Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
| Relator: | PAULO COSTA | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
| Descritores: | ABATER E FERIR MORTALMENTE AVE GAIVOTA VIOLÊNCIA CONTRA ANIMAIS SELVAGENS CONTRAORDENAÇÃO | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
| Nº do Documento: | RP20251126116/22.2PCVCD.P1 | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
| Data do Acordão: | 11/26/2025 | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
| Votação: | MAIORIA COM 1 VOT VENC | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
| Texto Integral: | S | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
| Privacidade: | 1 | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA) | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
| Decisão: | CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO DO ARGUIDO. | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
| Indicações Eventuais: | 1. ª SECÇÃO CRIMINAL | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
| Área Temática: | . | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
| Sumário: | I - A prova invocada pelo recorrente sustenta-se na sua prova oferecida, a qual o tribunal descredibilizou não impondo outra versão, podendo apenas admitir-se que admite uma outra versão, a qual não foi considerada credível e aceitável pelo tribunal a quo. A imediação implica uma relação de proximidade física e temporal entre o tribunal que julga e os intervenientes processuais, de modo que aquele possa captar todos os elementos, inclusive fatores subtis e não traduzíveis num simples relato escrito, tais como gestos, entonação e respostas das testemunhas. Neste caso específico, o tribunal considerou corretamente os indícios e respeitando as regras da experiência analisadas no contexto global dos factos diretos e indiretos apurados, entendeu não ter aplicação o princípio in dubio pro reo, e bem, levando-nos a concluir que há prova suficiente para condenar o arguido "para além de qualquer dúvida razoável" pelos factos descritos na sentença. II - A conduta dada como provada configura um ato típico contraordenacional, pois a ação de abater e ferir mortalmente a ave gaivota privando-a do seu estado de liberdade natural é o bastante para que se considere um ato concreto ilícito de violência contra animais selvagens, apesar do contexto urbano da ação. III - A norma contraordenacional em questão violada não é, em nosso entender, axiologicamente neutra, situando-se antes no domínio das condutas eticamente relevantes em relação à qual o legislador entendeu que seria suficiente e adequada a tutela contraordenacional, tanto mais que questões desta natureza de proteção ambiental em que está em causa a vida de seres vivos, tem consagração constitucional e no direito comunitário. IV - Portanto, abater uma ave como uma gaivota com disparo de uma arma, não deixa de ser censurável para o comum cidadão. Não se provou que o arguido não sabia do caráter proibitivo da sua conduta. Todos sabemos que não se pode andar a disparar e a matar aves da natureza dos autos, pelo que o dolo será configurado e a responsabilidade contraordenacional subsiste. | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
| Reclamações: | |||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||
| Decisão Texto Integral: | Proc. n º 116/22.2PCVCD.P1 Relator Paulo Costa Adjuntos José Quaresma Pedro M. Menezes
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal de ...
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório No âmbito do Processo Comum Singular em epígrafe id. a correr termos no Juízo Local Criminal de ... foi decidido: « Nestes termos, julgo as acusações públicas parcialmente procedentes em consequência do que decido: - Condenar o arguido AA pela prática de um crime contra a preservação da fauna, p. e p. pelo artigo 30.º, n.º 1, da Lei n.º 173/99, de 21 de setembro, com referência aos artigos 6.º, n.º 1, alínea b), e 2.º, alínea a), a contrario, da mesma Lei, aos artigos 2.º, alínea cc), 3.º, e Anexo I, a contrario, do Decreto-lei n.º 202/2004, de 18 de Agosto, na pena de 60 (sessenta) dias de multa; - Condenar o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº1, do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa; - Em cúmulo jurídico, condenar o arguido AA na pena única de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de € 8,00 (oito euros) perfazendo um total de € 1.440,00 (mil quatrocentos e quarenta euros). - Absolver o arguido AA da prática de uma contraordenação por violação de normas de conduta de portadores de armas,, p. e p. pelo artigo 98.º, com referência aos artigos 39.º, nºs 1 e 2, alínea d), e 41.º, ex vi do seu n.º 6, todos do Regime Jurídico das Armas e Munições. De igual modo, decido: - Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização cível deduzido pelo demandante BB e, em consequência, condenar o demandado AA a pagar-lhe a quantia de € 700,00 (setecentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, devidos desde a data da presente decisão, até efetivo e integral pagamento. - Absolver o demandado do demais peticionado. * Vai ainda o arguido condenado no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (artigo 513º, nº 1, do CPP, e 8º, nº9, do RCP). Sem custas no que tange ao pedido cível formulado nos autos, atenta a isenção a que alude o artigo 4º, nº1, al. n), do RCP.(…)» * Inconformado o arguido interpôs recurso, solicitando a revogação da decisão proferida e a sua substituição por outra que o absolva, concluindo (transcrição): « CONCLUSÕES: 1- O presente recurso tem como objecto a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos que condenou o arguido/recorrente pela prática de um crime contra a preservação da fauna, p. e p. pelo artigo 30.º, n.º 1, da Lei n.º 173/99, de 21 de setembro, com referência aos artigos 6.º, n.º 1, alínea b), e 2.º, alínea a), a contrario, da mesma Lei, aos artigos 2.º, alínea cc), 3.º, e Anexo I, a contrario, do Decreto-lei n.º 202/2004, de 18 de Agosto, na pena de 60 (sessenta) dias de multa e de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº1, do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa, tendo sido condenado em cúmulo jurídico na pena única de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de € 8,00 (oito euros) perfazendo um total de € 1.440,00 (mil quatrocentos e quarenta euros. Do crime contra a preservação da fauna: a) Do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, erro notório na apreciação da prova, e violação do disposto no artigo 127.º do C.P.P.: 2- O Tribunal à quo deu como provado (ponto 1 dos factos provados), que o Arguido, no dia 30 de maio de 2022, a partir de uma janela da fração correspondente à Rua ..., efetuou um disparo de arma (de características não concretamente apuradas) contra uma gaivota, causando a sua morte. 3- Contrariamente ao que se decidiu ficou amplamente demonstrado em sede de audiência de julgamento que a janela em causa não pertence à fração do arguido, mas sim a uma área comum do prédio. 4- Tal factualidade resulta inequivocamente das declarações pormenorizadas do próprio arguido (Audiência 20-11-2024 |11:12:10 – 11:58:11 Ficheiro: Diligencia_116-22.2PCVCD_2024-11-20_11-12-08 00:05:59 – 00:06:04), e foi corroborada pelo depoimento da testemunha CC, agente da PSP que tomou conta da ocorrência (Audiência 08-01-2025 | 11:32:12 – 11:48:22 Ficheiro: Diligencia_116- 22.2PCVCD_2025-01-08_11-32-11 - 00:12:39 – 00:12:46) e pela própria testemunha de acusação, DD, que confrontada com as fotos existentes no processo, identificou a janela como sendo a da parte comum do prédio (Audiência 12-02-2025 | 11:29:00 – 12:02:00 Ficheiro: Diligencia_116-22.2PCVCD_2025-02- 12_11-29-09 00:23:43 – 00:24:44. 5- Acresce que, não ficou provado, com a certeza e segurança exigíveis em direito penal, que o arguido efetuou qualquer disparo contra a gaivota. 6- A principal testemunha de acusação, DD, cujo depoimento foi considerado "fulcral" pelo Tribunal a quo não apresentou uma identificação isenta de dúvidas. 7- Efetivamente a sua perceção poderá ter sido influenciada por fatores como a distância, condições de visibilidade e subjetividade, sendo certo, que a própria reconheceu que a sua identificação se baseava no facto de presumir que o arguido morava naquele prédio (Audiência 12-02-2025 |11:29:00 – 12:02:00 Ficheiro: Diligencia_116- 22.2PCVCD_2025-02-12_11-29-09 - 00:16:59 – 00:17:02). 8- Não existe a certeza de que a gaivota morreu em consequência direta do disparo, pois, não foi realizado exame balístico ou necrópsia à gaivota para confirmar a causa mortis. 9- Por outro lado, a testemunha DD referiu que, após cair, a gaivota ainda estava viva e a dar sinais de vida, até ser recolhida no dia seguinte (Audiência 12-02-2025 | 11:29:00 – 12:02:00 Ficheiro: Diligencia_116-22.2PCVCD_2025-02- 12_11-29-09 - 00:13:01 – 00:13:28 e 00:26:25 a 00:27:03). Quem nos garante que não foi recolhida com Vida? 10- Acresce que, o Tribunal a quo reconheceu expressamente que "não foi apreendida a arma em causa”, não tendo por isso sido possível apurar as características da mesma. 11- Ora, se as características da arma são desconhecidas, como pode o Tribunal ter a certeza de que se tratava de uma arma capaz de praticar o crime de caça imputado? 12- Quem nos garante que não era um objeto inócuo ou qualquer outro instrumento que, mesmo que disparado, não configuraria o crime em apreço. 13- A dúvida razoável quanto à natureza da arma e à sua capacidade lesiva deveria ter beneficiado o Arguido, em conformidade com o princípio in dubio pro reu. 14- A Sentença baseia-se excessivamente no depoimento de uma única testemunha, desvalorizando a versão do Arguido e ignorando a fragilidade probatória, violando assim, o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127 do C.P.P. 15- Face ao exposto a sentença posta em crise, ao dar como provado os pontos 1, 3, 4 e 5 (que expressamente se impugnam), incorre em vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto nas alínea a) e c) do n.º 2 do artigo 410°, e viola o disposto no artigo 127° do Código de Processo Penal, por não observar as regras da experiência comum na apreciação e valoração da prova. B) Do vício da contradição insanável na matéria de facto dada como provada: 16- Existe contradição na matéria de facto dada como provada nos pontos 1 e 4 relativamente à arma utilizada, pois no ponto 1 refere que o arguido produziu pelo menos um disparo com "uma arma de características não concretamente apuradas", por outro lado, o ponto 4 estabelece que o arguido agiu com o propósito de disparar "a referida arma de ar comprimido". 17- Pelo que, a sentença posta em crise padece também de vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P. C) Insuficiência da demonstração dos elementos objetivo e subjetivo do tipo do crime contra a preservação da fauna: 18- A conduta de disparar contra uma gaivota em contexto urbano, com uma arma de características não apuradas, não se enquadra inequivocamente no conceito legal de "caça" de "espécies não cinegéticas" para efeitos do artigo 6.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 173/99, de 21 de setembro, e do artigo 2.º, alínea c), do mesmo diploma legal. 19- A definição legal de "caça" constante do artigo 2.º, alínea c), da Lei n.º 173/99, de 21 de setembro, refere-se a "qualquer ato dirigido à captura ou morte de espécies animais. 20- No presente caso, não ficou demonstrado qualquer ato do arguido dirigido à captura ou aproveitamento do animal, mesmo após a sua morte (fosse como troféu, para comer ou simplesmente para taxidermia). 21- A mera ação de disparar, ainda que letal, pode não preencher o elemento objetivo do tipo. 22- Quanto ao elemento subjetivo, a sentença afirma que o arguido agiu "com o propósito de matar a gaivota com a referida arma, ciente que se tratava de espécie não cinegética e da proibição de atentar contra esta, o que representou e quis. 23- Salvo o devido respeito, inexistem nos autos elementos que permitam afirmar que o arguido sabia tratar-se de espécie cinegética. 24- Desde logo, está por saber se efetivamente se tratava de uma gaivota (não foi feito qualquer exame para o comprovar e o Tribunal à quo nem sequer especificou a subespécie nos termos do Anexo I do DL n.º 202/2004). 25- Nos autos existe apenas uma fotografia, que salvo o devido respeito, não permite por si só, afirmar-se que se trata de uma gaivota e não de uma outra qualquer espécie de ave marinha. 26- Quem nos garante que não estamos na presença de outra ave marinha, nomeadamente, um fura-bucho-do- atlântico (puffinus puffinus), ou simplesmente uma carraga (colonectris borelis), ou ainda, um calca-mar (pelagodroma marina). 27- Por outro lado, ainda que se reconheça a validade da prova testemunhal (a testemunha DD alega ter visto matar “uma gaivota”), o que só academicamente se concebe, a demonstração de o arguido ter agido com a consciência da natureza não cinegética da gaivota e da proibição de atentar contra ela, e com a vontade de concretizar tal ato, afigura-se frágil, tanto mais, quando o arguido não tem, nem nunca teve, qualquer ligação à caça. 28- Assim sendo, entende o aqui arguido/recorrente que o Tribunal à quo fez uma errada interpretação do artigo 30.º, n.º 1, da Lei n.º 173/99, de 21 de setembro, com referência aos artigos 6.º, n.º 1, alínea b), e 2.º, alínea a), a contrario, da mesma Lei, aos artigos 2.º, alínea cc), 3.º, e Anexo I, a contrario, do Decreto-lei n.º 202/2004, de 18 de Agosto. 29- Face a tudo o exposto deve o arguido ser absolvido do crime de ofensas à integridade física simples. Do Crime de ofensas à integridade física simples: a) Do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, erro notório na apreciação da prova, e violação do disposto no artigo 127.º do C.P.P.: 30- O Tribunal à quo deu como provado, no ponto 7 dos factos dados como provados, que "…nessas circunstâncias o arguido desferiu um murro no ofendido BB, atingindo-o no ombro e agarrou-o pelo casaco provocando o seu desequilíbrio e a queda de ambos chão, altura em que o arguido lhe desferiu murros na cabeça e tronco….” 31- A factualidade dada como provada não reflete a dinâmica dos acontecimentos tal como resultou da prova produzida, nomeadamente dos depoimentos do Recorrente e das testemunhas. 32- O Recorrente/arguido, em seu depoimento, alegou que foi o ofendido quem lhe dirigiu um gesto obsceno enquanto atravessava a passadeira. O Recorrente parou o carro para lhe perguntar o motivo, mas foi imediatamente agredido com dois murros pelo ofendido, caindo ambos ao chão e envolvendo-se numa troca de agressões (Audiência 20-11-2024 | 11:12:10 – 11:58:11 Ficheiro: Diligencia_116-22.2PCVCD_2024-11-20_11-12-08 00:00:00 – 00:46:00) 33- A Testemunha EE: Confirmou que o Recorrente imobilizou a viatura na passadeira para ir falar com o ofendido, que este estava a ser agarrado pelos colarinhos pelo Recorrente, e que ambos caíram quando o ofendido empurrou o Recorrente para se libertar. Esta testemunha não esclareceu quem iniciou as agressões físicas (Audiência 11-12-2024 | 15:36:00 – 15:48:00 Ficheiro: Diligencia_116-22.2PCVCD_2024-12-11_15-35-18 - 00:01:49 – 00:03:04 e 00:04:05 – 00:04:10) 34- A Testemunha FF: Confirmou que o Recorrente saiu do carro e se dirigiu ao ofendido, tendo- se iniciado atos de agressão entre ambos. Inicialmente, não se recordava quem tomou a iniciativa, mas posteriormente referiu ter presenciado agressões mútuas de ambas as partes antes da queda (Audiência 12-02-2025 | 12:28:00 12:35:00Ficheiro: Diligencia_116-22.2PCVCD_2025-02- 12_12-28-16-00:02:00 – 00:04:02). 35- O Ofendido: BB alegou que o Recorrente parou o carro na passadeira, abordou-o aos gritos, agarrou-o pelo casaco e desferiu-lhe um soco no peito. Negou ter feito qualquer gesto obsceno (Audiência 20-11-2024 | 11:58:53 – 12:28:10Ficheiro: Diligencia_116-22.2PCVCD_2024-11-20_11-58-51 (00:05:58 – 00:06:29). 36- A prova produzida em audiência de discussão e julgamento, nomeadamente as declarações do Recorrente (que foram valoradas de forma incompleta e descontextualizadas), e os depoimentos das testemunhas EE e FF, não permitem concluir, com a certeza necessária para uma condenação, que o arguido foi o iniciador da agressão de forma ilegítima. 37- A douta sentença desvalorizou as declarações do Recorrente, e valorizou as declarações do ofendido que não foram corroboradas pelas duas testemunhas presenciais. 38- A dinâmica dos acontecimentos, tal como descrita pelo Recorrente e parcialmente confirmada pelas testemunhas, sugere um início da agressão física por parte do ofendido, em reação ao facto de o Recorrente ter parado o carro na passadeira para o interpelar. A circunstância de ter havido agressões mútuas antes da queda, conforme referido pela testemunha FF, coloca em causa a versão de que o Recorrente foi o único a agir com o propósito de ofender a integridade física do ofendido. 