Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8436/09.5TBVNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA CECÍLIA AGANTE
Descritores: OBRIGAÇÃO ILÍQUIDA
TÍTULO EXECUTIVO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
OBRIGAÇÃO
PAGAMENTO DE RENDAS
ARRENDATÁRIO
FIADOR
RENDAS VENCIDAS
Nº do Documento: RP201110188436/09.5TBVNG-A.P1
Data do Acordão: 10/18/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA A DECISÃO.
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTIGO 805º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 1039º DO CÓDIGO CIVIL, 15, Nº2, DO NRAU
Sumário: I - Na a liquidação da obrigação ilíquida incumbe ao quando ela dependa de simples cálculo aritmético, e tem de ser efectuada no requerimento executivo.
II - Dentre as situações em que a liquidação depende de cálculo aritmético e pode ser efectuada pelo exequente no requerimento inicial encontra-se a obrigação de pagamento de rendas (artigo 1039° do Código Civil).
III - O contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante das rendas em dívida, constitui, nos termos do artigo 15, n° 2, do NRAU, título executivo para o pagamento das rendas não apenas contra o arrendatário, mas também relativamente aos fiadores.
IV - A exequibilidade desse título é extensiva às rendas que se vencerem entre a comunicação efectuada ao arrendatário e a efectiva entrega do locado, uma vez que a sua liquidação depende de simples cálculo aritmético efectuado pelo exequente no requerimento executivo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 8436/09.5 TBVNG-A.P1
Oposição à Execução 8436/09.5-ATBVNG, Juízo de Execução do Tribunal Judicial de
Vila Nova de Gaia

Acórdão

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
1. B… e esposa, C…, residentes na Rua …, …, em …, por apenso aos autos de execução comum para pagamento de quantia certa que lhes move D…, residente na Rua …, …, em …, deduzem oposição à execução, invocando a inexistência de título executivo e a insuficiência do título. Primeiro, porque o mesmo não serve de título contra os fiadores, que não foram sequer ter notificado nos termos e para os efeitos do disposto no nº1 do art. 1084º do Código Civil. Para alcançar título executivo contra os fiadores, teria o exequente de socorrer-se de acção declarativa prévia. A insuficiência do título executivo deriva do facto da comunicação ao arrendatário, em 26/01/2009, atestar o montante de rendas em dívida em 2.695,00 euros quando reclama a quantia exequenda de 5.815,00 euros, referente a rendas vencidas até à efectiva desocupação do locado, ocorrida em 23/07/2009, acrescida da indemnização prevista no art. 1045º, 2, do Código Civil. A força executória do título apresentado só abrange o montante das rendas em dívida constantes de tal comunicação feita ao arrendatário. Concluíram pela procedência da oposição à execução e extinção da execução ou, assim não sendo, a sua extinção parcial, por insuficiência de título, determinando-se o seu prosseguimento apenas para cobrança da quantia de 2.695,00 euros.

2. Contestou o exequente, alegando que o NRAU, a propósito da execução do fiador, não alterou o regime geral que vigora para a fiança. Criou um título executivo que é comum a afiançados e seus fiadores fundado na vontade do locador de resolver o contrato por falta de pagamento de renda, notificada aos locatários. A renda é devida até à desocupação e efectiva entrega do locado. Rematou com a defesa da improcedência da oposição.

3. Em despacho saneador sentença, foi julgada improcedente a oposição à execução.

4. Inconformados, apelaram os executados/oponentes que, assim, finalizaram a sua alegação:
4.1. O título executivo constitui a base da execução, por ele se determinando o fim e os limites da acção executiva, isto é, o tipo de acção e o seu objecto, assim como a legitimidade activa e passiva para ela.
4.2. A acção executiva que foi intentada trata-se de uma execução para pagamento de quantia certa.
4.3. A enunciação feita pela lei de quais os títulos executivos é taxativa, pelo que só são exequíveis os documentos que se enquadrem nalguma daquelas espécies enunciadas no artigo 46º do CPC, sendo que, em relação à previsão da alínea d) do nº 1 do preceito, só são exequíveis os documentos a que, nos exactos termos da disposição especial, seja atribuída força executiva.
