Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3277/19.4T8PNF.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO RAMOS LOPES
Descritores: NULIDADES DE SENTENÇA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO DO PLANO
EFEITOS
Nº do Documento: RP202403053277/19.4T8PNF.P2
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Quando a decisão se debruça sobre questão cuja apreciação e sentido decisório as partes não puderam influenciar, está a mesma afectada por nulidade, por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, d) do CPC).
II - Não tem lugar a extinção da acção declarativa de condenação como efeito de homologação de plano de revitalização quando a decisão que o homologa expressamente declara a ineficácia da disposição que determina que com sua a homologação se extinguem as acções declarativas em que se estejam a discutir créditos litigiosos/sob condição.
III - Deve interpretar-se o nº 1 do art. 17º-E do CIRE como excluindo do efeito extintivo as acções concernentes a créditos que continuem a necessitar de definição jurisdicional, designadamente os créditos que, não tendo sido reconhecidos, permaneçam litigiosos ou ilíquidos no momento da homologação do plano de recuperação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 3277/19.4T8PNF.P2

Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Maria Eiró
Fernando Vilares Ferreira


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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

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Apelante: AA (autor).

Apeladas: A..., S.A., e B..., Ld.ª (rés).  

Juízo central cível de Penafiel (lugar de provimento de Juiz 1) – Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este.


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Intentou o autor acção declarativa com processo comum pedindo, com fundamento na responsabilidade contratual, a condenação das rés a pagarem-lhe a quantia de 485.830,32€ (quatrocentos e oitenta e cinco mil oitocentos e trinta euros e trinta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, calculados à taxa.

Tramitada a causa, estando o julgamento agendado para 20/09/2023, a primeira ré, em 15/09/2023, alegando ter transitado a sentença homologatória de plano de revitalização no âmbito de processo especial de revitalização a que se apresentara e correra termos no Juízo de comércio de Amarante e no qual o autor reclamou o seu crédito (que foi reconhecido sob condição), mais referindo que o plano homologado ‘determinou a extinção das ações declarativas em que se esteja a discutir direito de crédito litigioso sob condição, como é o caso dos presentes autos’, impetrou se declarassem extintos os presentes autos.

Nessa mesma data (15/09/2023) foi proferido despacho determinando a notificação do autor para se pronunciar sobre o requerido em um dia (‘atenta a proximidade da data designada para julgamento’).

Em 18/9/2023 foram enviadas aos mandatários cartas para notificação do despacho e foi junta também certidão da decisão, transitada, que no processo especial de revitalização, homologou o plano de revitalização, sendo também nessa data proferido o seguinte despacho:

A 1ª Ré, “A..., S.A.”, vem requerer a extinção dos presentes autos por se ter apresentado a PER, tendo o respetivo processo corrido termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo de Comércio de Amarante - Juiz 3, Proc. nº 1565/22.1T8AMT, tendo sido homologado um plano de revitalização, conforme sentença transitada em julgado, tendo tal plano determinado a extinção das ações declarativas em que se esteja a discutir direito de crédito litigioso ou sob condição, como é o caso dos presentes autos.

O Autor, devidamente notificado para exercer o seu direito de contraditório, nada disse.

Cumpre decidir.

Compulsados os autos verifica-se que a 1ª Ré, “A..., S.A.”, apresentou-se a PER, tendo o respetivo processo corrido termos Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo de Comércio de Amarante - Juiz 3, Proc. nº 1565/22.1T8AMT.

No âmbito do referido processo, o aqui Autor reclamou o seu crédito, tendo o mesmo sido reconhecido sob condição.

O aludido PER encontra-se encerrado, tendo sido homologado um plano de revitalização, conforme sentença proferida em 18/7/2023, transitada em julgado em 8/8/2023, sendo que a Homologação do Plano determinou a extinção das ações declarativas em que se esteja a discutir direito de crédito litigioso ou sob condição, como é o caso dos presentes autos. (cfr. documento junto)

Sendo assim, está verificada, em relação ao presente processo, a situação prevista no segmento final do nº 1 do artº 17º-E do CIRE: as ações para cobrança de dívidas contra o devedor extinguem-se logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação. Apenas é ressalvada a hipótese de o próprio plano prever expressamente a continuação de qualquer dessas ações – o que, manifestamente, não sucede in casu.

