Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3036/05.1TDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA GRAÇA SILVA
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
ASSISTENTE
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RP201011173036/05.1TDPRT.P1
Data do Acordão: 11/17/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A pretensão do recorrente para que se faça a avaliação da justificação do despacho de arquivamento só seria possível mediante a imputação, ao arguido, de factos concretos que considerasse indiciados e susceptíveis de integrar os elementos do tipo de crime que lhe aponta.
II - A deficiência no cumprimento do ónus de adequada formulação do requerimento para abertura da instrução [RAI] não dá lugar a convite para aperfeiçoamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3036/05.1TDPRT.P1
(Tribunal de Instrução Criminal do Porto – .º juízo)
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Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
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I – Relatório:
Instaurado que foi processo criminal contra o denunciado B………., pela prática, entre o mais, do crime de denúncia caluniosa, foi proferido despacho de arquivamento, pelo Ministério Público, com fundamento em que os factos apurados não indiciam o cometimento de ilícito.
A assistente C………. requereu instrução, que foi declarada aberta. De seguida, pelo Mmº Juiz de Instrução foi proferido despacho a rejeitar o requerimento de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal, com fundamento em que o dito requerimento não contém a narração de factos que fundamentem a aplicação, ao arguido, de uma pena ou medida de segurança, não sendo legal proferir de despacho de aperfeiçoamento.
Contra esse despacho insurgiu-se a assistente, apresentando recurso, que concluiu nos termos que infra se transcrevem:
«1. Vem o presente Recurso interposto do Despacho proferido pelo Mm.° Juiz de Instrução Criminal, proferido em 6 de Abril de 2010, nos termos do qual se decidiu rejeitar o Requerimento de Abertura de Instrução Criminal (doravante "RAI") apresentado pela ora Recorrente por inadmissibilidade legal do mesmo.
2. Entendeu o Tribunal a quo que o RAI apresentado pela ora Recorrente não se apresenta estruturado como uma acusação, omitindo os factos que se imputam ao ora Recorrido, não permitindo a conclusão sobre que os factos praticados objectiva e subjectivamente integradores do crime de denúncia caluniosa.
3. Concluindo a decisão recorrida que "O requerimento apresentado, enferma de nulidade, prevista no art. 283º n.º 3 do C.P.P. para o qual remete o art. 287º nº 2, pois não contém a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança: art. 283º, n.° 3 al. b do C.P.P.
4. Entende a Recorrente que, salvo o devido respeitos por opinião contrária, em face dos contornos concretos da decisão de arquivamento proferida pelo Ministério Público e o RAI apresentado, a decisão proferida não tem qualquer acolhimento nas normas de Processo Penal, nem na própria jurisprudência que versa precisamente sobre estas questões.
5. De acordo com o disposto no art. 287.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas c) e d) do n.° 3 do art.283.° do Código de Processo Penal.
6. Assim, por aplicação do disposto nas als. c) e d) do art. 283.°, n.° 3 do Código de Processo Penal o Requerimento de Abertura de Instrução quando for apresentado pelo Assistente deve ainda conter i) "A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada" e ii) "A indicação das disposições legais aplicáveis".
7. O crime que a Assistente pretende ver imputado ao Arguido, ora Recorrido, é o crime de Denúncia caluniosa, p. e p. no art. 365.° do Código Penal, sendo elementos constitutivos deste crime, como, aliás, bem reconhece o douto Despacho a quo, i) a existência de um procedimento criminal ou disciplinar; ii) a prova da falsidade dos factos imputados; iii) a consciência dessa falsidade por parte do agente.
8. Devidamente analisado o Despacho de Arquivamento proferido pelo Ministério Público verifica-se que, quanto aos elementos que constituem o crime de Denúncia Caluniosa, aquela decisão não contesta que: i) o Arguido apresentou, em 21 de Abril de 2004, uma participação criminal contra a Assistente, em nome da sociedade D………., S.A,, da qual era sócio-gerente, imputando-lhe a prática dos crimes de Falsificação de Documento, Falsidade de Testemunho, Perícia, Interpretação ou Tradução e de Abuso de Poder, respectivamente, p. e p., nos arts. 256.°, 360.° e 382.°, todos do Código Penal (cfr. fls. 132 e art. 17.° do RAI); ii) Na sequência da referida participação, a Assistente, ora Recorrente foi constituída Arguida e contra ela foi instaurado o competente procedente criminal (cfr. art. 18.° do RAI); iii) 0 referido procedimento criminal veio a ser objecto de um Despacho de Arquivamento proferido em 30 de Junho de 2006 (cfr. fls. 82 e 83 e arts. 19.° a 21.° do RAI).
9. Razões porque, no requerimento de abertura de instrução a ora Recorrente, se limitou a invocar as razões de facto e de direito que, por referência aos elementos de prova indiciários constantes dos autos, eram susceptíveis de demonstrar a falsidade dos factos imputados à Assistente e a consciência que o Arguido tinha dessa mesma falsidade, ou seja, visava-se apenas a sindicância judicial da motivação do Arguido, ou seja, a apreciação da verificação dos elementos subjectivos que consubstanciam o crime de Denúncia Caluniosa.
10. Conforme flui de uma atenta leitura do requerimento apresentado pela Assistente, ora Recorrente, os seus arts. 20.° a 31.°, 56.° e 57.° tratam precisamente esta questão, fazendo concreta e directa referência a factos que precisamente demonstram a consciência que o Arguido tinha sobre a falsidade dos factos que resolveu imputar à Assistente perante as instâncias judicias com a deliberada intenção de que contra ela fosse movido um procedimento criminal –o que logrou conseguir.
11. Com efeito, perante as razões que fundamentaram o arquivamento deduzido -que sobretudo consistem no entendimento de que i) o arquivamento do processo instaurado contra a Assistente na sequência da queixa apresentada pelo Arguido, ii) o silêncio deste naqueles autos e iii) a desistência de queixa que posteriormente apresentou, argumentariam a favor do arquivamento, por se considerar que não existiam indícios suficientes da prática do crime de denúncia caluniosa – o RAI apresentado visou sobretudo demonstrar as razões de facto e de Direito de discordância relativamente à não acusação pelo Ministério Público, identificando os meios de prova e as questões de Direito que impunham uma decisão precisamente inversa.