4.4. Os documentos que fundamentam a presente execução não são aqueles a que o nº 2 do artigo 15º do NRAU – a tal disposição especial – atribui força executiva, para efeitos de execução para pagamento de quantia certa (rendas).
4.5. O exequente não fundou a execução no contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante das rendas em dívida, como impõe o nº 2 do artigo 15º do NRAU, mas sim no contrato de arrendamento acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no nº 1 do artigo 1084º do Código Civil, o que não constitui título adequado a este tipo de execução.
4.6. Diz, bem, a sentença que é título para a execução para pagamento de quantia certa o contrato de arrendamento acompanhado do documento comprovativo da comunicação ao arrendatário das rendas em dívida, só que não atentou que não é esse o caso dos autos, que não foi esse o título junto.
4.7. E nem se diga que a notificação feita nos termos do nº 1 do artigo 1084º do Código Civil pode servir para fundar a execução para pagamento de rendas prevista no nº 2 do artigo 15º do NRAU, primeiro porque não é isso o que resulta dos exactos termos do preceito, e depois porque, da carta remetida para efeitos de resolução, não consta o devido e objectivo acertamento da prestação, ou seja, não consta o montante de rendas em dívida até à propositura da execução.
4.8. Resulta assim do exposto evidente que inexiste título executivo para a presente execução para pagamento de renda.
Sem prescindir, e por cautela,
4.9. Acresce que não resulta da previsão do nº 2 do artigo 15º do NRAU que a mesma abranja o fiador, porque na norma é feita apenas referência ao arrendatário.
4.10. O contrato não se pode configurar, quanto aos fiadores, título bastante, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 2 do artigo 15º do NRAU, disposição especial que confere força executiva nos exactos termos nela previstos, atenta a taxatividade dos títulos executivos prevista no artigo 46º do CPC.
4.11. Também mal andou a sentença recorrida no que tange ao objecto da acção executiva, pois definindo o título os limites da acção executiva, é evidente que só pode ser executada a quantia que consta do título, ou seja, o valor indicado em dívida na comunicação ao arrendatário remetida para efeitos do nº 2 do artigo 15º do NRAU.
4.12. Ora, no caso, estamos perante uma carta remetida para efeitos do nº 1 do artigo 1084º do Código Civil, em que o valor indicado em dívida, para fundamentar a resolução, era de 2.695,00 euros (rendas vencidas até Novembro de 2008), no entanto a quantia exequenda reclamada é de 5.815,00 euros. Com que título? – Perguntamos.
4.13. Mesmo que se lhe reconhecesse força executiva para a presente execução, ficcionando tratar-se de comunicação diversa, sempre o objecto da execução nunca poderia ir para além do indicado montante em dívida dela constante.
4.14. O facto é que o título não certifica qual o valor em dívida, como manda o nº 2 do artigo 15º do NRAU e obriga o disposto no artigo 45º nº 1 do CPC, nos termos do qual o título executivo contém o devido “acertamento” da dívida.
4.15. Assim, é forçoso concluir que as rendas vencidas após a comunicação feita ao arrendatário não podem ser objecto da execução que tem por base essa comunicação (no caso, as rendas vencidas após Novembro de 2008).
4.16. Acresce ainda ser falso o fundamento, nesta parte, da sentença que afirma que a quantia peticionada se refere apenas a rendas em atraso até à entrega do locado, pois como se lê da exposição de factos constante do requerimento executivo, para além das rendas está também peticionada uma indemnização, a qual, não só não consta do título, como não foi decidida por qualquer decisão judicial, pelo que não pode a mesma ser objecto da execução.
4.17. Acresce que, ao contrário do que acontece com a obrigação de pagamento da renda prevista contrato que foi subscrito por arrendatários e fiadores, a indemnização corresponde a uma obrigação que decorre da lei e já não do contrato. Daí que, não estando prevista no contrato, este não pode constituir título executivo em relação à referida indemnização, na medida em que quod non est in titulo non est in mundo.
4.18. Por último, e quer quanto às rendas vencidas após comunicação, quer quanto à indemnização, o nº 2 do artigo 15º do NRAU confere força executiva ao contrato de arrendamento acompanhado da comunicação ao arrendatário do montante em dívida, apenas para a “a acção de pagamento de renda.” - ou seja, a norma exclui, pela sua redacção, o pagamento de qualquer outra quantia (por mais devida que porventura, fosse).
