Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
21/1995.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS
FILHO MAIOR
FGADM
REGIME DE SUBSTITUIÇÃO DO PROGENITOR
Nº do Documento: RP2011111521/1995.P2
Data do Acordão: 11/15/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O regime de substituição do progenitor carenciado pelo FGADM na prestação de alimentos não se aplica ao filho maior que deles careça para completar a sua formação profissional.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 21/1995.P2
Incumprimento de Responsabilidades Parentais n.º 21/1995
Tribunal Judicial de Alfândega da Fé
Recorrente – Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores
Recorrido – B…
Relatora – Maria Cecília Agante
Desembargadores Adjuntos – José Carvalho
Rodrigues Pires

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
1. B…[1], maior, residente em …, Alfândega da Fé, vem requerer a manutenção do pagamento, pelo FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES[2], do valor fixado na sentença em substituição do montante que seu pai lhe deveria proporcionar a título de alimentos. Alega que, não obstante ter atingido a maioridade, continua a estudar, frequentando o 10º ano no ensino profissional do curso de técnico de audiovisual.

2. Notificado, o Ministério Público promove a manutenção do pagamento da prestação mensal de 100,00 euros a cargo do FGADM.

3. Nada havendo que obste ao conhecimento do mérito da causa, é proferida decisão que determina a manutenção da prestação de alimentos pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores relativamente ao requerente B….

4. Irresignado, o ISS apela da decisão e, em conclusão, remata:
4.1. O beneficiário atingiu a maioridade em 11-11-2010 e o FGADM destina-se a colmatar a necessidade de alimentos de que sejam credores menores.
4.2. O que decorre do teor literal, da própria designação do Fundo, como expressamente resulta da epígrafe da Lei 75/1998 e do preâmbulo do Decreto-lei 164/1999.
4.3. Não é possível concluir que o espírito da lei contempla uma prestação substitutiva, destinada a filhos, independentemente da sua idade.
4.5. E o intérprete não pode considerar qualquer interpretação que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência.
4.6. Prestação que depende da verificação dos pressupostos legais, dentre os quais se conta a menoridade do beneficiário.
4.7. Deve a decisão recorrida ser revogada e proferida decisão que faça cessar a prestação de alimentos a cargo do FGADM.

5. Em resposta, defende o recorrido a manutenção da decisão, por não violar qualquer preceito legal.

II. Âmbito do recurso
Tendo em atenção que seremos balizados pelas respectivas conclusões da alegação do recorrente, sem prejuízo daquelas outras cujo conhecimento oficioso se imponha, a questão de direito a afrontar resume-se a saber se a obrigação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores subsiste após o atingir da maioridade.

III. Com relevância para a decisão da causa estão apurados os factos:
1. B… nasceu em 11 de Novembro de 1993.
2. O B… frequenta o 10º ano no ensino profissional, no curso de Técnico de Audiovisual.
3. O B… reside com a sua progenitora, que aufere mensalmente a quantia de 475,00 euros.
4. O pai não tem estabilidade profissional, possui uma situação económica precária e sobrevive com a ajuda de sua mãe.
5. Não foi apurada a existência de quaisquer bens que lhe sejam penhoráveis.
6. O requerente tem vindo a beneficiar da prestação mensal de alimentos de 100,00 euros, suportada pelo FGDAM.