12. De resto, os factos que se imputam ao Arguido são de extrema simplicidade e derivam directamente da falsa participação criminal resolveu apresentar contra a Assistente, com a deliberada intenção de que esta fosse injustamente perseguida pelas instâncias criminais, como forma de retaliação pelas decisões desfavoráveis que colheu no INPI – factualidade suficientemente narrada no RAI.
13. O art. 286.°, n.° 1 do Código de Processo Penal que delimita a finalidade e o âmbito da instrução determina que "a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento", pelo que não se pode deixar de entender que a principal finalidade do requerimento de abertura de instrução, seja ele apresentado pelo Arguido ou pelo Assistente – é precisamente indicar as razões de discordância perante a decisão do Ministério Público no final do Inquérito.
14. A fórmula de apresentação desse requerimento estará assim sempre dependente dos fundamentos concretos apontados no Despacho do Ministério Público, sendo por demais evidente que, se os factos imputados ao Arguido não são discutidos e, por conseguinte, imediatamente perceptíveis pelo Juiz de Instrução Criminal, como acontece no caso vertente, não poderá este demitir-se de os apreciar, escudando-se em argumentos meramente formais.
15. Em face do exposto, não se pode deixar de concluir que do presente RAI, resultam suficientemente definidos, quem foi o agente do crime como que factos é que o mesmo praticou e quando os praticou, enunciando ainda os elementos probatórios e as razões de Direito que foram desatendidas no Despacho de constantes dos arts. 287.°, n.° 2 e 283.°, n.° 3, ais. a) e b) do Código de Processo Penal.
16. Neste mesmo sentido, citam-se as decisões proferidas pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de 31.03.2010, Tribunal da Relação de Coimbra, de 24.11.2004 (in www.dgsi.pt – Processo n.° 2886/04), e do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.07.2006 (in www.dqsi.pt – Processo n.° 1931/06), nos termos do qual se esclarece que sempre que, apesar das deficiências, o Juiz possa conhecer claramente o que está em causa, que factos se pretende ver apreciados, a instrução deverá realizar-se, uma vez que o apelo ao formalismo do requerimento de abertura de instrução nunca deve ser definitivo.
17. 0 requerimento de abertura de instrução delimita o objecto da instrução, porém, esta delimitação não se pode confundir com as rigorosas exigências impostas para a acusação. No essencial, o que importa "é que o juiz, pelo requerimento, saiba claramente que factos estão em causa, quem são os seus agentes e as razões porque o assistente entende que deve haver acusação".
18. Verificando-se que no RAI apresentado são suficientemente perceptíveis os factos imputados, a descrição do lugar, do tempo e da própria motivação do Arguido no cometimento dos mesmos, bem como as normas legais aplicáveis, em plena harmonia e conformidade com as exigências formais impostas pelos arts. 283.°, n.° 3, als. b) e c) e 287.°, n.° 2 do Código de Processo Penal, não deveria o Tribunal a quo ter rejeitado a instrução requerida com argumentos meramente formais desadequados aos presentes autos.
19. Deste modo, conclui-se que o Mm.° Juiz de Instrução Criminal se demitiu de apreciar as questões suscitadas no requerimento de abertura de instrução que se prendem precisamente sobre os elementos subjectivos que constituem o crime de denúncia caluniosa, rejeitando liminarmente a Instrução, sem cuidar de avaliar se a decisão de arquivamento proferida pelo Ministério Publico se justificava perante os elementos de prova constantes nos autos e as disposições legais aplicáveis no caso concreto.
20. Deste modo não se pode deixar de concluir que a decisão recorrida viola o disposto nos arts. 286.° e 287.°, n.° 3 do Código de Processo Penal, impondo-se a revogação do Despacho a quo e a sua subsequente substituição por outro que admita a abertura da instrução nos termos requeridos.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. certamente suprirão, deverá ser revogado o Despacho recorrido e, em consequência, ser substituído por outro que reconheça a legitimidade do Recorrente para prosseguir nos presentes autos como Assistente e determine a abertura da Instrução, pois, só assim se fará a verdadeira e costumada justiça».
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Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações nos seguintes termos:
«1- A instrução, como fase facultativa do processo, não é um novo inquérito, uma nova fase policial ou de averiguações, mas uma fase materialmente judicial e com a finalidade de comprovar judicialmente, através de uma audiência rápida e com um formalismo reduzido ao mínimo indispensável, a decisão do M°P°, de acusar ou de não acusar os arguidos previamente determinados.
2- O requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, na sequência de despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público no encerramento do inquérito – no que tange a crimes de natureza semipública e pública – constitui substancialmente uma acusação alternativa ao despacho de abstenção do MP, razão pela qual tem a natureza de acusação material e uma função delimitadora do objecto do processo.
3- Deve ser rejeitado ou indeferido, por falta de objecto, o requerimento de abertura de instrução que não contenha matéria fáctica susceptível de integrar uma acusação — Ac. da RL de 03.07.2003, in CJ, XXVIII, t. 4, p. 127. Por isso, a instrução requerida pelo assistente sem delimitação do campo factual sobre que ela há-de versar, é inexequível – entre muitos, os Acs. da RL de 31.01.2008 e de 01.04.200826.
4- Pois que, a inobservância, no requerimento de abertura da instrução produzido pelo assistente, das exigências estabelecidas nas als. b) e c) do n.° 3 do art. 283.° do CPP, conduz à sua rejeição com o fundamento na inadmissibilidade legal da instrução.
5- Pelos motivos expostos e pelos que decorrem, e bem melhor produzidos, do douto despacho recorrido, tendo sido cumpridas e aplicadas correctamente as normas dos art. 32.°, n.° 5, da CRP, 283.°, n.° 1, do Código Penal, 287.°, n.° 2 e 3, com referência ao art. 283.º , n.° 3, als. b) e c), ambos do Código de Processo Penal, propendemos pela manutenção do despacho em crise e consequente improcedência do recurso interposto pelo assistente».
