Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
530/10.6TVPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MÁRCIA PORTELA
Descritores: PATERNIDADE
PROVA
CONTRAPROVA
TESTES DE PATERNIDADE
COLHEITA DE MATERIAL BIOLÓGICO
RECUSA
VIOLAÇÃO DA INTEGRIDADE FÍSICA OU MORAL DO RECUSANTE
DIREITO À IDENTIDADE DO INVESTIGANTE
Nº do Documento: RP20120619530/10.6TVPRT.P1
Data do Acordão: 06/19/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - À base instrutória apenas devem ser levados os factos relevantes, ou seja, os factos constitutivos, modificativos, impeditivos e extintivos das pretensões aduzidas, devendo ser seleccionados de acordo com as regras de distribuição do ónus da prova.
II - A não quesitação da versão trazida pela parte em sede de impugnação motivada não põe em causa o principio do contraditório, pois a parte não onerada com a prova tem direito à contraprova.
III - O estabelecimento do relacionamento sexual por via testemunhal assenta naturalmente em presunções judiciais: a partir de determinados factos presume-se a existência de relacionamento sexual.
IV - A prova em processo civil não assenta em juízos de certeza absoluta, mas tão só de verosimilhança, que permitam estabelecer um razoável grau de probabilidade.
V - O juízo de inconstitucionalidade incide sobre normas e não sobre decisões judiciais.
VI - A recusa de sujeição a testes de paternidade pode ser livremente valorada, nos termos do artigo 519.°, n.° 2, CPC, não sendo necessário recorrer ao mecanismo de inversão do ónus da prova previsto no mesmo normativo, se, em conjunto com a demais prova produzida, for possível estabelecer a paternidade com a necessária segurança.
VII - A simples colheita de material biológico não acarreta, salvo razões de ordem médica não alegadas, qualquer risco ou sacrifício significativos, não implicando violação da integridade física ou moral do recusante.
VIII - Ainda que assim não se entendesse, os direitos do indigitado progenitor cederia perante o direito à identidade do investigante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 530/10.6TVPRT

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório

B…, em representação de seu filho C…, intentou acção declarativa com processo ordinário contra D…, pedindo que o A. seja reconhecido como filho do R. para todos os efeitos legais.

Alega para tanto, e em síntese, que o C… nasceu em 16 de Abril de 2003, sendo que a sua mãe manteve relações de cópula exclusiva com o R. no período legal da concepção, tendo o demandante nascido em resultado de relações de sexo que a sua progenitora manteve com aquele.

Contestou o R., negando ter praticado qualquer acto sexual com a mãe do autor.

Replicou o autor concluindo como no articulado inicial.

Foi proferido despacho saneador e fixou-se a matéria de facto relevante.

Procedeu-se a julgamento, tendo sido proferida sentença que declarou que C…, nascido a 16 de Abril de 2003, é filho do R..

Inconformado, recorreu o A. apresentando as seguintes conclusões:

«a) o Tribunal considera não provado que o Réu não teve relações sexuais com a Mãe do Autor, quando ao invés, deveria ter dado resposta positiva ao mesmo, uma vez que resulta, salvo mais douto entendimento, provado pelo depoimento prestado pelas testemunhas E…, F… e G…, cujos excertos atrás se transcrevem;

b) o Tribunal considera não provado que a Mãe do Autor teve relações sexuais com vários homens, quando ao invés deveria ter dado resposta positiva ao mesmo, uma vez que resulta, salvo mais douto entendimento, provado pelo depoimento das testemunhas F… e E…, cujos excertos atrás se transcrevem;

c) merecendo estes factos controvertidos resposta positiva, deverá a decisão de que se recorre ser reformada, porque se funda em errónea interpretação fáctica pelo Ilustre Julgador, substituindo-se por outro decisório que declare a improcedência da acção;

d) deve a sentença ser anulada, já que nos termos do artigo 668.º, n.º 1, c) do C.P.C. os fundamentos estão em oposição com a decisão;

e) em consequência, deve ser alterada a decisão da 1.ª instância, no uso do artigo 712.º, n.º 1, a) C.P.C., já que do processo constam todos os elementos de prova que serviram de base à errónea decisão, e tendo ocorrido gravação dos depoimentos, a mesma foi impugnada nos termos do artigo 685.º -B do C.P.C.;

f) devendo a, apesar de tudo, Douta Sentença, ser revogada e reformada no sentido já exposto.