4.19. Convenhamos que, se para os simples juros de mora, que decorrem da lei, estando previstos no artigo 805º ss do C.Civil, para todo e qualquer título executivo há uma expressa norma prevendo a sua abrangência pelo título executivo, como se pode admitir ser dispensável norma expressa prevendo a abrangência pelo título para a indemnização por atraso na entrega ou pela mora pelo pagamento da renda, que igualmente decorre da lei, e está igualmente prevista no C.Civil?
4.20. Se o legislador quisesse estender a força executiva do contrato de arrendamento e comunicação com montante devido, à sobredita indemnização, tê-lo-ia feito.
4.21. Interpretação diferente choca com o elemento gramatical, sistemático e a ratio do preceito.
4.22. Assim, cremos evidente que mesmo que se entendesse existir título para a presente execução para pagamento de quantia certa – o que não se concede – o título não seria, de forma alguma, suficiente para toda a quantia exequenda, mas tão só para a quantia de 2.695,00 euros.
4.23. E isto, na hipótese académica e remota de se confundir, ou fazer analogia entre a comunicação ao arrendatário do montante em dívida a que se refere o nº 2 do artigo 15º do NRAU com a comunicação prevista no nº 1 do artigo 1084º do C. Civil, a que se refere a alínea e) do nº 1 do mesmo preceito, o que, atento o disposto no nº 1 do artigo 45º do CPC, e pelas razões supra aduzidas, não é legalmente admissível.
4. 24. A decisão proferida viola o disposto nos artigos 45ºnº 1 e 46º nº 1 al d) do CPC, bem como no artigo 15º nº 2 do NRAU.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogada a sentença recorrida e julgada extinta a execução.

5. Não foi apresentada resposta à alegação dos apelantes.

II. Objecto do recurso
Face ao teor das conclusões recursórias do apelante, em função das quais se delimita o objecto do recurso, as questões a resolver consistem em saber se há título executivo e, em caso afirmativo, se ele comporta a quantia exequenda.

III. Fundamentação de facto
O contexto processual relevante para decisão das questões suscitadas é o seguinte:
1. D… instaurou a execução para pagamento de quantia certa contra B… e C…, com base no contrato de arrendamento para a habitação celebrado em 16-02-2006 com E…, constante do documento junto com o requerimento executivo, sendo a quantia exequenda de 5 815 euros (12 meses a 260 € = 3120 € mais 95 € em atraso, mais 5 meses a 520 €).
2. Nesse contrato, o exequente declarou dar de arrendamento a E… o prédio urbano sito na Rua …, n.º … e …, Casa ., em …, Vila Nova de Gaia, com início em 1-03-2006, pelo período de cinco anos, pela renda mensal de 260,00 euros.
3. Contrato que foi também subscrito por B… e C…. que, na qualidade de fiadores, assumiram solidariamente a responsabilidade pelo cumprimento de todas as cláusulas contratuais e renunciaram ao benefício de excussão prévia.
4. Em 26-11-2008, o exequente dirigiu carta ao arrendatário comunicando-lhe que a última renda paga se reportou a Fevereiro de 2008, estando por pagar todas as demais rendas vencidas, num total de 2.600,00 euros, a que acrescem 95,00 euros relativos à parte da renda de um mês que ficou por pagar, assim globalizando 2.695,00 euros.
5. Mais lhe comunicou: “O atraso no pagamento da renda permite que eu resolva o contrato de arrendamento, o que faço pela presente notificação… Devem os Senhores e os fiadores fazerem pagamento da renda vencida e não paga no montante de 2.695,00 euros, a que acrescem as rendas que se vencerem até à efectiva entrega da casa, nas condições estabelecidas no contrato. A presente notificação é feita pessoalmente em cumprimento do estabelecido no artigo 1084º, n.º1, do Código Civil e obedecendo ao disposto no n.º 7 do artigo 9º do NRAU.
6. Em 26-01-2009 foi o arrendatário pessoalmente notificado da resolução do contrato de arrendamento e para proceder à imediata entrega do locado.