O denunciado B………. contra-alegou também, concluindo em extensos artigos, que são uma repetição da motivação. No essencial, manifestou uma opinião em termos concordantes com a contra-alegação do Ministério Público e invocou ainda que não chegou a ser constituído arguido nem a prestar declarações nos autos, que não se verifica o elemento da consciência da falsidade da imputação que dirigiu, ao fazer a participação criminal contra a assistente e que o crime terá prescrito em Abril de 2009.
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Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto subscreveu a contra-alegação do Ministério Público.
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II- Questões a decidir:
Conforme resulta do artº 412º/1, do CPP – na redacção dada pelo DL nº 303/2007, de 24/8, aplicável aos autos – a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pelas conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. Deste dispositivo se retira, unanimemente, que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso [1], exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso [2].
A questão colocada pela recorrente é apenas a de saber se no requerimento de abertura de instrução estão ou não vertidos, de forma satisfatória ao cumprimento do disposto no artº 287º e 283º/3-b) e c), os factos imputados ao arguido, as circunstâncias do lugar, tempo e motivação do cometimento desses factos e as normas legais aplicáveis.
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III- Fundamentação de facto:
Para apreciação do recurso há que considerar que:
1- Dentre o mais, consta do despacho de arquivamento, proferido pelo Ministério Público que: «Referia e demonstrava a queixosa que, na concretização daquele desígnio, o arguido deu entrada no Departamento de Investigação e Acção Penal do Porto, em 21 de Abril de 2004, da denúncia criminal que consta de fls.46 a 55 destes autos e que aqui damos por reproduzida, na qual, imputava a C………., jurista que ao serviço do aludido Instituto, dera o parecer técnico relativo á pretendida declaração de caducidade de marca, que resultara desfavorável à pretensão do arguido, não obstante a referida técnica jurista o houvesse emitido com a mesma isenção e independência com que o daria noutro qualquer processo na mesma situação.
Na sequência de tal queixa, que deu origem ao inquérito crime n° 2601/04.9TDPRT a mesma C………. foi constituída e interrogada como arguida no âmbito desse processo.
Contudo porque no âmbito daquele processo a mesma referisse que tinha dado o parecer técnico de caducidade de marca acima referido, com a independência e isenção técnica que lhe era exigível tanto naquele como em qualquer outro processo e o arguido que contra ela se havia queixado, nem sequer se tivesse depois apresentado para ser ouvido e apresentar qualquer prova convincente que possibilitasse demonstrar o contrário ou sequer a razão de ser e fundamento das suas suspeitas, o aludido inquérito veio a ter despacho de arquivamento em 30/06/2006, conforme resulta do despacho de fls. 82 e 83, que aqui se dá por integralmente reproduzido, sem que portanto tenha o Ministério Público procedido a encetar o procedimento criminal contra a mesma Drª C……….
Compulsado o teor do aludido inquérito e o despacho final nele proferido, verifica-se que já depois de ter formalizado tal queixa o referido B………., foi aos autos desistir da mesma, desistência essa à qual não foi possível porém atribuir efeito no sentido do imediato arquivamento dos autos, visto que os crimes que inicialmente denunciara e de cuja denúncia era sua vontade desistir tinham natureza pública, que impedia ao Ministério Público transigir arquivando de imediato os autos sem sequer investigar.
Da análise do referido processo, verifica-se também que nem sequer foi nele possível ouvir o mesmo B………. por forma a saber as razões que o levaram a apresentar tal denúncia, o conhecimento que tinha do alcance jurídico da mesma e a sua compreensão dos factos, pelo que inclusivamente ficamos sem saber se teria sido ele próprio a elaborá-la e redigi-la, ou antes, o que mais até nos parece, algum advogado que a D……… houvesse contratado para a representar .
Por outro lado, sob ponto de vista do dano, prejuízo, vergonha embaraço e preocupação criado à queixosa e jurista C………., pelo facto de ter chegado a ser constituída como arguida, temos também de considerar que sendo jurista, conhecia também da simplicidade e naturalidade com que á época o C.P.P., para a mera audição de todo e qualquer denunciado, impunha o dever e direito da sua previa constituição como arguido, sempre assegurando, de maneira que só pode ser totalmente evidente, pelo menos na fase de inquérito, que nem sequer chegou a ser ultrapassada (dado o dito arquivamento) o funcionamento da presunção de inocência do suspeito e a sujeição do processado a segredo de justiça. Aliás, se ponderarmos a circunstância, que também é verdadeira, de a agora queixosa ter sido a última de uma série de seus colegas a ser constituída como arguida, a partir da queixa formalizada pelo agora denunciado B………., que nem sequer quis persistir na mesma já que formulando a dita desistência, nem seque veio nunca aquele ou a estes autos, prestar quaisquer declarações, muito mais ténue, surge no seu caso concreto, a avaliação da gravidade que, em termos concretos, a tal queixa crime do denunciado, haja tido efeito no sentido objectivo de a caluniar .
Por tudo o exposto , considerando que à luz dos critérios jurídicos acima referidos e os factos apurados e provados nestes autos não são de molde a indiciar o cometimento por B………. de crime de denúncia caluniosa de que é suspeito por forma suficiente a que venha a ser com razoável probabilidade condenado, determino o arquivamento dos autos , nos termos do art.º 277° n° 2 do C.P.P».
2- Este é o teor dos artºs 17º a 31º, 56º e 57º do requerimento de abertura de instrução:
«17. Dúvidas não restam que o Arguido apresentou queixa-crime contra a ora Assistente pela prática dos crimes de Falsificação de documentos, Falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução e Abuso de poder, p. e p., respectivamente, pelos arts. 256.°, 360.° e 382.° do Código Penal.
18. Provado resulta igualmente de que fruto da aludida participação criminal, a ora Assistente foi constituída Arguida, prestou TIR e foi interrogada pela prática daqueles crimes que lhe foram imputados pelo ali Denunciante.
19. De igual modo, dos autos encontra-se igualmente demonstrado que o Inquérito ao qual deu azo a referida participação criminal foi - como não poderia deixar de ser - arquivado em 30.06.2006.