g) Em alternativa, sendo imprescindível o aditamento da matéria factual constante da reclamação da base instrutória, dai decorrendo necessariamente a anulação do julgamento;

h) Sendo indispensável a ampliação da matéria de facto (dada a deficiência, obscuridade e ambiguidade da decisão da matéria de facto) com a subsequente repetição do julgamento por imposição e na técnica do artigo 712.º, n.º 4 do CPC;

i)Sem prescindir e subsidiariamente, deve a sentença ser considerada nula por inconstitucionalidade, na medida em que viola os princípios da igualdade, do contraditório, do acesso ao direito e tutela jurisdicional e ainda do Estado de Direito, expressamente plasmados nos artigos 1.º, 2.º, 13.º e 20.º da C.R.P.;

j) e por violar o direito à integridade física e moral do Réu e o seu direito à reserva da vida privada, previstos nos artigos 25.º e 26.º da C.R.P.;

k) e ainda em Douto Suprimento.

Assim se Fazendo Mais e Melhor Justiça!»

Contra-alegou o A., assim concluindo:

1) O Tribunal a quo valorou e bem as provas produzidas quanto à matéria do recurso.

2) Igualmente bem, valorou o Tribunal a quo a flagrante violação pelo apelante do princípio da cooperação.

3) A douta sentença recorrida não viola o disposto no artigo 668º, nº1, alínea c) do C.P.C.

4) Assim como também não viola os princípios da igualdade, do contraditório, do acesso ao direito e tutela jurisdicional e do estado de direito.

5) Muito menos violará o direito do apelante à reserva da vida privada.

6) Carecem, assim, de fundamento as conclusões do Apelante.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Ex.cias muito doutamente suprirão, deverá improceder o recurso apresentado pelo recorrente, mantendo-se a douta sentença proferida, pelo que deve a Apelação ser julgada totalmente improcedente, com as legais consequências.

Assim fazendo V. Ex.cias inteira
JUSTIÇA»

Também o MP contra-alegou pugnando pela manutenção do decidido.

2. Fundamentos de facto

A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

1.º- O autor nasceu no dia 16 de Abril de 2003, em …, Brasil, tendo sido registado como filho de B….

2.º- B… conheceu o réu, em Junho de 2002, num bar de alterne onde aquela prestava serviço.

3.º- O réu teve relações sexuais de cópula com B… nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o nascimento do C….

4.º- O nascimento do C… ocorreu no termo da gravidez que sobreveio à sua mãe em consequência de relações sexuais que esta manteve com o réu.

3. Do mérito do recurso

O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 684.º, n.º 3, e 685.º A, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigo 660.º, n.º 2, in fine, e 684.º, n.º 4, CPC), consubstancia-se nas seguintes questões:

— ampliação da matéria de facto e a violação do princípio da igualdade, do contraditório, da tutela jurisdicional e do Estado de direito;

— impugnação da matéria de facto;

— nulidade da sentença por contradição entre a decisão e os fundamentos;

— nulidade da sentença por inconstitucionalidade por violação da reserva da vida privada.

3.1. Da ampliação da matéria de facto e a violação do princípio da igualdade, do contraditório, da tutela jurisdicional e do Estado de direito

Pretende o apelante a anulação do julgamento, nos termos do artigo 712.º, n.º 4, CPC, para ampliação da base instrutória por forma a contemplar factos que foram alegados na contestação e não passaram a constar do elenco dos factos controvertidos, apesar de reclamação formulada ao abrigo do disposto no artigo 511.º, n.º 2, CPC.

São os seguintes os factos em discussão:

— O Réu e a Mãe do Investigante namoraram?
— Assumiram algum namoro, em pleno ou de forma dissimulada?
— O Réu, quando saía com os seus Amigos, tratou a B… como sua namorada?
— Esta última alguma vez dependeu do Réu?
— Abandonou a vida de alternadeira, por indicação do Réu?
— O Réu e a Mãe do Investigante tiveram relações sexuais, de qualquer índole?
— A B… esteve grávida, daí nascendo o menor investigante?
— O Réu prometeu reconhecer a paternidade do menor investigante?
— O Réu propôs-se arrendar casa para a B… viver, em nome desta ou de sua irmã?
— O Réu prometeu quaisquer quantias à B…?
— A Mãe do Investigante teve relações sexuais com vários amigos do Réu, entre Junho e Setembro de 2002?
— Entre esses amigos está o Senhor G…?
— Assim como o Sr. F…?
— E ainda o Sr. E…?
— Era voz corrente que a B… era conhecida como alternadeira muito bem sucedida, dedicando-se ao exercício remunerado de prostituição?
— A B… aliciava à prática de actos sexuais, todos quanto passavam pelo bar de alterne referido nos autos?
— Fazia propostas e promessas, relativas à concretização de actos sexuais?
— À B… eram conhecidas diversas companhias masculinas, nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que antecederam o nascimento do C…?