7. Em 23-07-2009 foi feita a entrega coactiva do locado ao exequente.
8. Em 27-07-2009, o Exm.º advogado do exequente remeteu aos fiadores/executados carta em que lhes comunicou que, à data em que operou o despejo, o afiançado devia as seguintes quantias: 17 meses de renda no montante de 260,00 euros cada e 95,00 euros em atraso, num total de 4.515,00 euros; custas judiciais no valor de 24,00 euros; despesas para a resolução do contrato no montante de 132,00 euros; honorários ao solicitador de execução na quantia de 345,60 euros.

IV. Fundamentação de direito
1. Está comprovado que o exequente outorgou com E… um contrato mediante o qual lhe disponibilizou o uso de um imóvel para a habitação, vinculando-se este a pagar-lhe uma contraprestação pecuniária de 260,00 euros mensais. Estas recíprocas declarações recíprocas de exequente e E… subsumem-se à celebração de um contrato de arrendamento para a habitação pelo período de cinco anos, com o seu início em 1-03-2006.
O Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, doravante designado por NRAU, aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, em 28 de Junho de 2006, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data (artigo 59º, 1, NRAU). E esta aplicação imediata do direito substantivo às relações de arrendamento pré-existentes, aplica-se, por maioria de razão, ao direito adjectivo, incluindo aos requisitos de formação dos títulos executivos.
A tal respeito, prevê o artigo 15º, 2, do NRAU que o contrato de arrendamento é título executivo para a acção de pagamento de renda quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida. Comunicação essa que obedece ao formalismo exarado no artigo 9º do mesmo diploma legal e que deve ser feita por meio de carta registada com aviso de recepção, dirigida ao arrendatário e remetida, na falta de indicação deste em contrário, para o local arrendado.

Assim, o contrato de arrendamento é título executivo para a cobrança coerciva de rendas, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, remetida por carta registada com aviso de recepção. Asserção de que os apelantes não discordam. A sua divergência reside na inexequibilidade desses elementos perante os fiadores, ao afirmar que, como foram demandados na acção executiva devido à sua qualidade de fiadores, não dispõe o exequente de título executivo para lhes exigir a cobrança coerciva das rendas em dívida, sendo necessária uma acção declarativa que a tanto os condene.
Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da execução (artigo 45º do Código de Processo Civil). O título é a condição necessária e suficiente da acção executiva. É condição necessária porque sem ele não pode praticar-se nenhum dos actos em que se desenvolve a acção executiva; e é condição suficiente porque, na sua presença, seguir-se-á imediatamente a execução sem que se torne necessário efectuar qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere[1]. O mesmo é dizer que título contém a declaração ou “acertamento” desse direito e, consequentemente, a definição dos elementos subjectivos e objectivos da relação jurídica que é objecto da acção executiva[2]. É o meio legal de demonstração da existência do direito do exequente ou que estabelece, de forma ilidível, a existência desse direito, cujo lastro material ou corpóreo é um documento que constitui, certifica ou prova uma obrigação exequível que a lei permite que sirva de base à execução[3].
Dentre as espécies de títulos executivos taxativamente enunciados no artigo 46º do Código de Processo Civil incluem-se os documentos a que por disposição legal, seja atribuída força executiva [n.º1, al. d)], neles se enquadrando o contrato de arrendamento de prédio urbano, acompanhado de comprovativo da comunicação ao arrendatário, efectuada nos termos do artigo 9º do NRAU, da resolução ou da denúncia do contrato pelo senhorio, nos termos do artigo 1084º, nº1, do C. Civil, como também constitui título executivo para a acção de pagamento de renda o contrato de arrendamento quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida[4].
Atentando na redacção daquele artigo 46º que confere a natureza de título executivo aos documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, prefiguram-se dois tipos de documentos negociais particulares em função da declaração neles contida: a) - os documentos constitutivos da obrigação exequenda, quando deles conste o próprio negócio jurídico que serve de fonte a essa obrigação; b) – os documentos meramente recognitivos da obrigação, mormente de confissão de dívida. Normação que leva a admitir que um contrato de arrendamento escrito donde conste a obrigação de pagamento de rendas, em data previamente fixada, constituirá, por si só, título executivo, de trato sucessivo, para pagamento das rendas em dívida, dependendo a sua liquidação a posteriori de mero cálculo aritmético (artigos 802.º e 805º, nº 1, do Código de Processo Civil)[5].