20. O que naturalmente se compreende, porquanto, a ora Assistente jamais praticou qualquer acto ilícito, quer no âmbito, quer fora do exercício das suas funções.
21. Arquivamento, aquele, que só veio, aliás, demonstrar a falsidade das imputações feitas à ora Assistente.
22. É inegável também que o Arguido, ali Denunciante, ao invés de recorrer das decisões do INPI junto do Tribunal de Comércio de Lisboa, nos termos legalmente previstos, resolveu não usar dessa faculdade e decidiu perseguir criminalmente os subscritores das decisões em causa, com a manifesta intenção de que contra eles fosse instaurado um processo judicial,
23. O Arguido, enquanto sócio gerente da Sociedade D………., aliás, habitual requerente de registos de marcas junto do INPI, muitas outras vezes no passado, não se conformando com as decisões proferidas, apresentou os competentes recursos, nos termos do art. 40º do CPI.
24. Não obstante tal faculdade – que bem conhecia – o Arguido decidiu deliberadamente perseguir criminalmente os funcionários subscritores do acto (entre estes a Assistente), iniciando uma verdadeira estratégia de intimidação, porventura, destinada a pressioná-los à prolação de decisões favoráveis às suas pretensões junto do INPI.
25. Tal foi o desígnio persecutório então pretendido pelo Arguido que este chegou inclusivamente a enviar um telefax ao INPI a solicitar, nos termos do disposto no art. 45º do Código de Procedimento Administrativo, a declaração de impedimento de agentes administrativos por forma a atingir também pessoalmente a ora Assistente,
26. Todavia, o Conselho de Administração daquela entidade deliberou indeferir o requerido por não se encontrarem reunidos os pressupostos exigidos para a declaração de impedimentos previstas nos arts. 44º e 45º do CPA, reforçando a confiança nas funcionárias visadas (cfr. doc. n.° 2 junto com a participação criminal).
27. Por outro lado, não carecerá de prova a natureza particularmente grave de que revestem as imputações feitas à Assistente na aludida participação criminal, tanto mais que respeitam ao exercício das funções públicas que então exercia.
28. Quanto a este ponto cumpre precisar que o Arguido ou a sociedade que representa, como não podia deixar, nunca foram beneficiados ou prejudicados pelo INPI ou pelos seus funcionários, sendo sempre as suas pretensões objecto de resposta fundamentada no estrito cumprimento da Lei.
29. Sucede apenas que, algumas das suas pretensões forma indeferidas, seja por ter requerido o registo de marca insusceptível de apropriação, seja, como no caso concreto que o motivou a apresentar a participação criminal contra a ora Assistente, por os técnicos terem entendido que não estavam reunidos os requisitos para a caducidade de uma marca.
30. Deve ainda referir-se que o Arguido, neste caso, reclamou inclusivamente para o Ministro da Economia, que veio corroborar a posição tomada pela entidade tutela, mantendo integralmente a decisão adoptada,
31. Pelo que, nunca o Arguido poderia estar convencido do cometimento dos ilícitos criminais que falsamente resolveu imputar à Assistente, bem sabendo que todos os actos por esta praticados se cingiram ao estrito cumprimento da Lei».
« 56. Dos autos resultam, pois, elementos bastantes que demonstram que o ora Arguido imputou à Assistente a prática de infracções que bem sabia não terem sido cometidas, movido por um mero intuito de retaliação e perseguição contra Assistente, pelo simples facto de esta ter tido intervenção num acto que foi do seu desagrado.
57. Decidiu, assim, denunciar a falsamente a prática de crimes contra a Assistente, com o deliberado propósito de que contra esta fosse instaurado um procedimento criminal – o que, logrou conseguir, tendo sido instaurado o Inquérito n.° 2584/04.5TDPRT!».
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V- Fundamentos de direito:
O processo penal Português tem uma estrutura eminentemente acusatória, por força da qual o objecto do julgamento é, tão-somente, o objecto da acusação (artº 32º/5, CRP). São os termos da acusação que fixam os poderes de cognição do Tribunal e os limites do caso julgado.
A este efeito se chama a vinculação temática do Tribunal e nele se inscrevem os princípios da identidade, unidade e consumpção.
Neste sentido o Prof. Figueiredo Dias defende que se «deve pois afirmar que o objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez, delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consumpção do objecto do processo penal (…). Os valores e interesses subjacentes a esta vinculação (…) constituem o cerne de um verdadeiro direito de defesa do arguido e deixam transparecer os pilares fundamentais em que se alicerça um Estado que os acolhe» [3]. «A acusação tem por função a delimitação do âmbito e conteúdo do próprio objecto do processo, é ela que delimita o conjunto de factos que se entende consubstanciarem um crime, estabelecendo assim os limites da investigação judicial. Nisto se traduz o princípio da vinculação temática. Ao vedar os poderes de cognição do juiz a outros factos, que não os contidos na acusação, está a garantir-se ao arguido que só deles tenha de defender-se e que por outros não poderá ser condenado (no processo em curso). A relevância do conceito, em sede de acusação, tem pois uma dimensão de garantia dos direitos e da posição do arguido» [4].
Não sendo deduzida acusação pelo Ministério Público, quando em causa estejam crimes de natureza pública ou semi-pública, o assistente pode requerer a abertura de instrução «relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação» (artº 287º/1-b), do CPP), visando a instrução, neste caso, a «comprovação judicial da decisão de arquivar o inquérito em ordem a submeter (…) a causa a julgamento» (artº 286º/1, do CPP), o que se compreende por ser a manifestação da efectivação da competência, atribuída aos assistentes, de «deduzir acusação independente da do Ministério Público» (artº 69º/2-b), do CPP), essencial à efectiva protecção dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação, de que são titulares (artº 68º/1, a), do CPP). Esta faculdade deve ser entendida, no entanto, sem perder de vista a estrutura acusatória do processo penal, consagrada pelo artigo 32º/5 da Constituição da República Portuguesa.