À base instrutória apenas devem ser levados os factos relevantes, ou seja, os factos constitutivos, modificativos, impeditivos e extintivos das pretensões aduzidas, devendo ser seleccionados de acordo com as regras de distribuição do ónus da prova.

Dos factos supra enunciados, os relevantes prendem-se com o relacionamento sexual da mãe do A. com outros homens no período legal da concepção — a exceptio plurium.

O despacho de selecção da matéria de facto, considerando que tinha sido invocada a exclusividade de relacionamento sexual entre a mãe do A. e o apelante, entendeu — bem, face ao Assento 4/83, agora com força de jurisprudência uniformizadora (cfr. artigo 17.º, n.º 2, do Decerto-lei 329A/95, de 12 de Dezembro)— que o ónus da prova da exclusividade cabia ao apelado.

Não havia, pois, que questionar se a mãe do menor tinha tido relacionamento sexual com outros homens no período legal da concepção, sem prejuízo de o apelante ter direito a produzir essa prova em sede de contraprova.

A circunstância de não terem sido levados à base instrutória os factos supra enunciados em nada prejudicou, pois, o apelante, não se verificando a violação de qualquer princípio constitucional, designadamente o princípio do contraditório.

Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, tomo I, pg. 194, resumem o alcance do princípio do contraditório, nos termos seguintes:

«Segundo o Tribunal Constitucional, do conteúdo do direito de defesa e do princípio do contraditório resulta, prima facie, que cada uma das partes deve poder exercer uma influência efectiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade, não só de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes do tribunal decidir questões que lhe digam respeito, mas também de deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de umas e outras (Acórdãos nºs 1185/96 e 1193/96)».

Lebre de Freitas, traça a evolução do princípio do contraditório, na vertente do direito de influenciar a decisão, em Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais, Coimbra Editora, pgs. 96-7:
«Por princípio do contraditório entendia-se tradicionalmente a imposição de que, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, devia à outra ser dada oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão, tal como, oferecida uma prova por uma parte, a parte contrária devia ser chamada a controlá-la e ambas sobre ela tinham o direito de se pronunciar, assim se garantindo o desenvolvimento do processo em discussão dialéctica, com as vantagens decorrentes da fiscalização recíproca das afirmações das partes.
A esta concepção, válida mas restritiva, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, com origem na garantia constitucional do rechtliches Gehor germânico, entendida como garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todas os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo fundamental do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia para passar a ser a influência no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo.»

Ora, o apelante pôde ouvir as testemunhas que indicou à matéria em causa, sem qualquer restrição, tendo tido oportunidade de abordar a problemática do alegado relacionamento da mãe do apelado com outros homens, designadamente com as testemunhas.

A sua defesa em nada ficou comprometida.

Quanto ao princípio da igualdade, não se alcança como possa ter sido violado — o apelante teve as mesmas oportunidades que o apelado.

Dir-se-á mesmo que, em matéria probatória, o apelante estava numa posição mais privilegiada que o apelado, pois dispunha do recurso a um meio de prova praticamente infalível —testes de ADN —, cuja utilização inviabilizou ao recusar-se terminantemente a efectuar os testes.

O apelante teve, pois, direito a um processo equitativo, justo, próprio de um Estado de direito, não se mostrando violado qualquer preceito constitucional.

3.2. Da impugnação da matéria de facto

Impugna o apelante a resposta à matéria de facto, pretendendo que os dois artigos da base instrutória sejam respondidos negativamente.

É o seguinte o teor destes dois artigos e respectivas respostas:
1.º
O R. foi o único homem que teve relações sexuais de cópula com a B… nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que antecederam o nascimento do C…?

— O R. teve relações sexuais de cópula com B… nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que precederam o nascimento do C….
O nascimento do C… ocorreu no termo da gravidez que sobreveio à sua mãe
em consequência de relações sexuais que esta manteve com o R.?

- Provado.

