Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6170/16.1T9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: CRIME DE DEVASSA DA VIDA PRIVADA
CRIME DE VIOLAÇÃO DE SEGREDO
CAUSA DE EXCLUSÃO DA ILICITUDE
Nº do Documento: RP202310256170/16.1T9PRT.P1
Data do Acordão: 10/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECUSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Não comete os crimes de devassa da vida privada e de violação de segredo, p. e p., respetivamente, pelos artigos 192.º e 195.º do Código Penal, o advogado que, no âmbito de processo disciplinar com origem em queixa de um cliente, apresenta na defesa desse processo informação e documentos ao mesmo respeitantes e de que teve conhecimento por força do exercício da advocacia em representação dele;
II - No crime de devassa da vida privada, para além do dolo genérico assente no conhecimento e vontade dos elementos objetivos, isto é, saber o agente que a ação é de divulgação de factos da vida privada e querer manter essa conduta, exige-se uma vontade hostil, no caso concretizada na vontade específica de devassar a vida privada do visado;
III - Numa situação de estrito exercício do direito de defesa no âmbito de processo disciplinar originado pelo cliente mostra-se excluída a ilicitude do facto nos termos do artigo 31.º, n.º 2, al. b), do Código Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 6170/16.9T9PRT.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo de Instrução Criminal do Porto – Juiz 1



Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto


I. Relatório
No âmbito do Inquérito n.º 6170/16.9T9PRT, a correr termos na 2.ª Secção do DIAP do Porto, por despacho de 16-02-2021, o Ministério Público determinou o arquivamento do processo que teve origem na «queixa apresentada por AA contra BB, advogado, em virtude de, em síntese, no âmbito de um articulado de resposta ao recurso por si apresentado da decisão proferida no âmbito do processo disciplinar .../2011-P/D, em que o denunciado era arguido, ter realizado afirmações referentes ao seu carácter e à sua vida privada, nomeadamente dados de saúde, quebrando as regras de sigilo profissional a que se encontrava obrigado por força da relação que mantiveram enquanto advogado/cliente», fundamentando tal decisão na inadmissibilidade legal do procedimento criminal por crime de difamação, por prescrição, e pela «não verificação dos crimes de devassa da vida privada e violação de sigilo, quer por força de se considerar a conduta atípica ou, em última análise, de se excluir a ilicitude da mesma em conformidade com o preceituado no artigo 32º, n.º 1, al. b), do Código Penal.»
*
Inconformado com esta decisão, veio o assistente AA requerer a abertura de instrução quanto à prática pelo arguido BB dos crimes de devassa da vida privada, p. e p. pelos art. 192.º do CPenal, e de violação de segredo, p. e p. pelo art. 195.º do CPenal.
*
Admitida a instrução, foram realizadas diligências de prova e teve lugar o debate instrutório, tendo sido proferida decisão instrutória de não pronúncia do arguido.
*
Inconformado, o assistente interpôs recurso, solicitando a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que decida pela pronúncia do arguido nos termos requeridos, apresentando nesse sentido as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«1º. Da prova produzida, quer em sede de inquérito, quer em sede de instrução, impunha-se decisão diferente da que foi proferida no despacho de não pronúncia de que ora se recorre.
2º. O despacho recorrido limita-se a fazer uma apreciação da matéria fáctica, sem que tenha feito uma exposição prévia dos factos, factos esses que deveriam ter sido enumerados.
3º. Irregularidade esta que pode ser reparada, nos termos do disposto no art. 123º, nº2 do CPP.
4.º Assim, o despacho de não pronuncia padece de nulidade, decorrente da fundamentação vaga e genérica dos factos praticados pelo arguido.
5º. Tendo, assim, sido violados os arts. 307º, nº 1, 308º, nº 2 ex vi art. 283º, nº 3 todos do CPP.
6º. O despacho recorrido, tendo natureza de uma verdadeira sentença, nos termos do disposto 97º, nº1 do CPP é-lhe aplicável o disposto nos arts. 374º e 379º, nº1, al. a) e nº 2 do CPP, exigindo, desta forma, que o mesmo manifeste a fundamentação, especificando os motivos de facto e de direito e o conhecimento lógico desenvolvido.
7º. Não contendo o despacho recorrido essa fundamentação, viola o disposto nos arts.379º, nº1, al. a) e 374º, nº 2 do CPP.
8.º Razão pela qual, o despacho de não pronúncia está em contradição com a prova produzida no inquérito e na instrução, que impunha decisão diferente.
9º. Entende o ora Recorrente que, da prova recolhida quer no inquérito, quer na instrução, resultam indícios suficientes de se terem verificados os pressupostos para aplicação ao arguido de uma pena.
10º. Critério este concretizado pelo art. 283º, nº 2 do CPP aplicável ex vi art. 308 do mesmo diploma legal, por se considerar que os indícios verificados traduzem uma possibilidade razoável de, por força dos mesmos, vir a ser aplicada uma pena.
11º. A prova documental constante dos autos não deixa quaisquer dúvidas sobre os elementos objectivos destes crimes.
12º. Resulta suficientemente provado que o arguido utilizou informações confidenciais, que lhe foram transmitidas pelo ora recorrente no âmbito de um processo judicial por aquele patrocinado.
13º. E, foram utilizadas essas informações e documentos, sem que para tal o arguido tenha pedido autorização prévia ao Presidente do Conselho Regional da Ordem dos Advogados, conforme estipula o art. 92º, nº 4 do Estatuto da Ordem dos Advogados;
14º. E, não se entende que a violação desse sigilo a que o arguido estava obrigado fosse necessário para que “o arguido contextualizasse a sua defesa”.