39- Acresce que conforme exposto, subsistem dúvidas razoáveis sobre a dinâmica inicial do confronto físico e sobre se a conduta do Recorrente constituiu uma agressão ilícita e não provocada. 40- As diferentes versões dos acontecimentos apresentadas pelo Recorrente, pelo ofendido e pelas testemunhas, bem como a falta de clareza sobre quem iniciou as agressões, criam uma situação de incerteza probatória. 41- O princípio in dubio pro reo, fundamental no processo penal, determina que na ausência de prova concludente e inequívoca da culpa do arguido, a decisão deve ser-lhe favorável. 42- Perante as dúvidas insanáveis que persistem quanto à ilicitude da conduta do Recorrente e à sua exclusiva responsabilidade pela ofensa à integridade física do ofendido, impõe-se a aplicação do princípio in dubio pro reo, o que implica a sua absolvição do crime pelo qual foi condenado. 43- Face ao exposto, resulta evidente que a douta Sentença recorrida enferma de erros na apreciação da matéria de facto, nomeadamente à dinâmica da confrontação física com o ofendido BB. Tais erros levaram a uma errónea aplicação do direito penal, designadamente no que respeita à aplicação do princípio in dubio pro reo e à consideração de eventuais causas de exclusão da ilicitude. 44- Face ao exposto a sentença posta em crise, ao dar como provado o ponto 7 (que expressamente se impugna), incorre em vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto nas alínea a) e c) do n.º 2 do artigo 410°. 45- Violou também o disposto no artigo 127° do Código de Processo Penal, por não observar as regras da experiência comum na apreciação e valoração da prova, pois não analisou de forma completa e contextualizada a prova produzida. 46- Em face do exposto, deve o arguido ser absolvido do crime de ofensas à integridade física simples, e em consequência absolvido do pagamento da quantia de € 700,00 (setecentos euros) ao demandante BB. Sem prescindir D) Quanto à pena única aplicada: 47- Caso não seja absolvido de ambos os crimes, considera o arguido que a pena única de 180 dias de multa resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares de 60 dias (crime contra a fauna) e 180 dias (ofensa à integridade física) é manifestamente excessiva, não respeitando os critérios legais e jurisprudenciais para o cúmulo jurídico. 48- O tribunal a quo não ponderou devidamente a conexão entre os crimes, a gravidade global dos ilícitos e a personalidade do arguido. 49- A fundamentação da pena única é genérica e imprecisa, limitando-se a um juízo valorativo pouco concreto. 50- Em face da fragilidade da prova quanto ao crime contra a fauna e da possível atenuação da ilicitude do crime de ofensa à integridade física, a pena única deveria ser fixada em um patamar significativamente inferior. 51- Uma pena única entre 100 a 120 dias de multa seria mais justa, adequada e proporcional à gravidade global dos ilícitos e à culpa do arguido Nestes termos e nos melhores de Direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida, e em consequência, ser o arguido/recorrente absolvidos dos crime em que foi condenado, ou para o caso de assim não se entender, o que não se concebe, ser aplicado uma pena única entre 100 a 120 dias de multa.» * O M.P. respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo: “Por todo o exposto, deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se a sentença recorrida, nos seus precisos termos.” * Também o assistente respondeu concluindo: “1. Não assiste razão ao Arguido no Recurso por si interposto. I – Dos Factos 2. Ao contrário do alegado pelo Arguido, as declarações do Assistente estão em linha com o depoimento das testemunhas. 3. Acresce que, em larga medida, a condenação do Arguido resulta de factos por si assumidos em sede de Julgamento e, também, da circunstância de ter construído uma narrativa com o claro propósito de “justificar” o seu comportamento – o que é típico de alguém que tem consciência de que a verdade dos factos não o favorece. 4. Na verdade, para tentar “justificar” o seu comportamento, o Arguido alega que quando seguia ao volante da sua viatura automóvel, o Assistente dirigiu-lhe um gesto obsceno, erguendo o dedo do meio de uma das mãos. 5. Sucede, porém, que tal factualidade é desmentida pelo Assistente, que não só nega tal facto, como até declara expressamente que apenas se apercebeu que era o Arguido quem seguia na viatura, depois de este a ter imobilizado abruptamente sobre a passadeira para peões para tirar satisfações relacionadas com desentendimentos anteriores [aos 10m22s das declarações do Assistente]. 6. Ou seja: se o Assistente não sabia que era o Arguido quem seguia na viatura, nunca podia ter-lhe dirigido o gesto que o teria levado a parar o veículo e dele sair para tirar-lhe satisfações por esse motivo. 7. Acresce que a testemunha EE não só não vê o Assistente a dirigir qualquer gesto ao Arguido, como até refere que aquele caminhava com as mãos nos bolsos e de costas para este [aos 09m55s e aos 11m21s do depoimento da testemunha EE]. 8. Ou seja: o depoimento desta testemunha não só deita por terra a versão ficcionada pelo Arguido, como até descreve uma factualidade que torna impossível que o Assistente tivesse dirigido qualquer gesto ao Arguido, quer por ter aos mãos nos bolsos, quer por não ter como saber que era o Arguido quem se aproximava, uma vez que estava de costas para este. 9. Ainda em sua defesa, alega o Arguido que o Assistente atingiu-o com um objecto. 10. Sucede, porém, que: - como vimos, o Assistente seguia com as mãos nos bolsos; - nenhuma testemunha refere ter visto o Assistente a usar qualquer objecto; - o Assistente nega que tivesse atingido o Arguido com qualquer objecto [aos 14m57s das declarações do Assistente]; - é estranho que o Arguido não consiga identificar ou especificar que objecto seria esse. 11. Por outro lado, a descrição do Arguido, em sede de Julgamento, relativamente à sequência dos factos, ao local onde ocorreram as agressões e ao local onde Assistente e Arguido caíram, não são coincidentes com a descrição do Assistente, nem com a da testemunha EE. 12. O Arguido diz que mal saiu do carro e se dirigiu ao Assistente, ainda sobre a passadeira para peões, este deu-lhe, de imediato, um murro. 13. Contudo, o Assistente refere que já seguia no passeio, que o Arguido vem pelas suas costas, agarra-lhe o casaco, o Assistente pede para ele o largar, e, de seguida, é atingido por um murro no peito e outro no ombro (mas que lhe era dirigido à cara), não tendo dúvidas em afirmar que foi o Arguido quem lhe desferiu os murros [aos 05m59s das declarações do Assistente]. 14. Por sua vez, a testemunha EE descreve que o Arguido parou o carro repentinamente sobre a passadeira, foi ter com o Assistente, a quem agarrou pelos colarinhos, que este se limitava a dizer “Largue-me! Largue-me!” e a defender-se e que, depois, ambos caíram ao chão [aos 02m00s do depoimento da testemunha EE]. 15. Ou seja: não há dúvidas que o Arguido dirigiu-se ao Assistente, que agarrou o Assistente e que o Assistente apenas se defendia. 16. E quanto à autoria das agressões, também não há dúvida de que foram perpetradas pelo Arguido na pessoa do Assistente. 17. Desde logo, é o Assistente quem o diz, e tal não mereceu qualquer dúvida por parte do Tribunal [aos 05m59s e aos 13m14s das declarações do Assistente]. 18. Depois, porque é o que resulta lógico da conjugação das declarações do Assistente com o depoimento das testemunhas: 19. A testemunha EE declara que viu o Arguido agarrar o Assistente [aos 04m22s do depoimento da testemunha EE]; 20. A testemunha FF declara que havia agressões já antes de terem caído ao chão [aos 05m35s do depoimento da testemunha FF], 21. o que, conjugado com o facto da testemunha EE ter referido que o Assistente se limitava a defender-se e com o facto de este ter declarado que levou dois murros do Arguido, não deixam dúvidas quanto a esta factualidade. 22. Mas, se dúvidas subsistissem, é da boca do próprio Arguido que resulta a melhor prova de que agrediu o Assistente, ao reconhecer que lhe deu murros e que foi este quem caiu primeiro – o que, de acordo com as regras da experiência comum, é típico de quem leva um murro [aos 33m38s das declarações do Arguido]. 23. Acresce que o próprio Arguido declara em sede de Audiência de Julgamento que, após terem caído ao chão, foi ele quem ficou por cima [aos 33m38s das declarações do Arguido]. 24. Ora, segundo a versão que o Arguido tentou fazer passar, os murros que infligiu ao Assistente quando estavam caídos eram apenas para segurá-lo e para se defender. 25. Sucede que, quem pretende apenas segurar alguém que está caído no chão por debaixo de si não dá murros, antes agarra essa pessoa. 26. Ou seja: o Arguido não só confessa que deu murros no Assistente quando este estava caído por debaixo de si, como o fez com a clara intenção de ofendê-lo na sua integridade física. II – Do Direito A- Do crime de ofensa à integridade física simples 27. O crime de ofensa à integridade física simples está p. e p. pelo Art. 143º nº 1 do CP. 28. Constitui elemento objectivo deste crime qualquer ofensa ao corpo ou à saúde de outrem. 29. Constitui elemento subjectivo, que o agente actue com a consciência e a vontade de lesar o corpo ou a saúde de outrem, bastando o dolo em qualquer uma das suas modalidades, pelo que é suficiente uma conduta que configure dolo eventual. 30. No caso dos autos, o Arguido encetou um conjunto encadeado de actos que deixam clara a sua intenção de agredir o Assistente: saiu intempestivamente do carro, dirigiu-se ao Assistente e agarrou-o pelo casaco. 31. De seguida, concretizou a sua intenção: deu um soco no peito do Assistente, tentou dar-lhe outro na cara, mas acertou-lhe no ombro e, uma vez no chão, estando por cima do corpo do Assistente, continuou a bater-lhe [aos 32m15s e aos 33m38s das declarações do Arguido]. 32. Ora, estando o Arguido por cima do Assistente, a única explicação para dar-lhe murros é a intenção de ofendê-lo fisicamente, pois, quem está por cima e, ainda para mais, sendo dotado de uma compleição física mais robusta e mais alta do que o outro [aos 16m05s das declarações do Assistente e aos 01m24s do depoimento da testemunha FF], apenas se compreende que esteja a infligir murros para agredir, nunca para manietar a outra pessoa ou para libertar-se dela. 33. Por último, as agressões físicas do Arguido sobre o Assistente produziram o resultado típico do crime em apreço, conforme consta dos itens 8 e 11 dos factos provados. B- Do princípio “in dubio pro reo” 34. Em defesa da sua absolvição, o Arguido lança mão do princípio in dúbio pro reo. 35. De acordo com o citado princípio, se existir dúvida quanto à prova produzida, esta tem que ser valorada a favor do Arguido. 36. Essa dúvida, porém, tem que ser razoável, não podendo contrariar as regras da experiência comum, a ponto de a dúvida em questão não ser insanável. 37. Torna-se, por isso, necessária a existência de contradições na prova produzida, que esta contradiga a lógica mais elementar, mas, também, que contrarie as regras da experiência comum. 38. Ou seja: para operar o princípio in dubio pro reo, o vício inerente à insuficiência de prova terá que decorrer da falta de elementos que impossibilitem, pela sua ausência, um juízo seguro. 39. Todavia, como já se viu, as declarações do Assistente e o depoimento das testemunhas são coerentes, seguros e concretizadores dos elementos integradores do crime de ofensa à integridade física simples, 40. sendo que a incoerência e a inverosimilhança resultam, isso sim, das declarações do Arguido. C- Em suma 41. Face à prova produzida e conjugada esta com as regras da experiência comum e as regras de Direito, conclui-se que bem andou o Tribunal a quo, 42. pelo que deve manter-se a condenação proferida em Primeira Instância. Termos em que deve o Recurso interposto pelo Arguido/Demandado ser dado como totalmente improcedente, mantendo-se as condenações fixadas em Primeira Instância!”
Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer onde pugnou pela improcedência do recurso, subscrevendo a resposta do M.P. a quo, argumentando ainda a necessidade de se corrigir um lapsos de escrita no dispositivo da sentença e no facto dado como provado em 4. * Cumpridas as notificações a que alude o art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, não houve resposta:
* Foi cumprido o disposto no art. 358º, n º 3 do CPP. Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso. * II. Apreciando e decidindo: Questões a decidir no recurso É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1]. As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes: a) vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) erro notório na apreciação da prova; c) vício de contradição insanável na matéria de facto dada como provada; d)Erro de julgamento; e)Errada valoração da prova; f)Violação do principio do in dúbio pro reo; g) erro no enquadramento jurídico dos factos; h) erro na dosimetria das penas; i)absolvição do pedido cível. * Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente à decisão e razões da sua fixação, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respetiva motivação bem como enquadramento jurídico constantes da decisão recorrida (transcrição):
“ (…) II – Fundamentos de facto: Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão a proferir: 1. No dia 30 de maio de 2022, cerca das 18:13 horas, a partir de uma janela da fração correspondente à Rua ..., em ..., AA produziu pelo menos um disparo com uma arma de características não concretamente apuradas na direção de uma gaivota, tendo-a atingido e morto. 2. A Rua ..., em ..., consiste numa rua urbana da cidade ..., ladeada por edifícios de habitação e comércio em toda a sua extensão. 3. O arguido agiu com o propósito de matar a gaivota com a referida arma, ciente que se tratava de espécie não cinegética e da proibição de atentar contra esta, o que representou e quis, bem sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punida. 4. O arguido agiu com o propósito de disparar a referida arma de ar comprimido, ciente que o fazia em zona urbana, a partir de um prédio e que deste modo violava as regras e normas de conduta de portadoras de armas, o que representou e quis, bem sabendo que a sua conduta era proibida e contra-ordenacionalmente punida. 5. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente. 6. No dia 10 de janeiro de 2023, cerca das 15:00 horas, ao ver o ofendido BB a atravessar a passadeira na Rua ..., na ..., o arguido parou a sua viatura junto deste e, movido por desentendimentos anteriores, dirigiu-se-lhe travando-se de razões com ele. 7. Nessas circunstâncias o arguido desferiu um murro no ofendido BB, atingindo-o no ombro e agarrou-o pelo casaco provocando o seu desequilíbrio e a queda de ambos ao chão, altura em que o arguido lhe desferiu murros na cabeça e tronco. 8. Como consequência direta e necessária das supra descritas agressões, o ofendido BB sofreu dores nas zonas do corpo atingidas. 9. O arguido agiu com o propósito consumado de molestar fisicamente o ofendido. 10. Por força da ação do arguido, o ofendido sentiu medo e inquietação. 11. Do mesmo modo sofreu dores e hematomas. Mais se apurou que: 12. O arguido é gestor de património e aufere um rendimento mensal de cerca de € 1.300,00. 13. O arguido é proprietário de três apartamentos. 14. É também proprietário de um veículo automóvel de marca Mercedes, Modelo ..., do ano de 2011. 15. Reside num apartamento pertencente à herança indivisa da sua mãe. 16. Despende mensalmente em consumos básicos de água, eletricidade e gás a quantia de cerca de € 200,00. 17. É bacharel em Gestão e Marketing pelo .... 18. Tem antecedentes criminais, tendo sido condenado a 11.11.2022, por sentença transitada em julgado a 6.06.2023, proferida no âmbito do processo nº284/20.8PAPVZ, que correu termos no Juízo Local Criminal da ..., pela prática de dois crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181º do CP, com a agravação do artigo 183º, nº1, als. a) e b), do mesmo diploma legal, na pena única de 90 dias de multa, à razão diária de € 15,00, perfazendo um total de € 1.350,00. * Factos não provados: i) A arma referida em 1º consistia numa arma de ar comprimido. ii) Na noite do dia 10 de janeiro de 2023, o ofendido não dormiu. iii) Nas noites seguintes teve dificuldade em dormir e acordou várias vezes durante a noite. iv) Ainda hoje o ofendido acorda frequentemente com a imagem do ocorrido e lembra-se recorrentemente do evento, o que o deixa sobressaltado e nervoso. v) Durante os primeiros meses após o sucedido, o ofendido viveu mais temeroso, vigilante e inquieto. vi) O ofendido foi questionado por várias pessoas devido às marcas de agressão que tinha no corpo, o que o deixava envergonhado e enfadado. vii) As sequelas alteraram o dia-a-dia da profissão do assistente, ficando as respetivas tarefas mais dolorosas e lentas.