Foi a seguinte a fundamentação da sentença recorrida:

«Assim, com relação à factualidade constante do facto controvertido no 1, teve-se especialmente em consideração os depoimentos prestados no decurso da audiência de discussão e julgamento pelas testemunhas H…, I… e J…, que depuseram de forma que se nos revelou coerente e segura, as quais afiançaram que entre a mãe do autor e o réu existiu um relacionamento amoroso, que teve o seu início no Verão de 2002 e que perdurou, pelo menos, até a mãe do menor ter regressado ao Brasil, o que ocorreu quando a mesma apresentava 7/8 meses de gravidez, acrescentando ainda que quer nesse período quer em momento posterior o demandado prestou apoio económico àquela.
Com o desiderato de contraditar a afirmação de facto vertida no mencionado facto controvertido, o réu apresentou na audiência de julgamento três testemunhas que, à excepção de F…, contrariamente ao afirmado por aquele no respectivo articulado de defesa, não confirmaram ter tido relacionamento sexual com a mãe do autor no período legal de concepção, nada de concreto sabendo adiantar a respeito da existência ou não existência de eventual trato sexual com a mãe do autor no período legal de concepção, nada de concreto sabendo adiantar a respeito da existência ou não existência de eventual trato sexual entre a mãe do autor e o réu. No que concerne à facticidade vertida no facto controvertido n° 2, como é sabido, os exames de ADN são os únicos meios de prova idóneos e credíveis para a demonstração cabal do vínculo biológico nele quesitado.
In casu, o autor requereu oportunamente a realização desses exames, diligência probatória essa que foi deferida por despacho exarado a fls. 82 e seguinte.
O certo é que o réu manifestou nos autos a sua expressa recusa em submeter-se ao exame (cfr. fls. 65), tendo faltado por duas vezes à diligência que foi agendada para a realização de colheita relativa à investigação de paternidade (despoletar a aplicação do disposto no artigo 519°, n° 2 do CPC).
O descrito comportamento omissivo do demandado consubstancia, pois, uma flagrante violação do princípio da cooperação, sendo certo que não apresentou qualquer válida justificação para essa ausência de colaboração, afigurando-se-nos eu a realidade por si alegada com esse propósito não é passivei de ser subsumida à previsão de qualquer das situações contemplados no n.º 3 do artigo 519° do Cód. Processo Civil, mormente na sua alínea a), posto que não se vislumbra em que medida a simples recolha de saliva ou de cabelo possa consubstanciar acto vexatório, humilhante ou causador de dano grave ou violador da integridade física do indigitado pai.
Tal entendimento das coisas, quanto a nós, não afronta qualquer princípio constitucionalmente consagrado, mormente os princípios e normas enunciados pelo réu no seu requerimento de tis. 68 e seguinte, já que o direito à prova – englobando possibilidade de propô-la e produzi-la – constitui um direito fundamental constitucionalmente protegido, na medida em que se integra no direito à tutela jurisdicional efectiva consagrado no artigo 20° da Constituição (cfr. sobre a questão acórdão do Tribunal Constitucional n.º 646/2006, publicado no DR. 2ª série, n° 5, de 8.01.2007, págs. 444 e seguintes e JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, págs. 190 e seguintes). Refira-se, a este propósito, que a doutrina e jurisprudência que o réu invoca no sentido de legitimar a sua actuação processual, na essência, prende-se com a temática da admissibilidade de realização coerciva de testes de ADN em acções de estabelecimento de filiação, questão relativamente à qual o tribunal, oportunamente, tomou posição, considerando não se revelar legítimo impor a recolha coactiva de substâncias biológicas (cfr. despacho exarado a fls. 103).
A recusa do réu em submeter-se aos exames é, portanto, ilegítima, por ser aquele, como se notou, o único meio de prova adequado para demonstrar, directamente, o vínculo biológico da paternidade, com um grau de certeza praticamente total.
Nestas circunstâncias, entendemos ser de aplicar o disposto no artigo 344°, n.º 2 do Cód. Civil ex vi do no 2 do artigo 519.º do Cód. Processo Civil, posto que o comportamento do réu importou a frustração culposa de um “meio de prova de especial relevância”, de um meio de prova que se revela absolutamente necessário para a afirmação da filiação biológica.
Com efeito, na esteira de entendimento claramente predominante e que igualmente sufragamos (cfr., inter alia, RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, pág. 81; LOPES D0 REGO, Comentário ao acórdão do STJ, de 9.12.93, in Revista do Ministério Público, 15, págs. 165 e seguintes, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, pág. 454 e seguinte e Relevância dos exames de sangue nas acções de investigação de paternidade – recusa de cooperação do réu e inversão do ónus da prova, Revista do Ministério Público, 58, págs. 173 e seguintes; TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo Processo Civil, pág. 321; FREITAS RANGEL, O ónus da prova no processo civil, págs. 184 e seguintes, PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, págs. 220 e seguintes; GUILHERME DE OLIVEIRA, Implicações jurídicas do conhecimento do genoma, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 128°, págs. 325 e seguintes e acórdão da Relação de Guimarães de 17.04.2008, disponível em ww.dgsi.pt), os citados normativos estão vocacionados para se aplicar precisamente àquelas situações, como a presente, em que uma das partes, por meio de uma recusa ilegítima, inviabilize e impossibilite à outra a apresentação e a produção de um meio de prova legalmente admissível entre outros existentes, de tal forma que a recusa visa dificultar a posição da outra parte na produção da prova, sobre o facto essencial para a satisfação da sua pretensão».