Atento o supra exposto, determina-se a extinção da instância por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artº 17º-E, nº 1, do CIRE e 277, al. d) do C.P.C..

Custas pela 1ª Ré.

Registe e notifique.

(…)

Irresignado, pretendendo a revogação de tal decisão e o prosseguimento dos autos, apela o autor, terminando as alegações com as seguintes (muito extensas) conclusões:

A. O aqui Apelante não aceita, nem se pode conformar, com o sentido da decisão proferida pelo Tribunal a quo, mediante Sentença datada de 18-09-2023, com a ref.ª 92974100, sendo sua firme convicção que tal decisão merece censura relativamente à matéria de Direito considerada.

B. Entende o Recorrente que se impunha, em ordem à conformidade da decisão com a legislação em vigor e, em ordem ao incremento da confiança geral no poder judicial, uma decisão diversa, no sentido do indeferimento do requerido pela Ré/ Recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos autos.

C. Com efeito, no entendimento do Recorrente, com a prolação da Sentença de que ora, mui respeitosamente, se recorre, verificou-se uma incorrecta aplicação do Direito.

D. Sempre ressalvando o devido respeito por mais esclarecido entendimento, no do Autor/ Recorrente, o sentido da decisão de que ora se recorre é desprovido de qualquer fundamento legal, sendo, ademais, contrário ao decidido com a Homologação do Plano de Revitalização, no âmbito do processo 1565/22.1T8AMT, que correu termos no Juiz 3, do Juízo do Comércio de Amarante, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este.

E. Subsidiariamente, caso o entendimento deste douto Tribunal Superior venha a ser diverso, o que, sem conceder, ora se admite por dever de patrocínio, igualmente se refira que, ao proferir a Sentença nos termos em que o fez, o Tribunal a quo promoveu uma clamorosa violação do princípio do contraditório, com o que, tal decisão encontra-se irremediavelmente ferida de nulidade.

F. Em adição, ainda que sem conceder e apenas acautelando a hipótese de ser diverso o entendimento deste douto Tribunal Superior, sempre se refira que jamais se poderia conceber a extinção da presente instância, considerando que a acção não foi proposta apenas contra a Ré A..., o que se extrai do simples compulso dos autos.

G. Com relevo para o recurso que ora se interpõe, importa assinalar que os presentes autos consubstanciam uma acção declarativa de condenação proposta contra as Rés, sendo peticionada a condenação solidária das mesmas no pagamento de uma determinada quantia, pretendendo o Autor ver declarado esse seu direito, tendo a acção dado entrada em Tribunal a 26.11.2019.

H. A Sentença de que ora se recorre advém do Requerimento oferecido aos autos pela Ré A..., datado de 15-09-2023, com a ref.ª 46511540, nos termos do qual a mesma pugnou pela extinção da instância, por via da Homologação do Plano de Revitalização a que se havia submetido, resultando evidente, da simples leitura do Requerimento, a sua falta de fundamento.

I. Concretizando o quanto antecede, do compulso do identificado Requerimento é possível constatar que a Apelada A... sedimenta a sua pretensão no facto do crédito do ora Apelante ter sido reconhecido sob condição, bem assim, no facto de ter sido homologado o plano de revitalização, alicerçando ainda a sua pretensão na distorção da decisão proferida no âmbito do já identificado Plano Especial de Revitalização.

J. De facto, da simples análise do excerto da aludida Sentença transcrito com o Requerimento apresentado pela A... é possível extrair que a decisão passou por homologar o Plano de Revitalização, declarando, contudo, a ineficácia da disposição daquele plano que determina a extinção das acções declarativas em que estejam a ser discutidos direitos de crédito litigiosos, como é o caso dos presentes autos.

