Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3487/12.5TBVFR-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
DIREITO DE RETENÇÃO
HIPOTECA
Nº do Documento: RP201506013487/12.5TBVFR-B.P1
Data do Acordão: 06/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I- A sentença proferida em sede de acção declarativa que reconheça ao credor reclamante a existência do direito de retenção não constitui caso julgado contra o credor hipotecário que não interveio nessa acção, não lhe sendo por isso oponível.
II- Todavia, não tendo o credor hipotecário, em sede de reclamação de créditos, deduzido qualquer impugnação ao crédito garantido pelo direito de retenção, conforme lhe competia e com base em qualquer outro fundamento, para além dos elencados nos artigos 729.º e 730.º do CPCivil, dever-se-á ter como reconhecido o crédito assente nesse direito de retenção e graduá-lo em conformidade.
III- O crédito assim reconhecido prefere nos termos do artigo 759.º, nº 2 do CCivil à hipoteca.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3487/12.5TBVFR-B.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira-4º Juízo Cível.
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Caimoto Jácome
2º Adjunto Des. Macedo Domingues
Sumário:
I- A sentença proferida em sede de acção declarativa que reconheça ao credor reclamante a existência do direito de retenção não constitui caso julgado contra o credor hipotecário que não interveio nessa acção, não lhe sendo por isso oponível.
II- Todavia, não tendo o credor hipotecário, em sede de reclamação de créditos, deduzido qualquer impugnação ao crédito garantido pelo direito de retenção, conforme lhe competia e com base em qualquer outro fundamento, para além dos elencados nos artigos 729.º e 730.º do CPCivil, dever-se-á ter como reconhecido o crédito assente nesse direito de retenção e graduá-lo em conformidade.
III- O crédito assim reconhecido prefere nos termos do artigo 759.º, nº 2 do CCivil à hipoteca.
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I-RELATÓRIO

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Por apenso à execução comum nº 3487/12.5TBVFR, em que é Exequente B…, Lda e Executada C…, SA, o Instituto da Segurança Social, I.P., veio reclamar o seu crédito na quantia de € 10.553,92, relativo a contribuições e quotizações não pagas como entidade empregadora, e respectivos juros e a D… veio reclamar um crédito no valor de € 4.075.841,19, acrescido de juros vincendos, alegadamente proveniente de mútuos com hipoteca e fiança sobre a fracção autónoma designada pela letra “M” descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia com o nº 3151/20041202-M e inscrita na respectiva matriz sob o artigo 3922-M que na execução foi penhorada.
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Cumprido o disposto no artigo 866.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil na redacção aplicável, nenhuma oposição veio a ser deduzida.
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A final foi proferida decisão que julgou verificados os créditos reclamados e os graduou pela forma seguinte:
- em primeiro lugar, o crédito reclamado pela D…;
- em segundo lugar, o crédito reclamado pelo Instituto da Segurança Social, I.P.
- em terceiro lugar, o crédito exequendo.
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Não se conformando com o assim decidido veio a exequente interpor o presente recurso, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
A. A exequente discorda com a douta sentença, que graduou em primeiro lugar, o crédito reclamada pela “D…”, em segundo lugar o crédito reclamado pelo “Instituto da Segurança Social, IP” e em terceiro e Último lugar, o crédito exequendo, da aqui Recorrente.
B. No requerimento executivo que esteve na origem dos presentes autos e com especial relevância foi alegado o seguinte:
“Por sentença proferida nos autos em apreço, foi a ora executada condenada a pagar à exequente a quantia de é” 120.000 euros, acrescida de juros, à taxa legal desde a citação, até integral pagamento-conforme sentença que segue em anexo, como Doc. 1;
Acontece que até à presente data, a executada não pagou aquele valor em que foi condenada e respectivos juros, que até ao presente momento, ascendem a € 2.324,65 euros;
Em consequência, assiste à exequente o direito de exigir da executada, o pagamento da quantia global de € 122.324,65 euros e juros vincendos, à taxa legal, até integral pagamento “;
C. Finalmente, através da mesma sentença, foi igualmente reconhecido à exequente, o direito de retenção sobre a fracção “M”, entrada ., da Rua …, …, freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia, inscrita na matriz sob o artigo 3697, letra “M” e registada a favor da Ré, na 2ª Conservatória de Registo Predial de Vila. Nova de Gaia, sob o n°3151/021204 (a mesma indicada penhora no presente requerimento executivo), para garantia do crédito da exequente e até total ressarcimento do valor acima identificado.