Sustenta o apelante ter havido erro grosseiro na apreciação da prova por se ter valorado positivamente o depoimento pouco coerente e credível das testemunhas do apelado, em detrimento do depoimento das testemunhas por si apresentadas, essas sim isentas e credíveis.

Começa o apelante por referir nunca terem sido apresentadas provas concretas da existência de provas concretas da existência de relações sexuais entre o apelante e mãe do menor, razão pela qual subsistiriam sérias dúvidas sobre se tal relação teria eventualmente existido. E no artigo 20.º da motivação alega que as testemunhas que apresentou nunca tinham presenciado qualquer acto sexual com o apelado.

A prova de relacionamento sexual não passa obviamente por testemunhos presenciais, já que normalmente constituem actos íntimos que não é suposto serem presenciados por terceiros. E só em situações excepcionais o serão.

O estabelecimento do relacionamento sexual por via testemunhal assenta naturalmente em presunções judiciais: a partir de determinados factos presume-se a existência de relacionamento sexual.

Ora, tais factos foram estabelecidos com verosimilhança.

Perguntada sobre se o apelado a mãe do apelado tinham relações sexuais, a testemunha H…, amiga daquela desde os tempos do Brasil e que vivia na mesma casa, respondeu: É lógico que tinham!

Lógico porque eram duas pessoas adultas que jantavam juntas, saíam juntas, que se assumiam como namorados.

Por outro lado, esta testemunha referiu ainda que era o apelante que «bancava» a mãe do apelado, tanto no Brasil como em Portugal, e que chegou a mandar dinheiro para ela no Brasil, enviado pelo apelante.

I…, irmã da mãe do apelado, que veio com ela do Brasil, e a quem esta apresentou o apelante como namorado, concluiu que sendo eles namorados e tendo ela engravidado, não lhe conhecendo outros relacionamentos, o apelante seria o pai da criança. Aludiu igualmente ao auxílio financeiro prestado pelo apelante.

J…, irmã da mãe do apelado e da testemunha anterior, que chegou a viver com esta, referiu o relacionamento do apelante com aquela, que se prolongou até ela ir para o Brasil. E que o menino se parece com ele demais, é parecidíssimo.

Tanto esta testemunha como a antecedente situaram o início do relacionamento entre a mãe do apelado e o apelante em momento anterior ao aniversário desta (13 de Agosto), pois no ano de 2002 (ano anterior ao nascimento do A.) comemoraram a data num jantar em que esteve o apelante. E que nessa data já namoravam.

Sublinha o apelante a circunstância de estas testemunhas serem amiga e irmãs da mãe do apelado, o que poria em crise a sua credibilidade.

Em determinadas situações, como sucede no caso vertente, as testemunhas são necessariamente pessoas das relações dos interessados, pois é precisamente desse convívio que surge o conhecimento dos factos. Isso não importa necessariamente descredibilização do depoimento, mas apenas as devidas cautelas na sua apreciação.

Dentro do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 655.º, n.º 1, CPC, o depoimento destas testemunhas merece credibilidade, pois, não obstante o grau de proximidade (amiga e irmãs da mãe do apelado), circunstanciaram os seus depoimentos, com as naturais imprecisões que não comprometem a essência do testemunho.

Quanto à circunstância de se terem passado cerca de nove anos sobre os factos, sendo impossível, como afirma o apelante, terem a correcta percepção de todos os factos que ocorreram na época, há que realçar dois aspectos:

O primeiro é o de que os nove anos se passaram tanto para as testemunhas do A. como para as testemunhas do apelante; o segundo é que é muito mais natural que as testemunhas ligadas à mãe do apelado se recordem de certos factos — até por reporte ao nascimento do A.—, que as testemunhas do apelado.

Invocou o apelante um acórdão da Relação do Porto, de 2010.02.01, Pinto Ferreira, www.dgsi.pt.jtrp, proc. 123/08.8TBMDR, de que transcreveu o seguinte excerto:

«[Em segundo lugar, esgrime-se com] o progressivo “envelhecimento” ou perecimento das provas. Isto, sobretudo, em litígios – como os relativos à paternidade – de prova difícil, relativa a factos íntimos e naturalmente geradores de emoções. Na falta de prova pré--constituída decisiva, a passagem do tempo potenciaria os perigos, designadamente, da prova testemunhal, aumentando a possibilidade de fraudes».