Vale por dizer que, relativamente ao arrendatário, seria desnecessária qualquer especificação da exequibilidade conferida pelo predito artigo 15º do NRAU, uma vez que a exequibilidade conferida aos documentos particulares delimita a força executória do contrato de arrendamento para a concreta situação da falta de pagamento de rendas. A significar que o NRAU (artigo 15º) impõe maior formalismo do que o documento constitutivo da obrigação exequenda de que conste o próprio negócio jurídico que serve de fonte a essa obrigação, plasmado naquela alínea c) do nº 1 do proclamado artigo 46º. A demonstração da constituição da dívida exequenda emerge do próprio contrato e é escusada a interpelação, por estar em causa obrigação pecuniária de montante determinado e de prazo certo, em que a interpelação é dispensada (alínea a) do nº 2 do artigo 805º do Código Civil). Daí que se entenda que a plausibilidade de tal exigência seja a de obrigar o exequente a proceder a uma prévia liquidação aritmética extrajudicial do montante de rendas em dívida, de forma a conferir maior grau de certeza quanto ao montante peticionado[6]. E cremos nós que esse maior grau de certeza se impõe não pelo arrendatário, que sabe bem o montante de rendas em dívida, mas pelos fiadores, ingénitos co-obrigados pela correspondente obrigação exequenda.
De todo o modo, onde o legislador non distinguit não cabe ao intérprete fazê-lo e o título executivo complexo, composto pelo contrato de arrendamento e pelo documento comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante de rendas em dívida, é necessário para conferir força executiva ao pedido de pagamento coercivo das rendas em dívida[7], seja ao arrendatário seja ao fiador.
As obrigações que para o arrendatário emergem do contrato de arrendamento, maxime a obrigação de pagamento da renda, podem ser garantidas por fiança (artigo 2º, nº 1, NRAU). E do contrato resulta que as rendas em dívida podem ser exigidas coercivamente a qualquer dos devedores ou a todos em conjunto, incluindo aos fiadores. A própria natureza da fiança suporta essa afirmação.
A fiança é o vínculo jurídico pelo qual um terceiro (o fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor[8]. O fiador garante, pois, a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor (artigo 627º, nº 1, do Código Civil). E no reforço da garantia patrimonial imanente à fiança os fiadores executados renunciaram ao benefício de excussão prévia reconhecida ao fiador, através do qual lhe é lícito recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor (artigo 638º do Código Civil).
Perante a exclusão do benefício de excussão prévia e tendo a fiança o conteúdo da obrigação principal e cobrindo as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor (artigo 634º do Código Civil), é desnecessária a interpelação dos fiadores, salvo se houver diversa estipulação[9]. Logo, o título executivo é também extensivo aos fiadores que pessoalmente e com todo o seu património se vincularam em igual medida que o devedor principal, o arrendatário. Conclusão que não é contrariada pelo teor do referenciado artigo 15º, nº 2, do NRAU, que não limita à pessoa do arrendatário a exequibilidade do contrato de arrendamento para a acção de pagamento de rendas quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida.
Considerandos que nos levam a ajuizar que os documentos apresentados pelo exequente, constituídos pelo contrato de arrendamento assinado por arrendatário e fiadores e pelo comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante das rendas em dívida, constituem título executivo, designadamente em relação aos fiadores executados[10].
Não ignoramos que há posições destoantes. Partindo da circunstância de o NRAU concretizar a comunicação ao arrendatário, entendem que a instauração de execução contra o fiador tem de ser suportada por idêntica comunicação[11]. Ubi lex non distinguit, nec nobis distinguere licet. Seria de todo desajustado com o sistema de agilização proposto pelas alterações ao regime do arrendamento urbano obrigar a uma acção executiva contra o arrendatário e uma outra declarativa contra o fiador, tudo apenas para cobrar as rendas em atraso. Para mais sabendo-se da importância do instituto da fiança nos contratos de arrendamento. Na normalidade das situações, sempre o senhorio exige que no contrato intervenha alguém que se responsabilize com o seu património pelo pagamento da renda e demais despesas, pois quem procura casa para arrendar raramente tem bens que se conheçam[12].
