Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
56/20.0T8ILH-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: INVENTÁRIO
VERIFICAÇÃO DO PASSIVO
CONTRATO DE MÚTUO
FORMALIDADE AD SUBSTANCIAM
Nº do Documento: RP2024020556/20.0T8ILH-B.P1
Data do Acordão: 02/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Em sede de verificação do passivo em processo de inventário, exigindo a lei, sob os nºs 3 e 4 do art. 1106º do CPC, que, para apurar da existência e montante da dívida, haja documentos juntos aos autos dos quais ela decorra com segurança, é de concluir que para alcançar tal desiderato não serve a prova por declarações de parte e a prova testemunhal.
II – Alegando-se como passivo da herança um empréstimo ao inventariado de 47.500 euros e que este para ser válido teria que ser celebrado por escritura pública, tal documento, integrando o que se designa por formalidade “ad substantiam”, é insubstituível por outro género de prova e a sua falta gera a nulidade do negócio; isto é, só estando vertido em tal tipo de documento é que tal contrato, enquanto tal, seria vinculante e se provaria.
III – Não constando dos autos de inventário tal documento, não é de dar como provada a existência de tal empréstimo.
IV – Isto não quer dizer que não possa haver uma eventual obrigação de restituição de quantia alegadamente entregue derivada de possível nulidade do mútuo, mas tal, por força do regime previsto no art. 1106º do CPC que supra se referiu, não pode ser decidido no inventário, mas antes nos meios comuns.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº56/20.0T8ILH-B.P1

(Comarca de Aveiro – Juízo de Competência Genérica de Ílhavo – Juiz 1)

Relator: António Mendes Coelho

1º Adjunto: Eugénia Maria Moura Marinho da Cunha

2º Adjunto: Maria de Fátima Almeida Andrade

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

Nos autos de inventário judicial que sob o nº56/20.0T8ILH corre termos no Juízo de Competência Genérica de Ílhavo para partilha da herança de AA, em que é cabeça-de-casal BB e que são interessados, além desta, CC, DD, EE, FF e GG, foi, na sequência da apresentação da relação de bens, e designadamente quanto à única verba do passivo, deduzida reclamação pelo interessado FF e pela interessada GG, verba aquela sob a qual constava o seguinte: “Deve a herança à interessada CC, o montante de 47.500,00 euros por empréstimo ao de cujus”.

Após produção de prova, foi proferida decisão quanto ao passivo nos seguintes termos:

(…)

2. julgar verificado o passivo apresentado pela cabeça de casal nos seguintes termos:

a. considerar que a dívida da herança deixada por morte de AA e relacionada na relação de bens apresentada pela cabeça de casal BB se mostra reconhecida por: BB e pelos interessados CC, DD e EE, devendo, então, a sentença homologatória da partilha que vier a ser proferida nestes autos condená-los no respetivo e pagamento, na proporção do respetivo quinhão hereditário.

b. considerar que a dívida da herança deixada por morte de AA e relacionada na relação de bens apresentada pela cabeça de casal BB não se mostra reconhecida por FF e GG.

A interessada CC veio interpor recurso de tal decisão – que veio inicialmente a ser indeferido e depois, na sequência de reclamação para esta Relação, veio já a ser deferida a sua interposição –, tendo na sequência da sua motivação apresentado as seguintes conclusões (a alínea F das conclusões está repetida, mas é assim que consta no respetivo texto):

A) A douta sentença ao considerar como não provado que “a interessada CC entregou ao inventariado, AA a quantia de 47.500,00€, que este se comprometeu a devolver-lhe” está em desconformidade com a prova documental e mesmo com a testemunhal, e, por isso, se impugna.

Com efeito,

B) Está muito claro nos autos que na venda do imóvel, celebrada entre a interessada CC e HH, o preço, por instruções da recorrente, foi confiado ao inventariado, facto que a própria motivação da sentença reconhece, e que o prédio alienado havia sido anteriormente doado pelo inventariado por conta da quota disponível.

C) É por demais evidente que o produto da venda pertence à ora recorrente, não sendo razoável admitir a ficção da doação, para efeitos de fuga à liquidação de impostos, facto apenas corroborado pelas declarações da interessada GG, em audiência de julgamento, pessoa a quem tal versão interessa.

D) Ora, tal simulação que parece ser condição da tese defendida pela sentença proferida pelo tribunal a quo, jamais poderia ser provada por prova testemunhal (e muito menos por declarações de parte interessada), considerando que a doação foi efetuada por escritura pública.