D. Resulta assim daquela sentença, a condenação da executada “C…, SA”, no pagamento à exequente da quantia de €: 122.324,65 euros, acrescido dos respectivos à taxa legal desde a citação até integral pagamento;
E. Mas igualmente, reconhece à ora exequente/recorrente o direito de retenção sobre fracção “M”, entrada ., da Rua …, …, freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia, inscrita na matriz sob o artigo 3697, letra “M” e registada a favor da Ré, na 2 Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o n°3151/021204;
F. Citada para se opor à execução, a executada não se pronunciou.
G. A exequente indicou à penhora e esta foi concretizada a 26/3/2013, da fracção autónoma acima identificada, objecto de direito de retenção por sentença reconhecido.
H. Posteriormente, o credor hipotecário “D…” veio reclamar um crédito no valor de €: 4.075.841,19 euros, alegadamente proveniente de mútuos com hipoteca e fiança sobre a fracção autónoma designada pela letra “M”, inscrita na matriz sob o artigo 3697, letra “M’ e descrita na 2 Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o n°3151/021204, que na execução foi penhorada;
I. Sendo certo, que este credor hipotecário, não veio impugnar o crédito da exequente/recorrente e a natureza do mesmo, limitando-se a pedir no final, que o seu crédito seja “... devidamente classificados, reconhecidos e graduados, a seu favor, no lugar que lhe compete segundo as disposições legais aplicáveis ...”;
J. De igual modo, o “Instituto da Segurança Social, IP” veio reclamar a quantia de €: 10.553,92 euros, relativa a contribuições e quotizações não pagas pela executada e também não impugnou o crédito da exequente/recorrente e a natureza do mesmo, apenas pedindo o seu reconhecimento e graduação, no lugar que lhe competir;
K. Ou seja, nenhum destes credores invocaram a preferência dos seus créditos, em relação ao crédito da exequente/recorrente;
L. O Tribunal “a quo” não atentou no alegado no requerimento executivo, nem no título que lhe serve de base, pois não se pronunciou sobre o invocado direito de retenção que à Exequente foi judicialmente reconhecido, violando regras imperativas e que devem ser aplicadas ao caso em concreto;
M. Incorrendo assim a sentença recorrida, numa nulidade por omissão de pronúncia (Cfr. Artigo 615, n.° 1, al. d) do N.C.P.C..
N. Em consequência, esta sentença graduou erradamente o crédito reclamado pela exequente/recorrente, em último lugar, violando assim a própria natureza daquele verdadeiro direito real de garantia.
O. O Tribunal “a quo” tinha todos os elementos e fundamentação suficientes para graduar o crédito exequendo em 1º lugar, tendo proferido contudo sentença em que graduou tal crédito em último lugar;
P. Isto posto, a Recorrente considera que ocorreu, uma incorrecta graduação do seu crédito, porquanto o mesmo deveria ter sido graduado em primeiro lugar, nos termos do disposto nos artigos 7550, n°1, al. f), 759°, nº 2 e 749º, n.° 1 do C. Civil.
Q. Nesta conformidade, a sentença recorrida incorre em omissão e incorrecta interpretação e aplicação das citadas normas legais à factualidade alegada e provada, decorrente do preenchimento dos requisitos do direito de retenção reconhecido à Recorrente.