15.º Ao não ter sido pronunciado o arguido foi violado o disposto no art. 308º, nº 1 do CPP, sendo que do art. 283º, nº 2 do CPP aplicável ex vi art. 308º do mesmo diploma legal, deveria ter sido decidido, face aos indícios verificados, e dos mesmos resultar que por forças deles haveria uma forte probabilidade de em julgamento ser aplicada uma pena ao arguido.
16º Entende o ora Recorrente que se verificaram, quer na fase de inquérito, quer na fase de instrução, os elementos objectivos dos crimes de violação de segredo, p.e p. pelo art. 195º e do crime de devassa da vida provada, p. e p. no art.192º, nº 1, al. d) do CP.
17º Por fim, no que diz respeito à prescrição do procedimento criminal, pelo decurso do tempo, considera-se que tal decisão viola o disposto no art. 120º, nº 1, al. b) do Código Penal.»
*
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da decisão recorrida.
*
Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde suscitou a questão prévia da prescrição do procedimento criminal, cujo prazo entende ser de dois anos.
*
Notificado nos termos do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, o recorrente apresentou resposta pugnando pela não prescrição do procedimento criminal.
*
Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.
*

II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
- Irregularidade da decisão por falta de exposição prévia dos factos (art. 123.º, n.º 2, do CPPenal);
- Nulidade da decisão por fundamentação vaga e genérica (arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, n.ºs 1, al. a), e 2), do CPPenal);
- Verificação dos elementos objectivos e subjectivos dos crimes de devassa da vida privada, p. e p. pelo art. 192.º do CPenal, e de violação de segredo, p. e p. pelo art. 195.º do CPenal;
- Decisão sobre prescrição do procedimento criminal em violação do disposto no art. 120.º, n.º 1, al. b), do CPenal.
*
Para análise das questões colocadas importa ter presente o teor da decisão instrutória de não pronúncia recorrida (transcrição):
«O Tribunal é competente em razão da matéria e do território.
O Ministério Público tem legitimidade para acusar.
Não existem nulidades, excepções, questões prévias ou incidentais que importe conhecer.
*
Foi requerida a abertura da instrução pelo assistente AA (fl.s 110/112), relativamente ao despacho de arquivamento do inquérito pelo M. Público, sem acusação (fl.s 437/440), por entender o requerente que, contrariamente ao vertido naquele despacho, foram recolhidos indícios suficientes no inquérito em como o arguido BB praticou os crimes devassa da vida privada e de violação de sigilo.
Por conseguinte, requer o assistente que seja o referido arguido pronunciado pela comissão dos referidos crimes.
Requereu a inquirição de testemunhas, a obtenção de documentos em poder de terceiros e a tomada de declarações a si próprio.
*
Aberta a instrução, procedeu-se à obtenção dos documentos requeridos pelo assistente e à tomada de declarações ao mesmo.
Realizou-se depois o debate instrutório, no decurso do qual o M. Público concluiu no sentido da não pronúncia do arguido, por entender não se terem recolhido indícios suficientes em como o arguido praticou os crimes que o assistente lhe imputa; o assistente concluiu pela pronúncia do arguido, nos termos do seu requerimento de abertura da instrução; a defesa do arguido concluiu pelo arquivamento dos autos, por não existirem indícios da prática dos crimes que são imputados àquele.
*
O art. 286.º, n.º 1 do C. Pr. Penal proclama que “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.“.
Ou seja, a actividade do juiz de instrução criminal, nesta fase processual, circunscreve-se - apenas e só - a verificar (a comprovar) se os factos apontados pelo assistente contra o arguido encontram eco no inquérito e na instrução ou se, pelo contrário, não existem indícios suficientes em como, submetido que seja a julgamento por esses actos, se recorta como mais provável a condenação do arguido que a sua absolvição.
Não pretende assim a lei que a instrução constitua um efectivo suplemento de investigação relativamente ao inquérito, não visando esta fase processual facultativa o alargamento do âmbito da investigação realizada em sede de inquérito.
Ora, nos termos do art.º 308.º, n.º 1 do C. Pr. Penal, “Se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia “.
Por seu turno, e agora de acordo com o art.º 283º do C. Pr. Penal, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.“.
Ou seja: o juiz de instrução criminal analisa a prova indiciária recolhida no inquérito e na instrução e emite um juízo sobre a suficiência desses indícios, procurando responder à seguinte questão: em julgamento, se a prova produzida tiver o mesmo sentido e alcance daquelas que teve no inquérito e na instrução é mais provável a condenação do arguido que a sua absolvição?
Se a resposta for positiva, deve pronunciar o arguido; caso contrário deverá lavrar despacho de não pronúncia.
*
Percorrendo a prova indiciária recolhida no inquérito e na instrução, verifica-se que o arguido, em sede de procedimento disciplinar que contra si correu na O. dos Advogados, se referiu ao aqui assistente como tendo forte propensão para a litigância e revelar carácter persecutório (fl.s 576 e 729 dos autos); mais requereu na sua defesa escrita no âmbito desse procedimento, que a O. dos Advogados – se assim entendesse necessário – solicitar ao M. Público a junção aos autos da sentença que decretou o internamento compulsivo do aqui assistente no Hospital ... (fl.s 577 e 730), bem como que essa unidade hospitalar fosse notificada para juntar ao mesmo o registo clínico do aqui assistente, a fim de demonstrar o que afirmara (fl.s 577); nessa ocasião, o arguido procedeu à junção de documentos, nos quais consta a assentada das declarações que CC, ex-mulher do aqui assistente, prestou no âmbito do inq. 6744/06.6TDPT, na qual aquela testemunha, entre outros assuntos, alude ao facto de aquele ter sido internado compulsivamente, durante cerca de dois meses, no Hospital ... (fl.s 559/561 e 799/800).