Omitiu, no entanto, um segmento fundamental, que em nada abona a sua posição, e que é:

«Perante os novos domínios de prova, concretamente do ADN, mostra-se debilitado este argumento». (não sublinhado no original).

É assim o próprio acórdão que cita que fragiliza a sua posição.

Por outro lado, o depoimento das testemunhas apresentadas pelo apelante não foi minimamente convincente, em nada infirmando a prova produzida pelo A..

As testemunhas E… e G…, amigos do apelante, a quem este imputou na contestação a prática de actos sexuais com a mãe do apelado negaram peremptoriamente tal facto, e a última testemunha, inquirida sobre quem era o pai do A. respondeu prontamente: Eu é que não sou!

Resta o depoimento da testemunha F…, também amigo do apelante.

Esta testemunha afirmou ter tido relações sexuais com a mãe do menor por duas vezes, uma vez numa pensão, outra na praia, em dois sábados (o último de Agosto e o primeiro de Setembro de 2002). Disse recordar-se da data por ter sido o último ano em que foi de férias para o Algarve e em que o amigo G… comprou um automóvel. No entanto, G… situou a compra do automóvel em 18 de Dezembro de 2001.

Instado pelo Ilustre Mandatário do A. sobre se, então, poderia ele ser o pai do A. respondeu afirmativamente, com uma displicência que faz suspeitar da sua sinceridade.

Trata-se de um clássico das investigações de paternidade. Reportando-se ao período em que não se podia recorrer a meios científicos de prova, escrevem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Coimbra Editora, vol. II, tomo I, pg. 217,

«A excepção da coabitação concorrente era vulgar. E pensa-se que os réus pediam favores aos amigos para que confessassem, com verdade ou com mentira, que também tinham tido relações sexuais com a mulher em causa; eles não tinham muito a perder pois que, se fosse intentada uma nova acção contra um terceiro, este havia de se defender com a coabitação concorrente do réu da primeira acção ...»

A prova efectuada pelo apelante revelou-se particularmente frágil.

A displicência com que a testemunha F… admitiu a probabilidade de ser o progenitor do apelado sugere fortemente que ele não o é, do mesmo modo que a terminante recusa do apelante na sujeição aos testes de ADN, que permitem estabelecer a paternidade com elevado grau de segurança, revela que ele está intimamente convencido que é o progenitor.

A prova globalmente apreciada justifica as respostas à base instrutória.

Com efeito, entendemos que se alcançou um grau de certeza razoável para se considerar provado os artigos 1.º e 2.º da base instrutória, já que não é apenas provável, mas muito provável que o apelante seja o pai do A.. Não se exige — não se pode exigir — uma certeza absoluta.

Como explicam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pg. 419 e ss.,

«A demonstração da realidade a que tende a prova não é uma operação lógica, visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente), como é, por exemplo, o desenvolvimento de um teorema nas ciências matemáticas. Nem essa demonstração se opera as mais das vezes, à semelhança do que sucede comas análises médicas ou os exames efectuados nos laboratórios das ciências naturais, através da observação directa ou da reconstituição dos factos com fim de facultar ao julgador a percepção dos seus resultados.
(…)
A demonstração da realidade de factos desta natureza com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, sob pena de o Direito falhar clamorosamente na sua função essencial de instrumento de paz social e de realização da justiça entre os homens.
A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na
certeza relativa do facto». (não sublinhado no original).

Na mesma linha, Alberto dos Reis, op. cit., pg. 246, após hierarquizar a prova, baseada no grau de eficácia, em prova suficiente, prova prima facie e simples justificação, escreve:

«A prova suficiente conduz a um juízo de certeza; não de certeza lógica, absoluta, material, na maior parte dos casos, mas de certeza bastante para as necessidades práticas da vida, de certeza chamada histórico-empírica. Quer dizer, o que se forma sobre a base da prova suficiente é, normalmente, um juízo de probabilidade, mas de probabilidade elevada a grau tão elevado, que é quanto basta para as exigências razoáveis de segurança social.»

Ou, nas palavras de Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, Coimbra Editora, pg. 160-1,

«O âmbito do princípio da livre apreciação da prova, não é exigível que a convicção do julgador sobre a validade dos factos alegados pelas partes equivalha a uma absoluta certeza, raramente atingível pelo conhecimento humano. Basta-lhe assentar num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança (…)»

A certeza absoluta só os testes de paternidade garantem. Lamentavelmente o apelante os inviabilizou.

As respostas à matéria de facto não merecem qualquer censura.

3.3. Nulidade da sentença por contradição entre a decisão e os fundamentos

Invocou o apelante nulidade da sentença por contradição entre a decisão e os fundamentos, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 668.º CPC.