Porque a actividade do assistente, na parte em que visa suprir deficiências da acusação, se traduz na efectivação de poderes de colaboração com o Ministério Público, como se pressupõe que suceda com a abertura de instrução, está subordinada a duas condicionantes: a explicitação dos motivos de facto e de direito que o levam a discordar da posição assumida pelo MP e a prática do acto omitido, necessário à prossecução dos termos da acção penal. Nesta perspectiva o artº 287º/2, do CPP, refere que o requerimento de abertura de instrução «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à (…) não acusação do MP, bem como se for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c)». E, nos termos do nº 3 do artigo 283º, do CPP, a acusação contém, sob pena de nulidade «a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada» e «a indicação das disposições legais aplicáveis».
O requerimento de abertura de instrução, quando não tenha havido acusação, contém, pois, necessariamente, duas partes: uma em que o requerente enuncia os motivos de discordância relativamente ao despacho de arquivamento do MP; outra em que, substituindo-se à acusação pública em falta, o assistente deduz a sua acusação, com a narração dos factos susceptíveis de integrar a factispecie do tipo legal de crime (no seu elemento objectivo e subjectivo), devidamente identificado pela menção das disposições legais aplicáveis, e das circunstâncias de modo, tempo e lugar e outras, com relevo para a determinação da sanção a aplicar. A lei não exige a sujeição de qualquer destas partes, em que se desdobra o requerimento, a formalidades especiais, o que, no entanto, não significa que não os sujeite a exigências de forma mínimas, adequadas à satisfação dos ónus impostos. A não sujeição a formalidades especiais não significa que se prescinda da substância – a enumeração dos factos pertinentes ao preenchimento do tipo legal de crime, e da forma minimamente adequada à sua percepção: a narração, ainda que sintética, desses factos e dos demais a que o artº 283º/CPP faz referência.
Dizendo de outro modo, e com referência à argumentação contida no ponto 13 das conclusões, a instrução, em caso de arquivamento do inquérito, visa não tão-somente, a comprovada judicial dessa decisão de arquivar o inquérito; visa igualmente, submeter a causa a julgamento – o que, num processo de cariz acusatório, como o nosso, acarreta necessariamente a dedução de uma acusação. Não tendo sido formulada pelo Ministério Público é ónus do assistente, requerente da actividade instrutória, formulá-la.
Este entendimento é o que maioritariamente tem sido defendido na jurisprudência, quer das Relações, quer do Supremo, quer mesmo do Tribunal Constitucional. Veja-se, a título de exemplo:
- o ac. do TRP, no proc. 1585/07.0TASTS-P1, de 23/09/2009, onde se refere que: «Quando não há acusação e o assistente pretende que o agente seja julgado pelos factos que lhes atribuiu, o requerimento de abertura de instrução assume, materialmente, a função da acusação e desempenha no processo o papel desta. Na definição do objecto processual que vai ser submetido ao conhecimento e decisão do juiz há uma similitude processual de função e, por isso, uma assimilação funcional entre a acusação do Ministério Público e o requerimento do assistente para a abertura de instrução, nos casos em que não tenha sido deduzida acusação. O requerimento do assistente deve, em termos materiais e funcionais, revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, de onde constem os factos que entenda estarem indiciados e que integrem o crime que lhe deve imputar, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório». Veja-se a resenha de jurisprudência, no mesmo sentido, feita no ac. RL, no proc. 1984/07.7PBAMD-A.L1, de 27/05/2010
- o ac. da RC, de 17/09/2006, no proc. 60/03.2.TABLSI, onde se refere que : «O requerimento de abertura de instrução, para além das razões de facto e de direito da divergência relativamente ao despacho de não acusação tem de revestir a forma de uma verdadeira acusação (pelo que a) remissão para a participação não tem a virutalidade de sanar a omissão da descrição dos factos». Vide ainda o ac. da mesma relação, de 17/09/2003, no processo 2359/03, e os ac.s da RG de 14/02/2005, na CJ 2005, I, 299, e de 04/05/2005, no proc. 1272/04-2;
- o ac. do STJ, de 25/10/2006, no proc. nº 06P3526, onde se refere que o requerimento para abertura de instrução «deve constituir uma verdadeira acusação em sentido material, que delimite o objecto do processo, e que fundamente a aplicação aos arguidos de uma pena»;
- o ac. do TC, tirado no proc. 358/2004, onde se refere que: «o objecto da instrução (tem) de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa e (…) tal definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis, o que decorre de princípios fundamentais do processo penal, designadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória». Ainda, no mesmo sentido o ac. TC nº 674/99, no DR, II, 25/02/2000.
Aliás, atenta a estrutura da fase instrutória do processo, jamais a lei poderia prescindir da indicação pelo acusador – público ou assistente - da factualidade pertinente à sujeição ao arguido a julgamento. A instrução tem natureza jurisdicional e não investigatória. O artº 289º/1, CPP dispõe que «a instrução é formada pelo conjunto dos actos de instrução que o juiz entenda dever levar acabo e obrigatoriamente por um debate instrutório, oral e contraditório, no qual podem participar o MP, o arguido, o defensor, o assistente e o seu advogado, mas não as partes civis». Contudo, conforme refere Germano Marques da Silva, «a estrutura acusatória do processo e o inerente princípio da acusação limita a liberdade de investigação ao próprio objecto da acusação» [5], porque há que respeitar a estrutura acusatória do processo penal: assim sendo é exactamente a acusação que determina o objecto do processo e embora a instrução seja uma fase em que vigora o princípio da investigação, a autonomia do juiz não significa que tenha poderes conformadores ou substitutivos da acusação.
A propósito referem os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na Constituição da República Anotada, pág. 206: «a estrutura acusatória do processo penal implica, além do mais, a proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação. Daqui resulta que o juiz de instrução não pode intrometer-se na delimitação do objecto da acusação no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente, requerente da abertura da instrução». E refere o Prof. Germano Marques da Silva, em «Processo Penal», 125: «Integrando o requerimento de instrução razões de perseguibilidade penal, aquele requerimento contém uma verdadeira acusação; não há lugar a uma nova acusação; o requerimento funciona como acusação em alternativa, respeitando-se, assim, "formal e materialmente a acusatoriedade do processo", delimitando e condicionando a actividade de investigação do juiz e a decisão de pronúncia ou não pronúncia».