K. Ante o quanto antecede e crendo que sem necessidade de grandes considerações ou esforços interpretativos, facilmente se constata que a decisão de que a A... se socorre para fundamentar a sua pretensão é, afinal, contrária e incompatível com esse mesmo desiderato, antes impondo o prosseguimento dos presentes autos, ao determinar a ineficácia da sobredita cláusula do Plano, no sentido da extinção das acções.

L. Andou assim mal o Tribunal a quo ao proferir uma decisão contrária e incompatível com a proferida no âmbito do identificado Processo Especial de Revitalização, tando mais que, a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo refere que a Homologação do Plano de Revitalização “determinou a extinção das ações declarativas em que se esteja a discutir direito de crédito litigioso ou sob condição”, quando se verificou precisamente o contrário.

M. O que antecede resulta cristalino da fundamentação da Sentença proferida pelo Tribunal onde correu termos o Processo Especial de Revitalização, a qual se encontra amplamente alicerçada, quer legal, quer jurisprudencialmente.

N. Perante o quanto antecede, afigura-se ao aqui Recorrente “excessivamente” ostensivo e claro o sentido da decisão da Sentença de Homologação do Plano de Revitalização, para que a Apelada A... o pudesse ignorar, mas, mais que isso, não se vislumbra como foi possível que a Mm. ª Juiz do Tribunal a quo tenha deferido o Requerimento tortuosamente oferecido aos autos pela Ré/Recorrida.

O. Mais, ainda que se concluísse pela aplicabilidade do n.º 1, do artigo 17.º- E do CIRE, aprovado pelo DL 53/2004, de 18 de Março, na redacção que lhe era dada pela Lei n.º 99-A/2021, de 31/12, nos termos da qual, “A decisão a que se refere o n.º 4 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra a empresa e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.”, in casu, sempre se teria de concluir pela inaplicabilidade da extinção da presente instância, considerando o que vem expressamente determinado na Sentença.

P. Com efeito, conforme resulta da certidão junta aos autos pela própria Ré/ Apelada, através do Requerimento de 18-09-2023, [ref.ª 46526898], a Sentença de Homologação do Plano de Revitalização, pela qual foi expressamente determinado o prosseguimento dos presentes autos, não foi objecto de recurso, tendo transitado em julgado a 08-08-2023, termos em que, ao Requerer a extinção da presente instância, a Ré litigou com manifesta má-fé, deduzindo uma pretensão cuja falta de fundamento não só não poderia ignorar, como não ignorava.

Q. Destarte, afigura-se ao aqui Apelante que a decisão proferida pelo Tribunal a quo, no sentido de determinar a extinção da instância “por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artº 17-E, nº 1, do CIRE e 277, al. d) do C.P.C.” não só se afigura desprovida de qualquer fundamento legal, como contende directamente com a douta Sentença, já transitada em julgado, prolatada no âmbito do processo n.º 1565/22.1T8AMT, (Processo Especial de Revitalização), impondo-se, com isso mesmo, a sua revogação por este douto Tribunal ad quem, sendo determinado o célere prosseguimento dos presentes autos, através do agendamento da Audiência de Discussão e Julgamento.

R. Andou assim mal o Tribunal a quo na interpretação do preceituado no artigo 17-E, nº 1, do CIRE e no artigo 277.º, al. d) do C.P.C., o que, por si só, implica a revogação da Sentença assim proferida, antes se impondo a decisão contrária, no sentido do prosseguimento dos autos.

S. Mas, mais que isso, é firme convicção do aqui Apelante que a questão da extinção da presente instância sequer se colocaria se a Mm. ª Juiz do Tribunal a quo tivesse aplicado a norma efetivamente aplicável in casu, condizente com a redacção conferida ao n.º 1, do artigo 17.º-E do CIRE, pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, nos termos da qual, “A decisão a que se refere o n.º 5 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos durante um período máximo de quatro meses, e suspende quanto à empresa, durante o mesmo período, as ações em curso com idêntica finalidade.”, donde resulta inequívoco que foi abolida a controversa possibilidade de se verem extintas as acções declarativas.