IV. O direito
Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189º da O.T.M.[3] e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional, nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem, a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na lei 75/1998, de 19 de Novembro, até ao início do efectivo cumprimento da obrigação. Mecanismo que veio a ser regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 164/1999, de 13 de Maio, em cujo preâmbulo se apela ao artigo 69º da Constituição da República Portuguesa, que consagra expressamente o direito das crianças à protecção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral. Diploma que regista, em nota preambular, que este direito a alimentos se traduz no acesso a condições de subsistência mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento, enquanto pessoa em formação, e a uma vida digna. Para tanto, esses diplomas criaram um sistema de substituição do devedor de alimentos, de molde a que os menores deles carenciados não ficassem desamparados. Outrossim, quando o devedor de alimentos não possa satisfazer as prestações devidas a tal título, é o Estado, através do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, que garante ao menor o seu cumprimento. E a problemática que nos é posta consiste em saber até quando cabe ao Estado garantir os alimentos: somente durante a menoridade ou ainda após o atingir da maioridade quando ocorrerem as condicionantes do artigo 1880º do Código Civil, isto é, se o alimentando não tiver completado a sua formação profissional, pelo tempo normalmente requerido para o efeito e na medida em que seja razoável exigir aos pais essa obrigação de alimentos.
Encarados os diplomas legais que tutelam a matéria, a referida Lei n.º 75/1998, de19 de Novembro, ao instituir a garantia dos alimentos devidos a menores, logo referencia, sob a epígrafe do seu artigo 1º, “Garantia de alimentos devidos a menores”, que a intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores se aplica a menor residente em território nacional e, no domínio das disposições processuais, especifica que todas as diligências de prova se reportam à indagação das necessidades do menor (artigo 3º). No tocante à cessação ou alteração das prestações devidas, coloca a incumbência da correspondente comunicação e do correspectivo fundamento sobre o representante legal do menor ou pessoa à guarda de quem se encontre (artigo 4º).
Este diploma, que institui este específico regime de protecção a menores, não deixa margens para dúvidas que a protecção social do Estado se restringe a menores. Clarificação que é iterada pelo diploma regulamentador, o predito Decreto-Lei 164/1999, de 13 de Maio, ao apelidar o fundo social que intervém na protecção das crianças desvalidas como Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, constituído no âmbito do Ministério do Trabalho e da Solidariedade e gerido em conta especial pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, a ele competindo assegurar o pagamento das prestações de alimentos atribuídas a menores residentes em território nacional, nos termos dos artigos 1.º e 2.º da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro (artigo 2º).
Diploma este cujo preâmbulo, assumindo a dimensão programática do artigo 69º da nossa lei fundamental, procura definir os deveres impostos ao Estado na concretização da “garantia da dignidade da criança como pessoa em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção” para afirmar que dessa concepção resultam direitos individuais, como o direito a alimentos, que se traduz “no acesso a condições de subsistência mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna”. Ao referenciar a particular atenção que a matéria tem merecido no âmbito das organizações internacionais especializadas, destacando as Recomendações do Conselho da Europa e a Convenção sobre os Direitos da Criança, sinalizou a especial relevância atribuída “à consecução da prestação de alimentos a crianças e jovens até aos 18 anos de idade”. Menções que, inequivocamente, reportam a protecção social no domínio dos alimentos a menores, em conformidade com o âmbito de aplicação da Convenção relativa à Competência, à Lei Aplicável, ao Reconhecimento, à Execução e à Cooperação em Matéria de Responsabilidade Parental e Medidas de Protecção das Crianças, adoptada na Haia em 19 de Outubro de 1996[4], circunscrita “às crianças desde o momento do seu nascimento até atingirem a idade de 18 anos” (artigo 2º). Também a Convenção Sobre os Direitos da Criança, adoptada pela ONU em 1989 e assinada em 26 de Janeiro de 1990, define criança como “todo o ser humano com menos de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo” (artigo 1º).
O intérprete não pode considerar um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, tal como não pode partir do princípio que o legislador adoptou uma solução incongruente ou incoerente ou presumir que não soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, antes deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (artigo 9º do Código Civil). Ora, o apontado quadro legal inculca, quer na exposição de motivos quer no seu texto, que o seu círculo de intervenção é o de assegurar o pagamento de alimentos a menores. Não há qualquer previsão de garantia do pagamento das prestações devidas a quem deixou de ser menor, não sendo possível estender a sua aplicação a maiores[5].
Não estamos sequer perante um texto polissémico, de expressões ambíguas ou obscuras, nem nos parece que o pensamento legislativo tenha sido atraiçoado pela terminologia usada. O texto legislativo assume tão clarificadoramente a sua opção pela tutela exclusiva dos menores que julgamos despiciendas considerações acerca dos elementos de interpretação das normas. Contudo, numa perspectiva de melhor alcançar o verdadeiro sentido e alcance do texto legal, decantaremos, ainda que de forma breve, os factores hermenêuticos de interpretação que, tradicionalmente, se centram no elemento gramatical e no elemento lógico, o qual se subdivide nos elementos racional ou teleológico, sistemático e histórico[6]. O enunciado linguístico das normas convocadas, como aflorámos, é portador do sentido que definimos – a protecção pelo Estado do direito a alimentos é conferida aos menores – sem que possa comportar outro sentido, eliminando, por isso, todos os demais sentidos que não tenham ressonância nas palavras da lei.