R. Com efeito, no confronto entre o crédito garantido pelo direito de retenção e o crédito garantido com hipoteca, deve o primeiro prevalecer sobre este último;
S. O direito de retenção é um direito conferido ao credor, que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor, de não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também, de executar a coisa e se pagar à custa do valor dela, com preferência sobre os demais credores, incluindo aqueles que estejam garantidos por hipoteca registada com data anterior-Ac. STJ de 26/2/1992 (processo n°081497) e Prof. Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 579;
T. Trata-se de um direito real de garantia-e não de gozo-em virtude da qual o credor fica com um poder sobre a coisa de que tem a posse, o direito de a reter, direito que, por resultar apenas de uma conexão eleita pela lei, e não por exemplo da própria natureza da obrigação, representa uma garantia directa e especialmente concedida pela lei-Cfr. STJ de 17/04.
U. Nos termos do disposto no artigo 759°, n°1 do CC, recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respectivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer um credor hipotecário, acrescentando o n°2, que o direito prevalece neste caso sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente.
V. Também a doutrina reitera que o credor que tenha um crédito relacionado, nos termos legalmente previstos, com a coisa retida, a lei reconhece-lhe um direito real de garantia, válido erga omnes e atendível no concurso de credores, sendo-lhe assegurada a posição preferencial que legitima a recusa de abrir mão da coisa, até ao pagamento do seu crédito-Cfr. Calvão da Silva in “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”.
W. In casu, o crédito exequendo não goza apenas a garantia real de penhora, mas simultaneamente, está garantido pelo direito real de retenção judicialmente reconhecido-artigo 755°, n°1, al. f) CC.
X. Deveria assim o crédito da exequente /recorrente ser graduado em primeiro lugar e preferencialmente, em relação aos demais credores e desde logo, o credor hipotecário.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Após os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão a decidir:
a)- saber se o crédito da exequente gozando do direito real de retenção deve ser graduado antes dos outros créditos reclamados e, mais concretamente, antes do crédito reclamado pela D….
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
1º)-Na execução a que estes autos vão apensos está penhorada a fracção autónoma designada pela letra “M”, inscrita na matriz sob o artº 3922-M e descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia com o nº 3151/20041202-M, da freguesia ….
2º)- Sobre essa fracção autónoma estão inscritas as seguintes garantias reais:
a)- pela Ap. 5, de 20 de Março de 2006, uma hipoteca voluntária, a favor do credor reclamante D…, para garantia de empréstimo no valor de € 2.250.000,00, montante máximo assegurado de € 3.448.125,00, ao juro anual de 13,75%, acrescido de 4% na mora a título de cláusula penal.
b)- pela Ap. 844, de 5 de Junho de 2009, uma hipoteca voluntária, a favor do credor reclamante D…, para garantia de empréstimo no valor de € 1.500.000,00, montante máximo assegurado de € 2.298.750,00, ao juro anual de 13,75%, acrescido de 4% na mora a título de cláusula penal.
c)- correspondente à Ap. 2723, de 11 de Março de 2013, uma penhora, a favor da Exequente.
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III. O DIREITO

Tendo em conta a factualidade supra descrita apreciemos então a única questão que vem posta no recurso:
a)- saber se o crédito da exequente gozando do direito real de retenção deve ser graduado antes dos outros créditos reclamados e, mais concretamente, antes do crédito reclamado pela D….
É certo que, no corpo alegatório e nas respectivas conclusões, a recorrente vem ainda assacar à decisão recorrida a nulidade prevista no artigo 615.º, nº 1 al. d) do CPCivil, ou seja, omissão de pronúncia por o tribunal nada ter referido sobre o direito de retenção de que gozava a exequente sobre a fracção descrita na fundamentação factual.
Cremos porém, salvo o devido respeito, não se verificar tal nulidade, pois que, o tribunal recorrido não tinha que se pronunciar, em concreto, sobre essa questão, o que tinha que fazer era proceder à verificação e graduação dos créditos onde, naturalmente, devia ter levado em linha se o crédito da exequente gozava, ou não, do direito de retenção sobre a fracção “M” e que tinha sido objecto de penhora, graduando em conformidade os créditos reclamados.
Isto dito, vejamos então se a graduação de créditos se mostra correcta na forma sentenciada e da qual dissente a exequente apelante.