De todo o modo, a questão nem sequer aqui se levanta, já que o mandatário do exequente dirigiu aos fiadores comunicação dos valores em dívida, especificando as rendas por pagar.
A tanto opõem os apelantes que os documentos juntos com o requerimento executivo não correspondem aos enunciados naquele artigo 15º, 2, do NRAU, já que a notificação operada não exibe o montante das rendas em dívida. Esta asserção não traduz o que a execução documenta. Encontram-se juntos aos autos o contrato de arrendamento e uma comunicação ao arrendatário, datada de 26-11-2008, em que o exequente lhe comunica que a última renda paga se reportou a Fevereiro de 2008 e que estão por pagar todas as demais rendas vencidas, num total de 2.600,00 euros, a que acrescem 95,00 euros relativos à parte da renda de um mês que ficou por pagar, assim globalizando 2.695,00 euros. Documentos que correspondem à enunciação do citado preceito do NRAU.
É certo que essa comunicação foi feita em simultâneo com a intimação resolutiva do contrato, a que alude o n.º1 do artigo 1084º do Código Civil, a qual tem também força executiva para a entrega do locado, mas não lhe retira eficácia para o pedido coercivo das rendas. Daí a falência dos argumentos dos apelantes.

2. Os oponentes executados defendem ainda, em via subsidiária, que a força executória dos referidos documentos apenas abrange o montante das rendas em dívida constante da comunicação feita ao arrendatário, no montante de 2.695,00 euros. No fundo atacam o objecto da acção executiva, apontando a insuficiência parcial do título executivo e invocando, como fundamento, um acórdão deste Tribunal da Relação.
O exequente pretende cobrar a quantia de 5.815,00 euros, reportada às rendas vencidas até à comunicação efectuada ao arrendatário, no valor de 2.695,00 euros, às que se venceram após essa comunicação até à efectiva entrega do locado e a indemnização pelo atraso na restituição do locado.
Quanto à indemnização não temos dúvidas que o título não comporta a sua realização coactiva. Como vimos, o artigo 15º, 2, do NRAU é claro na afirmação de que constitui título executivo para a acção de pagamento de rendas (sublinhado nosso) o contrato de arrendamento quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida. Logo, o título executivo não confere ao exequente suporte para a realização coactiva do valor inerente à indemnização pela mora na restituição do locado, a que se refere o artigo 1045º, 2, do Código Civil, mas somente para o pagamento de rendas.
Resta indagar se o título abrange as rendas vencidas entre a comunicação ao arrendatário e a efectiva entrega do locado.
A decisão jurisprudencial invocada pelos apelantes na sua alegação é no sentido que propugnam, ou seja, entende que o título executivo abarca apenas o valor das rendas ínsito à comunicação feita ao arrendatário[13]. Solução que não sufragamos, não obstante o muito respeito devido por essa opinião.
Reflictamos acerca do âmbito desse título executivo quanto ao arrendatário.
É inquestionável que o locador, aquando da comunicação ao arrendatário do valor de rendas em mora, só pode “liquidar” as vencidas até essa data, as quais se continuam a vencer até à efectiva entrega do locado. Rendas essas que o locador, aquando da instauração da execução, está legitimado a liquidar no requerimento executivo, tal como o plasmado no artigo 810º, 1, h), do Código de Processo Civil[14].
Para efeitos de execução é ilíquida a obrigação cujo quantitativo se não encontra determinado[15]. E para tornar líquida a obrigação, a liquidação incumbe ao exequente, ao juiz ou a árbitros. A liquidação por exequente tem lugar quando ela dependa de simples cálculo aritmético, efectuada no requerimento executivo, onde o exequente, depois de proceder a contas e operações, formula o pedido como líquido (artigo 805º do Código de Processo Civil).