Nos termos do artigo 668.º, n.º 1, alínea c), CPC, é nula a sentença quando os fundamentos estejam em contradição com a decisão.

Na alínea c) do nº 1 artigo 668º, «o que sucede é que a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto» (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, vol. V, pg. 141).

E como alerta Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 8ª ed., pg. 54, a oposição entre os fundamentos e a decisão não se reconduz a uma errada subsunção dos factos à norma jurídica, nem tão-pouco a uma errada interpretação dela, situações que se configuram como erros de julgamento.

Nas palavras de Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil, Anotado, Coimbra Editora, vol. II, 2ª edição, pg. 704:
«Entre os fundamentos da decisão não pode haver contradição lógica: se na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro de subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se. A oposição entre os fundamentos e a decisão tem o seu correspondente na contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora da ineptidão da petição inicial (art. 193-2-b).»

Impõe-se, pois, concluir que não se verifica nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão.

Desnecessário será sublinhar que os fundamentos de facto a considerar são os que foram fixados na sentença e não aqueles que o apelante entende que deveriam ter sido.

3.4. Nulidade da sentença por inconstitucionalidade por violação da reserva da vida privada

Entende o apelante que a sentença recorrida é inconstitucional por alegadamente violar por violar direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos, expressamente previstos nos artigos 25.º e 26.º da Constituição. Isto porque, alega, o Mm.º Juiz a quo dedicou grande parte da sentença a colocar em dúvida a posição assumida pelo apelante ao recusar-se a submeter-se aos testes de ADN.

Duas observações se impõem a este propósito.

A primeira é de que o juízo de inconstitucionalidade incide sobre normas e não sobre sentenças. Nessa medida, não é à sentença que se pode assacar o vício de inconstitucionalidade, mas sim às normas que foram aplicadas.

Em causa estará o artigo 519.º, n.º 3, alíneas a) e b), CPC, que dispõe que a recusa de colaboração é legítima designadamente quando a obediência implique violação da integridade física ou moral das pessoas (alínea a) e intromissão na vida privada e familiar (alínea b).

A segunda observação é de que, na reapreciação da prova, não se entendeu necessário inverter o ónus da prova, por a prova produzida permitir concluir pela paternidade do apelante, com suficiente segurança.

Com efeito, estabelece o artigo 519.º, n.º 2, CPC, que aqueles que recusem a colaboração devida serão condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que sejam possíveis, acrescentando que se o recusante for parte o tribunal apreciará livremente a sua conduta para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do n.º 2 do artigo 344.º CC.

Como refere Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, 2.ª edição, vol. I, pg. 455,

«a) Se a recusa tiver tomado impossível a prova à outra parte, sobre quem recaía o ónus probatório de certo facto (v. g. a diligência probatória culposamente frustrada recaía obre matéria de facto absolutamente essencial, que só podia ser demonstrada por esse meio, já que o onerado não dispõe de outros meios de prova que, em concreto, demonstrem o facto) ocorre inversão do ónus da prova, nos termos do artigo 344.º, n.º 2 do CC.— Cf. Ac. Rel. in CJ/01, pág. 36, condicionando a inversão do ónus da prova, no caso de falta da parte para prestar depoimento, à existência de uma relação de causa e efeito a a descoberta da verdade e à notificação do faltoso para depor com essa cominação.
b) Se não for assim — isto é, se a recusa não implicar aquela impossibilidade de o onerado provar facto absolutamente essencial à acção ou à defesa — deverá o tribunal apreciar livremente o valor probatório da recusa (nomeadamente, dela inferindo que a parte, ao menos no plano subjectivo, receava seriamente o resultado daquela diligência)».

Ora, quando se reapreciou a matéria de facto entendeu-se que a reiterada recusa do apelante em submeter-se aos testes de ADN sugeria que o apelante estava intimamente convencido que é o progenitor do A., do mesmo modo que a prontidão com que a testemunha F… admitiu a probabilidade de ser o progenitor descredibilizou o seu depoimento.

Sempre se dirá que não se vislumbra qualquer legitimidade na recusa do apelante em se submeter aos testes de ADN.

A simples colheita de material biológico não acarreta, salvo razões de ordem médica não alegadas, qualquer risco ou sacrifício significativos, não implicando violação da integridade física ou moral do recusante.

Tendo se provado a existência de relacionamento sexual entre o apelante e a mãe do apelado, falece a alegação do apelante de que se trataria de acto vexatório e humilhante (na sua perspectiva, claro). Não se vislumbra que a submissão aos testes de paternidade possam ser considerados humilhantes e vexatórios, mesmo quando não tenham existido relações sexuais entre o investigado e a mãe do investigante.