* III – Motivação A convicção do Tribunal relativamente aos factos que considerou provados fundou-se na apreciação livre e crítica da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, de acordo com o preceituado no artigo 127º do Código de Processo Penal. No caso dos autos, temos que o arguido declarou pretender prestar declarações sendo que, no âmbito das mesmas, referiu não saber de nada relativamente ao “assunto da gaivota”. Negou ser possuidor de qualquer arma, que não viu qualquer animal morto, e que nenhuma janela da sua fração lhe permitiria encetar uma ação como aquela de que vem acusado. Por sua vez, no que tange ao confronto ocorrido com o ofendido BB, invocou que foi ter com aquele porquanto o mesmo lhe dirigiu um gesto obsceno, vulgo “pirete”, sendo que, nessas circunstâncias, imediatamente levou dois murros, tendo-se aí gerado um envolvimento no âmbito do qual o arguido caiu ao chão, tendo ficado a sangrar por ter sido “furado” com um objeto que ofendido tinha na mão e que não sabe descrever. Todavia a versão do arguido não colhe. Com efeito, no que diz respeito às agressões perpetradas ao ofendido BB, temos que as declarações deste foram particularmente assertivas, sendo que, no âmbito das mesmas, aquele descreveu um desentendimento prévio relativo à ocupação pelo ofendido de um lugar de estacionamento junto à residência do arguido e com a qual este discorda, sendo que, conforme bem explicou, no caso em apreço, o arguido seguia de carro e ofendido apeado, sendo que foi aquele quem imobilizou a viatura e se dirigiu a este, o que é bem demonstrativo de uma iniciativa de confronto. Ademais, esse contexto inusitado, foi também confirmado pela testemunha EE, transeunte, que bem se apercebeu da circunstância do arguido ter imobilizado a sua viatura em plena passadeira para ir “tirar satisfações” com o ofendido, ficando este na posição de pedir ao ofendido para o largar (visto que estava a ser agarrado pelos colarinhos), acabando ambos por cair quando o ofendido empurrou o arguido com o intuito de se libertar. Neste sentido, e complementarmente, depôs ainda a testemunha FF, proprietário da barbearia existente junto ao local dos factos, o qual confirmou de forma muito clara que o arguido saiu do carro (o interveniente mais alto), dirigiu-se ao ofendido, tendo aí se iniciado os atos de agressão entre ambos, tendo a testemunha acorrido para os separar. Ora, no caso, face à dinâmica dos acontecimentos, não restam dúvidas ao tribunal de que o arguido partiu para a agressão, pois que se deu ao trabalho de, vislumbrando o ofendido e após um cenário de desavença prévio em que o arguido manifesta razões de queixa do ofendido, sair do seu carro, parando-o no meio da via, para se abeirar e tirar de esforço do ofendido. Na verdade, toda a iniciativa, neste contexto cabe ao arguido, bem como era este que se encontrava incomodado com o ofendido, motivo pelo qual apenas este tinha motivação subjacente para proceder como, efetivamente procedeu. Relativamente aos efeitos do sucedido, o tribunal valorou também o depoimento das testemunhas GG e HH, os quais descreveram a forma como o ofendido ficou magoado, bem como as dores de que este se queixava, o que, de resto, em face do sucedido, tem enquadramento nas normais regras da experiência comum. Isto posto, no que tange ao disparo efetuado contra a gaivota, antes de mais, importa referir que não foi apreendida a arma em causa o que, não é impeditivo da prova dos factos, mas apenas do apuramento concreto das suas características físicas e, por conseguinte, da sua classificação legal. Sem prejuízo, para o tribunal foi fulcral o depoimento da testemunha DD, a qual de modo muito tranquilo, sereno, objetivo e pormenorizado, não teve dúvidas em identificar o arguido como autor dos factos, tendo disso dado conhecimento às autoridades e logrado efetuar o seu reconhecimento sem margem para dúvidas (cf. reconhecimento 41 e seguintes dos autos). Ademais, diga-se ainda que o reconhecimento foi efetuado de forma legal, não sendo exigível em lugar algum da lei que a linha de reconhecimento seja composta por pessoas conhecidas da ofendida ou que residam no seu contexto quando se trate de identificar um vizinho autor de um crime. Por outro lado, mesmo que assim não se entendesse, jamais estava vedada ao tribunal a possibilidade de se socorrer da própria prova testemunhal e de livremente a apreciar, sendo que, neste particular a testemunha foi particularmente assertiva e detalhada, jamais claudicando perante o contraditório. De resto, no mesmo sentido depôs o marido da referida testemunha, II, o qual se encontrava próximo da esposa e, não tendo visto, mas apenas ouvido, o disparo, sempre assistiu a tudo quando sucedeu imediatamente após o mesmo, tendo ainda logrado assistir ao momento em que a gaivota caiu do telhado. Ademais, em momento posterior aos factos, a esposa desta testemunha indicou-lhe, sem margem para dúvidas, o arguido como autor dos factos, motivo pelo qual o mesmo também o reconheceu posteriormente, conforme decorre de fls. 42 e seguintes. Foi também ouvida a testemunha CC que relatou a abordagem que teve ao arguido, descrevendo, também, o modo como chegou até à fração daquele. Nesse âmbito, explicou que conseguiram identificar a fração do arguido através do ângulo da fotografia que lhes foi facultada, relatando também o modo irónico e jocoso como foram recebidos pelo arguido, ao invés de surpreendido e colaborante. Deste modo, dúvidas não restam ao tribunal de que foi o arguido quem procedeu do modo descrito, sendo que, em ambos os casos, isto é, no âmbito das duas acusações, é bem patente a intencionalidade do arguido, claramente demonstrada pela forma impetuosa e exuberante como agiu. Ademais, no que tange à situação pessoal do arguido, o tribunal valorou as respetivas declarações, tendo ainda sido valorado o CRC junto aos autos. No que se reporta aos factos não provados, para além do já supra expendido, temos que os mesmos não foram objeto de confirmação cabal e convincente por meio de qualquer elemento de prova produzido em julgamento. * IV – Fundamentos de Direito: Do crime contra a preservação da fauna: Prescreve o artigo 30º, nº1, da Lei nº173/99, de 21 de setembro, que a “a infracção ao disposto no nº1 do artigo 6º do presente diploma é punida com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 100 dias”. Por sua vez, nos termos do disposto no artigo 6º, nº1, al. b), do mesmo diploma legal, estabelece-se a proibição de “caçar espécies não cinegéticas”. Face à espécie em causa nos autos (gaivota) temos que a mesma deve ser considerada espécie não cinegética, por referência, a contrario, ao anexo I ao DL nº202/2004, de 18 de agosto. O tipo legal ora em apreço visa a proteção do bem jurídico natureza enquanto património essencial ao homem de cuja preservação depende o equilíbrio ecológico e a sobrevivência das espécies. Ora, atentos os factos que se deram como provados, forçoso é concluir que o arguido praticou o crime de que vinha acusado pois que levou a cabo um conjunto de atos que visavam a captura, morto, do espécime em causa, sendo que o mesmo se encontrava em estado de liberdade natural – cf. artigo 2º, al. c), do referido diploma. Indiferente para o caso é a posterior recolha do animal morto pelo caçador ou por terceiro, porque a ação prévia, conforme decorre dos factos provados, foi o bastante para, ao ferir mortalmente o animal em causa, o privar do seu estado de liberdade natural, tanto bastando para que estejamos perante um ato concreto de caça, apesar, igualmente, do contexto urbano da ação. Face ao exposto, sabendo o arguido que o exercício da caça nos moldes em que o fez constituía crime, impõe-se a respetiva responsabilização penal. Com efeito, mesmo que estivéssemos perante uma situação de praga (o que apenas às autoridades públicas cabe decretar), nunca poderia ser o cidadão comum a encetar atos diretos de combate à mesma, exceto em situação de ameaça direta, o que não se verificou. Contudo, considerando que não se apurou a exata e concreta natureza e classificação da arma utilizada, não é possível proceder, no caso, à aplicação da pena acessória do artigo 90º do RJAM. * Da contraordenação por violação de normas de conduta dos portadores de armas Dispõe o artigo 98º do RJAM que: “quem, sendo titular de licença, detiver, usar ou for portador, transportar arma fora das condições legais, afetar arma a atividade diversa da autorizada pelo diretor nacional da PSP ou em violação das normas de conduta previstas na presente lei é punido com uma coima de (euro) 400 a (euro) 4000.” Ora, no caso, não se apuraram, desde logo, as características exatas da arma utilizada pelo arguido, por não ter sido apreendida, nem tão pouco que o mesmo fosse portador de qualquer tipo de licença. Ou seja, sabe-se que foi utilizada uma arma para a prática do crime, mas não se pode aferir das respetivas características em ordem a proceder à sua classificação para efeitos do RJAM e, especificamente, para efeitos do normativo em apreço. Face ao exposto, deverá o arguido, nesta parte, ser absolvido. * Do crime de ofensa à integridade física simples Vem o arguido acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº1, do CP. Nos termos do disposto no aludido artigo 143º, nº1, do CP, “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”. Ora, neste âmbito dos crimes contra a integridade física, o crime de ofensa à integridade física simples surge como o tipo legal fundamental (cf. PAULA RIBEIRO DE FARIA, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Volume I, Coimbra Editora, 1999, pág, 202), cujo bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a integridade física entendida como unidade psicossomática do indivíduo, essencial ao livre desenvolvimento e realização da personalidade humana, num quadro de bem-estar físico, psíquico e social, numa perspetiva corporal-objetiva do delito (cf. PAULA RIBEIRO DE FARIA, loc. cit.). A verificação do tipo objetivo pressupõe um comportamento que, por qualquer modo, produza uma ofensa no corpo ou na saúde de terceiro, ficando preenchido o tipo legal do artigo 143º mediante a verificação de tal ofensa. Entende-se por ofensa no corpo todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem-estar físico ou na morfologia do seu organismo. Por sua vez, entende-se por ofensa na saúde, toda a intervenção que ponha em causa, alterando ou perturbando, o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a. Assim sendo, o crime em causa consiste num crime material de resultado dano/violação (lesão do corpo ou da saúde de outrem), de tal forma que o preenchimento do tipo pressupõe a imputação objetiva do resultado à conduta ou à omissão do agente nos termos gerais (cf. artigo 10º do Código Penal e JORGE FIGUEIREDO DIAS, Sumários, 1975, pp. 157 e seguintes). Por outro lado, trata-se também de um crime de realização instantânea, bastando para o seu preenchimento a verificação do resultado, sendo que a gravidade dos efeitos ou a sua duração poderão conduzir à qualificação da lesão ou ser valorados no âmbito da determinação da medida da pena (cf. PAULA RIBEIRO DE FARIA, op. cit.). Do ponto de vista subjetivo, o tipo legal de crime em causa exige o dolo em qualquer das suas modalidades (direto, necessário ou eventual, nos termos do preceituado no artigo 14º do Código Penal), ou seja, o conhecimento dos elementos constitutivos da factualidade típica e a vontade de agir por forma a preenchê-los (conhecimento e vontade de realização do tipo legal de crime). Descendo ao caso concreto, atendendo aos factos provados e reiterando tudo quanto já se deixou vertido em sede de motivação, dúvidas não restam de que o arguido praticou o crime de ofensa à integridade física de que vem acusado, preenchendo com a sua conduta todos os elementos objetivos e subjetivos do crime em causa. Por outro lado, conforme também já supra se aludiu, não se apurou factualidade que permita subsumir a conduta do arguido a qualquer causa justificativa da sua conduta, pelo que, sem necessidade de outros considerandos, impõe-se a responsabilização penal do arguido. * V – Determinação da medida da pena Feito que está o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa agora determinar a medida concreta da pena a aplicar. No caso concreto, os crimes cometidos pelo arguido são puníveis com pena de prisão ou multa. Nessa medida, e em primeiro lugar, há que efetuar uma ponderação ao nível da escolha da pena, fazendo apelo às finalidades que subjazem à sua aplicação, conforme decorre do preceituado no nº1 do artigo 40º do Código Penal. Assim, na esteira de FIGUEIREDO DIAS, “as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e na medida do possível na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa” (in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, pág. 227). Por sua vez, encontra-se no artigo 70º do Código Penal o critério que preside à escolha da pena. Assim, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.” O critério plasmado no sobredito artigo 70º do Código Penal permite concluir que o ordenamento jurídico-penal português assenta na conceção básica de que a pena privativa da liberdade deve constituir a última ratio da política criminal. Assim, no caso dos autos, constata-se que são bastante elevadas as exigências de prevenção geral atendendo, concretamente, ao grau de violência que se vive na nossa sociedade, bem como à frequência com que se verificam situações de reação com agressividade, em claro desrespeito pelos demais cidadãos. Ademais, situações como a dos autos, em que cidadãos, à revelia dos mais elementares parâmetros da vivência em sociedade democrática, optam por tirar satisfações de terceiros mediante recurso à ação direta, demandam, em nosso entender, um sinal claro de operância do sistema que dissuada a prática de atos como os aqui em análise. Do mesmo modo, face à forma inusitada e irrefletida como procedeu o arguido, que, de resto, até ao presente não logrou esboçar qualquer intenção em ressarcir o ofendido, é nosso entender que estamos perante uma situação que importa muito relevantes necessidades de atuação ao nível da prevenção especial, apenas mitigadas pela ausência de antecedentes criminais por crimes da mesma natureza e pela inserção social do arguido. Por outro lado, constata-se que são bastante elevadas as exigências de prevenção geral pois que se constata uma necessidade de sensibilização geral para a manutenção do exercício dos atos venatórios dentro da estrita obediência aos parâmetros estabelecidos pela lei e que, no caso, foram grosseiramente violados. Sem prejuízo, ponderados todos os factos supra aduzidos, e não olvidando que o recurso à pena de prisão deve ser um recurso de ultima ratio, é nosso entender que a moldura abstrata das penas de multa aplicável ao caso contém em si elasticidade suficiente para acautelar de forma adequada a tutela dos bens jurídicos violados. Por conseguinte, o tribunal opta pela aplicação de uma pena não privativa da liberdade. Posto isto, cumpre-nos determinar a medida concreta da pena de multa a aplicar. O crime de ofensa à integridade física simples é punível com uma pena de 10 a 360 dias de multa (cf. artigos 143º, nº1, e 47º, nº1, do CP). O crime contra a preservação da fauna é punível com pena de 10 a 100 dias de multa (artigo 30º, nº1, da Lei nº173/99, de 21 de setembro, e 47º, nº1, do CP). No que concerne à determinação da medida da pena concreta, cumpre ter em consideração que a mesma se fará em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71º, nº1, do Código Penal). Com efeito, nos termos do artigo 71º do Código Penal, a determinação da medida da pena aplicável tem como critérios a culpa do agente e as exigências de prevenção, com as funções definidas segundo a chamada teoria da moldura da prevenção ou da defesa do ordenamento jurídico. À prevenção geral de integração cabe fornecer o limite mínimo de tal moldura, sendo certo que esta terá como um limite superior o ponto ótimo de proteção dos bens jurídicos e como inferior o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a função tutelar inerente à mesma. Já a culpa, entendida em sentido material e referida à personalidade do agente expressa no facto, surge como limite inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva. Ora, dentro desses limites caberá à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena, atendendo-se pois às possibilidades de socialização do agente, sendo certo que, quando esta em concreto, não for possível, relevará a função de intimidação. Concretizando de uma outra forma, à luz do disposto no artigo 71º do Código Penal, na determinação da medida concreta da pena ter-se-ão em conta, dentro dos limites abstratos definidos na lei, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido; fixando-se o limite máximo de acordo com a culpa, o limite mínimo de acordo com as exigências de prevenção geral; e a pena a aplicar, dentro da moldura penal assim conseguida, de acordo com as exigências de prevenção especial que ao caso convenham. No caso sub judice, o dolo revelado pelo arguido foi direto, o que eleva o grau de culpa e ilicitude subjacente. Do mesmo modo, há que ponderar o grau de violência empregue, sendo que, apesar da forma inusitada como o arguido procedeu, a verdade é que, do ponto de vista da integridade física, objetivamente, não provocou ao ofendido lesões de especial monta ou gravidade, sem prejuízo de, necessariamente, ter imprimido na sua ação a necessária força para as lograr. Ademais, importa salientar que o arguido não logrou ressarcir, por qualquer modo ou sequer parcialmente, o ofendido, o que é demonstrativo de uma ausência de arrependimento ou distanciamento críticos, o que deverá ser ponderado contra o mesmo. A acrescer, o mesmo se diga relativamente ao ato venatório praticado pelo arguido, o que fez de forma dolosa e altamente censurável, em contexto urbano, revelando uma postura manifestamente contrária ao direito. Sem prejuízo, verifica-se que o arguido se encontra integrado do ponto de vista familiar e social, sendo ainda que, até à data, não apresenta quaisquer antecedentes criminais por crimes da mesma natureza. Assim, e ponderando os fatores supra aduzidos, considerando ainda os diferentes resultados advenientes das diferentes ações perpetradas pelo arguido, entende o tribunal ser adequado aplicar ao arguido: - Pela prática de um crime de ofensa à integridade física: A pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa; - Pela prática de um crime contra a preservação da fauna: A pena de 60 (sessenta) dias de multa. * Nos termos do disposto no artigo 77º, nº1, do CP, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. Prescreve o nº2 do mesmo artigo que “a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (...); e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”. Assim, em ordem a fixar uma pena única ao arguido, o tribunal depara-se com uma moldura que se situa entre os 140 e os 200 dias. Ora, tendo em conta que a imagem global da conduta do arguido é de uma gravidade claramente acima da média, designadamente tendo em conta a forma obstinada como logrou envolver-se em contenda, por um lado, e praticar ato manifestamente agressivo e censurável contra a fauna, e tendo em conta que o arguido não foi capaz de revelar uma consciência crítica para o seu gesto, antes demonstrando uma completa indiferença que espelha um desvalorizar do sucedido, é nosso entendimento que se reputa adequado aplicar ao arguido a pena única de 180 (cento e oitenta) dias de multa. * Quanto ao quantitativo diário a aplicar, importa considerar o disposto no nº 2 do artigo 47º do Código Penal, o qual dispõe que “cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 5€ e 500€, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais”. Assim, tendo em conta os factos que se deram como provados relativamente à situação económica, financeira e patrimonial do arguido, e não olvidando que o tribunal reserva o mínimo legal para situações de total ausência de rendimentos e/ou património, o que, manifestamente, não é o caso, entende-se ajustada a aplicação de um quantitativo diário cifrado em € 8,00 (oito euros). * VI – Do pedido de indemnização cível: A fls. 65 e seguintes dos autos apensos, veio o ofendido BB deduzir pedido de indemnização cível contra o arguido/demandado, peticionado a quantia global de € 1.200,00 (mil e duzentos euros), acrescida de juros, à taxa legal, desde a apresentação do pedido até integral e efetivo pagamento. Ora, neste âmbito haverá, antes de mais, que levar em linha de conta que, nos termos do preceituado no artigo 129º do CP, “[a] indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”, pelo que a apreciação do pedido de indemnização cível está sujeito ao princípio do pedido. Assim sendo, importa, pois, apurar da eventual violação dos direitos dos ofendidos, designadamente dos direitos de personalidade, e, em função disso, decidir se é de condenar o arguido/demandado a pagar os montantes peticionados. Dispõe o artigo 483º, nº1, do CC, que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. A simples leitura do preceito mostra que vários pressupostos condicionam, no caso geral da responsabilidade por factos ilícitos, a obrigação de indemnizar imposta ao lesante, cada um dos quais desempenha um papel especial na complexa disciplina das situações geradoras do dever de reparação do dano, os quais poderão ser enunciados pela seguinte forma: a) o facto voluntário, controlável pela vontade humana; b) a ilicitude; c) o nexo de imputação do facto ao lesante; d) o dano sobrevindo à conduta ilícita e culposa; e) um nexo de causalidade entre o facto e o dano. No caso concreto, provaram-se os factos criminais que constavam da acusação pública no que tange aos imputados crimes de ofensa à integridade física, bem como as lesões, dores, incómodos e sentimentos daí decorrentes. Assim, no que tange aos danos não patrimoniais consubstanciados nas dores e lesões já mencionadas e decorrente dos ilícitos em apreço, cumpre salientar que o valor da indemnização por danos não patrimoniais é, nos termos dos art. 496º, nº 3, e 494º do Código Civil, fixado equitativamente pelo tribunal, considerando a culpa do agente, a situação económica deste e do lesado, as especiais circunstâncias do caso e a gravidade do dano. Na sua fixação devem ter-se em conta «todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida» (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, 9ª edição, 1º volume, páginas 627 e 628). Por outro lado, o ressarcimento destes danos baseia-se na «... na generosa formulação do art.º 496.º do C. Civil, que confia ao julgador a tarefa de determinar o que é equitativo e justo em cada caso, no que fundamentalmente releva, não o rigor algébrico de quem faz a adição de custos, despesas, ou de ganhos (como acontece no cálculo da maior parte dos danos de natureza patrimonial), mas, antes, o desiderato de, prudentemente, dar alguma correspondência compensatória ou satisfatória entre uma maior ou menor quantia de dinheiro a arbitrar à vítima e a importância dos valores de natureza não patrimonial em que ela se viu afetada» - acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 9-7-1998, in C.J., Ano XXIII, Tomo IV, pg. 185, citando Pessoa Jorge, in “Ensaio Sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, pág. 376; «… não sendo os danos não patrimoniais materialmente mensuráveis e visando a quantia a atribuir a esse título ao lesado, não propriamente indemnizá-lo mas, antes, compensá-lo com uma quantia em dinheiro, cuja aplicação em bens materiais ou morais possa de algum modo contribuir para minorar o seu sofrimento, a quantificação de dano dessa natureza tem de ser feita pelo recurso aos critérios de equidade, em que se terão em devida conta o grau de culpa do lesante, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias atendíveis como, por exemplo, a gravidade da lesão, a desvalorização da moeda, os padrões normalmente utilizados nos casos análogos, etc.» - acórdão do S.T.J. de 19-2-2002, C.J. ano XXVIII, tomo I, pág. 269. Esta indemnização destina-se, portanto, a minorar o mal consumado e não a restituir o lesado à situação em que se encontraria se não se tivesse verificado a lesão. O que se pretende é encontrar um expediente compensatório pela lesão do direito, de molde a proporcionar ao ofendido alegrias que compensem a dor, tristeza ou sofrimento ocasionado pelo facto danoso; o que se pretende é a atribuição ao lesado de uma soma em dinheiro que lhe permita um acréscimo de bem-estar que sirva de contraponto ao sofrimento moral provocado pela lesão. Sendo essa a sua função, a indemnização por este dano não pode ser simbólica: «… é mais que tempo de se acabar com miserabilismos indemnizatórios…» - cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.02.2007, processo nº0641773, in www.dgsi.pt, bem assim como o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 3.10.2007, processo nº0743137, no qual, para o caso, nos louvamos. Nestes termos, atendendo à sua extensão e aos evidentes e inegáveis incómodos sofridos pelo ofendido, mas, ainda assim, ponderando o facto de não ter existido fixação de quaisquer dias de incapacidade, reputa-se adequado, razoável, justo e equitativo condenar o demandado a pagar ao ofendido/demandante a quantia de € 700,00 (setecentos) euros. À quantia em apreço, já devidamente atualizada, acrescerão juros de mora, à taxa legal, desde a presente decisão e até integral e efetivo pagamento (cf. AUJ do STJ nº4/2020 que uniformizou jurisprudência no seguinte sentido: “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objeto de cálculo atualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão atualizadora, e não a partir da citação”). No mais, e sem necessidade de outros considerandos, deverá soçobrar o demais peticionado, o que se decide. (…)” Decidindo. O tribunal a quo explica como chegou à sua convicção sobre os factos, com base no princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP), ou seja, avaliando criticamente todos os meios de prova produzidos: documentos, depoimentos de testemunhas, declarações do arguido e outros elementos técnicos. Na avaliação da prova o tribunal a quo considerou que a credibilidade da prova testemunhal da acusação em detrimento da defesa foi determinada por um conjunto de fatores criteriosamente analisados pelo mesmo. A convicção do Tribunal baseou-se na análise conjunta das provas, à luz das regras da experiência comum e da normalidade. Assim, quanto aos vícios invocados. Em matéria de vícios da decisão nos termos do art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P. «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova». Assim e como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam exógenos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo no julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 338/339], isto é, qualquer um dos referidos vícios tem de existir «internamente, dentro da própria sentença ou acórdão» [Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 340]. No caso específico do vício decisório prevenido na al. a), a indicada insuficiência determina a formação incorreta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas. A matéria de facto (não os meios de prova que a sustêm) é insuficiente para fundamentar a solução de direito correta, legal e justa, estando, pois, associado à insuficiência da matéria de facto para a decisão, o que não se confunde com insuficiência de prova. No segundo caso, o da “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), este consiste na incompatibilidade, de inviável ultrapassagem através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal vício ocorre quando um mesmo facto, obviamente com interesse para a decisão da causa, seja julgado como provado e não provado simultaneamente e logicamente anulando-se, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode prevalecer, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Por fim, o invocado “erro notório na apreciação da prova”, prevenido no inciso da al. c), ocorre quando um homem, medianamente sagaz, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente intui e percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação notoriamente errada, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou inverosímeis.