Dentre as situações em que a liquidação depende de cálculo aritmético e pode ser efectuada pelo exequente no requerimento inicial encontra-se a obrigação de pagamento de rendas (artigo 1039º do Código Civil)[16]. Julgamos, por isso, que a configuração deste título executivo contém todos os dados para o cálculo aritmético dos montantes devidos, sem que seja imprescindível uma prévia e extraprocessual liquidação através da comunicação efectuada ao arrendatário. De facto, neste caso, a liquidação resume-se a uma operação aritmética, por forma a que a iliquidez desaparece em função das contas realizadas pelo exequente, que acaba por formular um pedido líquido. Se o executado se não opõe, a execução prossegue em função do pedido deduzido. Se o executado reagir através de oposição, caberá ao juiz decidir.
Solução que não nos oferece dúvidas, uma vez que o recurso ao procedimento executivo previsto para a obrigação líquida numa parte e ilíquida noutra faculta ao credor que requeira a imediata execução quanto à parte líquida e a liquidação da parte ilíquida na pendência da execução (artigo 805º, n.º 8 e 9 do Código de Processo Civil). Por maioria de razão, é processualmente admissível que, estando já vencidas as prestações, o credor, em função do cálculo aritmético apresentado no requerimento executivo, procede à imediata liquidação da quantia em dívida.
Este juízo é validado pela possibilidade de renovação da execução, mesmo após a sua extinção, quando está em causa um título de trato sucessivo (artigo 920º do Código de Processo Civil). Tratando-se de prestações periódicas, podem compreender-se no pedido tanto as prestações vencidas como as que se vencerem enquanto subsistir a obrigação. E um título de trato sucessivo mais não é do que um título com força suficiente para servir de base a execuções sucessivas, de modo a que, enquanto se mantiver a obrigação, fundado nele, o credor pode promover uma série sucessiva de execuções, tantas quantas as prestações que o devedor deixar de pagar[17].
O título extrajudicial aqui apresentado pelo exequente é de trato sucessivo, pois o contrato de arrendamento contém a estipulação de várias e sucessivas prestações futuras, enquanto a comunicação ao arrendatário não passa de uma “liquidação extrajudicial” meramente conformadora da relação obrigacional que o une ao locador. Natureza que deriva da própria estrutura da obrigação do locatário e que dispensa o credor de recorrer à acção declarativa cada vez que o devedor não cumpre a prestação, porque expressamente estipulada no título executivo negocial, mas não o escusa de renovar a acção executiva para pagamento daquilo que, entretanto, se vencer[18].
Convocados estes princípios para o quadro que esta execução exibe, parecer-nos-ia aceitável que o locador usasse o título executivo apresentado para renovar a execução cada vez que o arrendatário não pagasse uma renda. Desfecho que aqui se não justifica, porque estão vencidas todas as rendas e o locador procedeu à sua liquidação no requerimento executivo mediante simples operação aritmética, que, em si, nem sequer é contestada pelos executados.
Considerandos que têm plena aplicação em relação aos fiadores. Dentre as características distintivas da obrigação do fiador avulta a da sua acessoriedade (artigos 627º, nº 2, 628, nº 1, 631º, nº 1, e 651º do Código Civil), pelo que a obrigação do fiador depende da obrigação principal. Embora a fiança possa ser contraída em quantidade inferior à obrigação principal e em condições menos onerosas, nada sendo convencionado, o conteúdo da obrigação do fiador é o mesmo que o da obrigação principal, cobrindo as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor (artigo 634 do Código Civil). Assim, como a medida da obrigação dos fiadores executados se encontra definida pela obrigação do arrendatário, a força executória do título conferido pela lei ao arrendatário é, como assinalámos, extensiva aos fiadores. E a medida da força executiva do título, em função da acessoriedade da sua obrigação, tem de ser a mesma que é atribuída para o arrendatário.
Negar a exequibilidade intrínseca ao título executivo em causa na relação com os fiadores e na medida exposta instituiria um desnecessário entorpecimento no acesso à justiça, obrigando o exequente a recorrer à acção executiva contra o arrendatário, tendo em vista a realização coactiva das rendas devidas, à acção declarativa para obter a condenação dos fiadores e ulteriormente, sendo caso disso, à execução da sentença assim alcançada. Triplicação de litígios que obrigaria o credor a percorrer o acidentado caminho de articulados, instrução, discussão e julgamento da causa, sem que a repetição de acções, declarativa e executiva, lograsse alcançar um efeito útil diverso daquele que atingimos por esta via de entendimento,
Posto isto, concluímos que o título executivo comporta o pedido de pagamento de rendas vencidas e não pagas, num total de 4.515,00 euros, devendo a execução prosseguir para a correspondente satisfação do direito do exequente, com a consequente extinção da execução quanto à restante quantia exequenda, relativa à indemnização pelo atraso na restituição do locado.
