XXIII – A Ré, por carta de 9.4.08, reiterou à Autora a posição anteriormente assumida. - artigo 23º da petição inicial.
XXIV – A Ré não anuiu a resolver o litígio através do Centro de Informação de Consumo e Arbitragem do Porto. - 24º da petição inicial.
XXV – Uma das características que torna o modelo Richebourg mais caros dos que os sofás de € 1.000, é o seu revestimento. - artigo 6º da contestação.
XXVI – A Ré é uma empresa especializada em estofos, tem uma linha de produtos com mais de 300 modelos entre os quais sofás, sofás camas e camas, que podem ser personalizados com mais de 1500 combinações de revestimentos em pele, tecido e micro fibra. - artigo 7º da contestação.
XXVII – Na data da entrega dos sofás à Autora foi-lhe igualmente entregue um certificado de autenticidade nos moldes constantes de fls. 62 a 64 dos autos.
XXVIII – As almofadas dos sofás referidos em IX não são fixas.
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3. O Direito Aplicável

3.1. Do direito de resolução
A Autora acordou com a Ré na aquisição de dois sofás comercializados por esta, segundo modelo que se encontrava exposto, mediante o pagamento de um preço.
Estamos perante a celebração de um contrato de compra e venda de bens futuros – art.º 864º e 880º, do C. Civil –, uma vez que apesar de se encomendar o fabrico de um bem, o adquirente em nada interfere no seu processo criativo, limitando-se a aderir a um modelo pré-estabelecido pelo fornecedor [1].
Tal contrato de compra e venda teve por objecto uns sofás destinados pela Autora a utilização na sua habitação, sendo certo que a Ré se dedica profissionalmente ao fabrico e venda de sofás, pelo que o contrato celebrado entre a Autora e a Ré, insere-se no âmbito das relações de consumo reguladas pela Lei 24/96, de 31 de Julho, e o DL 67/2003, de 8 de Abril, uma vez que estamos perante a venda de bens por sociedade que faz disso a sua actividade a pessoa que não os destina a actividade profissional – art.º 2º, n.º 1, da Lei 24/96, e 1º, n.º 1, do DL 67/2003.
Dispõe o art.º 2º, do DL 67/2003:
1 — O vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda.
2 — Presume -se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos:
a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;
b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;
c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;
d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.
3 — Não se considera existir falta de conformidade, na acepção do presente artigo, se, no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor.