T. Perante o que resultou já exposto e crendo que sem necessidade de mais delongas, ante a manifesta simplicidade da questão que impôs a interposição do presente recurso, por não se verificar qualquer inutilidade superveniente da lide, nos termos e para os efeitos do preceituado na alínea d), do artigo 277.º do C.P.C., impõe-se a revogação da Sentença proferida pelo Tribunal a quo, determinando este douto Tribunal Superior o prosseguimento dos autos, com todas as devidas e legais consequências.

U. Quando assim não se entendesse, o que, sem conceder, ora se concebe por elevado dever de patrocínio, sempre se refira que a Sentença proferida se encontra ferida de nulidade, por violação do princípio do contraditório.

V. De facto, na sequência do supra identificado Requerimento da Ré/ Apelada, a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo viria a proferir Despacho datado de 15-09-2023, ao qual viria a ser atribuída a ref.ª 92958638, nos termos do qual, no essencial, conferiria ao Autor o prazo de um (1) dia, para exercer o seu direito ao contraditório, não tendo esse mesmo prazo sido respeitado.

W. Concretizando o que antecede, ainda que se desconsiderasse o preceituado no n.º 1, do artigo 248.º do CPC, nos termos do qual, as notificações se presumem feitas “no terceiro dia posterior ao do seu envio, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja”, considerando-se apenas a data certificada de elaboração do Despacho (15-09-2023), o Autor/ Apelante sempre disporia de prazo para se pronunciar até às 23:59 horas, do dia 18-09-2023, prazo que não viria a ser respeitado pela Mm.ª Juiz do Tribunal a quo, que proferiu Sentença nessa mesma data.

X. Tendo presente o preceituado no n.º 1, do artigo 195.º do CPC, resulta evidente que, ao proferir a decisão nos termos em que o fez, a Mm.ª Juiz violou o princípio do contraditório, ferindo a Sentença assim proferida de nulidade, a qual ora expressamente segue arguida para todos os devidos e legais efeitos.

Y. Em consonância com o entendimento supra plasmado refira-se, de entre vasta jurisprudência de que o ora Recorrente se poderia socorrer, a fundamentação constante do douto Acórdão proferido por unanimidade pelo Tribunal da Relação do Porto aos 07-06-2021, no âmbito do processo n.º 2358/19.9T8VLG.P1, disponível em www.dgsi.pt.

Z. Ante o quanto antecede, com a prolação da Sentença nos termos em que o foi, a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo violou grosseiramente o preceituado no n.º 3, do artigo 3.º do CPC, o que dita a nulidade da decisão, com todas as devidas e legais consequências.

AA. Adicionalmente e caso o entendimento deste douto Tribunal venha a ser diverso do ora Apelante, igualmente não se pode conceber a decisão de extinguir a instância, considerando que a presente acção foi proposta contra duas sociedades comerciais distintas, a saber, “A..., S.A.”, pessoa colectiva com o NUIPC ... e contra a sociedade comercial “B..., Lda.”, pessoa colectiva n.º ....

BB. De facto, ainda que viesse a proceder a pretensão da Ré/ Apelada A... no que à sua absolvição da instância concerne, o que, como referido, jamais se poderá conceder, sempre se impunha o prosseguimento dos presentes autos face à co-Ré “B..., Lda.”, isto porque, como bem se entenderá, a prolação de Sentença Homologatória do Plano de Revitalização relativamente à A..., nenhuma influência teria relativamente à identificada co-Ré.

CC. Andou assim mal a Mm.ª Juiz do Tribunal a quo igualmente no que respeita à aplicação e interpretação da alínea d), do artigo 277.º do CPC, o que, de acordo com o preceituado no n.º 1, do artigo 195.º do C.P.C., dita a nulidade da decisão, com todas as devidas e legais consequências.