Depois - sempre no âmbito do referido procedimento disciplinar – veio o aqui arguido (agora pela pena do seu mandatário judicial, Dr. DD), apresentar defesa escrita à acusação a si dirigida, na qual verteu considerações acerca do aqui assistente, caracterizando-o como “psicologicamente instável” (art.ºs 45.º, a fl.s 1239 e 54.º, a fl.s 1240/1241) e actuando num “misto de má-fé e de desequilíbrio psicológico” (art.º 57.º, a fl.s 1241), pretendendo enriquecer à custa dele arguido (fl.s art.º 59.º, a fl.s 1242).
Tendo sido arquivado o referido procedimento disciplinar movido pela O. dos Advogados ao aqui arguido, o aqui assistente interpôs recurso dessa deliberação (fl.s 1270/1283), em que, além do mais, verbera ao arguido a circunstância de, no entender dele assistente, terem sido juntos a esse procedimento disciplinar documentos privados “em clara quebra da reserva e confidencialidade”, concluindo pela revogação do acórdão em questão.
O aqui arguido, na resposta escrita que o seu mandatário judicial apresentou àquele recurso, volta a fazer referência à instabilidade psicológica do assistente, concluindo, no que respeita ao fundo da questão, pelo improvimento do recurso dele.
O Conselho Superior da O. dos Advogados declarou prescrito o procedimento disciplinar contra o aqui arguido, por deliberação de 21.FEV.2020.
No âmbito dos presentes autos, o M. Público entendeu por bem arquivar o inquérito, sem acusação, por “…todas as afirmações postas em causa foram feitas no âmbito do exercício do direito de defesa em processo disciplinar em que era arguido. Permitindo-nos acrescentar, com legitimidade, que o exercício cabal deste direito compreende naturalmente a necessária contextualização dos factos, para melhor compreensão dos mesmos. Acresce que o referido processo disciplinar tem natureza secreta e os profissionais intervenientes nos mesmos estão igualmente vinculados ao dever de sigilo. Nada permite inferir que o móbil que presidiu à produção das afirmações objecto da denúncia que deu origem a estes autos tenha por base qualquer intenção de expor factos do foro privado com intuito vexatório ou qualquer outro que não o amplo e cabal exercício do direito de defesa. Em consequência, pelos fundamentos expostos é forçoso concluir pela não verificação dos crimes de devassa da vida privada e violação de sigilo, quer por força de se considerar a conduta atípica ou, em última análise, de se excluir a ilicitude da mesma em conformidade com o preceituado no artigo 32º, n.º 1, al. b), do Código Penal.”.
O assistente entende que o aqui arguido, ao fazer chegar ao procedimento disciplinar em que também era arguido, peças processuais reveladoras de aspectos da vida privada daquele, incorreu nos crimes previstos nos art.ºs 192.º e 195.º do C. Penal.
No que respeita ao imputado crime de devassa, importa sublinhar que não se consegue descortinar nos autos que tenha presidido à actuação do aqui arguido a “…intenção de devassar a vida privada…” do assistente, pois que os documentos por si juntos no procedimento disciplinar visaram tão só densificar a sua defesa nesses autos quanto à instabilidade psicológica do assistente; neste particular, converge-se com o M. Público quando sustenta que a motivação do arguido ao juntar aos autos o documento de fl.s 559/561 (no qual se refere o internamento compulsivo a que, durante cerca de dois meses, o assistente esteve sujeito no Hospital ...) foi o de contextualizar a personalidade complicada e a instabilidade psicológica que o arguido entende caracterizar o assistente.
O mesmo se diga relativamente ao crime de violação de segredo que o assistente imputa ao arguido: a revelação, por este, e em sede de procedimento disciplinar, de facto atinente à saúde mental do assistente e cujo conhecimento lhe adviera da sua intervenção em processo judicial enquanto patrono oficioso daquele, mostrava-se necessário para que o arguido demonstrasse a instabilidade psicológica que entendia caracterizá-lo, pelo que não pode ter-se como criminalmente relevante essa actuação do arguido.
Face a esta factualidade apurada em inquérito e em instrução - e tendo presente o que supra se referiu quanto ao conceito de suficiência de indícios exigível para a pronúncia - se a prova produzida em audiência de julgamento for aquela apurada, será mais provável a condenação ou a absolvição do arguido pelos crimes de devassa da vida privada e de violação de segredo?
A resposta não pode deixar de ser que é mais provável a absolvição dele que a sua condenação; se a prova a produzir em sede de audiência de julgamento tivesse o mesmo conteúdo, sentido e alcance que teve em inquérito e em instrução, recorta-se como mais provável essa absolvição, pelo que se impõe a respectiva não pronúncia do arguido por tais crimes.
Por conseguinte, apenas se mostra indiciariamente demonstrado que:
O assistente AA deu início ao procedimento disciplinar n.º .../201 1 — P/D junto do Conselho de Deontologia da Ordem dos Advogados, contra o arguido BB, por entender que este não lhe deu conhecimento do despacho de arquivamento, proferido no âmbito do Proc. N.º 6744/06.6TDPRT, que corria termos no Tribunal de Instrução Criminal do Porto, tendo assim ficada precludida a possibilidade de recorrer daquela decisão.
No decurso desse processo disciplinar que decorreu na Ordem dos Advogados, o arguido deu a conhecer factos da vida privada do ora assistente, nomeadamente factos sobre hospitalização do assistente e dados clínicos do mesmo.
Igualmente procedeu à junção de documentos que aquele lhe tinha confiado, para serem utilizados exclusivamente no processo crime, para o qual havia sido nomeado defensor oficioso.
O arguido tomou conhecimento esses factos por força da profissão que exerce.