O n.º 2 deste artigo, visando facilitar a concretização do princípio da conformidade entre o prestado e o contratado, enumera as situações donde se presume que existe uma desconformidade com o contrato, podendo essa presunção ser ilidida pelo vendedor, mediante prova do contrário.
Para se presumir a falta de conformidade do bem objecto do contrato de compra e venda, basta a verificação de uma das situações mencionadas naquelas alíneas do art.º 2º.
Provou-se que a Autora constatou que quando alguém se sentava nos sofás, as almofadas dos assentos, da zonas das costas e os apoios dos braços – após terem sido simplesmente tocados com os cotovelos – não retomavam a sua foram originária, denotando um aspecto de muito usados, demonstrando uma qualidade e resistência diferente dos modelos queridos e escolhidos, na data de compra, pela Autora, visionados nas instalações da Ré.
Provou-se ainda que a Autora também constatou que as várias almofadas dos sofás, quando colocadas, não são contínuas, lineares e uniforme, não formando um ângulo recto na zona da intersecção das costas e dos assentos, tal como os sofás que estavam em exposição e que, além disso, a zona das costas dos sofás apresentava-se em pele aos quadrados, quando nos modelos expostos e escolhidos pela Autora estes apresentavam-se com a pele cortada em tiras verticais, cosidas umas às outras.
Desta factualidade resulta que os sofás vendidos não possuíam as qualidades do bem que a Ré tinha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo pelo que, nos termos da alínea a), do nº 2, do art.º 2º, do DL 67/2003, presume-se a existência duma desconformidade entre os bens entregues e os contratados.
Não tendo a Ré logrado demonstrar que as características, que os sofás apresentavam, não respeitavam a uma falta de conformidade dos bens vendidos com o contrato, ilidindo aquela presunção, há que reconhecer à Autora a possibilidade de exercício dos direitos estabelecidos no art.º 4º, do DL 67/2003 – consumidor tem direito a que essa falta de conformidade seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato.
A Autora pretende a resolução do contrato que celebrou com a Ré.
A sentença recorrida negou-lhe essa pretensão, entendendo que a Autora só poderia resolver o contrato caso não se revelasse possível a eliminação dos defeitos ou a substituição dos sofás.
No contrato de compra e venda de bens de consumo, abrangidos pelo âmbito do DL 67/2003, os direitos do comprador por desconformidades da coisa vendida são independentes uns dos outros[2], estando a sua utilização apenas condicionada pelos limites impostos pelo n.º 5, do referido art.º 4º – impossibilidade manifesta do seu exercício ou abuso de direito. Assim, o comprador, perante a desconformidade do bem vendido, pode, em princípio, desde que respeite os princípios da boa-fé, dos bons costumes e a finalidade económico-social do direito escolhido, optar pelo exercício de qualquer um daqueles direitos, entre os quais se insere o da resolução do contrato, que não está reservado apenas para as hipóteses de incumprimento definitivo ou impossibilidade de cumprimento dos deveres de reparação ou substituição do bem, justificando-se a sua utilização desde que a desconformidade que o bem apresenta não seja insignificante [3].
É certo que o respeito por aqueles princípios conduzirá muitas vezes à observância das regras de articulação dos diferentes direitos do comprador impostos no C. Civil[4], até porque algumas delas também constavam do texto da Directiva transposta pelo DL 67/2003, constituindo esse texto um importante elemento interpretativo deste diploma. Princípios, como o da razoabilidade, da proporcionalidade e da prioridade da restauração natural, poderão muitas vezes impor soluções coincidentes com o cumprimento daquelas regras, mas no âmbito de compras e vendas de consumo não existe uma obrigatoriedade cega do seu respeito. Serão as particularidades do caso concreto que definirão as possibilidades de exercício dos diferentes direitos colocados ao dispor do comprador, de modo a serem respeitados os princípios que presidiram à sua atribuição.
No caso em análise o pedido de resolução do contrato deduzido pela Autora não revela um abuso de direito, uma vez que a Ré, na sequência da denúncia dos defeitos e mesmo perante insistência da Autora, só manifestou disponibilidade para modificar o enchimento dos sofás, sem garantir a sua comodidade. Assim, não só não se prestou a eliminar todas as desconformidades detectadas, como não garantiu que os resultados da sua acção fossem bem sucedidos, nunca tendo mostrado qualquer disponibilidade em proceder à substituição dos sofás defeituosos.
Daí que não fosse exigível, segundo os ditames da boa-fé, que a Autora viesse exigir judicialmente a eliminação dos defeitos ou a substituição dos sofás perante a atitude extra-judicial da Ré, confirmada, aliás, pela postura adoptada na presente acção. Sendo as desconformidades apuradas dotadas de significativa relevância, não se mostra contrário aos princípios da boa-fé, dos bons costumes ou da finalidade económico-social do direito de resolução, o seu exercício neste caso.
Assim, tem a Autora direito à pretendida resolução do contrato, resolução essa que determina a obrigação da Ré restituir o montante pago por aquela a título de preço pelos sofás – € 4.788 – nos termos do art.º 289º, ex vi do art.º 433º, ambos do C. Civil.

2. Do direito à restituição da restante quantia entregue pela Autora

Provou-se que a Autora além do pagamento do preço dos sofás também pagou € 247 a título de um prémio, tipo seguro, para protecção contra o aparecimento de nódoas e ou acidentes que viessem a ser causados nos sofás, comprometendo-se a Ré na reparação ou substituição destes.
Este acordo consubstancia um outro contrato, coligado com o de compra e venda de sofás, sendo indubitável que a Autora nunca o teria celebrado se não tivesse celebrado o de compra e venda dos sofás.
Este segundo contrato só foi celebrado para assegurar a manutenção dos sofás objecto do contrato de compra e venda, pelo que existe uma dependência funcional unilateral vital entre aquele e este contrato.
Estamos, pois, perante contratos coligados por um nexo funcional, sendo a dependência existente unilateral [5].
Uma das manifestações da coligação unilateral de contratos na sua disciplina que mais frequentemente é apontada é a da aplicação do princípio expresso no brocardo simul stabunt, simul cedent, segundo o qual, a extinção do contrato principal afectará a subsistência do contrato dependente [6].
A interdependência funcional entre o contrato principal – compra e venda –, e o contrato acessório provoca a impossibilidade de realização do escopo visado com a interligação, desde que o contrato mãe seja atingido (entre outras causas) por uma extinção do tipo resolutivo [7].
Esse contrato acessório não consegue subsistir sem o contrato de compra e venda, deixando aquele de ter sentido se este for resolvido.
Assim, a resolução do contrato de compra e venda acarreta a resolução do contrato acessoriamente celebrado, pois este sem aquele deixa de ter qualquer razão de existir, daí resultando a obrigação da Ré também devolver à Autora a quantia recebida no âmbito desse contrato acessório – € 247 – nos termos do art.º 289º, ex vi do art.º 433º, ambos do C. Civil.
À obrigação de devolução destas quantias acresce a obrigação de pagamento de juros sobre estas quantias, desde a citação até o seu integral pagamento à taxa definida por lei – art.º 804º, 805º e 806º, do C. Civil.
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3. Conclusão