Ora, analisado o texto da decisão e somente o texto da mesma, todo ele parece mostrar-se coerente quer no que tange aos factos dados como provados e não provados quer no que tange à fundamentação e sua relação com os factos e à decisão resultante. De facto: 1. Insuficiência da Matéria de Facto para a Decisão Este vício ocorre quando os factos provados são insuficientes para sustentar a decisão de direito. No texto em análise, a matéria de facto provada parece ser suficientemente detalhada e completa para fundamentar uma decisão. A análise da sentença revela que, em relação à contraordenação imputada e à sanção acessória, existe uma insuficiência clara da matéria de facto provada para permitir a condenação pretendida pelo Ministério Público, o que, consequentemente, levou à decisão de absolvição nesses pontos. Traduzindo-se numa decisão favorável ao arguido naqueles pontos específicos, baseada no princípio da legalidade e da tipicidade. Pelo contrário, nos crimes pelos quais o arguido foi condenado (Crime Contra a Preservação da Fauna e Crime de Ofensa à Integridade Física Simples), a matéria de facto provada é suficiente para preencher os elementos objetivos e subjetivos dos respetivos tipos legais: Quanto ao Crime contra a Preservação da Fauna, os factos provados incluíram o disparo intencional (dolo) contra uma gaivota (espécie não cinegética), atingindo-a e matando-a. O Tribunal considerou estes factos bastantes para concluir que o arguido praticou o crime de que vinha acusado. Quanto ao Crime de Ofensa à Integridade Física Simples, os factos provados incluíram a iniciativa de agressão, o murro, o ato de agarrar o ofendido, a queda, e os murros na cabeça e tronco, com o propósito de molestar fisicamente (dolo), resultando em dores e hematomas. O Tribunal considerou que o arguido preencheu todos os elementos objetivos e subjetivos deste crime com a sua conduta A matéria de facto cobre, assim, todos os elementos essenciais (a ação, o resultado, o nexo de causalidade e a culpa) necessários para fundamentar uma condenação por um crime de ofensa à integridade física. Não se verifica uma situação em que a "conclusão ultrapassa as premissas", pois os factos provados são extensos e sustentam a imputação da conduta ao arguido. Portanto, não ocorre o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão. 2. Contradição Insanável da Fundamentação ou entre a Fundamentação e a Decisão. Este vício pressupõe uma incompatibilidade lógica e insuperável dentro da própria decisão. Analisando o texto, não se detetam contradições desta natureza. A análise dos excertos da sentença revela apenas uma contradição direta entre os factos dados como provados e os factos dados como não provados e a fundamentação da decisão. No demais a fundamentação explica, de forma coerente, o porquê de certos factos terem sido considerados provados e o porquê de outros terem sido excluídos. Na relação entre Factos Provados e Não Provados existe uma contradição factual entre as duas listas, e que tem que ver com a arama e sua natureza. No demais existe uma demarcação clara do que foi possível provar com os elementos recolhidos durante o julgamento: Assim no que se refere às características da Arma (Ponto 1 e 4 vs. Ponto i): O Tribunal provou que o arguido produziu pelo menos um disparo com uma "arma de características não concretamente apuradas". No ponto 4 refere em tratar-se de arma de ar comprimido e ponto i) dos factos não provados, refere-se que não se provou que a arma referida consistisse numa arma de ar comprimido. Pode concluir-se que existe uma contradição. Contudo, tendo presente a fundamentação da sentença, pode concluir-se pelo reconhecimento de que houve um disparo e uma arma utilizada, mas a sua classificação exata não pôde ser determinada. Donde, mostra-se verificado este vício o que determina a nulidade da decisão. Contudo tendo presente que houve impugnação factual e que do próprio texto da decisão resulta de forma clara a explicação de que a arma não foi apreendida, o que impediu o apuramento das suas características físicas e classificação legal, tal nulidade pode ser suprida nesta instância, art. 431º do CPP. É que a fundamentação e a decisão final são consistentes com o quadro factual estabelecido, explicando as razões pelas quais parte da acusação não pôde ser mantida, mesmo que a intenção (dolo) estivesse provada e manifesta Coerência na Condenação (Fauna e Ofensa Física) No Crime contra a Preservação da Fauna, o Tribunal utiliza os factos provados (F1, F3, F4, F5) — o disparo intencional contra a gaivota, uma espécie não cinegética, em zona urbana — para fundamentar a condenação. No Crime de Ofensa à Integridade Física Simples, o Tribunal baseia-se nos factos provados (F7, F9) — o murro, o agarrar, a queda, e a intenção de molestar fisicamente o ofendido — para sustentar a condenação. E ainda existe consistência na Absolvição (Contraordenação). A tensão existente entre o facto provado n.º 4 e a absolvição da contraordenação, é abordada de forma explícita na fundamentação jurídica. Ou seja, no facto Provado n.º 4 (Dolo da Contraordenação), o Tribunal provou que o arguido agiu com o propósito de disparar a referida arma de ar comprimido (apesar de i) não ter sido provado que era de ar comprimido, a intenção de violação de normas foi provada), ciente de que o fazia em zona urbana e que violava as regras e normas de conduta de portadoras de armas. No entanto, para a condenação na contraordenação por violação de normas de conduta de portadores de armas (Artigo 98.º do RJAM), o Tribunal considerou que não se apuraram as características exatas da arma utilizada (por não ter sido apreendida), nem que o arguido fosse portador de qualquer tipo de licença. Apesar de se saber que uma arma foi utilizada para a prática do crime, não foi possível aferir as respetivas características para efeitos de classificação legal nos termos do RJAM, nem a titularidade de licença. Consequentemente, o Tribunal decidiu pela absolvição do arguido relativamente à contraordenação, justificando que a insuficiência de prova factual (a classificação da arma e a licença) inviabilizava a subsunção legal, apesar de ter ficado provada a intenção. Portanto, em resumo, o Tribunal demonstra que o que não foi provado foi a situação objetiva da arma (características e classificação). Essa falta de prova é consistentemente utilizada na fundamentação para justificar as absolvições determinadas, pelo que não se verificam propriamente contradições internas, porquanto o tribunal decidiu com base no desconhecimento do tipo de arma utilizada, situando-se a menção a arma de ar comprimido mais numa situação de provável lapso material, provavelmente consequência de uma situação de copy paste. O vício da “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal, ocorre quando se verifica uma quebra de coerência lógica insuperável no interior da própria decisão. De todo o modo, com base na análise dos factos provados, não provados e da motivação da sentença, pode-se constatar formalmente a existência de uma contradição, embora a mesma não exista na lógica interna de toda a decisão. A sentença demonstra na análise do enquadramento dos factos uma coerência interna, nomeadamente explicando de forma lógica as razões pelas quais a insuficiência de prova em certos pontos implicou a absolvição ou a não aplicação de penas acessórias, relacionado com o desconhecimento das caraterísticas da arma utilizada. O Tribunal provou que o arguido usou uma arma de "características não concretamente apuradas" para atingir a gaivota, e que agiu com o propósito de disparar a "referida arma de ar comprimido". Contudo, considerou não provado que a arma fosse, de facto, "uma arma de ar comprimido". O Tribunal reconhece que o dolo (intenção de violar normas de conduta, PF 4) existiu, mas a prova objetiva (classificação física da arma) falhou, devido à não apreensão da mesma, provavelmente consequência de uma situação de copy paste. De facto, a fundamentação demonstra que efetivamente o tribunal a quo não apurou a exata e concreta natureza e classificação da arma utilizada. Em face do exposto supre-se o erro retirando do ponto 4 dos factos provados a expressão” de ar comprimido”. 3. Erro Notório na Apreciação da Prova Este vício existe quando a apreciação da prova pelo tribunal viola de forma manifesta e óbvia as regras da experiência comum ou a lógica. A análise do texto não revela um erro desta magnitude. O tribunal fundamentou a sua convicção numa "análise crítica e ponderada da prova produzida em julgamento", baseando-se no princípio da livre convicção, mas sempre à luz das regras da experiência comum. A decisão demonstra um processo de raciocínio lógico e coerente. O vício de erro notório, que implica que o tribunal violou as regras da experiência ou efetuou uma apreciação notoriamente errada, desadequada, ilógica ou inverosímil, pressupõe uma falha grosseira na construção da convicção judicial. Pelo contrário, a sentença demonstra uma fundamentação coerente e detalhada para as conclusões factuais alcançadas. Erro de julgamento. Quanto ao erro de julgamento capaz de conduzir à modificação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso, nos termos dos artigos 412º, nº 3 e 431º, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, reporta-se às seguintes situações: 1. o Tribunal “a quo” dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha e a mesma nada declarou sobre o facto; 2. ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado; 3. prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência da mesma que permita a prova do mesmo; 4. prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova; 5. e todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso e resulta da audição do registo áudio, se permite concluir, fora do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas.
Ora, o alegado erro de julgamento está sustentado na alegada discrepância e errada valoração da prova testemunhal. Vendo de perto. A convicção do Tribunal, relativamente aos factos que considerou provados, fundou-se na apreciação livre e crítica da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, de acordo com o preceituado no artigo 127.º do Código de Processo Penal. O Tribunal baseou a sua convicção na valoração conjugada de prova testemunhal direta, assertiva e pormenorizada, bem como na análise de documentos e na lógica dos acontecimentos, descartando a versão apresentada pelo arguido. A convicção foi estruturada em relação aos dois conjuntos de factos: o incidente da gaivota (crime contra a preservação da fauna) e o confronto físico (crime de ofensa à integridade física simples). Relativamente ao Crime Contra a Preservação da Fauna (Disparo contra a Gaivota) A convicção de que o arguido AA foi o autor do disparo que matou a gaivota assentou primariamente no depoimento da testemunha e nas corroborações. Foi considerado fulcral o depoimento da testemunha DD, a qual, de modo "muito tranquilo, sereno, objetivo e pormenorizado", não teve dúvidas em identificar o arguido como autor dos factos. Esta testemunha deu conhecimento às autoridades e conseguiu efetuar o reconhecimento do arguido "sem margem para dúvidas". O Tribunal valorou o depoimento do marido da referida testemunha, II, o qual, embora não tenha visto o disparo, ouviu-o e "assistiu a tudo quanto sucedeu imediatamente após o mesmo", tendo ainda visto a gaivota a cair do telhado. O marido também reconheceu o arguido posteriormente, após a esposa lhe ter indicado o arguido "sem margem para dúvidas". Foi valorado o depoimento da testemunha CC, que relatou como a polícia conseguiu identificar a fração do arguido através do ângulo da fotografia que lhes foi fornecida. Adicionalmente, o Tribunal considerou o modo irónico e jocoso como o arguido recebeu as autoridades, contrastando com uma atitude de surpresa ou colaboração. O Tribunal reconheceu que a arma em causa não foi apreendida, o que foi impeditivo do "apuramento concreto das suas características físicas e, por conseguinte, da sua classificação legal". No entanto, esta ausência não foi impeditiva da prova dos factos de autoria e da materialidade da agressão à fauna. O Tribunal concluiu que as provas demonstram "dúvidas não restam" de que foi o arguido quem procedeu do modo descrito e que a intencionalidade (dolo) era bem patente pela forma impetuosa e exuberante como agiu.
Relativamente ao Crime de Ofensa à Integridade Física Simples, a convicção de que o arguido foi o agressor inicial baseou-se nos depoimentos que contradisseram a versão do arguido (que alegou ter sido agredido primeiro): O Tribunal valorou as declarações do ofendido BB, que foram consideradas "particularmente assertivas". O ofendido explicou o contexto de desentendimentos prévios e que foi o arguido quem imobilizou a viatura e se dirigiu a ele, demonstrando a "iniciativa de confronto". A testemunha EE confirmou o "contexto inusitado", nomeadamente que o arguido imobilizou a sua viatura em plena passadeira para ir "tirar satisfações" com o ofendido, e que este estava a ser agarrado pelo arguido. A testemunha FF confirmou de "forma muito clara que o arguido saiu do carro (o interveniente mais alto), dirigiu-se ao ofendido, tendo aí se iniciado os atos de agressão entre ambos". De acordo com as Regras da Experiência Comum, o Tribunal concluiu que "toda a iniciativa" coube ao arguido, que estava incomodado com o ofendido e tinha "motivação subjacente para proceder como, efetivamente procedeu". Os depoimentos das testemunhas GG e HH foram valorados para descrever a forma como o ofendido ficou magoado e as dores de que se queixava, o que o Tribunal considerou ter "enquadramento nas normais regras da experiência comum". Em suma, a convicção do Tribunal baseou-se na credibilidade da prova testemunhal, na coerência dos depoimentos entre si, e na rejeição da versão do arguido por se encontrar em contradição com o que foi confirmado por terceiros.