Pelo contrário, não se mostra suficientemente demonstrado que:
Sabia o arguido que este seu comportamento era proibido por lei, mas apesar de o saber, não se inibiu de o praticar.
O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que com a sua conduta estava a devassar a vida privada do assistente, que essa conduta era proibida por lei e mesmo assim não se absteve de o fazer.
*
Assim, pelo exposto, uma vez que esta fase da instrução é ainda meramente indiciária, de comprovação judicial de indícios, e por efectivamente esses indícios se afigurarem insuficientes e por o procedimento criminal se achar prescrito pelo decurso do tempo, nos termos do art.º 308.º, n.º 1, 1.ª parte, do C. Pr. Penal, NÃO SE PRONUNCIA o arguido BB pelos factos e imputação jurídica vertidos pelo assistente AA no seu requerimento de abertura da instrução.
*
Nos termos do art.º 214.º, n.º 2, al. b) do C. Pr. Penal, extingue-se de imediato a medida de coacção imposta ao arguido.
*
Custas pelo assistente, sem prejuízo do apoio judiciário que beneficia.»
*
Antes de nos debruçarmos sobre as questões colocadas pelo recorrente, analisemos se assiste razão ao Exmo. Procurador-Geral Adjunto quando invoca no seu parecer a prescrição do procedimento criminal relativamente aos crimes de devassa da vida privada, p. e p. pelo art. 192.º do CPenal, e violação de segredo, p. e p. pelo art. 195.º do CPenal, que subsistem em apreciação nestes autos[2].
Tais ilícitos penais eram punidos à data dos factos[3] com pena de prisão até 1 (um) ano ou com pena de multa até 240 (duzentos e quarenta) dias, não tendo ocorrido qualquer redução nos limites máximos das molduras penais desde então.
Até é usado no caso em apreço como advérbio, ou seja, “para exprimir inclusão ou enfatizar qualquer facto. É sinónimo de inclusivamente”[4].
Assim, tendo por referência o limite máximo de 1 (um) ano de prisão, inclusive, o prazo de prescrição do procedimento criminal é no caso dos referidos ilícitos penais de 5 (cinco) anos, nos termos do art. 118.º, n.º 1, al. c), do CPenal, posto que estão em causa crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo é igual a um ano, mas inferior a cinco anos.
A conduta do arguido que se descreve no requerimento para abertura da instrução não se mostra definida por referência a qualquer data ou período temporal, apenas se dando nota de que ocorreu no âmbito do processo disciplinar instaurado contra o arguido e que correu termos na Ordem dos Advogados.
Tal falha, totalmente escusada como veremos, torna o requerimento para abertura de instrução omisso quanto a elemento essencial da descrição factual que, por si só, seria o bastante para se considerar insuficiente a factualidade indicada para levar o arguido a julgamento, desde logo, por questões de prescrição.
Mas ultrapassando essa falha e admitindo que até seria possível complementar o conteúdo do requerimento para abertura da instrução com outros elementos processuais, verificamos que a conduta do arguido começa por ser referenciada nos autos na denúncia de fls. 3 a 10 e por factos ocorridos através de resposta do aqui arguido a recurso para o Conselho Superior da Ordem dos Advogados do acórdão do Conselho de Deontologia do Porto no âmbito do processo disciplinar .../2011-P/D instaurado por participação do denunciante, resposta que, afirma-se, foi notificada ao aqui recorrente em 15-02-2016, e na qual se reiteram comportamentos anteriores através dos quais o denunciado já teria difamado e feito devassa da vida privada do denunciante, aqui recorrente.
Se assim o afirma o denunciante, aqui recorrente, significa que o arguido actuou em data anterior a 15-02-2016, sendo certo que se na resposta ao recurso apresentada se reiteraram comportamentos anteriores a mesma não acrescentou nada de novo e os eventuais factos ilícitos foram cometidos aquando da tal conduta anterior, pois a devassa e a violação de segredo apenas ocorrem uma vez.
Compulsados os elementos que constam dos autos respeitantes ao referido processo disciplinar que correu termos na Ordem dos Advogados verificamos que o arguido, ali participado, notificado para se pronunciar do teor da participação, apresentou resposta registada em 17-01-2012, aludindo, entre o mais, ao «carácter persecutório e de forte propensão para a litigância» do participante e solicitando a junção pelo Ministério Público da sentença que fundamentou e decretou judicialmente o internamento compulsivo do participante no Hospital .... Juntou cópia das declarações da ex-mulher do recorrente, na qualidade de arguida, no âmbito do processo judicial que esteve na origem da participação disciplinar e onde a mesma também menciona o referido internamento compulsivo, aludindo a um período de dois meses (cf. fls. 1208 a 1216).
Posteriormente, a 08-02-2013, o arguido, aqui recorrido, apresentou no âmbito do referido processo disciplinar, já convertido nessa qualidade, a sua defesa, juntando a mesma argumentação e os mesmos documentos que havia apesentado na peça de 17-01-2012 (cf. fls. 1217 a 1225).
Deduzida a acusação no âmbito desse processo disciplinar, veio o arguido apresentar a sua defesa por escrito através de requerimento entrado na Ordem dos Advogados em 12-01-2015, no qual reproduziu, desenvolvidamente, o que já havia assinalado nas respostas anteriores e juntou um documento manuscrito pelo participante referente ao mencionado processo judicial que esteve na origem da participação disciplinar para a Ordem dos Advogados (cf. fls. 1229 a 1259).
Por fim, o arguido, aqui recorrido e participado no processo disciplinar, juntou a este, com registo de entrada de 29-01-2016, resposta ao recurso do participante para o Conselho Superior da Ordem dos Advogados do acórdão do Conselho de Deontologia do Porto no âmbito do processo disciplinar .../2011-P/D, onde nada de novo acrescenta ao que fez anteriormente constar da defesa que apresentou naquele processo (cf. fls. 752 a 763).