DD. Pelo exposto e uma vez mais, sempre se impõe a revogação da decisão que determinou a extinção da instância, ordenando-se o prosseguimento dos autos.

Não foram apresentadas contra-alegações.


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Colhidos os vistos, cumpre, decidir.
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Da delimitação do objecto do recurso
Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida e as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), identificam-se as seguintes questões a decidir:
- da nulidade da sentença (proferida com violação do contraditório),
- da inexistência de fundamento para determinar a extinção da presente acção como efeito da homologação do plano de revitalização concernente à primeira ré – ou, no mínimo, da falta de fundamento para determinar a extinção da instância quanto à segunda ré.

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FUNDAMENTAÇÃO

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Fundamentação de facto

Além da matéria que resulta exposta no relatório que precede, importa ponderar:

- estando pendente a presente causa, a ré A..., S.A., ao abrigo do disposto nos arts. 17-A e ss do CIRE intentou processo especial de revitalização que correu os seus termos sob o nº 1565/22.1T8AMT, no Juízo de Comércio de Amarante (lugar de provimento de Juiz 3), do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, sendo nele proferida em 18/07/2023 sentença, transitada em julgado, que ponderando a aprovação do plano, considerou e decidiu, no que à releva à presente apelação:

Por requerimentos de 22/04/2023 e 20/05/2023, AA requereu a não Homologação do Plano, ao abrigo do disposto no artigo 215º e artigo 216, n.º 1, alínea a) do CIRE, alegando que:

- o crédito do aqui Credor foi reconhecido como crédito sob condição, ao abrigo do disposto no artigo 50º do CIRE, até que aquela decisão judicial em que o crédito se encontra a ser discutido seja apreciada e discutida - ação judicial – Processo n.º 3277/19.4T8PNF que corre termos no Tribunal da Comarca do Porto Este – Penafiel – Juízo Central Cível – Juiz 1.

- o crédito do Credor é um crédito litigioso pendente de apreciação e de discussão no âmbito da ação declarativa que foi instaurada pelo Credor contra a Devedora em momento anterior à entrada do presente PER, e encontra-se suspensa por força do disposto no art. 17.º-E, n.º1 do CIRE.

- o Plano prevê que:

«Em caso de homologação do plano apresentado:

• Todas as ações de cobrança de dívidas (executivas ou não) instauradas contra a empresa, deverão ser extintas, com exceção das que respeitem à Segurança Social e à Autoridade Tributária; (…)”».

- Tal clausula é nula, nem o credor a aceita, não podendo a Devedora usar o presente PER para extinguir ações judiciais pendentes, sendo que o crédito do aqui Credor (comum sob condição) encontra-se pendente de discussão e apreciação judicial.

Tem razão o credor requerente.

(…)

Assim acontecendo, impõe-se, no caso, declarar a ineficácia da disposição determina que com a Homologação do Plano se extingam as ações declarativas em que se esteja a discutir e vise a definição de direito de crédito litigioso/sob condição.


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(…)

***

Pelo exposto:

Homologo por sentença, nos termos do 17-F/7 e 11 do CIRE, o Plano de Revitalização junto pela Devedora, declarando a ineficácia da disposição determina que com a Homologação do Plano se extinguem as ações declarativas em que se esteja a discutir e vise a definição de direito de crédito litigioso/sob condição.


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Fundamentação de direito

Invoca o apelante a nulidade da decisão recorrida, por violação do contraditório, pois proferida sem que lhe fosse facultada efectiva pronúncia sobre a questão.

Reconhece-se que a apreciação e conhecimento de questão relativamente à qual à parte não foi facultada pronúncia importa a nulidade da decisão, por excesso de pronúncia, a invocar no recurso dela interposto[1] - o cumprimento do contraditório, genericamente plasmado no art. 3º do CPC (onde se prescreve não poder o tribunal decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem) é pressuposto ou condição necessária para que o tribunal possa conhecer qualquer questão que lhe cumpra apreciar e decidir (e assim que ao conhecer da questão sem prévia pronúncia das partes estará o tribunal a apreciar questão que não podia, nessas condições, conhecer).