E) Por outro lado, tal versão está em manifesta contradição com a realidade provada nos autos, no que respeita à maioria dos interessados que reconhecem a existência do passivo e a própria vontade do inventariado que, em vida, através de doação e testamento teve o manifesto propósito de estabelecer a divisão de todo o seu património.

F) Na verdade, a douta sentença condena a maioria dos interessados a reconhecer o passivo, porque não o impugnaram – condenando-os a pagá-lo, reconhecendo que a herança deve à recorrente a quantia de 47.500,00 euros, negando, por outro lado, a mesma obrigação da herança em relação à interessada GG, pelo simples facto de esta o negar em declarações de parte, e ao interessado FF, sem qualquer produção de prova.

F) Por conseguinte, a factualidade que a douta sentença considera não provada resulta de uma errada apreciação da prova (documental e testemunhal).

G) Em conformidade com o exposto, e porque as declarações de parte não são suscetíveis, no caso em apreço, de fundamentar a impugnação do passivo reclamado na relação de bens, deverá considerar-se provado que: “A interessada CC, entregou ao inventariado AA a quantia de 47.500,00 euros, proveniente da venda do imóvel relacionado na verba 21 da Relação de bens e que este se comprometeu a devolver-lha.”

H) E, em consequência, jugal verificado o passivo apresentado pela cabeça de casal, devendo a sentença homologatória da partilha que vier a ser proferida nestes autos, condenar todos os interessados no respetivo pagamento na proporção do respetivo quinhão hereditário.

I) Assim não tendo decidido a douta sentença do tribunal a quo foram violadas as disposições legais dos artigos 615.º n.º 1 alínea c) e 1106.º ambos do código de processo civil.”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpridos os vistos legais, cumpre decidir.

Considerando que o objeto do recurso – sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso – é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), são duas as questões a tratar:

a) – apurar da alteração da matéria de facto propugnada pela recorrente;

b) – apurar dos termos da responsabilização dos interessados pelo passivo relacionado.


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II – Fundamentação

Vamos à primeira questão enunciada.

A recorrente, com base em documentos juntos aos autos, na sua interpretação de depoimentos cujos excertos transcreve (declarações de parte da interessada GG e depoimento da testemunha II) e no depoimento da testemunha HH nos termos em que este é referido na motivação da decisão recorrida, defende a alteração da matéria de facto de tal decisão no sentido de a factualidade ali dada como não provada sob a alínea a) – com o conteúdo “A interessada CC entregou ao inventariado AA a quantia de 47.500,00 €, que este se comprometeu em devolver-lha” – seja dada como provada nos seguintes termos: “A interessada CC, entregou ao inventariado AA a quantia de 47.500,00 euros, proveniente da vanda do imóvel relacionado na verba 21 da Relação de bens e que este se comprometeu a devolver-lha”.

Vejamos.

Ainda que se notem discrepâncias entre os termos em que é descrita na relação de bens a verba do passivo em referência (“Deve a herança à interessada CC, o montante de 47.500,00 euros por empréstimo ao de cujus”), em que é dada como não provada a factualidade atinente à mesma (“A interessada CC entregou ao inventariado AA a quantia de 47.500,00 €, que este se comprometeu em devolver-lha”) e em que o recorrente pretende que a mesma seja dada como provada (“A interessada CC, entregou ao inventariado AA a quantia de 47.500,00 euros, proveniente da vanda do imóvel relacionado na verba 21 da Relação de bens e que este se comprometeu a devolver-lha”), é bom de ver que o que está em causa é a questão da prova ou não prova do empréstimo da quantia de 47.500 euros pela interessada CC ao inventariado.

Como resulta dos autos, tal verba do passivo foi impugnada pelos interessados FF e GG mas já não pelos restantes interessados.

Em sede de verificação do passivo em processo de inventário rege o disposto no art. 1106º do CPC, sendo que, nos termos do seu nº3, se todos os interessados se opuserem ao reconhecimento da dívida “o juiz deve apreciar a sua existência e montante quando a questão puder ser resolvida com segurança pelo exame dos documentos apresentados” (sublinhado e negrito nosso), e, nos termos do seu nº4, se houver divergências entre os interessados acerca do reconhecimento da dívida esta considera-se reconhecida pelos interessados que a não impugnaram na respetiva quota-parte, sendo que quanto à parte restante há que apurar da sua existência e montante naqueles termos previstos no nº3, isto é, quando tal possa ser resolvido com segurança  pelo exame dos documentos apresentados.