Verificamos assim, num esforço de datação factual que o recorrente claramente não desenvolveu, que os factos praticados pelo arguido remontam a 17-01-2012 ou, no limite, muito forçado, a 12-01-2015, por ter sido junto com a defesa escrita apresentada nessa data um documento que, aparentemente, ainda não constava do processo disciplinar em questão.
Posteriormente nada de novo foi dito ou junto.
Vejamos então, tendo por referência a tais datas, se já ocorreu ou não a prescrição do procedimento criminal.
Nos presentes autos, tendo sido proferido despacho de arquivamento e não tendo sido prolatada qualquer sentença, não ocorreram causas de suspensão da prescrição do procedimento criminal (cf. art. 120.º do CPenal).
Diferente é a situação no que concerne às causas de interrupção da prescrição, pois a constituição do arguido como tal, que se verificou a 20-03-2019, interrompeu a prescrição do procedimento criminal, voltando a correr novo prazo de 5 (cinco) anos (art. 121.º, n.ºs 1, al. b), e 2, do CPenal).
Na data em que o arguido foi constituído nessa qualidade não havia decorrido ainda o prazo de prescrição de 5 (cinco) anos relativamente à segunda das datas referenciadas como de prática de factos – 12-01-2015 –, pois só a 12-01-2020 seria alcançada. Diferentemente, se tivermos em conta a primeira das datas indicadas – 17-01-2012 – verificamos que a 17-01-2017 prescreveu o procedimento criminal sem que tivesse ocorrido qualquer facto suspensivo ou interruptivo da prescrição.
Centrando-nos, pois, na data referência de 12-01-2015, verificamos que após a interrupção com a constituição de arguido a 20-03-2019 voltou a decorreu novo prazo de 5 (cinco) anos de prescrição que ainda não decorreu e cujo termo apenas se atinge em 20-03-2024.
Contudo, para que os procedimentos processuais não possam perpetuar-se eternamente, deve levar-se ainda em consideração o disposto no art. 121.º, n.º 3, do CPenal que prevê que a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade.
No caso dos autos esse prazo limite é de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses (5 anos + 2 anos e 6 meses), sendo certo que não se verificou qualquer causa de suspensão da prescrição de acordo com o disposto no art. 120.º do CPenal, como já se referiu.
Como tal, tendo por referência a data de 12-01-2015, temos de concluir que a prescrição do procedimento criminal ocorreu em 12-07-2022, 7 (sete) anos e 6 (seis) meses depois do início do prazo de prescrição.
E mesmo que – assim se entendendo possível –, se fizesse acrescer a estas datas os prazos de suspensão da prescrição do procedimento criminal estabelecidos nas “Leis Covid” (chamemos assim por facilidade de exposição), que não atingem, sequer, os seis meses, a prescrição do procedimento criminal sempre estaria verificada à data da decisão instrutória.
Assim, embora por razões diferentes (o prazo de prescrição é de cinco e não de dois anos), entendemos que deve proceder a questão prévia suscitada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, mostrando-se correcta a decisão de não pronúncia ao mencionar – mas não a analisar, é verdade – a prescrição do procedimento criminal.
Mas mesmo que não se acolha este entendimento quanto à prescrição do procedimento criminal, o recurso do recorrente sempre estará votado ao insucesso.
Vejamos.
Irregularidade da decisão por falta de exposição prévia dos factos (art. 123.º, n.º 2, do CPPenal)
Invoca o recorrente que a decisão instrutória sofre de irregularidade por, na sua perspectiva, ter invertido a ordem de apreciação das questões colocadas, não tendo realizado em primeiro lugar uma descrição dos factos do requerimento instrutório que se consideraram suficientemente indiciados e dos que não se consideraram suficientemente indiciados, pois só após esta enumeração é que o Tribunal a quo poderia decidir se os factos eram ou não suficientes para a sujeição do arguido a julgamento. Não apoia a sua alegação em qualquer norma legal, invocando apenas o art. 123.º, n.º 2, do CPPenal.
Decorre do art. 308.º do CPPenal, sob a epígrafe “Despacho de pronúncia ou de não pronúncia” que
«1 - Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
2 - É correspondentemente aplicável ao despacho referido no número anterior o disposto nos n.os 2,3 e 4 do artigo 283.º, sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 1 do artigo anterior.
3 - No despacho referido no n.º 1 o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.»

Ultrapassando neste momento a polémica sobre os vícios da decisão instrutória por falta de indicação dos factos indiciados e não indiciados[5], que não se coloca – posto que a decisão recorrida procede ao elenco dos factos considerados indiciariamente demonstrados e não demonstrados e tão-pouco o recorrente invocou a omissão de uma tal identificação – há que considerar que a alegação apresentada não tem qualquer fundamento legal.
Com efeito, não existe qualquer norma que determine em que momento é que a decisão instrutória deve enunciar os factos considerados indiciariamente demonstrados ou não demonstrados.
A fórmula utilizada, que é a habitual, de análise das razões do requerimento para abertura da instrução, sejam de facto ou de direito, de exposição da posição do tribunal e, a final, de elenco dos factos indiciariamente demonstrados e não demonstrados, nenhuma objecção ou crítica suscita.
Estranho seria que o/a juiz de instrução criminal começasse a decisão instrutória por elencar a factualidade indiciária demonstrada e não demonstrada e só depois se debruçasse sobre os argumentos aduzidos no requerimento para abertura de instrução e sobre as matérias que foram concretamente suscitadas.