O elemento racional ou teleológico, relativo ao fim visado pelo legislador ao elaborar a norma, ratio legis, repesca-se nas circunstâncias políticas, sociais, económicas, morais ou outras que sustentaram a feitura da norma. Ora, a ponderação dos interesses regulados pelas normas está bem expressa nas notas preambulares do diploma regulamentador (o predito Decreto-Lei 164/1999) e inculca, desde logo, pelo apelo ao direito internacional citado, que a sua abrangência é tão só dos menores. Nelas se regista que “(E)ste direito traduz-se no acesso a condições de subsistência mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna”.
O elemento sistemático, que abarca o relevo que outras normas regulamentadoras da mesma matéria assumem na pesquisa da mens legislatoris, alveja somente o interesse dos menores, tal como sucede nas regulações internacionais a que apela o preâmbulo do referido Decreto-Lei 164/1999. E a solução consagrada pelo artigo 1880º do Código Civil não destoa do pensamento unitário do nosso ordenamento jurídico sobre a matéria; constitui um subsídio no mecanismo protectivo do filho, mas prevê não um caso de direito a alimentos mas somente uma extensão da obrigação dos pais para além da menoridade dos filhos, de modo a que lhes seja possível alcançar o termo da sua formação profissional[7]. Com a maioridade dos alimentandos cessa o poder paternal, a sua responsabilidade parental, e com ele a obrigação de alimentos fixada à sombra desse poder-dever. E apenas o circunstancialismo excepcional previsto naquele preceito faculta a obrigação de os pais acautelarem a formação profissional do filho para além da sua menoridade.
O fundamento daquele artigo 1880º é a incapacidade económica do filho para prover ao seu sustento e educação e, por isso, quando as circunstâncias o impuseram, apesar da maioridade do filho, os pais têm o dever de continuar a suportar as despesas inerentes à completude da sua formação profissional. A norma ampara a incapacidade económica do filho maior para prover ao seu sustento. Trata-se de uma obrigação excepcional, de carácter temporário, balizada pelo tempo necessário ao completar da formação profissional do filho, sujeita a um critério de razoabilidade, aferido em função da carência do filho que, com justificação séria, necessita do auxílio paternal pelo tempo normalmente requerido para que a formação se complete[8]. “... Não se trata de um caso de direito a alimentos, mas de uma extensão da obrigação dos pais para além da menoridade dos filhos, de modo a que a estes seja, na prática, possível alcançar o termo da sua formação profissional. O auxílio assumirá a forma que melhor permita alcançar esse desígnio”[9].
A natureza deste dever dos progenitores afasta, desde logo, a sua inserção no quadro dos alimentos previstos para menores, esses sim garantidos pelo Estado como direito fundamental às prestações estaduais positivas sempre que esteja em causa o direito ao mínimo de existência condigna.
Rejeitamos in totum a alegação do recorrente de que aquela norma é um afloramento de que os alimentos devidos pelo progenitor se prolongam durante a maioridade e, consequentemente, verificados os respectivos requisitos, mantém-se a obrigação do FGADM de o substituir quando o mesmo não possa garantir a sua prestação.
Solução que surge confirmada pelo elemento sistemático de interpretação da lei, já que a interpretação deve ter em conta a unidade do sistema jurídico e é feita em função da inserção da norma numa ordem jurídica global[10]. Assim, contextualizada a norma interpretanda com a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo[11], aferimos que esta considera, para efeitos de aplicação de medidas de promoção e protecção de crianças e jovens em perigo, criança ou jovem a pessoa com menos de 18 anos ou a pessoa com menos de 21 anos que solicite a intervenção iniciada antes de atingir os 18 anos [artigo 5º, a)]. Lei que, nessa área, baliza a intervenção do Estado até aos 18 anos e que só excepcionalmente a reputa de prorrogável até aos 21 anos.
A regulamentação do regime de execução das medidas de promoção dos direitos e de protecção das crianças e jovens em perigo, previstas nessa Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo[12], especifica diversas medidas que visam promover e proteger a criança ou o jovem e, quanto a este, define um conjunto de direitos e deveres que propiciam a sua participação na selecção e execução das medidas aplicadas (artigos 35º e 36º), adoptando o binómio criança/jovem, sempre a significar que a intervenção social do Estado se limita até aos 18 anos. A situação de excepção em que intervém para além da menoridade está expressamente definida em apertados requisitos formais e substanciais. Daí que nos pareça que, sob este ponto de vista, também na regulamentação da intervenção do Estado no garantir dos alimentos a menores, o legislador, se tivesse em vista a protecção de maiores com formação profissional por completar, o teria afirmado inequivocamente.
Do mesmo modo, o elemento histórico, sustentado pelas fontes legais que inspiraram o legislador, designadamente as normas de direito internacional aludidas, declina a pretendida interpretação.
Tudo a repelir a interpretação extensiva da norma no sentido de enquadrar os alimentos devidos a filhos maiores. Todos os elementos interpretativos mencionados nos determinam a considerar que o pensamento legislativo é o que está traduzido no texto da lei; este não fica aquém desse pensamento; ao invés, a letra da lei corresponde ao seu espírito[13].