Exigindo a lei que, para apurar da existência e montante da dívida, haja documentos juntos aos autos dos quais ela decorra com segurança[1], é desde logo de concluir que para alcançar tal desiderato não serve a prova por declarações de parte e a prova testemunhal referenciada pela recorrente.

O empréstimo referido sob aquela verba do passivo integra, como se sabe, um contrato de mútuo, sendo que, por força do regime legal próprio do processo de inventário que se referiu, é necessário prova documental do mesmo para se conhecer dele enquanto passivo da herança.

Ora, alegando-se ser o mútuo de 47.500 euros, este, para ser válido, como se exige no art. 1143º do C. Civil, teria que ser celebrado por escritura pública, do que decorre que tal documento, integrando o que se designa por formalidade “ad substantiam”, é insubstituível por outro género de prova e a sua falta gera a nulidade do negócio (neste sentido, vide Mota Pinto, “Teoria Geral do Direito Civil”, 2ª edição, Coimbra Editora, 1983, pág. 433).

Isto é, só estando vertido em tal tipo de documento é que tal contrato, enquanto tal, seria vinculante e se provaria.

Dos autos não consta tal documento (aliás, nenhum documento sequer se mostra junto cujo conteúdo seja reconduzível a uma qualquer declaração ou reconhecimento de que o quantitativo de dinheiro referido tenha sido emprestado ao inventariado pela interessada em causa ou em que conste uma qualquer declaração no sentido de este dever tal quantitativo àquela).

Como tal, nesta sede de inventário, não é de dar como provada a existência do empréstimo em referência.

Isto não quer dizer que não possa haver uma eventual obrigação de restituição de quantia alegadamente entregue derivada de possível nulidade do mútuo (por inobservância da forma legalmente exigida para este), mas tal, por força do regime previsto no art. 1106º do CPC que supra se referiu, não pode ser decidido no inventário mas antes nos meios comuns [como referem Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, na obra referida na nota 1, pág. 93, “Não há nenhum motivo para não aplicar às dívidas da herança o regime que consta do art. 1105º, nº7, para os créditos da herança. Assim, a decisão do juiz sobre a inexistência da dívida não deve precludir a possibilidade da sua discussão nos meios comuns”; de resto, como refere Mota Pinto (obra citada supra, pág. 434), “(…) uma vez declarado nulo o negócio, deverá ser restituído tudo o que tiver sido prestado em consequência do negócio viciado, podendo a prova da prestação, para o efeito desta obrigação de restituir, ser feita por qualquer dos meios de prova admitidos em geral pela lei” (este sublinhado é nosso; no texto citado esta mesma parte está em itálico)].

Deste modo, na sequência de quanto se veio de referir, improcede a impugnação da matéria de facto, mantendo-se a alínea a) dos factos não provados.

Passemos à segunda questão enunciada.

O recurso em apreço – como bem se vê dos raciocínios que se fazem sob as conclusões F), G) e H) – apenas ataca a decisão de mérito da sentença recorrida no pressuposto da procedência da impugnação da matéria de facto deduzida.

Como resulta do decidido sob a primeira questão enunciada, manteve-se aquela matéria de facto.

A sentença recorrida, no pressuposto da não prova da factualidade que ali referiu sob a alínea a), fez aplicação do critério de verificação do passivo no próprio processo de inventário previsto no nº4 do art. 1106º do CPC e, relativamente aos interessados BB, CC, DD e EE, por um lado, e relativamente aos interessados FF e GG, por outro, proferiu decisão em conformidade com aquele critério.

Não se pondo em causa no recurso a construção jurídica efetuada na sentença recorrida com base na factualidade provada e não provada ali feita constar e que se mantém, dada a vinculação deste tribunal na sua esfera de cognição à delimitação objetiva resultante das conclusões do recurso e não se divisando quaisquer motivos de revogação de tal sentença de conhecimento oficioso deste tribunal, há que concluir pela improcedência do recurso.

As custas do recurso ficam a cargo da recorrente, que nele decaiu (art. 527º nºs 1 e 2 do CPC).  


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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):

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III – Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.


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Porto, 5/2/2024
Mendes Coelho
Eugénia Cunha
Fátima Andrade
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[1] Como referem Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, in “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil”, Almedina, 2020, pág. 92, “(…) a decisão do juiz acerca da dívida impugnada exige que os documentos apresentados forneçam um critério decisório suficiente e permitam uma pronúncia segura sobre a dívida”.