Manifestação da supremacia do princípio da vinculação temática do Tribunal aos factos descritos na acusação formal, quer ela seja proveniente do Ministério Público, quer do assistente, são ainda as normas contidas nos artºs 309º/1 e 379º/1, al. b), do C.P.P. Segundo a primeira que «a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos (…) no requerimento para abertura da instrução»; nos termos da segunda é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º.
Ou seja, tal como a sentença não pode condenar por factos diferentes dos descritos na acusação ou pronúncia (fora dos casos especialmente previstos), também a pronúncia não pode imputar ao arguido factos diferentes dos que constam da acusação ou do requerimento para abertura da instrução.
Verificada a ausência de factos no requerimento instrutório, vem-se entendendo, tal como fez o despacho recorrido, que se está perante uma situação de inadmissibilidade legal de instrução, sujeita ao regime do artº 287º/3, do CPP, qualificação esta que não mereceu oposição do recorrente É que, para além de o requerimento ser nulo, por falta de requisitos legais mínimos (de forma ou de fundo), a actividade judiciária instrutória que pretende desencadear resumir-se-ia à prática de actos inúteis e, como tal, proibidos por lei, na medida em que a pronúncia nunca poderia ter lugar. Não podendo o juiz substituir-se ao assistente na descrição de factos essenciais à imputação objectiva e/ou subjectiva do crime em questão, sempre estará impedido de deduzir pronúncia, por falta da enunciação desses factos, pronuncia essa que se configura como condição de prosseguibilidade do processo. Sem acusação o processo não tem objecto porque, além do mais, o juiz de instrução não pode substituir-se ao acusador na definição daquele, sob pena de diminuição das garantias de defesa do arguido, com manifesta violação dos princípios constitucionais vertidos nos artºs 18º e 32º/1 e 5, da CRP, de atentado ao princípio da igualdade de armas e de violação do princípio de independência do julgador. Souto Moura resume a questão nestes termos: «se o assistente requerer instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será a todos os títulos inexequível. O juiz ficará sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver acusados. Aquilo que não está na acusação e no entendimento do assistente lá devia estar pode ser mesmo muito vasto. O Juiz de instrução “não prossegue” uma investigação, nem se limitará apreciar o arquivamento do M.º P., a partir da matéria indiciária do inquérito. O juiz de instrução responde ou não a uma pretensão. Aliás, um requerimento de instrução sem factos, subsequente a um despacho de arquivamento, libertaria o juiz e instrução de qualquer vinculação temática. Teríamos um processo já na fase de instrução sem qualquer delimitação do seu objecto, por mais imperfeita que fosse, o que não se compaginará com uma fase que em primeira linha não é de investigação, antes é dominada pelo contraditório» [6].
Vejamos agora se estamos, ou não, perante um requerimento de abertura de instrução nulo por falta de factos, que determine a inadmissibilidade legal da instrução.
A recorrente entende que os factos que fez constar dos pontos 17º a 31º, 56º e 57º integram os elementos constitutivos do tipo legal de crime.
A propósito, o despacho recorrido exarou, entre o mais, que «Com excepção dos factos que enuncia nos pontos 17 a 31 e 56 a 57, o requerimento de abertura de instrução mostra-se delineado como um recurso do despacho de arquivamento. (…) É o requerimento parco relativamente à descrição dos factos que, a indiciarem-se, permitissem concluir que o arguido praticou actos objectiva e subjectivamente integradores do crime de denuncia caluniosa. O requerimento de abertura de instrução não contém uma descrição fáctica clara e concreta dos factos susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime que imputa ao arguido, limitando-se, nos pontos 17 a 31, de forma deficiente a descrever factos, alguns conclusivos e nos pontos 56 e 57 a mencionar o elemento subjectivo do crime, expondo factos, sem obediência a uma coerência lógica, discordando com os seus argumentos da posição do M.P.».
O crime pelo qual a recorrente pretendia ver o arguido pronunciado, de denúncia caluniosa, está previsto no artº 365º/1, do CP e tem por elementos constitutivos, conforme consta do despacho recorrido:
a) A imputação ou denúncia, sobre determinada pessoa, da suspeita da prática de crime, por qualquer meio ou perante autoridade ou publicamente, com intenção de que contra ela se instaure procedimento criminal;
b) A vontade consciente de o agente assim proceder, conhecendo este a falsidade da imputação;
c) A ilicitude da conduta, o que significa que o agente actua sem uma causa de justificação,
d) A culpa do agente, expressa na sua liberdade de decisão e no caracter proibido da sua conduta e por si conhecido.
A integração do tipo do crime exige a descrição de factos relativos à existência de um procedimento criminal, à determinação da existência desse mesmo procedimento, à prova da falsidade dos factos nele imputados e à consciência dessa falsidade, por parte do agente. Tutela-se não só o interesse que a administração da justiça tem em que o procedimento criminal contra determinada pessoa seja requerido sinceramente, como também os interesses dos visados, de não lhes ser causado prejuízo por acusações maliciosas e desprovidas de fundamento.