Interpretação que vai de encontro à própria ratio legis; o objectivo do legislador foi apenas o de proteger crianças e jovens menores, proporcionando-lhes os meios económicos judicialmente fixados para poderem desenvolver-se física e intelectualmente. Cessando a obrigação de alimentos fixados em atenção à menoridade das crianças, também não pode subsistir a responsabilidade do FGADM, a qual só existe enquanto houver lugar à prestação dos alimentos por parte dos progenitores nos termos judicialmente fixados[14].
A decisão impugnada, de forma fundamentada, defende que o FGADM
actua no cumprimento de uma obrigação de garantia própria de um Estado Social com deveres sociais constitucionalmente consagrados e, portanto, excepcionalmente, se, no momento em que atingir a maioridade, o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação do Fundo desde que verificados os pressupostos da sua intervenção e ainda os requisitos definidos pelo mencionado artigo 1880º do Código Civil. Para tanto, propugna que essa norma consagra “um verdadeiro direito a alimentos” e que o argumento filológico é de afastar, pois cabe ao intérprete “interpretar as normas de acordo com o espírito que às mesmas subjaz, e não de acordo com a nomenclatura do diploma em que as mesmas se encontram”. Assim adere à tese assumida pelo Senhor Juiz Conselheiro Fonseca Ramos no voto de vencido ditado no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 26-11-2001[15], no sentido de que “se a prestação do fundo já existia antes, ela deve continuar abrangendo, agora os alimentos educacionais, desde que obtida a obrigatória autorização do Tribunal, sendo igual a paridade entre o dever paternal e o dever do Estado”.
Vejamos se este enquadramento é suportado pelos princípios constitucionais que consagram um direito das crianças à protecção da sociedade e do Estado (artigo 69º). Este direito é “um típico direito social, que envolve deveres de legislação e de acção administrativa para a sua realização e concretização” e que abarca também “um direito negativo das crianças a não serem abandonadas, discriminadas ou oprimidas”[16]. Contudo, a realização deste direito não cabe apenas ao Estado, mas também à sociedade, primacialmente à família, onde se incluem os progenitores, relativamente aos quais as crianças têm o direito à manutenção e educação, com o correlativo dever que sobre aqueles impende (artigo 36º, n.º5, da C.R.P.).
A Constituição não delimita normativamente a noção de criança, mas a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança[17] fá-lo considerando como criança todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo (artigo 1º). Estamos convictos que o nosso legislador constitucional não foi alheio a esta precisão do sentido atribuível ao termo “criança” e que foi esse o alcance que lhe deu ao vertê-lo no texto constitucional, tanto mais que separa os direitos da criança dos direitos dos jovens (artigo 70º).
Retomamos o que dissemos acerca da tarefa interpretativa da lei, partindo do seu elemento literal para perscrutar a mens legislatoris e tendo em conta que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em moldes adequados (artigo 9º, nº 3, do Código Civil). A letra da lei não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação, o que significa que o texto funciona também como limite de busca do espírito[18].
O texto da norma constitucional, enquadrado nos moldes descritos, não revela minimamente que o legislador tenha tido em vista um reforço de protecção social para além da menoridade, pelo que não nos parece que esteja constitucionalmente consagrado qualquer alargamento do amparo conferido às crianças pelo Estado, mesmo quando os filhos maiores necessitam do apoio dos progenitores para completar a sua formação profissional. Para concluir com Oliveira de Ascenção[19] “(S)e se prescinde totalmente do texto já não há interpretação da lei, pois já não estaremos a pesquisar o sentido que se alberga em dada exteriorização… não se estaria a interpretar a lei mas a postergá-la, chegando-se a sentidos que não encontrariam na letra qualquer apoio”.
Cremos ter sido opção do legislador ordinário, que agiu no âmbito da sua liberdade de conformação política, restringir a protecção do FGADM somente a menores. Não se encontrava, no entanto, constitucionalmente vinculado a legislar doutro modo, a prever a intervenção do FGADM para além da menoridade dos carenciados de protecção social. O direito fundamental à segurança social (artigo 63º, 1 e 3), inscrito sistematicamente no grupo dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, tem uma dimensão que impõe ao legislador ordinário o assegurar a todos os cidadãos a sobrevivência e existência condignas. É um típico direito social de natureza positiva, cuja realização exige o fornecimento de prestações por parte do Estado, impondo-lhe verdadeiras obrigações de fazer e de prestar. O incumprimento de tais obrigações constitucionais pode traduzir-se numa omissão inconstitucional[20].
Não cremos que uma omissão deste jaez se verifique no caso. Os princípios constitucionais da proibição de uma política declaradamente anti-social e de ordenação das tarefas e prioridades (artigos 2º e 9º), enquanto princípios limite das acções do legislador, determinam-no a uma ponderação dos valores jusfundamentais que se encontrem em causa e só proíbem a violação do “núcleo essencial” do direito consagrado[21]. Ora, o legislador democrático dispõe de um poder próprio de conformação para estabelecer a forma, a medida e o grau em que concretiza as imposições constitucionais e a não integração da situação que apreciamos no campo da protecção do FGADM cai no âmbito da sua liberdade conformadora. Aliás, se o “filho maior” reunir condições para aceder às prestações sociais instituídas, esse direito não lhe será declinado e, por essa via, lhe será assegurada a protecção social de que necessita.
Ante o exposto, concluímos que o regime de substituição do progenitor carenciado pelo FGADM na prestação de alimentos não se aplica ao filho maior que deles careça para completar a sua formação profissional.