Como emerge do requerimento executivo o título dado à execução é a sentença proferida nos autos principais de que estes e a respectiva execução são apenso.
Ora, na referida sentença foi reconhecido à exequente apelante o direito de retenção sobre a fracção “M”, entrada ., da Rua …, …, freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia, inscrita na matriz sob o artigo 3697, letra “M” e registada a favor da Ré, na 2ª Conservatória de Registo Predial de Vila, Nova de Gaia, sob o n°3151/021204.
Como se sabe o direito de retenção é o “direito conferido ao credor que se encontra na posse de certa coisa pertencente ao devedor de não só recusar a entrega dela enquanto o devedor não cumprir, mas também de executar a coisa e de se fazer pagar à custa do valor dela, com preferência aos demais credores”[1].
Este tem a natureza de direito real e uma vez verificada a situação factual susceptível de gerar o direito, o devedor obtém o direito de ser pago preferencialmente pelo valor da coisa retida.[2]
Todavia, a doutrina[3] e a jurisprudência[4] tem considerado de forma maioritária que os credores hipotecários que não tendo sido partes na acção declarativa que reconheceu determinado direito de retenção, a sentença respectiva não lhes é oponível enquanto terceiros.
Com efeito, embora não pondo em causa a validade do crédito hipotecário, o certo é que afecta a sua consistência, por oneração do património do devedor, opondo-se ao direito de um terceiro juridicamente interessado, incompatível, em alguma medida, com o direito de retenção sobre a coisa hipotecada, pelo que, nestas circunstâncias o credor hipotecário pode por em causa e impugnar o direito de retenção quando reclama o seu crédito em acção executiva, ao abrigo do artigo 788.º, nºs 3 e 4 CPCivil.
Como refere Lopes Cardoso[5] “(…) de pouco serviria o direito de reclamar um crédito com garantia real se não fosse acompanhado do direito de atacar a prioridade dos outros. Ao impugnar os créditos o reclamante não defende os direitos dos executados; defende os seus”.
Ora, resulta da lei que se o crédito estiver reconhecido por sentença que tenha força de caso julgado em relação ao impugnante, a impugnação só pode basear-se em algum dos fundamentos mencionados nos artigos 729.º e 730.º na parte em que forem aplicáveis (artigo 789.º, nº 5, do mesmo diploma legal).
Todavia, e por argumento à “contrario sensu”, se o direito de crédito reclamado não estiver reconhecido por sentença que tenha força de caso julgado em relação ao impugnante, a impugnação pode basear-se em qualquer pertinente fundamento.
Portanto, a falta de intervenção do reclamante hipotecário na acção declarativa não lhe retira a possibilidade de impugnar o direito de retenção do exequente sobre o imóvel penhorado na acção executiva, devendo fazê-lo no próprio articulado em que deduz a reclamação de créditos, sem o que a sua defesa ficará precludida.
No caso em apreço o credor hipotecário, D…, em sede de reclamação de créditos, não deduziu qualquer impugnação ao crédito garantido pelo direito de retenção, conforme lhe competia e com base em qualquer outro fundamento, para além dos elencados nos artigos 729.º e 730.º do CPCivil e, como tal, dever-se-á ter como reconhecido o crédito assente nesse direito de retenção e graduá-lo em conformidade.
Acontece que, na sentença recorrida e quanto ao crédito da exequente apelante apenas se atentou na garantia que lhe conferia a penhora, tendo-se olvidado, por completo, que o mesmo também gozava da garantia conferida pelo direito de retenção, direito esse reconhecido por sentença, ou seja, postergou-se o estatuído no artigo 759.º, nº 2 do CCivil.
Não tem sido pacífica a aplicação da regra ínsita no nº 2 do preceito, relativamente à concorrência do direito de retenção com uma hipoteca constituída anteriormente, pela “aparente situação de injustiça” que tal regra suscita.