A questão invocada, da irregularidade da decisão instrutória, é uma não questão, pois não vemos que norma da tramitação processual da fase de instrução ou da elaboração da decisão instrutória haja sido incumprida, nem o recorrente a invocada.
As irregularidades a que alude o art. 123.º do CPPenal não têm real existência sem a verificação do incumprimento de qualquer acto ou regra processual, que há-de estar definida em norma autónoma.
Ademais, o assistente dispunha do prazo de 3 (três) dias após notificação da decisão instrutória para invocar irregularidades, prazo que não cumpriu, não considerando este Tribunal de recurso, por não reconhecer qualquer irregularidade, que esteja em causa a situação prevista no n.º 2 do art. 123.º - reparação oficiosa de irregularidade –, razão pela qual é de indeferir a pretensão do recorrente.
*
Nulidade da decisão por fundamentação vaga e genérica (arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, n.ºs 1, al. a), e 2), do CPPenal)
Neste segmento do recurso, alega o recorrente que a fundamentação do despacho de não pronúncia foi feita de forma tabelar, vaga, genérica e não especificada, invocando a necessidade de cumprimento do disposto no art. 283.º, n.º 3, al. b), do CPPenal, e a aplicação ao caso dos vícios da sentença previstos nos arts. 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do CPPenal.
Ora, contrariamente ao invocado, a decisão instrutória não é uma sentença para efeitos do disposto no art. 97.º, n.º 1, al. a), do CPPenal, não estando sujeita às exigências de fundamentação ali previstas, mas apenas às determinadas no art. 97.º, n.º 5, do CPPenal, isto é, dever de fundamentar com especificação dos motivos de facto e de direito da decisão.
Neste sentido, vejam-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 03-07-2013[6] e do Tribunal da Relação de Évora de 29-11-2016[7], neste se afirmando que «[o] disposto no art.º 379.º do C.P.P., relativo à nulidade da sentença, não é aplicável aos despachos, designadamente aos despachos de pronúncia ou não pronúncia, o mesmo acontecendo com o disposto no referido art.º 374.º do C.P.P., relativo aos requisitos da sentença, entre os quais surge o dever de fundamentação (art.º 374.º, n.º 2, do C.P.P.).»
Naturalmente que a fundamentação de um despacho deve mostrar-se adequada à complexidade e profundidade da decisão subjacente.
Por isso, um despacho de pronúncia ou de não pronúncia deve espelhar a posição do tribunal perante os factos da acusação ou do requerimento para abertura da instrução, reflectindo a análise realizada sobre o carácter suficientemente indiciário ou não desses mesmos factos com base nos elementos probatórios que constam dos autos, e a solução jurídica que sobre uma tal apreciação recai.
Como se comprova da leitura da decisão instrutória impugnada supratranscrita, o Tribunal a quo fixou os factos que entendeu indiciariamente demonstrados, no essencial, todos os factos objectivos respeitantes aos ilícitos em causa, e também os que considerou indiciariamente não demonstrados, os relativos aos elementos subjectivos dos crimes, explicitando na decisão, com remissão para as páginas do processo respectivas, as provas indiciárias recolhidas no inquérito.
Entendeu o Tribunal a quo que quanto ao crime de devassa da vida privada, considerando as circunstâncias em que foi realizada a “divulgação” de factos respeitantes à vida privada e saúde do assistente – no âmbito de processo disciplinar instaurado por participação deste –, estava afastado o dolo específico correspondente à intenção de devassar a vida privada, verificando-se apenas uma intenção de densificar a defesa do arguido no processo disciplinar instaurado, igual entendimento formulando quanto ao crime de violação de segredo.
Esta fundamentação é suficiente para que os destinatários da decisão percepcionem o percurso lógico e raciocínio jurídico do Tribunal a quo, impugnando-a, assim entendendo, como efectivamente aconteceu.
Acresce que o recorrente não indica qualquer facto com relevo para a decisão que não tenha sido tomado em consideração pelo Tribunal a quo ou qualquer parcela da argumentação que tenha ficado por perceber.
O recorrente, simplesmente, não concordou com a decisão recorrida e pretende que este Tribunal de recurso escolha outra solução jurídica. Mas essa pretensão coloca-nos no âmbito do erro de direito, de que até pode padecer a decisão, mas não seguramente da sua nulidade por falta de fundamentação, que manifestamente não se verifica.
Como tal, improcede, igualmente esta parcela do recurso.
*
Verificação dos elementos objectivos e subjectivos dos crimes de devassa da vida privada, p. e p. pelo art. 192.º do CPenal, e de violação de segredo, p. e p. pelo art. 195.º do CPenal
Neste segmento do recurso, o núcleo essencial da argumentação do recorrente não põe em causa a análise jurídica quanto aos elementos objectivos do crime, pois mostra-se indiciariamente demonstrado que:
«O assistente AA deu início ao procedimento disciplinar n.º .../201 1 — P/D junto do Conselho de Deontologia da Ordem dos Advogados, contra o arguido BB, por entender que este não lhe deu conhecimento do despacho de arquivamento, proferido no âmbito do Proc. N.º 6744/06.6TDPRT, que corria termos no Tribunal de Instrução Criminal do Porto, tendo assim ficada precludida a possibilidade de recorrer daquela decisão.
No decurso desse processo disciplinar que decorreu na Ordem dos Advogados, o arguido deu a conhecer factos da vida privada do ora assistente, nomeadamente factos sobre hospitalização do assistente e dados clínicos do mesmo.
Igualmente procedeu à junção de documentos que aquele lhe tinha confiado, para serem utilizados exclusivamente no processo crime, para o qual havia sido nomeado defensor oficioso.
O arguido tomou conhecimento esses factos por força da profissão que exerce.»