V. Decisão
Face ao expendido, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso e, em conformidade, revogar a decisão recorrida e declarar cessada a obrigação do FGADM de providenciar pelos alimentos estabelecidos a favor de B….

Custas do recurso a cargo do recorrido, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Honorários ao patrono nomeado em função da tabela legal.

Porto, 15 de Novembro de 2011
Maria Cecília de Oliveira Agante dos Reis Pancas
José Bernardino de Carvalho
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
______________________
[1] Litiga com benefício de apoio judiciário nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos do processo e nomeação e pagamento de compensação a patrono.
[2] Doravante identificado pela sigla “FGADM”.
[3] Organização Tutelar de Menores, aprovada pelo Decreto-Lei 314/1978, de 27 de Outubro.
[4] Aprovada pelo Decreto-Lei 52/2008, de 13 de Novembro, entrada em vigor em 11 de Agosto de 2011.
[5] Ac. R. C. de 12-04-2005, in CJ, tomo II, pág. 18; in www.dgsi.pt: Acs. R.P. de 7-01-2003, ref. 0120725; de 5-03-2002, ref. 0121980; de 20-11-2001, ref. 0121540.
[6] J. Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 1990, pág. 181.
[7] Rodrigues Bastos, “Notas ao Código Civil”, 2002, pág. 107.
[8] Tribunal Constitucional, Decisão Sumária de 24-03-2010, proferida no processo n.º 105/2010, in www.dgsi.pt.
[9] Rodrigues Bastos, “Notas ao Código Civil”– edição de 2002 – em comentário ao artigo 1880º do Código Civil.
[10] José de Oliveira Ascensão, “O Direito - Introdução e Teoria Geral”, 6ª ed. Revista, pág. 380.
[11] Aprovada pelo Decreto-Lei 147/1999, de 1 de Setembro.
[12] Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 12/2008, de 17 de Janeiro.
[13] J. Baptista Machado, ibidem, pág. 185.
[14] Ac. R. P. de 20-11-2001, in www.dgsi.pt, ref. 0120781.
[15] In www.dgsi.pt., ref. 0151505.
[16] Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa” Anotada, I, 4ª ed. Revista, pág. 869.
[17] Aprovada na Resolução 44/25 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de Novembro de 1989, que entrou em vigor na ordem jurídica portuguesa em 21 de Outubro de 1990, conforme ratificação operada pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12 de Setembro, publicado no Diário da República, I Série A, n.º 211/9, com depósito do instrumento de ratificação junto do Secretário-Geral das Nações Unidas em 21 de Setembro de 1990, cujo Aviso do Ministério dos Negócios Estrangeiros foi publicado no Diário da República, I Série, n.º 248/90, de 26 de Outubro.
[18] José de Oliveira Ascensão, ibidem, pág. 368.
[19] Obra e loc. cit.
[20] Gomes Canotilho e Vital Moreira, ibidem, I, págs. 814 e 815.
[21] Ac. Tribunal Constitucional nº 651/2009, de 15-12-2009, in www.dgsi.pt.