O princípio do contraditório, exigência postulada pelo princípio do processo justo e equitativo (art. 20º da CRP), tem ínsito o reconhecimento do direito da parte à sua audição antes de ser tomada qualquer decisão[2] - o seu âmbito não está tanto (tal como era tradicionalmente entendido) na garantia de uma discussão dialéctica entre as partes ao longo do desenvolvimento do processo[3], antes em garantir à parte a possibilidade de influenciar decisão concernente aos seus interesses; o seu escopo  principal e enformador deixou ser a ‘defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo de direito de incidir ativamente no desenvolvimento e no êxito do processo’[4]; entendimento amplo do contraditório sufragado pela jurisprudência constitucional, que o reconhece ‘«como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão»’[5].

Reconhecendo-se ao juiz a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica, impõe-se-lhe o dever de facultar às partes prévia pronúncia sobre as questões (de facto e de direito) que se proponha apreciar, conhecer e decidir.

Quando a decisão se debruça sobre questão cuja apreciação e sentido decisório as partes não puderam influenciar, está a mesma afectada por nulidade, por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, d) do CPC).

Nulidade que se verifica na situação trazida em apelação – o autor foi notificado para se pronunciar sobre o requerimento da primeira ré impetrando a extinção da presente instância (como efeito da sentença que homologara plano de revitalização) através de carta enviada ao seu mandatário em 18/09/2023 e nessa mesma data, quando ainda não estava sequer iniciado o prazo para que se pronunciasse e a pudesse influenciar, o tribunal a quo proferiu a decisão.

Nulidade da decisão que não determina outra consequência que não seja a aplicação da regra da substituição do tribunal recorrido (art. 665º do CPC) – não há que determinar a remessa dos autos ao tribunal de 1ª instância para que supra a nulidade e profira nova decisão, antes impõe-se à Relação que, por ter o autor exercido já no âmbito do recurso a faculdade de se pronunciar e discorrer sobre a questão, dela conheça e a decida.

Questão que se apresenta de solução evidente, desde logo atenta a salvaguarda que a decisão que homologou o plano de revitalização da primeira ré expressamente adoptou quanto às acções para cobrança de dívidas pendentes (acções que na parte injuntiva daquela decisão são referidas como ‘ações declarativas em que se esteja a discutir e vise a definição de direito de crédito litigioso/sob condição).

Considerando que a decisão homologatória do plano de revitalização expressamente salvaguardou o prosseguimento das acções declarativas em que se esteja a discutir e definir créditos litigiosos – salvaguarda que entendeu dever ser estabelecida quando conheceu e ponderou a oposição à aprovação do plano deduzida pelo aqui autor (na ponderação das razões e argumentos pelo aqui autor ali aduzidos, entendeu aquela decisão ser de declarar a ineficácia da disposição do plano que determina a extinção das acções declarativas em que se esteja a discutir a definição de direito de crédito litigioso/sob condição) –, não pode acompanhar-se a decisão apelada quando refere que a decisão que homologou o plano de revitalização da primeira ré ‘determinou a extinção das ações declarativas em que se esteja a discutir direito de crédito litigioso ou sob condição, como é o caso dos presentes autos’ – pelo contrário, a sentença homologatória do plano declarou expressamente a ineficácia da disposição que determina que com a sua homologação se extinguem as acções declarativas em que se estejam a discutir créditos litigiosos/sob condição (salvaguarda que a parte final do nº 1 do art. 17º-E do CIRE faculta que o plano de recuperação preveja).

Decisão de homologação do plano cujo caso julgado material se impõe nos presentes autos e que tem de ser respeitado.

Ademais, ainda que a sentença homologatória do plano de revitalização tivesse omitido uma tal salvaguarda, não poderia concluir-se pela extinção da presente causa como efeito processual da homologação do plano.