Aliás, um investigado que não tenha tido relacionamento sexual com a mãe do investigante será o maior interessado na realização dos exames atento o elevado grau de certeza que propiciam.

Sendo o apelante réu numa acção de investigação de paternidade, não se alcança como é que o exame de paternidade pode implicar intromissão na sua vida privada e familiar.

Ainda que assim não se entendesse, há que ter em conta o equilíbrio entre os valores conflituantes quando está em causa uma investigação da paternidade.

Aos direitos a que o apelante se arroga — na perspectiva que não perfilhamos, sublinha-se — há que contrapor o direito do A. à identidade genética, ao conhecimento das suas origens.

Como se refere no acórdão do Tribunal Constitucional 23/06, Mota Pinto, tirado a propósito do prazo de caducidade das acções de investigação de paternidade, «pois o direito à identidade pessoal inclui, não apenas o interesse na identificação pessoal (na não confundibilidade com os outros) e na constituição daquela identidade, como também, enquanto pressuposto para esta auto-definição, o direito ao conhecimento das próprias raízes. Mesmo sem compromisso com quaisquer determinismos, não custa reconhecer que saber quem se é remete logo (pelo menos também) para saber quais são os antecedentes, onde estão as raízes familiares, geográficas e culturais, e também genéticas (cfr., aliás, também a referência a uma “identidade genética”, que o artigo 26.º, n.º 3, da Constituição considera constitucionalmente relevante). Tal aspecto da personalidade – a historicidade pessoal (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pág. 179, falam justamente de um “direito à historicidade pessoal”) – implica, pois, a existência de meios legais para demonstração dos vínculos biológicos em causa (note-se, aliás, que os exames biológicos conducentes à determinação de filiação podem ser realizados, fora dos processos judiciais, e a pedido de particulares, sem qualquer limitação temporal, pelos próprios serviços do Instituto Nacional de Medicina Legal, nos termos do artigo 31.º do Decreto‑Lei n.º 11/98, de 24 de Janeiro), bem como o reconhecimento jurídico desses vínculos.

Deve, pois, dar-se por adquirida a consagração, na Constituição, como dimensão do direito à identidade pessoal, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, de um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da maternidade e da paternidade».

A este propósito Lopes do Rego, op. cit., pg. 456,

«… particularmente no âmbito de acções que se situam no domínio da vida pessoal dos litigantes (divórcio, filiação, etc) – poderá a referida reserva da vida privada e familiar dever sofrer alguma compressão adequada, modo a não ampliar desajustadamente o domínio de protecção da norma constitucional ….»

Conclui-se, pois, que, atentos os valores envolvidos, a recusa do apelante em submeter-se a testes de ADN é ilegítima, por injustificada e desproporcionada, não tendo sido violado qualquer preceito constitucional.

Improcedendo as alegações, a sentença tem de ser confirmada.

4. Decisão

Termos em que, julgando a apelação improcedente, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Porto, 19 de Junho de 2012
Márcia Portela
Manuel Pinto dos Santos
Ondina de Oliveira Carmo Alves
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Sumário
1. À base instrutória apenas devem ser levados os factos relevantes, ou seja, os factos constitutivos, modificativos, impeditivos e extintivos das pretensões aduzidas, devendo ser seleccionados de acordo com as regras de distribuição do ónus da prova.
2. A não quesitação da versão trazida pela parte em sede de impugnação motivada não põe em causa o princípio do contraditório, pois à parte não onerada com a prova tem direito à contraprova.
3. O estabelecimento do relacionamento sexual por via testemunhal assenta naturalmente em presunções judiciais: a partir de determinados factos presume-se a existência de relacionamento sexual.
4. A prova em processo civil não assenta em juízos de certeza absoluta, mas tão só de verosimilhança, que permitam estabelecer um razoável grau de probabilidade.
5. O juízo de inconstitucionalidade incide sobre normas e não sobre decisões judiciais.
6. A recusa de sujeição a testes de paternidade pode ser livremente valorada, nos termos do artigo 519.º, n.º 2, CPC, não sendo necessário recorrer ao mecanismo de inversão do ónus da prova previsto no mesmo normativo, se, em conjunto com a demais prova produzida, for possível estabelecer a paternidade com a necessária segurança.
7. A simples colheita de material biológico não acarreta, salvo razões de ordem médica não alegadas, qualquer risco ou sacrifício significativos, não implicando violação da integridade física ou moral do recusante.
8. Ainda que assim não se entendesse, os direitos do indigitado progenitor cederia perante o direito à identidade do investigante.

Márcia Portela