Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
897/15.0T8VNG-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
DESCONTOS NO VENCIMENTO
Nº do Documento: RP20160201897/15.0T8VNG-C.P1
Data do Acordão: 02/01/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 617, FLS.159-162)
Área Temática: .
Sumário: I - Não constando do artigo 48º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível a existência de qualquer limite legal aos descontos para satisfação de prestações alimentares a menores, por uma razão de coerência normativa e a fim de não pôr em causa a própria realização do crédito alimentar, entendemos que são no caso em apreço aplicáveis os limites previstos no artigo 738º do Código de Processo Civil.
II - Não obstante a amplitude da remissão legal constante do nº 4, do artigo 738º do Código de Processo Civil, atenta a sua razão de ser e a necessidade de concordância prática dos direitos em confronto – o direito a alimentos do credor de alimentos, de um lado e o direito à própria subsistência do devedor de alimentos, de outro lado –, afigura-se-nos que o nº 2, do artigo em apreço é também aplicável à obrigação de alimentos satisfeita, total ou parcialmente mediante descontos no vencimento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 897/15.0T8VNG-C.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 897/15.0T8VNG.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
1. Não constando do artigo 48º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível a existência de qualquer limite legal aos descontos para satisfação de prestações alimentares a menores, por uma razão de coerência normativa e a fim de não pôr em causa a própria realização do crédito alimentar, entendemos que são no caso em apreço aplicáveis os limites previstos no artigo 738º do Código de Processo Civil.
2. Não obstante a amplitude da remissão legal constante do nº 4, do artigo 738º do Código de Processo Civil, atenta a sua razão de ser e a necessidade de concordância prática dos direitos em confronto – o direito a alimentos do credor de alimentos, de um lado e o direito à própria subsistência do devedor de alimentos, de outro lado –, afigura-se-nos que o nº 2, do artigo em apreço é também aplicável à obrigação de alimentos satisfeita, total ou parcialmente mediante descontos no vencimento.
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório
Em 09 de fevereiro de 2015, com referência ao processo nº 897/15.0T8VNG, pendente na Instância Central de Vila Nova de Gaia, Secção de Família e Menores, J3, B… veio requerer a fixação da prestação de alimentos a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, a favor de seu filho C…, em virtude de D…, mãe de C…, nunca ter prestado a prestação alimentar no montante de cem euros que está obrigada a pagar desde março de 2003.
Após a liquidação dos montantes em dívida por parte da progenitora do menor C…, esta foi notificada para os termos do nº 2, do artigo 181º da Organização Tutelar de Menores, solicitando-se informações sobre a atual situação do requerente e da requerida junto da Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações.
Na sequência de promoção do Digno Magistrado do Ministério Público, em 28 de maio de 2015, foi julgado procedente o incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, no que respeita a alimentos, fixando-se em € 16.750,04 o montante em dívida referente às prestações de alimentos devida ao menor C…, a cargo de D… e correspondente às prestações de alimentos vencidas e não pagas desde março de 2003 até abril de 2015.
Por despacho proferido em 07 de julho de 2015 decidiu-se que por causa do agregado familiar em que se insere o menor dispor de um rendimento mensal cuja capitação é superior ao valor atual do IAS, não era possível determinar a intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores.
Secundando promoção do Digno Magistrado do Ministério Público, em 08 de outubro de 2015, proferiu-se o seguinte despacho[1]:
Como bem assinala o Exmº Magistrado do Ministério Público a fls. 64, do teor da informação de fls. 53 decorre que, face ao valor mensal do vencimento auferido pela progenitora/obrigada a alimentos ( € 252,50 [2]) e tendo em conta o limite legal de impenhorabilidade estipulado no nº 4 do art. 738º do C.P.C., não se mostra viável o recurso ao mecanismo coercitivo previsto no art. 48º do RGPTC, para assegurar o pagamento das pensões de alimentos vincendas e devidas ao menor C….