A discordância do recorrente centra-se nos seguintes pontos:
- o arguido não precisava de recorrer aos referidos elementos da vida pessoal do recorrente para se defender;
- ainda que tais informações pudessem interessar, não podia recorrer à sua utilização sem solicitar previamente ao Presidente do Conselho Regional da Ordem dos Advogados a respectiva autorização.
Considera, pois, que estão também verificados os elementos subjectivos dos crimes de devassa da vida privada e violação de segredo.
Mas sem razão.
Relembremos aqui alguns dos argumentos avançados no despacho de arquivamento, que infirmam a solução do recorrente, e com os quais concordamos:
«No mais, a análise crítica e conjugada da globalidade da prova produzida impõe que se afaste a verificação dos denunciados crimes de devassa da vida privada e violação de sigilo. Na verdade, conforme referido pelo próprio arguido, todas as afirmações postas em causa foram feitas no âmbito do exercício do direito de defesa em processo disciplinar em que era arguido. Permitindo-nos acrescentar, com legitimidade, que o exercício cabal deste direito compreende naturalmente a necessária contextualização dos factos, para melhor compreensão dos mesmos. Acresce que o referido processo disciplinar tem natureza secreta e os profissionais intervenientes nos mesmos estão igualmente vinculados ao dever de sigilo. Nada permite inferir que o móbil que presidiu à produção das afirmações objecto da denúncia que deu origem a estes autos tenha por base qualquer intenção de expor factos do foro privado com intuito vexatório ou qualquer outro que não o amplo e cabal exercício do direito de defesa. Em consequência, pelos fundamentos expostos é forçoso concluir pela não verificação dos crimes de devassa da vida privada e violação de sigilo, quer por força de se considerar a conduta atípica ou, em última análise, de se excluir a ilicitude da mesma em conformidade com o preceituado no artigo 32º, n.º 1, al. b), do Código Penal.»

Quanto à configuração dos crimes em análise, resulta do disposto no art. 192.º do CPenal que comete um crime de devassa da vida privada quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual (…) divulgar factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa, para além de outras situações previstas sem relevo para o caso. Não abordaremos também eventual relação de concurso aparente entre este crime e o crime de violação de segredo, p. e p. pelo art. 195.º, que aquele consumirá, por ser questão lateral às colocadas à apreciação deste Tribunal de recurso.
Para o que releva na análise do recurso, o preceito prevê uma intenção específica de devassar a vida de outra pessoa.
Relativamente a este segmento do preceito tem sido entendido que «o mesmo não assume uma específica autonomia, como assumiria se estivéssemos no âmbito dos chamados crimes de intenção, significando apenas que o tipo legal de crime em causa só admite o dolo direto, e excluindo as formas de dolo necessário e eventual.»[8]
Distinguindo os crimes de intenção dos crimes de dolo específico defende Paulo Pinto de Albuquerque[9] que nestes «o tipo subjectivo esgota-se na particular forma de dolo exigida pela lei. Naqueles, o tipo subjectivo inclui o dolo (em regra, a três formas de dolo) e ainda um elemento subjectivo adicional, que tem por objecto um resultado exterior ao tipo objectivo.»
O mesmo autor entende que no âmbito do crime de devassa da vida privada «[o] tipo subjectivo só admite o dolo directo. O tipo refere a “intenção de devassar a vida privada”, mas este elemento subjectivo típico não acrescenta nada ao tipo objectivo, cobrindo-o por completo e, desse modo, identificando-se com o próprio dolo. O efeito prático da sua inclusão no tipo é o de restringir formas de dolo necessário e eventual. Trata-se, pois, de um crime de dolo específico e não de um crime de intenção»[10].
Costa Andrade[11] densifica os conceitos, considerando que «[a] infracção deve antes ser levada à categoria dos delitos de tendência. Em que a acção típica “está subordinada à direcção da vontade do agente, que é o que lhe confere o seu particular carácter ou especial perigosidade” (JESCHECK 287). Trata-se, em qualquer caso, de um daqueles crimes em que a lesão do bem jurídico só é punida enquanto consequência “de uma direcção da vontade hostil ao bem jurídico” (JAKOBS 337. No mesmo sentido, ZIELINSKI, cit.).»
Esta última posição, entendemos, enquadra correctamente a tipologia legal. Com efeito, para além do dolo genérico assente no conhecimento e vontade dos elementos objectivos, isto é, saber o agente que a acção é de divulgação de factos da vida privada e querer manter essa conduta, exige-se uma vontade hostil, nas palavras de Costa Andrade, no caso concretizada na vontade específica de devassar a vida privada do visado.
Ora, é este dolo específico, este plus aos elementos base do dolo genérico, que no caso concreto não estão demonstrados, antes evidenciando os autos, dado o contexto em que os factos ocorreram, que o arguido apenas pretendeu exercer a sua defesa no âmbito de processo disciplinar a correr termos na Ordem dos Advogados – com origem em queixa do assistente, o que não é despiciendo –, e não exercer uma qualquer vontade maledicente que se esgota na pura intenção de divulgar informação sobre dados de saúde e da vida privada do assistente e que podem ser entendidos como negativos para a imagem do mesmo.
Não ficaram, pois, indiciariamente perfectibilizados os elementos subjectivos do crime.
Acresce que, mesmo que assim não se entendesse, o arguido limitou-se a exercer um direito – o direito de defesa no âmbito de processo disciplinar –, mostrando-se por tal via excluída a ilicitude do facto, nos termos do art. 31.º, n.º 2, al. b), do CPenal.
Não cabe na avaliação da eficácia desta causa de exclusão da ilicitude apurar se, em concreto, a argumentação do arguido que determinou a divulgação de factos da vida privada do assistente era ou não válida para a defesa do aqui arguido no âmbito daquele processo, tanto mais que nos falta a competência para a sua apreciação.