Ao disciplinar os efeitos processuais da sentença homologatória do plano estabelece a lei (nº 1 do art. 17º-E do CIRE) a ‘extinção das acções para cobrança de dívidas suspensas, salvo quando o plano de recuperação preveja a sua continuação’, solução que bem se compreende, pois havendo ‘aprovação e homologação de um plano de recuperação, os créditos terão sido regulados no plano, pelo que as acções respeitantes a tais créditos não têm, presumivelmente, mais utilidade e podem ser extintas.’[6]

Pode acontecer, porém, que tais acções pendentes respeitem a créditos não regulados no plano, mormente os créditos litigiosos – pôr fim às ‘acções em que se discutem ou definem créditos inviabilizaria o direito (processual) dos sujeitos de ver os seus direitos (substantivos) judicialmente reconhecidos, o que se traduziria numa denegação de justiça, violadora do princípio da tutela jurisdicional efectiva’, resultado que o legislador não desejou e por isso que deve interpretar-se o nº 1 do art. 17º-E do CIRE, como excluindo do efeito extintivo as ‘situações em que os créditos continuam a necessitar de definição jurisdicional, designadamente os créditos que, não tendo sido reconhecidos, permaneçam litigiosos ou ilíquidos no momento da homologação do plano de recuperação.’[7]

Assim, porque o crédito do aqui autor apelante foi naquele processo de revitalização reconhecido ‘como crédito sob condição, ao abrigo do disposto no artigo 50º do CIRE, até que aquela decisão judicial em que o crédito se encontra a ser discutido seja apreciada e discutida - ação judicial – Processo n.º 3277/19.4T8PNF que corre termos no Tribunal da Comarca do Porto Este – Penafiel – Juízo Central Cível – Juiz 1’, nunca a homologação do plano de revitalização importaria a extinção da causa.

Manifesto, pois, que a homologação do plano de revitalização não tem como efeito processual a extinção da presente causa – aliás, a verificar-se um tal efeito processual como efeito da aprovação do plano de revitalização, ele não se comunicaria à demanda da segunda ré, tendo os seus efeitos circunscritos à pretensão dirigida contra a primeira ré.

Do exposto se conclui pela procedência da apelação, com o consequente prosseguimento da causa, podendo sintetizar-se os argumentos decisórios (nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições:

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DECISÃO

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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível, em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogando a decisão apelada, em determinar o prosseguimento da causa.

Custas pelas apeladas.


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Porto, 5/03/2024
João Ramos Lopes
Maria Eiró
Fernando Vilares Ferreira

(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
___________________
[1] Cfr., a propósito Miguel Teixeira de Sousa, ‘Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária’, comentário de 22/09/2020 a acórdão do STJ de 2/06/2020 (processo nº 496/13.0TVLSB.L1.S1) e ‘Por que se teima em qualificar a decisão surpresa como uma nulidade processual?’, comentário de 12/10/2021, ambos no blog do IPPC, no sítio https://blogippc.blogspot.com (consultados on-line em Julho de 2023). Também considerando que o desrespeito do contraditório cometido pelo juiz ao proferir decisão, constitui nulidade da decisão, por excesso de pronúncia, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª Edição, pp. 27 e 28.
[2] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pp. 46/47.
[3] Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, p. 23.
[4] Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceitos Princípios Gerais à luz do Código Revisto, 1996, p. 96.
[5] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 30/2020, de 16/01/2020, processo nº 176/19 (Pedro Machete), no sítio www.tribunal constitucional.pt (citando, a propósito, Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil: conceito e princípios gerais. Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 96).
[6] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2018, p. 458.
[7] Catarina Serra, Lições (…), pp. 458/459 e Artur Dionísio Oliveira, Os efeitos processuais do PER e os créditos litigiosos, in III Congresso de Direito da Insolvência, coordenação de Catarina Serra, 2015, p. 219 e ss.