Em consequência, e considerando o já decidido a fls. 50, ponto nº 1, nada temos a determinar, por ora.
Inconformado com a decisão que se acaba de transcrever, em 19 de outubro de 2015, B... interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
1. Nos presentes autos foi julgado procedente o incidente de incumprimento de responsabilidades parentais quanto a alimentos, devidos ao menor C… pela progenitora, e, em consequência, foi fixado, em € 16.750,04, o montante em dívida relativo às pensões de alimentos vencidas e não pagas desde Março de 2003 até Abril de 2015.
2. Após notificação da entidade patronal da progenitora faltosa, no âmbito de aplicação do mecanismo coercitivo de pagamento do art.º 189.º da OTM, apurou-se que a progenitora aufere vencimento mensal no valor de € 252,50.
3. O art.º 48.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), aprovado pela Lei n.º 141/2015 de 8 de Setembro, preceitua mecanismo coercitivo necessário para assegurar o pagamento das prestações de alimentos a menores, já vencidas e as que se forem vencendo, e impõem dedução ou desconto directo das respectivas quantias no vencimento, salário, ordenado e outros rendimentos do progenitor inadimplente, pela entidade empregadora respectiva e entrega directa ao menor, nos mesmos moldes do entretanto revogado art.º 189 da OTM.
4. O n.º 4 do art.º 738.º do C.P.C. estabelece como limite de impenhorabilidade, para crédito de alimentos, a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo.
5. Quantia essa que, ao abrigo do disposto no art.º 7.º da Portaria 286-A/2014 de 31 de Dezembro, está fixada no montante de € 201,53.
6. Auferindo a progenitora vencimento mensal no valor de € 252,50, tal vencimento é passível de dedução, na medida em que excede o limite legal de impenhorabilidade.
7. Pelo que, mediante aplicação conjugada dos normativos legais supra aludidos à factualidade constante dos autos, sempre haverá lugar a dedução no salário da progenitora do montante de €50,97 e entrega do mesmo ao menor, para acorrer, pelo menos, a parte das necessidades básicas do menor e pagamento parcial de alimentos.
8. O que não sucedeu, pois o despacho recorrido não determinou tal dedução, verificando-se, assim, preterição absoluta do direito fundamental do menor a prestação de alimentos, decorrente do dever dos pais à manutenção dos filhos, constitucionalmente consagrado no art.º 36.º, 5 da C.R.P., preterição que afecta a dignidade da vida do menor; sendo, portanto, violados os art.ºs 1.º, 18.º e 36.º n.º 5 da C.R.P. e 1878.º do C.C.
9. Tendo o despacho recorrido desprotegido completamente o menor, nos referidos direitos, por exoneração da progenitora das responsabilidades parentais respectivas a que está acometida.
10. Mais se desatendendo, na decisão em crise, ao superior interesse da criança, sendo, igualmente, violados os princípios que devem nortear o processo tutelar cível, mormente os consagrados no art.º 4.º, alíneas a) e f) da Lei n.º 147/99 de 01 de Setembro, na redacção dada pela Lei n.º 142/2015 de 08 de Agosto, ex vi art.º 4.º do RGPTC, assim como o art.º 48.º do RGPTC.
11. Consequentemente o despacho recorrido ao não determinar dedução e entrega ao menor de montante do vencimento da progenitora que excede a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo, nos termos em que o faz, carece de fundamento legal e viola os preceitos constitucionais e disposições legais supra referidas.
Não foram oferecidas contra-alegações.
Atenta a natureza estritamente jurídica da questão decidenda, a existência de algum tratamento jurisprudencial da matéria e a sua relativa simplicidade, com o acordo dos Excelentíssimos Juízes-adjuntos, decidiu-se dispensar os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
A única questão a decidir é a de saber se deve proceder-se ao desconto do vencimento da progenitora de C… para pagamento da prestação alimentar devida a este, com salvaguarda do montante correspondente à totalidade da pensão social do regime não contributivo.