Acontece que, conforme já foi decidido na jurisprudência, onde a questão tem sido debatida abundantemente, não se vislumbra que a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca, mesmo que esta tenha sido registada anteriormente, ofenda qualquer dos princípios e valores constitucionais, como sejam o da proporcionalidade, o da igualdade e o da confiança, razão pela qual o art. 759.º nº 2 do Cód. Civil não enferma de inconstitucionalidade[6].
Também na doutrina tem sido justificada a tomada de posição do legislador, ao optar de forma clara por dar maior protecção ao direito de retenção relativamente à hipoteca, ainda que anteriormente constituída, fazendo apelo a razões económicas, vividas na época em que se procedeu às alterações legislativas.
Aceita-se, assim, uma aplicação ampla do preceito, sem distinções de tratamento que nele não figuram. Ainda que se reconheça que a solução não é pacífica, como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela[7] esses autores acabam por admitir genericamente que a anterioridade da hipoteca não tem relevância, em atenção à “natureza dos actos que dão lugar aos créditos do detentor da coisa”.
Como refere Eduardo dos Santos[8] “Parece evidente que, se a hipoteca se constituiu posteriormente ao direito de retenção, atribuir preferência ao credor hipotecário é locupletá-lo à custa do retentor. Não tão claro, mas ainda parece evidente que, se a hipoteca é anterior, mesmo assim o credor hipotecário, sendo o preferente, poderá enriquecer-se à custa do titular do direito de retenção, o qual fez despesas com a coisa ou sofreu prejuízos por causa dela. Razões por que nos parece ser boa a doutrina do nº 2 do artº 759.º ”.
Como se decidiu também no Ac. STJ 18.12.2007[9] “Esta opção legislativa, que concede preferência ao titular do direito de retenção sobre outros credores, designadamente entidades bancárias munidas de hipotecas mesmo anteriormente registadas (…), visa (…) não só a defesa do consumidor como a dinamização do mercado de construção no sentido de tornar mais seguro o comércio jurídico, possibilitando o ressarcimento decorrente da frustração de uma fundada expectativa”.
A prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca encontra, assim, a sua razão de ser precisamente na especial conexão que existe entre o imóvel e o crédito garantido pelo direito de retenção.
Como refere Almeida Costa[10] “tratou-se, sem dúvida, de uma deliberada opção legislativa, dentro de uma política de defesa do consumidor”.
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É certo que se podem colocar reservas a esta solução legal, à semelhança do que se fez quanto aos privilégios imobiliários gerias.
Mas a situação de prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca não é equiparável à dos privilégios imobiliários gerais, a qual justificou a intervenção do Tribunal Constitucional que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de normas que conferiam à Fazenda Nacional e à Segurança Social tal tipo de privilégios na interpretação de que estes preferem à hipoteca nos termos do artigo 751.º do Cód. Civil[11].
Nestes arestos, a argumentação do Tribunal Constitucional centrou-se no facto dos créditos privilegiados não terem conexão alguma com a coisa objecto da garantia, e, ainda, porque o princípio da confidencialidade tributária impossibilita os particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou não devedoras à Fazenda Nacional ou à Segurança Social.
Situação bem diferente da que se verifica com o direito de retenção, em que a prevalência deste sobre a hipoteca encontra a sua razão de ser precisamente na especial conexão que existe entre o imóvel e o crédito garantido pelo direito de retenção[12]
Não colhe também aqui a argumentação dos que elegem a publicidade como valor prioritário.
Na verdade, o apelo às normas e princípios de direito registral não tem qualquer justificação, perante um direito, como é o “direito de retenção”, que se traduz em actos de habitação ou de posse, em si mesmos públicos.
Como bem se refere no acórdão do S.T.J. de 18-09-2007[13] “a não registabilidade do direito de retenção de que beneficia o promitente-comprador de um imóvel, por ter havido “traditio”, não exprime a existência de “ónus oculto”, em contraponto com o regime da hipoteca voluntária que tem necessariamente de ser levada ao registo (…).