Dos artigos do requerimento de abertura de instrução, para os quais o recurso nos remete, retira-se, em termos de factualidade e conclusões de facto, que:
- O Arguido apresentou queixa-crime contra a ora Assistente pela prática dos crimes de Falsificação de documentos, Falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução e Abuso de poder, p. e p., respectivamente, pelos arts. 256.°, 360.° e 382.° do Código Penal. (ponto 17);
- Fruto da aludida participação criminal, a ora Assistente foi constituída Arguida, prestou TIR e foi interrogada pela prática daqueles crimes, que lhe foram imputados pelo ali Denunciante. (Ponto 18);
- O inquérito ao qual deu azo a referida participação criminal, foi arquivado em 30.06.2006. (Ponto 19.);
- A ora Assistente jamais praticou qualquer acto ilícito, quer no âmbito, quer fora do exercício das suas funções. (Ponto 20);
- Arquivamento que veio demonstrar a falsidade das imputações feitas à ora Assistente. (Ponto 21);
- O Arguido, ali Denunciante, ao invés de recorrer das decisões do INPI junto do Tribunal de Comércio de Lisboa, nos termos legalmente previstos decidiu perseguir criminalmente os subscritores das decisões em causa, com a manifesta intenção de que contra eles fosse instaurado um processo judicial, (Ponto 22);
- O Arguido, enquanto sócio gerente da Sociedade D………, aliás, habitual requerente de registos de marcas junto do INPI, muitas outras vezes no passado, não se conformando com as decisões proferidas, apresentou os competentes recursos, nos termos do art. 40º do CPI. (Ponto 23);
- Não obstante tal faculdade – que bem conhecia – o Arguido decidiu deliberadamente perseguir criminalmente os funcionários subscritores do acto (entre estes a Assistente), iniciando uma estratégia de intimidação, porventura, destinada a pressioná-los à prolação de decisões favoráveis às suas pretensões junto do INPI. (Ponto 24);
- Tal foi o desígnio persecutório então pretendido pelo Arguido que este chegou inclusivamente a enviar um telefax ao INPI a solicitar, nos termos do disposto no art. 45º do Código de Procedimento Administrativo, a declaração de impedimento de agentes administrativos por forma a atingir também pessoalmente a ora Assistente, (Ponto 25);
- Todavia, o Conselho de Administração daquela entidade deliberou indeferir o requerido por não se encontrarem reunidos os pressupostos exigidos para a declaração de impedimentos previstas nos arts. 44º e 45º do CPA, reforçando a confiança nas funcionárias visadas. (Ponto 26);
- O Arguido ou a sociedade que representa nunca foram beneficiados ou prejudicados pelo INPI ou pelos seus funcionários, sendo sempre as suas pretensões objecto de resposta fundamentada no estrito cumprimento da Lei. (Ponto 28);
- Algumas das suas pretensões foram indeferidas, seja por ter requerido o registo de marca insusceptível de apropriação, seja, como no caso concreto que o motivou a apresentar a participação criminal contra a ora Assistente, por os técnicos terem entendido que não estavam reunidos os requisitos para a caducidade de uma marca. (Ponto 29);
- O Arguido, neste caso, reclamou inclusivamente para o Ministro da Economia, que veio corroborar a posição tomada pela entidade tutela, mantendo integralmente a decisão adoptada, (Ponto 30);
- Pelo que, nunca o Arguido poderia estar convencido do cometimento dos ilícitos criminais que falsamente resolveu imputar à Assistente, bem sabendo que todos os actos por esta praticados se cingiram ao estrito cumprimento da Lei. (Ponto 31);
- O ora Arguido imputou à Assistente a prática de infracções que bem sabia não terem sido cometidas, movido por um mero intuito de retaliação e perseguição contra Assistente, pelo simples facto de esta ter tido intervenção num acto que foi do seu desagrado. (Ponto 56);
- Decidiu, assim, denunciar falsamente a prática de crimes contra a Assistente, com o deliberado propósito de que contra esta fosse instaurado um procedimento criminal – o que, logrou conseguir, tendo sido instaurado o Inquérito n.° 2584/04.5TDPRT (Ponto 57).
Do acervo de factos articulados no requerimento de abertura de instrução os factos relativos ao procedimento criminal e à determinação da sua existência, por parte do arguido, são que:
- O Arguido apresentou queixa-crime contra a ora Assistente pela prática dos crimes de Falsificação de documentos, Falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução e Abuso de poder, p. e p., respectivamente, pelos arts. 256.°, 360.° e 382.° do Código Penal, tendo sido instaurado o Inquérito n.° 2584/04.5TDPRT. (pontos 17 e 57);
- Fruto da aludida participação criminal, a ora Assistente foi constituída Arguida, prestou TIR e foi interrogada pela prática daqueles crimes que lhe foram imputados pelo ali Denunciante. (Ponto 18);
- No caso concreto que motivou (que o arguido apresentasse) participação criminal contra a ora Assistente, as (suas) pretensões foram indeferidas por os técnicos terem entendido que não estavam reunidos os requisitos para a caducidade de uma marca. (Ponto 29);
- O Arguido, neste caso, reclamou inclusivamente para o Ministro da Economia, que veio corroborar a posição tomada pela entidade tutela, mantendo integralmente a decisão adoptada, (Ponto 30).
- O Arguido decidiu perseguir criminalmente os subscritores das decisões em causa, com a manifesta intenção de que contra eles fosse instaurado um processo judicial, (Ponto 22);
- O Arguido decidiu deliberadamente perseguir criminalmente os funcionários subscritores do acto (entre estes a Assistente), iniciando uma estratégia de intimidação, porventura, destinada a pressioná-los à prolação de decisões favoráveis às suas pretensões junto do INPI. (Ponto 24);
- O Arguido imputou à Assistente a prática de infracções que bem sabia não terem sido cometidas, movido por um mero intuito de retaliação e perseguição contra Assistente, pelo simples facto de esta ter tido intervenção num acto que foi do seu desagrado. (Ponto 56);
- Decidiu, assim, denunciar falsamente a prática de crimes contra a Assistente, com o deliberado propósito de que contra esta fosse instaurado um procedimento criminal – o que, logrou conseguir (Ponto 57).
Os factos relativos à prova da falsidade dos factos imputados nesse mesmo procedimento resumem-se a que:
- O Inquérito ao qual deu azo a referida participação criminal foi arquivado em 30.06.2006. (Ponto 19.);
- A ora Assistente jamais praticou qualquer acto ilícito, quer no âmbito, quer fora do exercício das suas funções. (Ponto 20);
- Arquivamento que veio demonstrar a falsidade das imputações feitas à ora Assistente. (Ponto 21);
- O Arguido ou a sociedade que representa nunca foram beneficiados ou prejudicados pelo INPI ou pelos seus funcionários, sendo sempre as suas pretensões objecto de resposta fundamentada no estrito cumprimento da Lei. (Ponto 28).