Importa é perceber se as circunstâncias em que foi realizada a divulgação que aqui se aprecia ocorreu dentro dos estritos parâmetros do exercício do direito de defesa do próprio. E a resposta a essa indagação não pode deixar de ser afirmativa, pois o arguido agiu única e exclusivamente no âmbito do direito de resposta e defesa no processo disciplinar instaurado pelo próprio assistente, a pessoa relativamente a quem foram divulgados factos da vida privada.
Acresce que um tal processo tem natureza secreta e confidencial, pois é tramitado intra muros da Ordem dos Advogados, conforme resulta do art. 125.º da Lei 145/2015, 09-09, que aprovou o Estatuto da Ordem dos Advogados.
Se alguma informação sobre o que no processo disciplinar foi dito, junto ou mostrado vazou para o exterior foi por exclusiva actuação do assistente que aconteceu, ao trazer para o presente processo crime o conteúdo daquele processo disciplinar, de outro modo não acessível.
E nem se diga, como alega o recorrente, que o arguido, para exercer a sua defesa, precisava de ter pedido à Ordem dos Advogados dispensa do dever de sigilo profissional, nos termos do art. 92.º da referida Lei.
É que essa regra deve entender-se como aplicável apenas a actos ocorridos extra muros, já que todos os procedimento dentro da própria Ordem dos Advogados estão abrangidos pelo dever de sigilo próprio da profissão. Aliás, se a defesa do arguido no processo disciplinar fosse considerada fora das condições em que poderia ser exercida, sempre seria determinada a extração do processo dessa parcela afectada, o que não há notícia que tenha ocorrido.
Assim, também por esta via se impunha concluir que a decisão de não pronúncia era a única possível.
E a análise antecedente vale para o crime de violação de segredo, p. e p. pelo art. 195.º do CPenal.
Com efeito, resulta do referido preceito que comete o crime de violação de segredo quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte.
Ao contrário do crime de devassa da vida privada, a perfectibilização do crime dá-se com o dolo genérico, pelo que nada impedia, aparentemente, a conclusão do cometimento do crime.
Porém, temos também aqui o mesmo contexto já analisado a propósito do crime de devassa da vida provada – apreciação que se dá por reproduzida –, isto é, exercício do direito de defesa no âmbito de processo disciplinar originado pelo assistente, nos termos já apreciados, razão pela qual se impõe concluir que está excluída a ilicitude do facto nos termos do art. 31.º, n.º 2, al. b), do CPenal.
E se o agente está ciente de que está a exercer um direito que exclui a ilicitude do facto, como resulta da decisão instrutória, não existe qualquer contradição ao concluir-se que não sabia ser a sua conduta proibida por lei.

Em suma, resulta dos autos de forma mais do que suficiente, aquela que releva em fase de instrução, que o arguido actuou no exercício do direito de defesa no âmbito de processo disciplinar de natureza sigilosa originado pelo assistente.
Limitar o exercício daquele direito nos termos pretendidos pelo recorrente, quando estamos perante processo secreto e confidencial e todos os envolvidos estão obrigados ao dever de sigilo quanto ao conteúdo do processo equivaleria a coartar a possibilidade de o arguido realizar a defesa que entende adequada, o que seria inadmissível num Estado de Direito.
A avaliação que o Senhor Juiz de Instrução efectua na decisão recorrida mostra-se correcta, está explicitada de modo fundamentado e perfeitamente compreensível, não se verificando qualquer razão formal ou substantiva para a sua revogação, sendo, por isso, de manter o despacho de não pronúncia do arguido.
*

III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em não conceder provimento ao recurso interposto pelo assistente e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo assistente, fixando-se em 3,5 UC a taxa de justiça (arts. 515.º, n.º 1, al. b), do CPPenal e 8.º do RCP e tabela III anexa).


Porto, 25 de Outubro de 2023
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Lígia Trovão
Eduarda Lobo
______________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] No despacho de arquivamento considerou-se prescrito o procedimento criminal relativamente ao crime de difamação, nada tendo sido requerido a esse propósito no requerimento para abertura da instrução.
[3] A Lei 26/2023, de 30-05, agravou o limite máximo das penas de prisão e de multa para 3 (três) anos e 360 (trezentos e sessenta) dias de multa, respectivamente, no caso das als. b) e d) do n.º 1 do art. 192.º do CPenal, regime claramente mais desfavorável ao arguido, mas sem reflexos ao nível dos prazos de prescrição.
[4] Cf. Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, https://ciberduvidas.iscte-iul.pt e Dicionário Priberam https://dicionario.priberam.org.
[5] Sobre a questão, com enunciação das várias posições jurisprudenciais que os arts. 308.º e 283.º do CPPenal a este propósito suscitam, veja-se o acórdão do TRP de 23-11-2022, relatado por Pedro Afonso Lucas no âmbito do Proc. n.º 81/20.0PAPVZ.P1, acessível in www.dgsi.pt.
[6] Relatado por Abílio Ramalho no âmbito do Proc. n.º 1450/11.2TACBR.C1, acessível in www.gdsi.pt.
[7] Relatado por Maria Leonor Botelho no âmbito do Proc. n.º 884/13. 2 TAMTA.E1, acessível in www.gdsi.pt.
[8] Cf. acórdão do TRP de 06-02-2019, relatado por Francisco Mota Ribeiro no âmbito do Proc. n.º 3827/16.8JAPRT.P1, acessível in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2008, anotação ao art. 192.º pág. 521.
[9] Idem, anotação ao art. 14.º, pág. 92.
[10] Cf. as duas notas antecedentes.
[11] In Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 735.