O Tribunal descredibilizou a versão do arguido AA e bem, baseando-se numa análise crítica dos seus depoimentos em comparação com a prova testemunhal coesa e assertiva, especialmente no que diz respeito ao incidente da ofensa à integridade física, e na falta de correspondência factual nos eventos relacionados com o crime contra a fauna. O Tribunal declarou explicitamente que "a versão do arguido não colhe", apresentando as seguintes razões principais para descredibilizar os seus relatos: Relativamente ao Crime de Ofensa à Integridade Física (Confronto Físico) O arguido invocou que a agressão foi desencadeada pelo ofendido BB, alegando que este lhe dirigiu um "gesto obsceno, vulgo ‘pirete’", e que em seguida o ofendido lhe deu "imediatamente levou dois murros", gerando um envolvimento onde o arguido caiu ao chão e ficou a sangrar. O Tribunal descredibilizou esta versão com base nas seguintes provas e inferências: A versão do arguido foi contraditada pelas declarações "particularmente assertivas" do ofendido. O ofendido explicou que o arguido, movido por desentendimentos anteriores, imobilizou a sua viatura e dirigiu-se a pé ao ofendido. O Tribunal considerou que esta atitude era "bem demonstrativo de uma iniciativa de confronto" por parte do arguido. O contexto da iniciativa do arguido foi confirmado (corroboração)pela testemunha EE, uma transeunte, que se apercebeu de que o arguido imobilizou a viatura "em plena passadeira" para ir "tirar satisfações" com o ofendido. A testemunha FF confirmou "de forma muito clara que o arguido saiu do carro (o interveniente mais alto), dirigiu-se ao ofendido, tendo aí se iniciado os atos de agressão entre ambos". O Tribunal concluiu que, face à dinâmica dos acontecimentos e a um "cenário de desavença prévio", a iniciativa e a motivação subjacente para a agressão cabiam ao arguido, que estava "incomodado com o ofendido". O conjunto da prova testemunhal contradisse o relato do arguido de que ele teria sido a vítima inicial da agressão. Relativamente ao Crime Contra a Preservação da Fauna (Disparo) No que se refere ao disparo contra a gaivota, o arguido "referiu não saber de nada relativamente ao ‘assunto da gaivota’". Negou ser possuidor de qualquer arma, negou ter visto qualquer animal morto, e alegou que nenhuma janela da sua fração permitiria a ação de que vinha acusado. O Tribunal descredibilizou esta negação com base em: O depoimento da testemunha DD foi considerado "fulcral", por ter sido "muito tranquilo, sereno, objetivo e pormenorizado", não tendo tido dúvidas em identificar o arguido como autor dos factos e por ter logrado efetuar o reconhecimento "sem margem para dúvidas". Corroboração Indireta e Localização dado que o marido da testemunha (que ouviu o disparo) e a testemunha CC (agente policial), que identificou a fração do arguido através do ângulo da fotografia fornecida, confirmaram a autoria e a localização dos factos. Comportamento do Arguido: O arguido recebeu as autoridades de modo "irónico e jocoso", em contraste com uma atitude de surpresa ou colaboração. O Tribunal concluiu que as provas demonstram "dúvidas não restam" de que foi o arguido quem procedeu do modo descrito, rejeitando, portanto, a sua negação total dos factos. Em suma, a convicção do Tribunal foi formada pela coerência e detalhe da prova testemunhal, que se sobrepôs à versão apresentada pelo arguido. O Tribunal expõe de forma explícita e detalhada as razões que o levaram a considerar certos factos como provados e a descartar outros, baseando-se no princípio da livre apreciação da prova, conforme o artigo 127.º do Código de Processo Penal. O Tribunal provou que o arguido disparou a partir da sua residência e matou uma gaivota, sendo absolutamente irrelevante se foi da sua residência ou de um espaço comum, pelo que discutir o pormenor janela da fração ou espaço comum do prédio não tem qualquer tipo de utilidade para o desfecho desta decisão atendendo a que o arguido foi bem identificado como sendo o autor do disparo a. O facto de a arma ter "características não concretamente apuradas" e de não se ter provado que era especificamente "uma arma de ar comprimido" é fundamentado pela ausência de apreensão do objeto. O Tribunal reconhece que a ausência de apreensão impediu o "apuramento concreto das suas características físicas e, por conseguinte, da sua classificação legal". A autoria dos factos é fundamentada no depoimento "muito tranquilo, sereno, objetivo e pormenorizado" da testemunha DD, que identificou o arguido sem dúvidas. Este depoimento foi corroborado pelo marido da testemunha (que ouviu o disparo e viu a gaivota cair) e pela abordagem subsequente da polícia, que identificou a fração do arguido através do ângulo da fotografia. A convicção do Tribunal baseia-se em prova testemunhal assertiva e corroborada, sendo que as incertezas factuais (características da arma) são reconhecidas e motivadas, não resultando em qualquer ilogismo ou arbitrariedade. Relativamente à ausência de perícia sobre o animal, todo o argumentário do arguido não passa de uma efabulação. O animal foi identificado como uma gaivota, mas até podia ser uma das aves mencionadas no seu recurso, que nada alteraria a censura do seu comportamento e o facto de ter posto fim à vida de um animal por mera diversão. Na sequência do disparo a prova foi contundente a respeito de que a ave foi atingida pelo arguido e que a mesma entrou em sofrimento acabando por morrer no sitio onde caiu. Refere o recorrente que: Não ficou provado, com a certeza e segurança exigíveis em direito penal, que foi o arguido quem efetuou qualquer disparo contra a gaivota. O depoimento da principal testemunha de acusação (DD), considerado "fulcral" pelo Tribunal, não apresentou uma identificação isenta de dúvidas. A sua perceção pode ter sido influenciada por fatores como a distância, as condições de visibilidade e a subjetividade. Acresce que a testemunha reconheceu que a sua identificação se baseava na presunção de que o arguido morava naquele prédio. Não foi realizado exame balístico ou necrópsia à gaivota para confirmar a causa mortis, não existindo certeza de que a ave morreu em consequência direta do disparo. A testemunha referiu que, após cair, a gaivota ainda estava viva e a dar sinais de vida, levantando dúvidas sobre se foi recolhida com vida no dia seguinte. Mais refere que o Tribunal reconheceu que a arma em causa não foi apreendida, sendo as suas características desconhecidas. Se as características da arma são desconhecidas, não há certeza de que se tratava de uma arma capaz de praticar o crime de caça imputado, podendo ter sido um objeto inócuo. A dúvida razoável quanto à natureza e capacidade lesiva da arma deveria ter beneficiado o arguido, em conformidade com o princípio in dubio pro reo. Ora, como já vimos dizendo e ouvida a prova, o tribunal descredibilizou a versão arguido e considerou a prova de acusação com forte credibilidade e fê-lo com acerto. Não ficam dúvidas de que foi o arguido quem fez o disparo. Não ficam dúvidas que na sequência desse disparo a ave cai e morre ainda que tenha sobrevivido por algum tempo e as regras da experiência levam a concluir que se assim aconteceu é porque a arma usada era letal. Ora, o Tribunal considerou essenciais e credíveis para estabelecer a autoria e a materialidade do crime o depoimento das testemunhas oculares, em especial DD, e a descoberta do animal. O depoimento de DD foi considerado credível, sendo classificado como simples, desinteressado e detalhado e concordamos com esta afirmação. A testemunha estava à janela no momento do disparo e descreveu o evento com clareza. Ela viu o disparo realizado com uma arma, viu a gaivota a ser projetada e a debater-se para sobreviver no solo após bater numa caleira. Foi DD quem fez a denúncia, via email. Sete meses após os factos (20.1.2023), ela realizou um reconhecimento pessoal positivo do arguido, cumprindo os formalismos legais (artigo 147.º do Código de Processo Penal). O seu marido, II, corroborou a sua esposa. Embora não tenha visto o disparo, ele foi chamado à varanda, viu a gaivota a lutar para sobreviver e confirmou que, mais tarde, a esposa identificou o arguido na rua como sendo a pessoa que efetuou o disparo. A polícia encontrou a gaivota sem vida no mesmo local e recolheu-a. A aptidão da arma para provocar o disparo decorre da evidência dos factos. A ação prévia de ferir mortalmente o animal o privou do seu estado de liberdade natural, num contexto urbano da ação. A gaivota é uma espécie não cinegética (Anexo I ao DL nº202/2004). O arguido alegou que a janela de onde foi feito o disparo pertencia a uma área comum do condomínio. Ora, o facto de a janela ser de uma área comum não é incompatível com a autoria do arguido, pois a janela fica no acesso à cobertura e o arguido tem acesso a ela. O arguido contestou que a testemunha DD o teria reconhecido apenas por presumir que vivia no mesmo prédio. Ora a testemunha descreveu claramente o evento e realizou um reconhecimento pessoal positivo formal sete meses depois. A necrópsia era desnecessária dado que a testemunha ocular viu a realização do disparo com arma, a gaivota a ser projetada e a debater-se antes de ser encontrada sem vida pela polícia no local.
Ainda relativamente ao crime de ofensas a integridade física. O Tribunal provou que o arguido AA teve a iniciativa de confronto, parando a viatura, dirigindo-se ao ofendido BB e desferindo-lhe um murro, iniciando a agressão. O Tribunal refere expressamente que a versão do arguido, que alegou ter sido agredido primeiro, "não colhe". Esta conclusão é suportada pelas declarações "particularmente assertivas" do ofendido e, crucialmente, pela confirmação de terceiros. A testemunha EE confirmou que o arguido imobilizou a viatura para "tirar satisfações" e agarrou o ofendido pelos colarinhos. A testemunha FF confirmou de forma "muito clara que o arguido saiu do carro (o interveniente mais alto), dirigiu-se ao ofendido, tendo aí se iniciado os atos de agressão entre ambos". A descrição do ofendido, contida na acusação e nos factos provados, foi confirmada pelas testemunhas oculares, em particular por EE. Outras testemunhas (FF, GG e HH) também não infirmaram a versão do ofendido. O Tribunal concluiu que o arguido tomou a iniciativa da agressão e bem. O raciocínio do Tribunal foi fundamentado, lógico e demonstrou a análise da prova testemunhal e documental, beneficiando da imediação e oralidade na aferição da credibilidade dos meios de prova. O arguido procurou implantar uma dúvida no tribunal em resultado de ligeiras discrepâncias nos detalhes das memórias das testemunhas que se justificam pelas erosões e lacunas naturais com o decurso do tempo). Estas discrepâncias não são relevantes, e, por conseguinte, não existiu uma dúvida razoável por parte do tribunal, não se aplicando o princípio do in dubio pro reo. O arguido alegou ter atuado em legítima defesa (artigos 31.º e 32.º do Código Penal). Sem razão, pois foi o próprio arguido quem tomou a iniciativa da agressão. Além disso, as testemunhas afirmaram que os contendentes estavam "muito agarrados um ao outro," inferindo-se que o arguido não procurava ser libertado nem ajudado.
A inferência de que a iniciativa do confronto coube ao arguido e de que este partiu para a agressão é uma conclusão lógica extraída da prova testemunhal convergente, não configurando um juízo ilógico ou inverosímil. Em suma, a motivação apresentada na sentença é racional, detalhada e alicerçada na prova testemunhal direta, o que afasta a possibilidade de se configurar o vício de "erro notório na apreciação da prova" ou erro de julgamento.
Por sua vez, a prova invocada pelo recorrente sustenta-se na sua prova oferecida, a qual o tribunal descredibilizou não impondo outra versão, podendo apenas admitir-se que admite uma outra versão, a qual não foi considerada credível e aceitável pelo tribunal a quo. O tribunal avaliou crítica e criteriosamente toda a prova produzida e examinada na audiência de julgamento. Diversamente do que entende o arguido-recorrente, temos por líquido que da conjugação de toda a prova produzida resulta, à evidência, que foi acertada a decisão sobre a matéria de facto proferida por este Tribunal. As provas que o tribunal recorrido enunciou como fundamentadoras da decisão posta em crise são de molde a alicerçar os factos constantes da mesma, crendo-se que o recorrente, com o recurso interposto, mais não pretende do que pôr em crise a valoração das provas feitas pelo tribunal, o que esbarra, desde logo, com o princípio da livre convicção do julgador e sua imediação que este tribunal não pode suprir em toda a sua dimensão. O princípio da imediação traduz-se na exigência de que uma decisão jurisdicional, especialmente sobre matéria de facto, só possa ser sustentada por quem tenha assistido diretamente à produção da prova e à discussão da causa em audiência. Isto garante um contato direto e pessoal entre o juiz (ou coletivo de juízes) e as pessoas que prestam depoimento, testemunhas, peritos, partes e outros produtores de prova, permitindo ao julgador formar uma perceção própria, viva e imediata dos elementos que fundamentam a decisão. A imediação implica uma relação de proximidade física e temporal entre o tribunal que julga e os intervenientes processuais, de modo que aquele possa captar todos os elementos, inclusive fatores subtis e não traduzíveis num simples relato escrito, tais como gestos, entonação( modulação do tom de voz para expressar diferentes intenções, emoções ou significados, alterando a forma como as palavras são faladas e influenciando a compreensão da mensagem) e respostas das testemunhas. Este princípio visa garantir a segurança e a fidedignidade da formação da certeza do juiz sobre os factos, prevenindo distorções que poderiam ocorrer caso a prova fosse apreciada apenas por via indireta ou por outro magistrado que não aquele que assistiu à sua produção em audiência. Na prática, o princípio da imediação significa que somente aquele juiz que presenciou a produção da prova pode formar sua certeza sobre a mesma e proferir decisão. Este princípio também está relacionado com os princípios da oralidade e concentração do julgamento, sendo crucial para a livre apreciação da prova e efetividade do contraditório.
Haverá de não esquecer que esta instância não faz um segundo julgamento dos factos, mas apenas analisa aqueles que lhe foram indicados e que possam ser alterados por força de prova indicada especificamente para aquele facto e que imponha versão contrária à do tribunal recorrido e não apenas uma versão alternativa. Ora, um dos princípios basilares, senão mesmo o fundamental, quanto à prova, é o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Cód. Proc. Penal, nos termos do qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Não assiste qualquer razão ao arguido no que concerne à análise da prova produzida. O tribunal a quo analisou, de forma correta e irrepreensível a prova documental e testemunhal e não teve qualquer tipo de dúvida ao conjugar toda a prova, pelo que não se pode invocar o princípio do in dúbio pro reo. A invocação do princípio in dubio pro reo e do disposto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, não tem sustentação na prova. O princípio in dubio pro reo, enquanto emanação do princípio constitucional da presunção da inocência (artigo 32º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), aplica-se exclusivamente em sede de julgamento da matéria de facto. Este princípio opera apenas na ausência de uma convicção para além da dúvida razoável sobre a ocorrência dos factos relevantes para a decisão da causa. Trata-se de um princípio lógico de prova (cfr. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal, Vol. I, Universidade Católica Portuguesa, 2013, pág. 93) que atua no domínio da questão-de-facto (cfr. J. Figueiredo Dias, Clássicos Jurídicos, Direito Processual Penal, pág. 215). Neste caso específico, o tribunal considerou corretamente os indícios e respeitando as regras da experiência analisadas no contexto global dos factos diretos e indiretos apurados, entendeu não ter aplicação o princípio in dubio pro reo, e bem, levando-nos a concluir que há prova suficiente para condenar o arguido "para além de qualquer dúvida razoável" pelos factos descritos na sentença.
Questão do enquadramento jurídico. Crime contra a Preservação da Fauna O arguido foi condenado pela prática de um crime contra a preservação da fauna. O enquadramento legal usado para esta condenação foi: • Artigo 30.º, n.º 1, da Lei n.º 173/99, de 21 de setembro. • Com referência aos artigos 6.º, n.º 1, alínea b), e 2.º, alínea a), a contrario, da mesma Lei. • E aos artigos 2.º, alínea cc), 3.º, e Anexo I, a contrario, do Decreto-lei n.º 202/2004, de 18 de Agosto. A pena parcelar aplicada foi de 60 (sessenta) dias de multa. O recorrente alega que houve uma errada interpretação do artigo 30.º, n.º 1, da Lei n.º 173/99, e dos artigos correlacionados. O cerne da contestação jurídica reside na insuficiência da demonstração dos elementos objetivo e subjetivo do tipo do crime contra a preservação da fauna: Elemento Objetivo (Conceito de Caça): O arguido sustenta que a conduta de disparar contra uma gaivota em contexto urbano com uma arma de características não apuradas não se enquadra inequivocamente no conceito legal de "caça" de "espécies não cinegéticas", conforme o artigo 6.º, n.º 1, alínea b), e artigo 2.º, alínea c), da Lei n.º 173/99. A definição legal de "caça" refere-se a "qualquer ato dirigido à captura ou morte de espécies animais", e o recurso alega que não ficou demonstrado qualquer ato do arguido dirigido à captura ou aproveitamento do animal (como troféu, para comer ou taxidermia), podendo a mera ação de disparar não preencher o elemento objetivo do tipo. Elemento Subjetivo (Dolo): O recorrente questiona a afirmação da sentença de que o arguido agiu com o propósito de matar a gaivota, ciente de que se tratava de espécie não cinegética e da proibição de atentar contra esta. O recorrente alega que inexistem nos autos elementos que permitam afirmar que o arguido sabia tratar-se de espécie não cinegética, especialmente porque nem sequer foi comprovado se se tratava de facto de uma gaivota ou outra ave marinha, nem foi especificada a subespécie nos termos do Anexo I do DL n.º 202/2004. Quanto ao crime de Ofensa à Integridade Física. O arguido foi condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples. O enquadramento legal usado para esta condenação foi: Artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal. A pena parcelar aplicada foi de 180 (cento e oitenta) dias de multa. Relativamente a este crime, a defesa invoca essencialmente dúvidas razoáveis sobre a dinâmica inicial do confronto físico, o que afeta a aplicação do direito: A defesa sustenta que a factualidade provada (ponto 7) não reflete a dinâmica dos acontecimentos, argumentando que subsistem dúvidas insanáveis sobre a ilicitude da conduta do Recorrente e a sua exclusiva responsabilidade. Alega-se que os erros na apreciação da matéria de facto levaram a uma errónea aplicação do direito penal, designadamente no que respeita à aplicação do princípio in dubio pro reo e à consideração de eventuais causas de exclusão da ilicitude. Cúmulo Jurídico Em cúmulo jurídico pelos dois crimes, o arguido foi condenado na pena única de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de € 8,00, perfazendo um total de € 1.440,00. O arguido considera que a pena única aplicada de 180 dias de multa é manifestamente excessiva, caso não seja absolvido de ambos os crimes. A defesa argumenta que o Tribunal a quo não ponderou devidamente a conexão entre os crimes, a gravidade global dos ilícitos e a personalidade do arguido. Sugere que uma pena única entre 100 a 120 dias de multa seria mais justa, adequada e proporcional à gravidade global dos ilícitos e à culpa do arguido.