3. Fundamentos de facto
Os fundamentos de facto relevantes para a apreciação e decisão do objeto do recurso constam do relatório desta decisão, resultam da força probatória plena dos próprios autos e não se reproduzem por evidentes razões de economia processual.
4. Fundamentos de direito
Deve proceder-se ao desconto do vencimento da progenitora de C… para pagamento da prestação alimentar devida a este, com salvaguarda do montante correspondente à totalidade da pensão social do regime não contributivo?
O recorrente pugna pela revogação da decisão recorrida e pela sua substituição por decisão que determine o desconto no vencimento da mãe do menor, na parte em que excede o montante da pensão social não contributiva, ou seja, da quantia de € 50,97, por mês.
Cumpre apreciar e decidir.
A problemática objeto do presente recurso não é jurisprudencialmente virgem, pois que sobre a mesma já se pronunciaram, com alguma consonância com o pretendido pelo recorrente, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06 de maio de 2010, proferido no processo nº 503-D/1996.G1.S1[3], e o acórdão desta Relação de 02 de julho de 2015, proferido no processo nº 1017/04.1TQPRT-B.P1, ambos acessíveis no site da DGSI.
Nos termos do disposto no artigo 48º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível[4], “[q]uando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida nos 10 dias seguintes ao vencimento, observa-se o seguinte:
a) Se for trabalhador em funções públicas, são-lhe deduzidas as respetivas quantias no vencimento, sob requisição do tribunal dirigida à entidade empregadora pública;
b) Se for empregado ou assalariado, são-lhe deduzidas no ordenado ou salário, sendo para o efeito notificada a respetiva entidade patronal, que fica na situação de fiel depositário;
c) Se for pessoa que receba rendas, pensões, subsídios, comissões, percentagens, emolumentos, gratificações, comparticipações ou rendimentos semelhantes, a dedução é feita nessas prestações quando tiverem de ser pagas ou creditadas, fazendo-se para tal as requisições ou notificações necessárias e ficando os notificados nas situações de fiéis depositários.
2 – As quantias deduzidas abrangem também os alimentos que se forem vencendo e são diretamente entregues a quem deva recebê-las.
Uma vez que a entrega do produto dos descontos é feita diretamente ao credor dos alimentos, na pessoa do seu representante legal, ao invés do que sucede com a entrega de dinheiro no domínio da acção executiva comum, não há lugar ao concurso de credores (vejam-se em contraponto com a previsão legal antes transcrita, os artigos 795º, nº 1, 796º e 798º, todos do Código de Processo Civil).
Não constando do normativo acima transcrito a existência de qualquer limite legal aos descontos, por uma razão de coerência normativa[5] e como forma de não pôr em causa a própria realização do crédito alimentar – recordemo-nos da fábula da galinha dos ovos de ouro –, entendemos que são no caso em apreço aplicáveis os limites previstos no artigo 738º do Código de Processo Civil.
Assim, o artigo 738º do Código de Processo Civil prescreve o seguinte:
1. São impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado.
2. Para efeitos de apuramento da parte líquida das prestações referidas no número anterior, apenas são considerados os descontos legalmente obrigatórios.
3. A impenhorabilidade prescrita no nº 1 tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.
4. O disposto nos números anteriores não se aplica quando o crédito exequendo for de alimentos, caso em que é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social da pensão social do regime não contributivo.
Não obstante a amplitude do nº 4, do artigo 738º do Código de Processo Civil, atenta a sua razão de ser e a necessidade de concordância prática dos direitos em confronto – o direito a alimentos do credor de alimentos, de um lado e o direito à própria subsistência do devedor de alimentos, de outro lado, afigura-se-nos que o nº 2, do artigo em apreço é também aplicável à obrigação de alimentos. Significa isto, na leitura que fazemos do preceito, que o valor apurado para efeitos do nº 4 há-de ser um valor líquido, considerando-se para tanto os descontos legalmente obrigatórios.