Pelas razões acima referidas deve ser julgado procedente o recurso acima interposto e alterada em conformidade a sentença recorrida, declarando-se resolvidos os contratos celebrados entre as partes e, condenando-se a Ré a pagar à Autora a quantia global de € 5.035 (€ 4.788 + € 247), acrescida de juros de mora desde a citação, até efectivo pagamento, à taxa definida por lei.
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Decisão:
Nos termos expostos, julgando-se procedente o recurso, revoga-se a sentença recorrida e, consequentemente, julgando-se resolvidos os contratos celebrados entre a Autora e a Ré condena-se esta a devolver à Autora a quantia de € 5.035, acrescida de juros de mora desde a citação, até efectivo pagamento, à taxa definida por lei.
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Custas da acção e do recurso pela Ré.
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Porto, 20 de Abril de 2010.
Sílvia Maria Pereira Pires
Henrique Ataíde Rosa Antunes
Ana Lucinda Mendes Cabral
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[1] Vide, sustentando esta qualificação nos casos de aquisição de bem a fabricar segundo modelo, amostra ou catálogo, Pedro Romano Martinez, in Direito das obrigações (Parte especial). Contratos, pág. 337, 2.ª ed., Almedina, e João Cura Mariano, in Responsabilidade contratual do empreiteiro pelos defeitos da obra, pág. 47, 3.ª ed., Almedina.
[2] João Cura Mariano, na ob. cit. pág. 257.
[3] Ac. T. R. L. de 12.3.09, relatado por Ezagüy Martins, acessível em www.dgsi.pt, proc. 993/06-2, Ac. T. R. P., de 4.2.10, relatado por José Ferraz, acessível em www.dgsi.pt, proc. 1362/05.9.
[4] Pedro Romano Martinez, em Empreitada de consumo, em “Themis”, Ano II, nº 4, pág. 169-170, e Calvão da Silva, em Venda de bens de consumo, pág. 82-83 e 86-87, da 3.ª ed., Almedina.
[5] Sobre o tema da coligação negocial, na doutrina portuguesa, vide Vaz Serra, in União de contratos. Contratos mistos, no B.M.J. n.º 91, pág. 11 e seg., Rui de Alarcão, in Sobre a transferência da posição do arrendatário no caso de trespasse, no B.F.D.U.C., vol. XLVII, pág. 48, nota 57, Inocêncio Galvão Teles, in Manual dos contratos em geral, pág. 475-478, da ed. de 2002, da Coimbra Editora, Antunes Varela, in Das obrigações em geral, vol. I, pág. 288-292, da 9ª ed., da Almedina, Menezes Leitão, in Direito das obrigações, vol. I, pág. 188-189, da ed. de 2000, da Almedina, Almeida e Costa, na ob. cit., pág. 377-379, da 11ª ed., da Almedina, Rui Pinto Duarte, in Tipicidade e atipicidade dos contratos, pág. 50-55, da ed. de 2000, da Almedina, Pedro Pais de Vasconcelos, in Contratos atípicos, pág. 215-222, da ed. de 1995, da Almedina, Gravato Morais, in União de contratos de crédito e de venda para o consumo, pág. 387-395, da ed. de 2004, da Almedina, e Francisco Brito Pereira Coelho, in Coligação Negocial e operações negociais complexas, no B.F.D.U.C., volume comemorativo (2003), pág. 233 e seg..
[6] Vide a enunciação deste princípio por Francisco Brito Pereira Coelho, na ob. cit., pág. 242, e por Pedro Romano Martinez, in Da cessação do contrato, pág. 244, da ed. de 2005, da Almedina.
[7] Brandão Proença, in A Resolução do Contrato No Direito Civil, pág. 110, 1982, Coimbra.
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Sumário
Nos termos do art.º 713º, n.º 7, do C.P.C., é o seguinte o sumário do presente acórdão:
I – O acordo segundo o qual alguém se compromete a fornecer um bem a fabricar segundo modelo por si apresentado, mediante o pagamento de um preço, consubstancia um contrato de compra e venda de bem futuro.
II – No contrato de compra e venda de bens de consumo, abrangidos pelo âmbito do DL 67/2003, os direitos do comprador por desconformidades da coisa vendida são independentes uns dos outros, estando a sua utilização apenas condicionada pela impossibilidade manifesta do seu exercício ou abuso de direito.
III – Serão as particularidades do caso concreto que definirão as possibilidades de exercício dos diferentes direitos colocados ao dispor do comprador, de modo a serem respeitados os princípios que presidiram à sua atribuição.
IV – É possível que o comprador peticione a resolução do contrato, sem primeiro pedir a eliminação dos defeitos ou a substituição do bem vendido.
V – No caso de contratos coligados por nexo funcional, a resolução do contrato principal determina automaticamente a resolução do contrato dependente.