Relativamente ao preenchimento do tipo objetivo importa considerar o seguinte:
Parte inferior do formulário
Em Portugal, o regime jurídico da caça das espécies cinegéticas e não cinegéticas é definido pela Lei n.º 173/99, de 21 de setembro , e pelo Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18 de agosto , que regulamenta a Lei de Bases da Caça. Conceito jurídico. O artigo 2.º, disposição cc) do Decreto-Lei n.º 202/2004(Regulamento da caça) define os recursos cinegéticos como: “As aves e os mamíferos terrestres que se encontram em estado de liberdade natural [...] e que figuram na lista de espécies publicadas com vista à regulamentação da presente lei.” Isto significa que apenas as espécies incluídas na portaria do Ministério da Agricultura são consideradas cinegéticas. Todas as restantes — não constantes dessa lista — são juridicamente não cinegéticas. A lista atualizada de espécies não cinegéticas em Portugal não é publicada de forma direta e isolada, pois juridicamente as espécies não cinegéticas são todas aquelas que não constam na lista oficial de espécies cinegéticas autorizadas para caça. A Lista oficial de espécies cinegéticas está na Portaria n.º 67/2024, de 22 de fevereiro. Esta portaria lista as espécies autorizadas para caça, como, por exemplo: Coelho-bravo (Oryctolagus cuniculus) Lebre (Lepus granatensis) Raposa (Vulpes vulpes) Perdiz-vermelha (Alectoris rufa) Faisão (Phasianus colchicus) Pombo-da-rocha (Columba Lívia) Gralha-preta (Corvus corone) Javali (Sus scrofa) Veado (Cervus elaphus) entre outras. Assim, não são consideradas cinegéticas todas as espécies terrestres selvagens que não figuram nessa lista oficial de espécies autorizadas para caça . São exemplos típicos: Gaivotas (espécies Larus),Aves de rapina protegidas,Corvos e gralhas excluídos em projetos de lei específicos, espécies protegidas pela legislação ambiental como lontras, lobos, cegonhas e outras, aves urbanas não cinegéticas (pombos urbanos selvagens, etc.). Posto isto é estabelecida a lista legal atualizada de espécies cinegéticas regulamentadas que podem ser caçadas, sendo que a definição de espécies não cinegéticas é por exclusão jurídica e inclui espécies selvagens que não se encontram nessa lista oficial publicada e atualizada periodicamente, a mais recente sendo a portaria de 2024. Em resumo, não cinegéticas são todas as espécies da fauna selvagem portuguesa não constantes da lista cinegética regulamentada , abrangendo a quase totalidade das espécies urbanas e protegidas de aves e mamíferos. Sendo assim, caçar ou abater qualquer espécie não cinegética constitui uma infração ao disposto no artigo 6.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 173/99(Lei de Bases Gerais da Caça) — “é proibido caçar espécies não cinegéticas” — sendo punível nos termos do regime penal aplicável ambiental. Exercício da caça ou ato venatório são todos os atos que visam capturar, vivo ou morto, qualquer exemplar de espécies cinegéticas que se encontre em estado de liberdade natural, nomeadamente a procura, a espera e a perseguição. É a própria lei que no seu art.6º que de forma expressa refere que é proibido caçar espécies não cinegéticas e o ato de caçar é qualquer um que capture vivo ou morto animal que se encontre em estado de liberdade. O artigo 6.º confirma expressamente que é proibido caçar espécies não cinegéticas, reforçando o caráter restritivo do conceito legal de caça e a sua vinculação à proteção ambiental. Este artigo 6.º – Preservação da fauna e das espécies cinegéticas tem uma função dupla : Por um lado, protege todas as espécies animais selvagens, proibindo sua perseguição, captura ou morte fora das condições legalmente previstas. Por outro lado, utiliza o conceito de “caça” para os dois tipos de espécies cinegéticas e não cinegéticas. Em conclusão, o artigo 6.º, n.º 1, alínea b), deixa claro que a caça às espécies não cinegéticas é ilegal e penalmente sancionável. Caçar é uma atividade humana de perseguir, capturar ou matar animais selvagens intencionalmente. Historicamente a caça foi crucial para a sobrevivência e desenvolvimento humano, hoje além de ser uma fonte de alimento e vestuário, desempenha um papel na gestão do equilíbrio ecológico, no controle de espécies, monotorização de populações, prevenção de danos ambientais, minimização de incêndios e nas conservação da biodiversidade, mantendo a presença humana em áreas rurais, combatendo a desertificação. A caça é regulamentada por lei podendo envolver atividades como a gestão cinegética, turismo. A conduta do arguido contraria diretamente o objetivo de conservação da fauna. Tendo presente o conceito legal “Exercício da caça ou ato venatório são todos os atos que visam capturar, vivo ou morto, qualquer exemplar de espécies cinegéticas que se encontre em estado de liberdade natural, nomeadamente a procura, a espera e a perseguição”, verificamos que para efeitos de caça capturar significa matar ou apanhar um animal selvagem durante a prática da caça, seja pelo próprio caçador, pelos seus cães ou com o auxílio de aves de presa. O caçador adquire o direito de posse sobre a peça de caça capturadas legalmente por via do processo de caça de salto(o caçador move-se à procura e perseguição de animais, com ou sem cães, à espera, o caçador fica parado num local à espreita de animais ou utiliza aves de presa adestradas para capturar espécies, podendo ser auxiliado por cães de caça, aquilo a que se chama cetraria. Ora, atendendo ao caso concreto, verifica-se que o arguido não praticou qualquer ato de caça no sentido atribuído pela letra e espirito da lei suprarreferenciada, pois que “No dia 30 de maio de 2022, cerca das 18:13 horas, a partir de uma janela da fração correspondente à Rua ..., em ..., AA produziu pelo menos um disparo com uma arma de características não concretamente apuradas na direção de uma gaivota, tendo-a atingido e morto. A Rua ..., em ..., consiste numa rua urbana da cidade ..., ladeada por edifícios de habitação e comércio em toda a sua extensão. Não basta só o ato de disparar e matar um animal selvagem não cinegético, sendo preciso que a atividade desenvolvida se insira no contexto de caçar. O arguido não recolheu a carcaça, pelo contrário, nem desenvolveu qualquer outro tipo de prática relacionada com a atividade de caçador, a não ser o disparo que fez, pelo que não preencheu o elemento objetivo da infração criminal de que vinha acusado. Importa todavia saber se a sua atividade é censurável de outra forma.
A propósito importa visitar o D/L n º 140/99 de 24 de abril- Lei de Proteção Relativa à Conservação de Aves Selvagens, na sua versão atualizada e na parte que importa.
“Espécies de aves de interesse comunitário cuja conservação requer a designação de zonas de protecção especial (…) Tringa glareola - maçarico-bastardo. Xenus cinereus - maçarico-sovela. Phalaropus lobatus - falaropo-de-bico-fino. Larus melanocephalus - gaivota-do-mediterrâneo. Larus genei - gaivota-de-bico-fino. Larus audouinii - gaivota de-audouin. Gelochelidon nilotica - gaivina-de-bico-preto. Sterna caspia - gaivina-de-bico-vermelho.(…) Donde resulta que este diploma pune ao nível contraordenacional o abate de espécies não cinegéticas fora do âmbito da caça entre as quais se encontra, para além das demais três tipos de subespécies de gaivotas. São elas a gaivota Larus melanocephalus, vulgo gaivota de cabeça preta ou gaivota do mediterrâneo, também residente ao longo da costa portuguesa de sul a norte, a Larus audouinii, conhecida por gaivota de audouin ou gaivota de bico de coral residente na Ria Formosa e a Larus genei, gaivota de bico fino e longo residente na zona de Castro Marim. Ora, para efeitos de aplicação deste diploma de todo o modo não importava saber que tipo de gaivota foi abatida pelo arguido ou até se era outo tipo de ave, bastando que seja uma ave e também o arguido não precisava de saber se era não cinegética, por que tanto num caso como noutro é proibido o seu abate. Este diploma aplica-se a várias categorias de espécies de aves e habitats protegidos, abrangendo aves selvagens, tipos de habitats naturais e espécies específicas constantes dos anexos normativos. Estão abrangidas todas as espécies de aves que ocorrem naturalmente em estado selvagem no território europeu dos Estados membros da União Europeia são protegidas. Inclui também todas as aves específicas nos anexos AI, A-II, A-III e D do diploma, abrangendo ainda os ovos, ninhos e habitats dessas espécies. O diploma é aplicável a todos os tipos de habitats naturais incluídos no anexo BI, que fazem parte integrante da orientação. Também estão abrangidas as espécies constantes dos anexos B-II, B-IV e BV, que fazem parte integrante do diploma e recebem a sua proteção. Estas normas garantem a proteção diferenciada e integrada para aves selvagens, seus ovos e habitats, bem como para habitats naturais e espécies indicadas nos anexos, em conformidade com a legislação da União Europeia. Por consequência o diploma abrange todo o tipo de gaivotas que ocorrem naturalmente em estado selvagem no território europeu dos Estados-Membros da União Europeia. Isso ocorre porque a Diretiva Aves (Diretiva 2009/147/CE) e a legislação nacional de transposição (como o Decreto-Lei 140/99) têm âmbito geral sobre todas as espécies de aves selvagens do território europeu, incluindo tantas espécies migratórias como residentes, salvo indicação expressa em contrário nos anexos. Para melhor esclarecimento impõe-se uma incursão sobre a diretiva que inspirou a nossa lei. A diretiva europeia em questão é a Diretiva 2009/147/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de Novembro de 2009, relativa à conservação das aves selvagens (versão codificada). Esta diretiva, que codifica a anterior Diretiva 79/409/CEE, insere-se no sexto programa de ação comunitária para o ambiente, que prevê ações específicas para garantir a biodiversidade, incluindo a proteção das aves e dos seus habitats. O principal objetivo da diretiva é a conservação de todas as espécies de aves que vivem naturalmente no estado selvagem. Esta conservação é considerada necessária para a realização dos objetivos da Comunidade no domínio da melhoria das condições de vida e do desenvolvimento duradouro. A diretiva visa especificamente a proteção, a gestão e o controlo dessas espécies, regulando também a sua exploração. Os objetivos específicos incluem: 1. Manutenção e Gestão Populacional Os Estados-Membros devem tomar as medidas necessárias para manter ou adaptar a população de todas as espécies de aves a um nível que corresponda, nomeadamente, às exigências ecológicas, científicas e culturais, tendo em conta as exigências económicas e de recreio. A conservação tem como meta a proteção a longo prazo e a gestão dos recursos naturais. 2. Proteção e Restabelecimento dos Habitats É considerado indispensável preservar, manter ou restabelecer uma diversidade e uma extensão suficientes de habitats para todas as espécies de aves. As medidas para a preservação, manutenção e restabelecimento dos biótopos e habitats incluem: • Criação de zonas de proteção. • Manutenção e adaptação dos habitats situados no interior e no exterior das zonas de proteção. • Reabilitação e criação de biótopos destruídos. Certos grupos de espécies devem ser alvo de medidas de conservação especial relativas ao seu habitat para garantir a sua sobrevivência e reprodução na sua área de distribuição. • Espécies do Anexo I: São objeto de medidas de conservação especial respeitantes ao seu habitat (incluindo espécies ameaçadas de extinção, vulneráveis, raras ou que necessitem de atenção especial). Para estas espécies, os Estados-Membros devem classificar os territórios mais apropriados como zonas de proteção especial (ZPE). • Espécies Migratórias: Devem ser tomadas medidas semelhantes para as espécies migratórias não mencionadas no anexo I. Tais medidas devem ser coordenadas com vista à constituição de uma rede coerente, dando especial importância à proteção das zonas húmidas. Os Estados-Membros devem esforçar-se por evitar a poluição ou a deterioração dos habitats e as perturbações nas ZPE. Regime Geral de Proteção e Proibições Os Estados-Membros devem instaurar um regime geral de proteção que inclua a proibição de: • Matar ou capturar intencionalmente as aves. • Destruir ou danificar intencionalmente os ninhos e ovos, ou recolhê-los na natureza. • Perturbar intencionalmente as aves, especialmente durante o período de reprodução e dependência, se essa perturbação tiver um efeito significativo para os objetivos da diretiva. • Deter aves de espécies cuja caça e captura não são permitidas. A diretiva regula a exploração admissível (caça) e visa evitar que os interesses comerciais exerçam uma influência nociva sobre os níveis de exploração. A caça é permitida para as espécies listadas no Anexo II (desde que seja compatível com a manutenção da população a um nível satisfatório). A prática da caça deve respeitar os princípios de uma utilização razoável e de uma regulamentação equilibrada do ponto de vista ecológico. A caça de espécies migradoras e outras não pode ocorrer durante o período nidícola nem durante os diferentes estádios de reprodução e dependência, ou o período de retorno ao local de nidificação. É proibido o recurso a meios, instalações ou métodos de captura ou de abate em grande escala ou não seletivos, ou que possam conduzir localmente ao desaparecimento de uma espécie. Existe uma proibição geral de comercialização, limitada apenas às espécies cujo estatuto biológico o permita (Anexo III). A Diretiva 2009/147/CE tem um âmbito de aplicação bem definido, abrangendo: A diretiva diz respeito à conservação de todas as espécies de aves que vivem naturalmente no estado selvagem. Aplica-se especificamente: • Às aves. • Aos seus ovos. • Aos seus ninhos. • Aos seus habitats. A aplicação da diretiva é válida no território europeu dos Estados-Membros ao qual é aplicável o Tratado. Isto inclui a zona geográfica marítima e terrestre de aplicação da diretiva. A Diretiva 2009/147/CE, relativa à conservação das aves selvagens, estabelece uma estrutura legal abrangente para a proteção de todas as espécies de aves que vivem naturalmente no estado selvagem no território europeu dos Estados-Membros, bem como dos seus ovos, ninhos e habitats. A conservação visa a proteção a longo prazo e a gestão dos recursos naturais, permitindo a regulação e a exploração desses recursos com base em medidas necessárias para manter e adaptar os equilíbrios naturais das espécies. As formas pelas quais a Diretiva estabelece essa proteção legal incluem: 1. Proteção Geral e Gestão Populacional 2. Proteção Direta das Aves (Regime Geral de Proteção - Artigo 5º) Os Estados-Membros devem instaurar um regime geral de proteção que inclua proibições essenciais para a conservação de todas as espécies: • Proibição de Morte e Captura: É proibido matar ou capturar intencionalmente as aves, independentemente do método utilizado. • Proteção de Ninhos e Ovos: É proibido destruir ou danificar intencionalmente os ninhos e os ovos, colher os ninhos, ou recolher e deter os ovos na natureza (mesmo vazios). • Proibição de Perturbação: É proibido perturbar intencionalmente as aves, especialmente durante o período de reprodução e dependência, desde que essa perturbação tenha um efeito significativo relativamente aos objetivos da Diretiva. • Proibição de Detenção: É proibido deter aves de espécies cuja caça e captura não sejam permitidas. A proteção estendida a espécies não cinegéticas é crucial. 3. Proteção e Conservação de Habitats A preservação, manutenção ou restabelecimento de uma diversidade e extensão suficientes de habitats são indispensáveis. Certas espécies, art. 4º (mencionadas no Anexo I) são objeto de medidas de conservação especial respeitantes ao seu habitat, visando garantir a sua sobrevivência e reprodução na sua área de distribuição. A Diretiva limita a exploração para evitar influências nocivas sobre os níveis populacionais. É estabelecida uma proibição geral de comercialização de aves vivas ou mortas, ou produtos obtidos a partir delas. Derrogações (para espécies em Anexo III) só são permitidas se a comercialização não conduzir ou não oferecer risco de conduzir a colocar em perigo o nível populacional, a distribuição geográfica ou a taxa de reprodução da espécie no conjunto da Comunidade. A caça é considerada uma exploração admissível para certas espécies (Anexo II), mas deve ser compatível com a manutenção da população a um nível satisfatório. A caça deve respeitar os princípios de utilização razoável e regulamentação equilibrada do ponto de vista ecológico. É proibido caçar espécies durante o período nidícola e durante os diferentes estádios de reprodução e dependência. Para espécies migradoras, é proibida a caça durante o seu período de reprodução e o período de retorno ao seu local de nidificação. São proibidos todos os meios, instalações ou métodos de captura ou de abate em grande escala ou não seletivos, ou que possam conduzir localmente ao desaparecimento de uma espécie. É igualmente proibida a perseguição utilizando certos meios de transporte. A Diretiva prevê a possibilidade de derrogação aos artigos de proteção e caça (Artigos 5º a 8º), mas apenas sob condições estritas e quando não exista outra solução satisfatória. Os fundamentos incluem o interesse da saúde e segurança públicas, a segurança aeronáutica, evitar danos importantes às culturas, gado, florestas, pescas ou águas, a proteção da flora e da fauna, fins de investigação e ensino, ou para permitir a captura judiciosa de certas aves em pequenas quantidades sob controlo rigoroso e de modo seletivo. A Diretiva revogada pela Diretiva 2009/147/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de Novembro de 2009, relativa à conservação das aves selvagens, foi a Diretiva 79/409/CEE do Conselho, de 2 de Abril de 1979. A Diretiva 2009/147/CE constitui uma versão codificada da Diretiva 79/409/CEE, que tinha sido alterada várias vezes de modo substancial. A codificação foi realizada por razões de clareza e racionalidade. A revogação está expressa no Artigo 18.º da Diretiva 2009/147/CE, que indica que a Diretiva 79/409/CEE é revogada, sem prejuízo das obrigações relativas aos prazos de transposição para o direito nacional das diretivas indicados na parte B do anexo VI. Qualquer remissão para a diretiva revogada deve ser entendida como feita para a Diretiva 2009/147/CE. Tendo presente a diretiva e os factos descritos a propósito da morte da gaivota, a situação descrita, a morte intencional de uma gaivota por meio de um disparo, insere-se na proibição estabelecida pelo regime geral de proteção da Diretiva 2009/147/CE, sendo classificada como um ato de matar intencionalmente (ou abate). A análise dos factos face aos termos jurídicos definidos pela Diretiva é a seguinte: O ato de atingir e matar a gaivota intencionalmente está coberto pela proibição fundamental estabelecida no Artigo 5.º da Diretiva, que insta os Estados-Membros a instaurar um regime geral de proteção. O Artigo 5.º, alínea a), proíbe expressamente: De as matar ou de as capturar intencionalmente, qualquer que seja o método utilizado. Os factos indicam que AA produziu um disparo "na direção de uma gaivota, tendo-a atingido e morto. O arguido agiu com o propósito de matar a gaivota, o que constitui um ato de matar intencionalmente (abate intencional) proibido pela Diretiva. A captura intencional também está proibida pelo Artigo 5.º. No entanto, o facto descrito foi o de matar a ave, e não o de a capturar (levá-la viva sob custódia ou morta). A caça é reconhecida pela Diretiva como uma "exploração admissível" para certas espécies, devendo ser compatível com a manutenção da população a um nível satisfatório. A caça é permitida apenas para as espécies enumeradas no Anexo II da Diretiva, no âmbito da legislação nacional. A situação descrita não é considerada caça legal sob o enquadramento da Diretiva, pelas seguintes razões: O arguido agiu ciente que se tratava de espécie não cinegética. Se a gaivota é uma espécie não cinegética, ela não está listada no Anexo II e, portanto, não pode ser objeto de caça (exploração admissível). A caça de espécie não cinegética, mesmo quando permitida, deve respeitar os princípios de utilização razoável e regulamentação equilibrada. Contudo, a proibição geral de matar intencionalmente aplica-se a todas as espécies. A Diretiva proíbe o recurso a meios, instalações ou métodos de captura ou de abate em grande escala ou não seletivos, ou que possam conduzir localmente ao desaparecimento de uma espécie. Ora, o disparo de uma arma em zona urbana, a partir de um prédio, sobre uma espécie não cinegética, viola o regime geral de proteção e as restrições aos métodos de abate. Ou seja, os factos são considerados uma situação de abate (morte intencional), que se enquadra na proibição geral de matar intencionalmente estabelecida no Artigo 5.