No ano de 2014, a pensão social do regime não contributivo foi no montante de € 199,53 (artigo 7º, nº 1, da Portaria nº 378-B/2013, de 31 de Dezembro), sendo no ano de 2015 no montante de € 201,53 (artigo 7º, nº 1, da Portaria nº 286-A/2014, de 31 de Dezembro).
No caso dos autos, apurou-se que a mãe do menor C… aufere um vencimento mensal de € 252,50, recebendo, em espécie, subsídio de alimentação no montante global de € 42,80 e descontando, a título de taxa social única, o valor de € 27,78. Assim, deduzido o valor do desconto obrigatório a título de taxa social única, a mãe do menor aufere o vencimento líquido de € 224,72, excedendo em € 23,19 o valor da pensão social do regime não contributivo.
Deste modo, a importância de € 23,19 pode e deve ser descontada do vencimento de D…, já que, desta forma, o seu vencimento líquido fica com valor idêntico ao da pensão social do regime não contributivo.
Pelo exposto, o recurso merece parcial provimento devendo o tribunal recorrido determinar que se proceda à notificação da entidade patronal[6] para proceder ao aludido desconto ordenado nesta decisão, mensalmente, entregando-o directamente ao recorrente, na qualidade de representante legal do menor C…[7].
As custas do recurso são a cargo do recorrente e da recorrida na exacta proporção do decaimento, mas sem prejuízo do apoio judiciário de que goza o recorrente.
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto por B… e, em consequência, em revogam a decisão recorrida proferida a 08 de Outubro de 2015 e ordenam a notificação da entidade patronal de D… para proceder ao desconto da importância de € 23,19, mensalmente, entregando-o directamente ao recorrente, na qualidade de representante legal do menor C…, notificação a efetivar no tribunal recorrido.
Custas a cargo do recorrente e da recorrida na exacta proporção do decaimento, mas sem prejuízo do apoio judiciário de que goza o recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
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O presente acórdão compõe-se de sete páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 01 de fevereiro de 2016,
Carlos Gil
Carlos Querido
Soares de Oliveira
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[1] Notificado por expediente eletrónico elaborado em 08 de Outubro de 2015.
[2] Não obstante o Sr. Juiz a quo tenha ordenado a instrução dos autos com certidão de folhas 53 a 55, certamente por lapso, não foi a certidão instruída com tais elementos. Solicitou-se via telefónica as cópias em falta e delas resulta que o vencimento base de D… é de € 252,50, recebendo subsídio de alimentação, em espécie, no montante global de € 42,80 e descontando o valor de € 27,78, a título de taxa social única.
[3] Neste caso apelava-se ao rendimento social de inserção como limiar mínimo de proteção do devedor, pois inexistia a atual previsão do nº 4, do artigo 738º do Código de Processo Civil.
[4] Doravante citado abreviadamente como RGPTC.
[5] Não se nos afigura que este apelo a um argumento sistemático constitua um censurável conceptualismo, como se depreende do acórdão da Relação de Coimbra de 19 de maio de 2015, proferido no processo nº 4865/12.5TBLRA-D.C1, acessível no site da DGSI, mas antes um esforço no sentido de combater um casuísmo gerador de insegurança jurídica.
[6] Trata-se da sociedade comercial “E…, Unipessoal, Lda.”, com sede na Rua….
[7] Deverá ter-se o cuidado de logo que se verifique alteração do montante da pensão social do regime não contributivo se ajustar o valor do desconto de modo a que o vencimento líquido da mãe do menor após os descontos obrigatórios e o desconto do possível para satisfação parcial do crédito alimentar do menor C…, nunca fique aquém do valor daquela pensão, cessando imediatamente os descontos se acaso o vencimento base deduzido dos descontos legais obrigatórios tiver montante igual ou inferior ao da pensão social não contributiva que vigorar na data em que os descontos se deverem efetivar.