Em súmula:
1. O contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante das rendas em dívida, constitui, nos termos do artigo 15, nº 2, do NRAU, título executivo para o pagamento das rendas não apenas contra o arrendatário, mas também relativamente aos fiadores.
2. A exequibilidade desse título é extensiva às rendas que se vencerem entre a comunicação efectuada ao arrendatário e a efectiva entrega do locado, uma vez que a sua liquidação depende de simples cálculo aritmético efectuado pelo exequente no requerimento executivo.

V. Decisão
Ante o expendido, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em julgar a apelação parcialmente procedente e, na parcial procedência da oposição à execução, determinar o prosseguimento da mesma quanto à quantia de 4.515,00 euros (quatro mil, quinhentos e quinze euros) e declará-la extinta quanto à restante quantia exequenda.
Custas da apelação e da oposição a cargo de exequente e executados na proporção do decaimento, ficando as da execução, até ao momento processual em que se encontra, a cargo do exequente no tocante à quantia em que sucumbiu (artigo 446º do Código de Processo Civil; artigo 6º, 2, e Tabela I-B do Regulamento das Custas Processuais).
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Porto, 18 de Outubro de 2011
Maria Cecília de Oliveira Agante dos Reis Pancas
José Bernardino de Carvalho
Eduardo Manuel B. Martins Rodrigues Pires
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[1] Artur Anselmo de Castro, “A acção executiva singular, comum e especial”, 3ª ed., pág. 14.
[2] José Lebre de Freitas, “A acção executiva depois da reforma”, 4ª ed., pág 35.
[3] J. Remédio Marques, “Curso de Processo executivo Comum Face ao Código Revisto”, 1997, págs. 46 e 47.
[4] José Lebre de Freitas, ibidem, pág. 65.
[5] Lebre de Freitas, ibidem, pág. 49; Ac. R. L. de 30-11-2010, in CJ, tomo V, pág. 113.
[6] Ac. R. L. de 30-11-2010, in C.J., tomo V, pág. 113.
[7] Ac. STJ de 5-05-2011, processo 5652/9.3TBBRG.P1.S1; Ac. R. L. de 6-04-2010, in CJ online, processo 19815/09; Ac. R. L. de 12-12-2008, in www.dgsi.pt, process 10790/2008-7.
[8] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, II, 4ª ed., pág. 465.
[9] Acs. STJ de 04-12-2003 e de 01-07-2008, in www.dgsi.pt, ref. 03B3909 e 08A1583.
[10] Acs. R. P. de 12-05-2009, in C. J., tomo III, pág. 182; de 4-05-201, 16-05-2011, 6-10-2009, 23-06-2009, in www.dgsi.pt, processo 3913/08.8TBGDM-B.P1, 515/10.2TBMAI-A.P1, 2789/09.2YYPRT.P1, 2378/07.6YYPRT-A.P1.
[11] Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, "Arrendamento Urbano - Novo Regime Anotado e Legislação Complementar", 3ª ed., revista, actualizada e aumentada, pág. 30.
[12] Ac. R. P. de 23-06-2009, in www.dgsi.pt, processo 2378/07.6YYPRT-A.P1.
[13] Ac. R.P. de 12-05-2009, in CJ, tomo III, pág. 182.
[14] Na redacção dada pelo Decreto-Lei 226/2008, de 20 de Novembro, aplicável às execuções instauradas a partir de 31 de Março de 2009, a que se reportarão todas as normas que do processo executivo foram mencionadas.
[15] J. Remédio Marques, ibidem, pág. 93.
[16] Fernando Amâncio Ferreira, “Curso de Processo de Execução”, 1999, pág. 74.
[17] Alberto dos Reis, “Processo de Execução”, II, Reimpressão, pág. 509.
[18] Alberto dos Reis, ibidem, pág. 512.