Os factos relativos à consciência dessa falsidade por parte do agente são os seguintes:
- Nunca o Arguido poderia estar convencido do cometimento dos ilícitos criminais que falsamente resolveu imputar à Assistente, bem sabendo que todos os actos por esta praticados se cingiram ao estrito cumprimento da Lei. (Ponto 31);
- O Arguido imputou à Assistente a prática de infracções que bem sabia não terem sido cometidas, movido por um mero intuito de retaliação e perseguição contra Assistente, pelo simples facto de esta ter tido intervenção num acto que foi do seu desagrado. (Ponto 56).
De todo o supra exposto se retira que o requerimento de abertura de instrução é omisso quanto aos factos que fundamentaram a denúncia e quanto aos factos dos quais resulta a falsidade de cada um daqueles. A simples articulação de que houve uma denúncia, com imputação de uma série de crimes não substitui a indicação dos factos que suportaram essa denúncia, porque só assim se percebe, para além do mais, da viabilidade da participação e da séria probabilidade de esses mesmos factos serem falsos. Essa falsidade não se basta a constatação de que o inquérito foi arquivado, que é unicamente aquilo que a recorrente invocou como “demonstração” da falsidade. Ou seja, é irrelevante à consupção do crime de denúncia caluniosa o arquivamente “tout court” do inquérito a que a participação deu lugar, porque desse arquivamento não se retira, ispo facto, a falsidade dessa imputação. Retira-se, quanto muito (por via de regra) a ausência de aptidão da factualidade denunciada para integrar os crimes imputados, ou a ausência de prova de factos essenciais à subsistência dessa imputação.
Sendo ónus da acusação, isso sim, a articulação e prova dos factos dos quais se retira a falsidade da imputação, há que reconhecer que esse ónus não está satisfeito no requerimento em apreço, ainda que de modo perfunctório. Não se descrevendo os factos imputados à assistente não é possível rebater a veracidade ou falsidade dessa imputação e o que acontece é que o requerimento de abertura de instrução é pura e simplesmente omisso quanto às duas circunstâncias.
Não tendo a assistente articulado sequer a factualidade com fundamento na qual a denúncia foi feita, fica impossibilitada a prova da respectiva falsidade, coisa que aliás nem tentou. Isso aliás, resulta bem claro dos termos do recurso. Tão depressa refere que os factos essenciais à integração dos elementos constitutivos do tipo de crime constam da acusação, como que atenta a sua simplicidade deveriam ser perceptíveis pelo Juiz de Instrução, como que constam do requerimento de abertura de instrução, como ainda que não são sequer discutidos. Ora, nada disto ocorre: nem os factos pertinentes à integração da tipicidade objectiva e subjectiva do crime constam da acusação (mesmo que constassem do requerimento de abertura de instrução, convenhamos que a exigência legal é de que constem do requerimento instrutório e não de qualquer outra peça), nem constam do requerimento de abertura de instrução, nem é lícito ao Juiz de instrução substituir-se à acusação e elencá-los, nem se pode considerar que estão assentes. Repare-se que no despacho de arquivamento se duvida, inclusivamente, da participação do arguido na factualidade denunciada - e até do conhecimento que possa ter tido dessa mesma factualidade.
Se a recorrente, pretendia, como refere, a avaliação sobre a justificação do arquivamento (ponto 19. das conclusões de recurso) apenas mediante a imputação de concretos factos que considerasse indiciados, susceptíveis de integrar os elementos do tipo, seria possível levar a cabo esse desiderato. Faltando esses não há termo de comparação que permita aquiliatar da alegada injustificação do arquivamento, nem há factos sobre os quais se produza nova prova, sendo certo que ela foi requerida.
O requerimento instrutório, no caso, não é apenas deficiente: é omisso quanto aos factos relativos à imputação caluniosa e à falsidade dessa imputação, porque não relata um mínimo de factualidade que viabilize a aplicação de uma pena. Por força dessa omissão jamais o arguido poderia ser pronunciado (308º/1, do CPP) e muito menos condenado.
Não estando preenchidos esses requisitos básicos – indicação dos factos constantes da denúncia, dos relativos à sua falsidade e dos relativos à consciência dessa falsidade - está impossibilitada a apreciação sobre os termos da denúncia, da respectiva falsidade, e sobre a intenção de causar prejuízo, o que é dizer que não há elementos, no requerimento de abertura da instrução, que permitam integrar o elementos típicos do crime pelo qual a recorrente pretende a pronúncia.
Qualquer decisão instrutória que versasse sobre este requerimento de abertura de instrução ver-se-ia na contigência de, ou não pronunciar o arguido, pura e simplesmente, por falta de factos a insturir susceptíveis de integrar o tipo legal de crime, ou acrescentando factos não articulados, ser nula por se envolver numa alteração substancial (artº 309º/CPP).
Assim sendo, resta a consideração de que ocorre nos autos uma verdadeira situação de inadmissibilidade legal de instrução, por o requerimento de instrução evidenciar uma narração de facto omissa, inapta a sustentar um despacho de pronúncia e, consequentemente, inapta a sustentar a aplicação, ao arguido, de uma pena ou de uma medida de segurança.
Conforme foi decidido no ac. de fixação de jurisprudência nº 7/2205: «não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentando nos termos do artigo 278º/2 do CPP, quando foi omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamento a aplicação de uma pena ao arguido». Não sendo licito aperfeiçoamento, torna-se liquido que o despacho recorrido fez uma correcta apreciação dos factos e aplicação do direito, não devendo ser revogado. Até porque a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo, em que o Ministério Público não acusou, sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos Tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo. O rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios Tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao Direito. Além do mais a exigência feita ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público, no momento em que acusa.
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VI- Decisão:
Acorda-se, pois, negando provimento ao recurso, em manter a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça de 4 ucs.
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Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
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Porto, 17/11/2020
Maria da Graça Martins Pontes dos Santos Silva
José Alberto Vaz Carreto

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[1] Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em B.M.J. 477º-271.
[2] Cf. Artºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995.
[3] Cf «Direito Processual Penal», I, 1974, 145.
[4] Cf. Francisco Isasca, em «Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português», 54.
[5] Em «Curso de Processo Penal», III, 129.
[6] Em «Jornadas de Direito Processual Criminal», 119 -120.