º da Diretiva. O ato não pode ser classificado como caça, uma vez que a gaivota era uma espécie não cinegética, e a caça deste tipo de espécie só é permitida para espécies específicas (Anexo II).A Diretiva 2009/147/CE não permite a caça de espécies não cinegéticas no âmbito do seu regime de exploração admissível. A permissão para a caça, conforme estabelecida pela Diretiva, é estritamente limitada às espécies cujo estatuto biológico o permite, de modo a garantir a sua conservação. O regime da caça (que a Diretiva considera uma "exploração admissível") é rigorosamente delimitado: 1. Espécies Cinegéticas: Apenas as espécies enumeradas no anexo II podem ser objeto de atos de caça no âmbito da legislação nacional. 2. Condição de Caça: Mesmo para essas espécies, os Estados-Membros devem garantir que os atos de caça sejam compatíveis com a manutenção da população dessas espécies a um nível satisfatório, e que a prática da caça respeite os princípios de uma utilização razoável e de uma regulamentação equilibrada do ponto de vista ecológico. 3. Espécies Não Cinegéticas: Por implicação, as espécies que não constam do Anexo II são consideradas espécies não cinegéticas e estão sujeitas ao regime geral de proteção. A Diretiva exige que os Estados-Membros tomem medidas para a conservação de todas as espécies de aves que vivem naturalmente no estado selvagem. O Artigo 5.º estabelece um regime geral de proteção que inclui a proibição de: • Matar ou capturar intencionalmente as aves, qualquer que seja o método utilizado. • Deter as aves das espécies cuja caça e cuja captura não sejam permitidas. Existe uma possibilidade de derrogação aos regimes de proteção e de caça (Artigos 5.º a 8.º), mas esta não é uma permissão para caçar espécies não cinegéticas. As derrogações só podem ser concedidas se não existir outra solução satisfatória e sob fundamentos estritos. Um desses fundamentos permite: • Exploração Judiciosa em Pequenas Quantidades: A possibilidade de permitir, em condições estritamente controladas e de um modo seletivo, a captura, a detenção ou qualquer outra exploração judiciosa de certas aves, em pequenas quantidades. Portanto, a exploração (que inclui a captura) de espécies não cinegéticas só é concebível através de uma derrogação rigorosa (Artigo 9.º), e não através do exercício regular da caça (Artigo 7.º). A distinção entre o ato de abater (ou matar intencionalmente) e o ato de caçar, no contexto da Diretiva 2009/147/CE, reside no estatuto legal da espécie em causa e no regime de proteção aplicável. Em suma, abater (ou matar intencionalmente) é o ato físico de tirar a vida de uma ave, que é genericamente proibido a todas as espécies, enquanto caçar é uma forma de exploração admissível e regulamentada, restrita apenas a espécies específicas. A Diretiva estabelece a distinção nos seguintes termos: 1. Abate / Matar Intencionalmente (Proibição Geral) O abate (a morte) de aves é enquadrado no regime geral de proteção de todas as espécies de aves selvagens. • Estatuto Legal: O Artigo 5.º estabelece a proibição expressa de matar ou de capturar intencionalmente as aves, qualquer que seja o método utilizado. • Âmbito: Esta proibição aplica-se a todas as espécies de aves selvagens. • Consequência: Matar intencionalmente uma ave que não se insira numa exceção legalmente prevista (derrogação, Artigo 9.º) constitui uma violação da Diretiva. • Meios Proibidos: A Diretiva proíbe expressamente o recurso a meios, instalações ou métodos de captura ou de abate em grande escala ou não seletivos. 2. Caça (Exploração Admissível Regulamentada) A caça é tratada pela Diretiva como um ato de exploração admissível, mas apenas sob condições estritas e para um conjunto limitado de espécies. • Estatuto Legal: A caça é permitida apenas se for compatível com a manutenção da população dessas espécies a um nível satisfatório. A caça deve respeitar os princípios de uma utilização razoável e de uma regulamentação equilibrada do ponto de vista ecológico. • Âmbito: A caça só pode ser praticada para as espécies enumeradas no anexo II. Estas são as espécies consideradas cinegéticas com base no seu nível populacional, distribuição geográfica e taxa de reprodução no conjunto da Comunidade. • Restrições Temporais: A caça não pode ser praticada durante o período nidícola nem durante os diferentes estádios de reprodução e de dependência. No caso de espécies migradoras, a caça é proibida durante o seu período de reprodução e o período de retorno ao seu local de nidificação. Portanto, enquanto o abate é o ato de matar que, fora do contexto do Anexo II ou de uma derrogação do Artigo 9.º, viola o regime de proteção, a caça é o abate legalmente permitido, altamente regulado e limitado a espécies específicas. Perante a informação disponível, a pessoa não estava a caçar a gaivota no sentido legal e regulamentar estabelecido pela Diretiva 2009/147/CE. A conclusão baseia-se na distinção que a Diretiva faz entre o ato de matar intencionalmente (abate) e o ato de caçar (exploração admissível regulamentada), e no estatuto da gaivota como espécie protegida. A caça é definida pela Diretiva como uma exploração admissível que só é permitida para as espécies de aves enumeradas no Anexo II. Os factos indicam que o arguido agiu ciente que se tratava de espécie não cinegética. Uma vez que a gaivota era uma espécie não cinegética, ela não faz parte da lista de espécies que podem ser objeto de atos de caça (Anexo II). Consequentemente, o ato de matar esta ave não se enquadra na definição de caça permitida pela Diretiva (Artigo 7.º). O ato praticado – a morte intencional da gaivota – insere-se na proibição geral de proteção de todas as espécies de aves, conforme o Artigo 5.º da Diretiva: • O arguido agiu com o propósito de matar a gaivota com a arma, tendo-a atingido e morto. • O Artigo 5.º, alínea a), proíbe a morte ou a captura intencional das aves, qualquer que seja o método utilizado. Portanto, o ato constitui uma violação do regime geral de proteção através da morte intencional (abate), e não um ato de caça (exploração admissível). O facto de o arguido estar ciente da proibição de atentar contra esta espécie reforça a natureza ilegal do abate intencional, fora do quadro regulamentado da caça ou de derrogações. Ora esta diretiva está transposta para o nosso regime jurídico no D/L 140/99 já supra mencionado. Assim, todas as gaivotas de ocorrência natural — incluindo as espécies comuns e migratórias — estão abrangidas pelas disposições do diploma. Para situações específicas (como espécies protegidas ou abordagens para caça), podem existir particularidades previstas nos anexos, mas de modo geral, todo o grupo "gaivotas" integra o âmbito de proteção e regulação do diploma. A necessidade de especificar aves específicas nos anexos AI, A-II, A-III e D do diploma surge para garantir a identificação clara de espécies que requerem proteção, medidas especiais ou tratamento diferenciado, permitindo uma resposta mais eficaz às ameaças enfrentadas por determinadas aves selvagens. As espécies específicas nos anexos são aquelas para as quais se registram riscos acrescidos, declínio populacional ou relevância ecológica, exigências de ações de conservação mais rigorosas ou restrições específicas. A inclusão nos anexos permite determinar medidas legais como autorização de captura, proteção de habitats, definição de planos de recuperação populacional ou regulação de atividades como caça e comércio. A discriminação por anexos assegura uniformidade na aplicação das regras por todos os Estados-membros da União Europeia, evitando interpretações divergentes e lacunas de proteção de espécies migratórias ou transfronteiriças. A identificação detalhada facilita a monitorização, o controlo e a implementação de políticas ambientais em toda a União Europeia. Assim, os anexos servem para reforçar e direcionar a proteção das espécies mais relevantes, garantindo clareza legal e ações regionais a nível europeu. Posto isto, não obstante o arguido recorrente não poder ser punido criminalmente, pode sê-lo a nível contraordenacional, estando, em face dos factos dados como provados, preenchidos todos os elementos objetivos do tipo contraordenacional supra mencionado. Relativamente ao elemento subjetivo. Deu-se como provado que se tratou de uma gaivota, mas era irrelevante se fosse outra ave marinha que não estando no rol das espécies cinegéticas indicadas em Portaria, seria sempre considerada não cinegética. O recorrente vem alegar não ter consciência de que se tratava de espécie não cinegética ao afirmar de que não estaria ciente de que se tratava de espécie não cinegética e da proibição de atentar contra esta. Ora, a conduta dada como provada configura um ato típico contraordenacional, pois a ação de abater e ferir mortalmente a ave em questão privando-a do seu estado de liberdade natural é o bastante para que se considere um ato concreto ilícito de violência contra animais selvagens, apesar do contexto urbano da ação. A gaivota é uma espécie, seja cinegética ou não, protegida conforme suprarreferido. Por sua vez, o desconhecimento da ilicitude pelo arguido não se provou, sendo que, tratando-se de diplomas legais com mais de vinte anos de vigência, tal facto não pode ser presumido. E mesmo sendo provado tal desconhecimento, o que não é o caso, ser-lhe-ia sempre censurável. A proibição de se abater uma gaivota, cuja violação configura uma infração contraordenacional ambiental exige para haver responsabilização que haja dolo ou negligência, art. 8º do RGCO(Regime Geral das Contra-Ordenações). Ao nível do dolo é também exigido a consciência e vontade da ilicitude ou da prática do ato proibido. Alega no fundo o arguido desconhecer o carácter proibitivo da sua conduta, que a existir afastaria a ilicitude do facto ou a culpa do agente e consequentemente o dolo, ficando sempre ressalvada a punibilidade a título de negligência, art. 8º, n º 2 do RGCO. Ora, o dolo contraordenacional reside no conhecimento intelectual dos elementos do tipo e no desrespeito pelas proibições ou obrigações legais tuteladas pelas normas contraordenacionais. O erro sobre a proibição é uma especialidade do regime do erro no direito das contraordenações, supondo um tratamento ao nível do dolo do tipo e isto deve-se devido à natureza eticamente neutral do objeto do ilícito contraordenacional, sendo o conhecimento da proibição indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto. Tal erro pressupõe erro sobre a ilicitude da ação, erro sobre a existência de um dever de garante ou erro sobre o significado dos elementos normativos do tipo. Por sua vez o erro sobre a ilicitude previsto no art. 9º do RGCO, pressupõe o conhecimento da proibição legal, não excluindo o dolo ou pelo menos a punição a esse título, mas exclui a culpa quando não seja censurável, Figueiredo Dias, 1983 a:30. No direito das contraordenações este erro tem um campo de aplicação muito reduzido em face do erro sobre a proibição como causa de exclusão do dolo do tipo e só terá aplicação nas situações de erro sobre a existência e os limites de uma causa de justificação ou de exclusão da culpa, erro sobre a validade da norma, o que não é manifestamente o caso dos autos. Ora, a norma em questão violada não é, em nosso entender, axiologicamente neutra, situando-se antes no domínio das condutas eticamente relevantes em relação à qual o legislador entendeu que seria suficiente e adequada a tutela contraordenacional, tanto mais que questões desta natureza de proteção ambiental em que está em causa a vida de seres vivos, tem consagração constitucional e no direito comunitário. Portanto, abater uma ave como uma gaivota com disparo de uma arma, não deixa de ser censurável para o comum cidadão. Não se provou que o arguido não sabia do caráter proibitivo da sua conduta. Toda a gente sabe que não se pode andar a disparar e a matar aves da natureza dos autos, de porte médio, pelo que o dolo será configurado e a responsabilidade contraordenacional subsiste. Trata-se de uma ave que em regra habita junto à costa, não sendo considerada uma peça de caça. E também todos sabemos que esta ave como tantas outras não deve ser alvo de atos de violência gratuita. Em face do exposto, fica arredada a alegada falta de conhecimento do caráter proibido da conduta perpetrada ou erro sobre a ilicitude do ato e consequentemente falta de consciência da ilicitude do mesmo. * Relativamente ao crime de ofensas, o recorrente invoca essencialmente dúvidas razoáveis sobre a dinâmica inicial do confronto físico, que como já tivemos ocasião de referir não se verificam, pelo que não tem aplicação o princípio in dubio pro reo e nem a consideração de eventuais causas de exclusão da ilicitude. Posto isto e relativamente à medida da pena, haverá que extrair as consequências do atrás referido, pelo que o cúmulo jurídico fica desfeito porquanto o arguido será absolvido do crime contra a preservação da fauna, p. e p. pelo artigo 30.º, n.º 1, da Lei n.º 173/99, de 21 de setembro, com referência aos artigos 6.º, n.º 1, alínea b), e 2.º, alínea a), a contrario, da mesma Lei, aos artigos 2.º, alínea cc), 3.º, e Anexo I, a contrario, do Decreto-lei n.º 202/2004, de 18 de Agosto, e da pena de 60 (sessenta) dias de multa em que foi condenado. Haverá que fixar uma coima situada entre os 125,00€ e os 3,740€ porquanto pessoa singular. Desfeito o cúmulo resta a pena que lhe foi aplicada pelo crime de ofensas a integridade física simples, ou seja, a pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa. Em sede de recurso o arguido não contestou as penas parcelares mas sim a pena única, dizendo dever ser situada entre os 100 dias e os 120 dias. Ora, como sabemos o cúmulo jurídico realiza-se partindo de a pena parcelar mais elevada a qual se soma às demais para se fixar o seu limite máximo, pelo que em termos de cúmulo a pena única nunca poderia situar-se na sugestão dada pelo recorrente, uma vez que o seu mínimo seria sempre os 140 dias. De todo o modo intui-se que o recorrente questiona ainda que de forma indireta as penas parcelares, Sobre o crime em causa o tribunal a quo refere: “Assim, no caso dos autos, constata-se que são bastante elevadas as exigências de prevenção geral atendendo, concretamente, ao grau de violência que se vive na nossa sociedade, bem como à frequência com que se verificam situações de reação com agressividade, em claro desrespeito pelos demais cidadãos. Ademais, situações como a dos autos, em que cidadãos, à revelia dos mais elementares parâmetros da vivência em sociedade democrática, optam por tirar satisfações de terceiros mediante recurso à ação direta, demandam, em nosso entender, um sinal claro de operância do sistema que dissuada a prática de atos como os aqui em análise. Do mesmo modo, face à forma inusitada e irrefletida como procedeu o arguido, que, de resto, até ao presente não logrou esboçar qualquer intenção em ressarcir o ofendido, é nosso entender que estamos perante uma situação que importa muito relevantes necessidades de atuação ao nível da prevenção especial, apenas mitigadas pela ausência de antecedentes criminais por crimes da mesma natureza e pela inserção social do arguido. Por outro lado, constata-se que são bastante elevadas as exigências de prevenção geral pois que se constata uma necessidade de sensibilização geral para a manutenção do exercício dos atos venatórios dentro da estrita obediência aos parâmetros estabelecidos pela lei e que, no caso, foram grosseiramente violados. Sem prejuízo, ponderados todos os factos supra aduzidos, e não olvidando que o recurso à pena de prisão deve ser um recurso de ultima ratio, é nosso entender que a moldura abstrata das penas de multa aplicável ao caso contém em si elasticidade suficiente para acautelar de forma adequada a tutela dos bens jurídicos violados. Por conseguinte, o tribunal opta pela aplicação de uma pena não privativa da liberdade. Posto isto, cumpre-nos determinar a medida concreta da pena de multa a aplicar. O crime de ofensa à integridade física simples é punível com uma pena de 10 a 360 dias de multa (cf. artigos 143º, nº1, e 47º, nº1, do CP). (…) No que concerne à determinação da medida da pena concreta, cumpre ter em consideração que a mesma se fará em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71º, nº1, do Código Penal). Com efeito, nos termos do artigo 71º do Código Penal, a determinação da medida da pena aplicável tem como critérios a culpa do agente e as exigências de prevenção, com as funções definidas segundo a chamada teoria da moldura da prevenção ou da defesa do ordenamento jurídico. À prevenção geral de integração cabe fornecer o limite mínimo de tal moldura, sendo certo que esta terá como um limite superior o ponto ótimo de proteção dos bens jurídicos e como inferior o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a função tutelar inerente à mesma. Já a culpa, entendida em sentido material e referida à personalidade do agente expressa no facto, surge como limite inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva. Ora, dentro desses limites caberá à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena, atendendo-se pois às possibilidades de socialização do agente, sendo certo que, quando esta em concreto, não for possível, relevará a função de intimidação. Concretizando de uma outra forma, à luz do disposto no artigo 71º do Código Penal, na determinação da medida concreta da pena ter-se-ão em conta, dentro dos limites abstratos definidos na lei, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido; fixando-se o limite máximo de acordo com a culpa, o limite mínimo de acordo com as exigências de prevenção geral; e a pena a aplicar, dentro da moldura penal assim conseguida, de acordo com as exigências de prevenção especial que ao caso convenham. No caso sub judice, o dolo revelado pelo arguido foi direto, o que eleva o grau de culpa e ilicitude subjacente. Do mesmo modo, há que ponderar o grau de violência empregue, sendo que, apesar da forma inusitada como o arguido procedeu, a verdade é que, do ponto de vista da integridade física, objetivamente, não provocou ao ofendido lesões de especial monta ou gravidade, sem prejuízo de, necessariamente, ter imprimido na sua ação a necessária força para as lograr. Ademais, importa salientar que o arguido não logrou ressarcir, por qualquer modo ou sequer parcialmente, o ofendido, o que é demonstrativo de uma ausência de arrependimento ou distanciamento críticos, o que deverá ser ponderado contra o mesmo. (…). Sem prejuízo, verifica-se que o arguido se encontra integrado do ponto de vista familiar e social, sendo ainda que, até à data, não apresenta quaisquer antecedentes criminais por crimes da mesma natureza.” Donde resulta que o tribunal a quo ponderou devidamente todas as circunstâncias favoráveis e desfavoráveis ao arguido, mostrando-se ponderado e equilibrado, pelo que a pena e respetiva taxa diária se mostram proporcionais à sua conduta criminosa, nada havendo que alterar. Não despiciendo referir que esta instância superior só deve poder alterar a dosimetria das penas fixadas em primeira instância se se demonstrar que o tribunal a quo se revelou inusitado e desproporcional no apuramento da medida da culpa e fixação concreta da pena, o que não é o caso. Finalmente porquanto soçobra a argumentação do recorrente quanto a este crime que se mantém, também a condenação cível se mantém, porquanto o seu questionamento estava dependente da procedência do recurso crime nesta matéria, o que não sucede. O recorrente não questionou em concreto o montante indemnizatório fixado, pelo que nada há que apreciar a respeito. Relativamente ao montante da coima aplicar e tendo presente os critérios supra mencionados em que se baseou o tribunal a quo, entendemos adequada a coima a fixar pelo seu mínimo legal, ou seja, €125,00, satisfazendo este montante o seu limite de culpa, o facto do alvo ter sido apenas um espécimen abatido e situação económica do arguido.