(…) Como escreve Galvão Teles (…), os credores não podem queixar-se pelo facto de o direito de retenção não estar sujeito a registo. Em primeiro lugar, porque o registo não é aplicável a todas as coisas, inclusive a todos os imóveis (pense-se nos privilégios creditórios). Depois, e esta é uma ideia relevante, o direito de retenção envolve por si publicidade de facto. Os credores hipotecários só têm que averiguar quem na realidade habita ou tem a posse do prédio. Não se diga que estão em causa direitos fundamentais, que não é o caso. Nem se pode falar de direitos análogos a direitos, liberdades e garantias. Está em causa apenas a organização económica dos bens. Ora, não se vê que a concessão do direito de retenção ao promitente-comprador viole qualquer desses direitos dos credores hipotecários”.
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Diante do exposto, torna-se evidente que o crédito da apelante exequente prefere em relação à hipoteca e esta, como decidido, prefere em relação ao crédito com privilégio imobiliário geral reclamado pelo Instituto da Segurança Social, I.P.
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Procedem, assim, as conclusões formuladas pela exequente apelante e, com elas, o respectivo recurso, em consequência do que se terá que alterar a ordem porque foram graduados os créditos reclamados nos termos que se deixaram expostos.
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IV-DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e em consequência altera-se a sentença de graduação de créditos nos seguintes termos:
Pelo produto da venda da fracção “M”, entrada ., sito na Rua …, …, freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia, inscrita na matriz sob o artigo 3697, letra “M” e registada a favor da executada, na 2ª Conservatória de Registo Predial de Vila Nova de Gaia, sob o n°3151/021204, dar-se-á pagamento aos créditos reclamados e ao crédito exequendo por esta ordem:
Em 1º lugar ao crédito reclamado pela apelante exequente;
Em 2º lugar, o crédito reclamado pela D…;
Em 3º lugar o crédito reclamado pelo Instituto da Segurança Social, I.P.
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Custas da apelação pelos apelados que nesta instância de recurso ficaram vencidos (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 1 de Junho de 2015.
Manuel Domingos Fernandes
Caimoto Jácome
Macedo Domingues
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[1] Antunes Varela, Das obrigações em Geral, II, 7ª Ed., 579 e no mesmo sentido J. Calvão da Silva, cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Almedina, 2001, pp. 345-347.
[2] Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão-Garantias das Obrigações, 2ª edição, Coimbra, Almedina, 2008, 239-244 e Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte-Garantias de Cumprimento, 5ª edição, Coimbra, Almedina, 2006, pag. 226-227.
[3] Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, ob. cit. pág. 230.
[4] Cfr. entre outros, podem consultar-se: Ac. Rel. Coimbra 02 de Fevereiro de 1999, CJ XXIV, I, 19-22; Ac. STJ de 14 de Setembro de 2006, Proc. 06B2468; Ac. STJ 22 de Junho de 2010, Proc. 326/04.4TBOFR.C1.S1; Ac. STJ 20 de Maio de 2010, Proc. 13465/06.8YYPRT-A.P1.S1; Ac. STJ 20.10.2011 – Proc. 2313/07.1TBSTR-B.E1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt
[5] In Manual da Acção Executiva, 3ª Ed. Almedina, pág. 512.
[6] Cfr. Acórdão desta Relação de 21.10.2004, relatado por Martins Rodrigues Pires e Ac. STJ de 12-09-2006 -Processo: 06A2136, relatado pelo Exº Conselheiro, Faria Antunes.
[7] C. Civil Anotado vol. I, 4ª ed. Pp. 780.
[8] Curso de Direitos Reais, II–Direitos Reais de garantia e de aquisição, ed. polic., Universidade Livre de Lisboa, Lisboa, 1986, pp.271-272.
[9] In www.dgsi.pt.
[10] Contrato promessa-Uma síntese do regime actual-3ª edição-Almedina, pag. 62.
[11] Cfr. Acórdãos nºs 362/2002 e 363/2002 do Tribunal Constitucional, de 17.9.2002.
[12] Cfr. Ac. do STJ Procº 36365, de 16-03-99 e Ac. desta Relação de 21.10. 2008 Procº 0822499 in www.dgsi.pt.
[13] In www.dgsi.