Importa, ainda, corrigir notório lapso de escrita no dispositivo da sentença, relativamente à pena parcelar pelo crime de ofensa à integridade física, que foi de 140 dias de multa e não de 180 dias, conforme, por lapso ficou a constar do dispositivo, correção que não comporta qualquer alteração substancial. No dispositivo consta o seguinte: - Condenar o arguido AA pela prática de um crime contra a preservação da fauna, p. e p. pelo artigo 30.º, n.º 1, da Lei n.º 173/99, de 21 de setembro, com referência aos artigos 6.º, n.º 1, alínea b), e 2.º, alínea a), a contrario, da mesma Lei, aos artigos 2.º, alínea cc), 3.º, e Anexo I, a contrario, do Decreto-lei n.º 202/2004, de 18 de Agosto, na pena de 60 (sessenta) dias de multa; - Condenar o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº1, do Código Penal, na pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa; e …na pena única de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à razão diária de € 8,00 (oito euros) perfazendo um total de € 1.440,00 (mil quatrocentos e quarenta euros).» Todavia, o que resulta da fundamentação da decisão é que as penas parcelares aplicadas foram as seguintes: Assim, e ponderando os fatores supra aduzidos, considerando ainda os diferentes resultados advenientes das diferentes ações perpetradas pelo arguido, entende o tribunal ser adequado aplicar ao arguido: - Pela prática de um crime de ofensa à integridade física: A pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa; - Pela prática de um crime contra a preservação da fauna: A pena de 60 (sessenta) dias de multa.» O que, em conformidade, culminou na seguinte moldura do cúmulo jurídico expressa na sentença recorrida: «Assim, em ordem a fixar uma pena única ao arguido, o tribunal depara-se com uma moldura que se situa entre os 140 e os 200 dias.»
III. Decisão Pelo exposto, acordam os juízes da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao presente recurso interposto pelo arguido BB e: Declarar nula a decisão por existência de Contradição Insanável da Fundamentação ou entre a Fundamentação e a Decisão, suprindo-se, todavia, o erro retirando do ponto 4 dos factos provados a expressão” de ar comprimido”. Confirmar a decisão recorrida relativamente ao crime de ofensas à integridade física simples, fixando o dispositivo: - Condenar o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº1, do Código Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, perfazendo o montante de €1.120,00. Revogar a decisão a quo quanto à condenação pelo crime contra a preservação da fauna e em sua substituição, Condenar o arguido pela prática de uma contraordenação p. e p. nos arts.11º, n º 1, al. a) e 22º, n º 2 do D/L n º 140/99 de 24 de abril- Lei de Proteção Relativa à Conservação de Aves Selvagens, na coima de € 125,00. Sem custas pelo recorrente.
* Notifique – cfr. art. 425º nº 6 do CPP.
Sumário da responsabilidade do relator. ……………………………………….. ……………………………………….. ………………………………………..
Porto, 26 de novembro de 2025
(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas eletrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Paulo Costa José Quaresma Pedro M. Menezes (parcialmente vencido, nos termos da declaração de voto que junta) [Declaração de voto: Não posso acompanhar a posição que fez vencimento no tocante ao crime contra a preservação da fauna pelo qual vem condenado o recorrente – condenação esta que, portanto, confirmaria – pelas seguintes razões: 1. O artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 140/99, de 24 de abril, pese embora a possível equivocidade da sua formulação, estabelece uma proibição geral de matar («abater», hoc sensu) quaisquer exemplares de todas as espécies de aves a que se aplica. a) O diploma em apreço que procedeu, além do mais, à revisão «[d]a transposição para a ordem jurídica interna da Diretiva n.º 79/409/CEE, do Conselho, de 2 de abril (relativa à conservação das aves selvagens)» (entretanto substituída pela Diretiva 2009/147/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 30 de novembro de 2009, relativa à conservação das aves selvagens, que no essencial não modificou, no que aqui interessa, o tratamento da questão suscitada pelo caso dos autos), estabelece, na alínea a) do n.º 1 do respetivo artigo 11.º, que com vista a «assegurar a proteção das espécies de aves previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º [designadamente, «todas as espécies de aves, incluindo as migratórias, que ocorrem naturalmente no estado selvagem no território europeu dos Estados membros da União Europeia, a todas as espécies de aves constantes dos anexos A-I, A-II, A-III e D do (…) diploma (…), bem como aos ovos, ninhos e habitats de todas aquelas espécies»] e das espécies animais constantes dos anexos B-II e B-IV, é proibido: (…) a) Capturar, abater ou deter os espécimes respetivos, qualquer que seja o método utilizado» (sublinhado meu). A alínea em apreço corresponde, no essencial, como as demais do mesmo preceito, à redação do artigo 5.º da referida Diretiva n.º 79/409/CEE (doravante, apenas «Diretiva»), onde, porém, a expressão assinalada não é empregue. Aí estabelece-se, antes, uma proibição de «as matar ou de as capturar intencionalmente [às aves], qualquer que seja o método utilizado» (sublinhado meu), o que corresponde igualmente ao texto da diretiva em outras línguas (na versão inglesa: «deliberate killing or capture by any method»; na versão francesa: «les tuer ou de les capturer intentionnellement, quelle que soit la méthode employée»; na versão espanhola: «matarlas o capturarlas de forma intencionada, sea cual fuera el método empleado», na versão italiana: «di ucciderli o di catturarli deliberatamente con qualsiasi método»; na versão alemã: «des absichtlichen Tötens oder Fangens, ungeachtet der angewandten Methode»). Por isso se compreende que a Comissão Europeia considere a caça abrangida pela proibição geral (de dar morte a aves selvagens) estabelecida no artigo 5.º da Diretiva (vd., a propósito, o Documento de orientação sobre a caça no âmbito da Directiva 79/409/CEE do Conselho relativa à conservação das aves selvagens (“Directiva Aves”), 2008, pág. 11), embora, quanto a algumas espécies de aves, a mesma Diretiva logo preveja exceções, sujeitas, no entanto, a várias restrições, e designadamente ao respeito pelos «princípios de uma utilização razoável e de uma regulamentação equilibrada do ponto de vista ecológico das espécies de aves a que diz respeito» (artigo 7.º, n.º 4, da Diretiva). b) É certo que a Diretiva emprega a palavra «abate» em três ocasiões: no Considerando 12 («Considerando que os meios, instalações ou métodos de captura ou de abate em grande escala ou não-seletivos»), no artigo 8.º, n.º 1 («[n]o que diz respeito à caça, à captura ou ao abate de aves no âmbito da presente diretiva, os Estados-membros proibirão o recurso a todos os meios, instalações ou métodos de captura ou de abate em grande escala ou não-seletivos, ou que possam conduzir localmente ao desaparecimento de uma espécie») e no n.º 2 do artigo 9.º, que prevê os casos de derrogação lícita das regras estabelecidas nos artigos 5.º, 6.º, 7.º e 8.º, contanto «não exist[a] outra solução satisfatória», e apenas com fundamento em razões de «interesse da saúde e da segurança públicas», incluindo a «segurança aeronáutica», para «evitar danos importantes às culturas, ao gado, às florestas, às pescas ou às águas» e «para a proteção da flora e da fauna» (alínea a); a expressão «abate» surge na segunda alternativa), «[p]ara fins de investigação e de ensino, de repovoamento, de reintrodução e ainda para a criação associada a estas ações» (alínea b)) e «[p]ara permitir, em condições estritamente controladas e de um modo seletivo, a captura, a detenção ou qualquer outra exploração judiciosa de certas aves, em pequenas quantidades» (alínea c)). Neste contexto, parece que a expressão «abate» é sempre utilizada com o sentido de dar morte a (ou seja, matar) aves, que é (também) proibida se implicar recurso a «meios, instalações ou métodos de captura ou de abate em grande escala ou não-seletivos» (isso fica ainda mais claro noutras versões linguísticas da Diretiva; assim, na versão inglesa do artigo 8.º, n.º 1, do diploma, fala-se em «hunting, capture or killing of birds»; na versão francesa, em «chasse, […] capture ou […] mise à mort d'oiseaux»; na versão espanhola, em «caza, [...] captura o muerte de aves»; na versão italiana, em «caccia, [...] cattura o [...] uccisione di uccelli»; na versão alemã: «die Jagd, den Fang oder die Tötung von Vögeln») e o mesmo vale para as demais situações aludidas em que a palavra «abate» é utilizada na versão portuguesa da Diretiva. Entre nós a expressão «abate» é precisamente utilizada, por regra, para aludir à morte de número significativo de animais seja para consumo doméstico, seja para controlo de populações ou por razões de segurança ou saúde pública (e animal), compreendendo-se perfeitamente a opção do legislador europeu pela sua utilização quando precisamente pretendeu aludir à proibição do recurso a formas de eliminação de aves «em grande escala» ou mediante recurso a métodos «não-seletivos, ou que possam conduzir localmente ao desaparecimento de uma espécie», tendo também sido nesse sentido que o legislador nacional, noutras normas da legislação de transposição para além do aludido artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 140/99, de 24 de abril, a empregou (vd., a propósito, a regulamentação constante dos respetivos artigos 13.º, n.º 1, e 14.º). c) Estando, contudo, em causa um diploma de transposição de uma diretiva comunitária, a utilização da expressão «abate» no artigo 11.º, n.º 1, do referido Decreto-Lei n.º 140/99, de 24 de abril, não pretendeu, pois, a meu ver, aludir apenas à eliminação de um número indeterminado de aves, fora das condições previstas nos demais preceitos do diploma, que a permitem apenas de acordo com regras apertadas, mas estabelecer uma proibição geral de matar (fora das condições em que tal possa, excecionalmente, ser permitido) aves que ocorrem em estado selvagem no espaço dos Estados-Membros da União Europeia, ou por aí naturalmente transitam, tal como imposto pela legislação europeia. Até porque, e fora de qualquer sentido técnico que a mesma possa, porventura, ter, a referência a «abate» de aves selvagens, tanto na legislação europeia como na legislação nacional, não pode deixar de interpretar-se como sinónima de «dar morte» a tais animais, e isso vale também para a norma acabada de mencionar. 2. O artigo 6.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18 de agosto, proíbe o «simples» matar de exemplares de qualquer espécie (em especial que não seja de considerar cinegética), incluindo aves, a que se atém a legislação antecedentemente mencionada. a) No Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18 de agosto (que «[estabelece o regime jurídico da conservação, fomento e exploração dos recursos cinegéticos, com vista à sua gestão sustentável, bem como os princípios reguladores da atividade cinegética»), regulamentando a Lei de Bases Gerais da Caça (Lei n.º 173/99, de 21 de setembro; doravante, «Lei da Caça»), o legislador nacional, «[tendo em vista a preservação da fauna e das espécies cinegéticas», veio conferir tutela penal à «caça de espécies não cinegéticas» (cf. artigo 6.º, n.º 1, alínea b), da Lei da Caça). Esta previsão não deixa de causar alguma estranheza. O diploma em apreço visa, como se referiu, a «conservação, fomento e exploração dos recursos cinegéticos», e estabelece «os princípios reguladores da atividade cinegética», regulamentando a Lei de Bases Gerais da Caça que «estabelece as bases da gestão sustentada dos recursos cinegéticos, na qual se incluem a sua conservação e fomento, bem como os princípios reguladores da atividade cinegética e da administração da caça» (artigo 1.º da Lei n.º 173/99, de 21 de setembro); os sublinhados são meus). Caça que o legislador nacional define como «a forma de exploração racional dos recursos cinegéticos» (artigo 2.º, alínea b), da Lei da Caça, e 2.º, alínea g), do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18 de agosto; sublinhados meus), sendo estes «as aves e os mamíferos terrestres que se encontrem em estado de liberdade natural, quer os que sejam sedentários no território nacional quer os que migram através deste, ainda que provenientes de processos de reprodução em meios artificiais ou de cativeiro e que figurem na lista de espécies que seja publicada com vista à regulamentação da presente lei, considerando o seu valor cinegético e em conformidade com as convenções internacionais e as directivas comunitárias transpostas para a legislação portuguesa» (artigo 2.º, alínea a), da Lei da Caça, e 2.º, alínea bb), do Decreto-Lei n.º 202/2004). E, finalmente, o «[exercício da caça ou ato venatório» – no fundo, a caça enquanto atividade concreta – é definido como aludindo a «todos os atos que visam capturar, vivo ou morto, qualquer exemplar de espécies cinegéticas que se encontre em estado de liberdade natural, nomeadamente a procura, a espera e a perseguição» (artigo 2.º, alínea n) do Decreto-Lei n.º 202/2004; de novo, o sublinhado é meu). Quando o legislador fala de caça, pois, é claro que tem em mente a atividade de captura (lato sensu) de espécies cinegéticas, uma atividade com larga tradição entre nós, e que, pese embora hoje em dia já não vise primariamente assegurar a subsistência do ser humano, assumindo antes, essencialmente, um caráter lúdico, continua a seguir, em muitos aspetos, rituais específicos (designadamente quanto aos processos para ela utilizados: cf. artigo 26.º do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18 de agosto) que a revestem de um significado social próprio, que de todo em todo se me afigura poder ser, sem mais, associado à «caça» (à atividade de caça) de espécies «não cinegéticas» (ou seja, espécies em relação às quais não é sequer tradicional o «exercício» da «caça»). b) Com a proibição estabelecida na alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei da Caça, visou o legislador, como ele próprio indica, a preservação/conservação da fauna, «em especial, das espécies cinegéticas» (cf. a epígrafe e o proémio do citado diploma legal). Sendo assim, e desde logo, não pode deixar de ter-se por duvidoso ser possível delimitar conceitualmente a «caça» (em especial, de espécies não cinegéticas) mediante uma interpretação da definição constante da alínea n) do diploma legal em referência como implicando (pelo menos) uma intenção de apropriação física (no sentido de fazer ou tornar seu) do animal «caçado» (designadamente ignorando a alusão, aí central dada a própria natureza das coisas, às espécies cinegéticas). Com efeito, é o valor, para o ser humano, das espécies cinegéticas, que, em princípio, justifica a prática ou exercício da caça, e, portanto, que a captura, no sentido da apropriação física, do animal, vivo ou morto, surja como elemento central para caracterizar tal atividade (cinegético deriva, afinal, do grego «kunêgetikós, -ê, -ón, bom para a caça, relativo à caça»; cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], s. v. «cinegético»). A definição legal (e a exigência da intenção de fazer seu o animal caçado), assim compreendida, já não faz sentido, no entanto, quando estamos a lidar com espécies que, precisamente, não são tidas como «boas para a caça» e, por isso mesmo, não são, por regra, objeto idóneos de caça na aceção referida. No seu uso corrente, o verbo «caçar» significa, essencialmente, a perseguição de animais (sem excluir a espera para o efeito, com ou sem emboscada) para os apanhar (capturar, em sentido físico, fazendo-os seus) ou, simplesmente, matar (cf. Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], s. v. «caçar»: «andar à caça», «perseguir animais para os apanhar ou matar»); e também ao nível da linguagem corrente, é frequente dizer-se que se «caçou» um animal quando se lhe dá, por qualquer motivo, morte, apesar de não se ter qualquer intenção de apropriação em relação a ele. Como, por outro lado, e sempre ainda ao nível da linguagem comum, que não vejo razão para não se tomar em consideração na interpretação da norma definitória sob análise, não deixa de poder dizer-se que alguém «capturou», no sentido de que «apanhou» (ou «caçou», no sentido indicado no parágrafo precedente) um animal, ainda que, é certo, se trate de um sentido menos frequente. c) Neste contexto, entendo que a proibição da caça de espécies não cinegéticas constante do artigo 6.º, n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18 de agosto, pode perfeitamente consistir tanto na mera captura (física), como no «simples» matar, de exemplares de animais em relação aos quais a caça não é legalmente permitida. Conclusão diversa, aliás, desprotegeria, contra a clara intenção do legislador, todas as demais espécies (não cinegéticas) que, ao contrário do que ocorre com as aves selvagens (que podem ainda contar com uma tutela contraordenacional), não são objeto, na legislação nacional, de proteção específica, com prejuízo para a fauna e a diversidade biológica, que, como hoje de todos os lados se salienta, importa preservar como forma de garantir a sustentabilidade e viabilidade da própria humanidade. E sendo assim as coisas, considero que a conduta do recorrente é efetivamente suscetível de integrar a previsão do artigo 30.º, n.º 1, por referência ao artigo 6.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 173/99, de 21 de setembro, e nessa medida manteria intocada a decisão recorrida, nessa parte. 3. Admitindo que a conduta do recorrente preenche tanto a previsão alínea a) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 140/99, de 24 de abril, como o ilícito-típico previsto pelas disposições conjugadas dos artigos 30.º, n.º 1, e 6.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 173/99, de 21 de setembro, seria aqui de aplicar o preceituado no artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, com prevalência da norma que pune a conduta do recorrente em causa nos autos como crime, em detrimento da disposição contraordenacional prevista naquele primeiro diploma.] ____________________________________ | ||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||||