Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0334273
Nº Convencional: JTRP00036550
Relator: MÁRIO FERNANDES
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Nº do Documento: RP200310230334273
Data do Acordão: 10/23/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 6 V CIV PORTO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: A competência de um tribunal na ordem internacional deve ser avaliada na base do que a tal respeito prescreve o Regulamento da Comunidade Europeia relativo à "competência judiciária", ao reconhecimento e à execução das decisões em matéria civil e comercial entrado em vigor em 1 de Março de 2002.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

“C....., Ld.ª”, com sede na Rua ....., Porto,

veio intentar acção, sob a forma ordinária, contra

“S....., S.A.”, com sede em ......., Espanha,

pedindo a condenação desta última a reconhecer a validade e eficácia do contrato verbal de concessão comercial entre ambas celebrado, bem assim, por incumprimento desse mesmo contrato por parte da mesma, no pagamento da indemnização de 572,812 euros e na indemnização de clientela a liquidar em execução de sentença, indemnizações essas acrescidas dos respectivos juros de mora.

Para o efeito e em resumo, alegou a Autora que celebrou inicialmente com a Ré, em Abril de 2000, contrato verbal que designou de “concessão comercial”, por força do qual passaria a ser a representante e distribuidora em exclusivo no país de todos os produtos da marca “S.....”, mediante fornecimentos a realizar pela Ré de tais produtos em exclusivo, nessa sequência se tendo desencadeado o respectivo relacionamento comercial;
acrescentou que Autora e Ré, já após terem dado início a tal relacionamento comercial, acordaram mesmo a redução a escrito daquele acordo verbal, com o clausulado constante do documento de fls. 31 a 33 da autoria da Ré e que por si foi aceite com as alterações constante da comunicação cuja cópia consta a fls. 34 a 35, assim ambas as partes tendo aceite e firmado o mencionado contrato tal qual resultava desses documentos;
adiantou, por último, e naquilo que aqui interessa referir que, em função desse acordo, a Ré forneceu-lhe produtos da aludida marca para serem distribuídos em exclusividade no país, o que sucedeu até princípios de Fevereiro de 2002, altura a partir da qual a Ré fez cessar esses fornecimentos, argumentando que a empresa-mãe na Alemanha se tinha apresentado à falência, o que inviabilizava a continuação do relacionamento comercial que até aí vinha sucedendo entre as partes.

A Ré, citada para os termos da acção, na contestação apresentada, para além de impugnar a materialidade vertida no articulado inicial relativa à caracterização do invocado contrato de distribuição comercial, em regime de exclusividade – defendendo antes que forneceu à Autora produtos da aludida marca, mas em condições que nada tinham a ver com as referidas por aquela e capazes de caracterizar um contrato de distribuição em regime de exclusividade – deduziu defesa por excepção, arguindo a incompetência relativa do tribunal, dado no contrato escrito invocado pela Autora constar uma cláusula a convencionar que o litígio resultante, entre o mais, do cumprimento desse mesmo contrato ficava submetido à jurisdição dos Tribunais de Madrid;
a este último propósito acrescentou que a Autora omitiu deliberadamente da documentação junta, representativa da celebração desse contrato, uma cláusula “nona” em que era vertido tal pacto de jurisdição, assim devendo proceder a excepção em causa, com a consequente absolvição da contestante da instância.

A Autora replicou, rejeitando a procedência da excepção em causa, dado nunca a aludida cláusula “nona” constar do texto do aludido acordo escrito ou tão pouco tendo sido convencionado o invocado pacto de jurisdição.

Sobre a excepção em causa veio a ser proferida despacho a julgá-la improcedente, concluindo-se pela competência internacional do tribunal do foro, para tanto sendo analisada essa problemática à luz das regras reguladoras da competência internacional que resultavam do art. 65 do CPC.

Assim, tendo presente o estipulado no art. 65, n.º1, al. c) do CPC, considerou-se que a acção em causa devia ser proposta no tribunal onde a obrigação devia ser cumprida, ou seja, nos Tribunais Cíveis do Porto, como sucedeu, sendo irrelevante o invocado “pacto de competência” para determinar o tribunal internacionalmente competente.

Do assim decidido interpôs a Ré recurso de agravo, tendo apresentado alegações em que concluiu pela revogação do respectivo despacho, devendo ser substituído por outro que ordene a produção de provas para avaliar do estabelecimento de um pacto de jurisdição a determinar a competência para a apreciação dos litígios surgidos entre as partes, decorrentes da celebração do invocado contrato, aos Tribunais de Madrid, insistindo que desse acordo fazia parte um cláusula “nona” a fixar essa competência, matéria sobre a qual o tribunal “a quo” tão pouco se havia pronunciado.

A Autora respondeu, pugnando pela manutenção do despacho recorrido.

Corridos os vistos legais, cumpre tomar conhecimento do mérito do agravo, sendo que a instância mantém a sua validade.

A materialidade a reter para a apreciação do agravo resulta, no essencial, do alegado pela Ré-agravante para fundamentar a excepção de incompetência relativa deduzida, a qual, em grande parte, é objecto de impugnação, bem assim – constituindo factualidade aceite pelas partes – que a Autora é uma sociedade comercial com sede no país, dedicando-se ao comércio de electrodomésticos, enquanto a Ré uma sociedade comercial com sede em Espanha, dedicando-se à representação e comercialização por grosso de produtos da marca “S.....”, tendo ambas, no exercício das respectivas actividades, estabelecido relações comerciais que consistiram, pelo menos, no fornecimento de produtos daquela marca por parte daquela última à primeira.

O objecto do presente agravo, tendo em conta as conclusões formulados, passa por avaliar se merece censura a decisão recorrida, na medida em que, tomando posição relativamente à excepção de incompetência relativa deduzida pela Ré-agravante na sua contestação e julgando-a improcedente, omitiu posição quanto a um invocado pacto jurisdição estabelecido entre as partes, a impor a produção de provas para melhor apreciação daquela excepção, o que não foi levado a cabo pelo tribunal “a quo”.
Analisemos.

Como supra deixámos referido, a agravante na contestação que apresentou deduziu excepção de incompetência relativa, fundamentada na violação de pacto de jurisdição, celebrado ao abrigo do disposto no art. 99 do CPC, por força do qual a apreciação dos litígios decorrentes do incumprimento do contrato invocado na petição inicial caberia aos Tribunais de Madrid, assim estando o tribunal “a quo” impedido de tomar conhecimento do mérito da causa.

Também acima deixámos explicitado que o tribunal recorrido solucionou esta problemática, concluindo pela improcedência da mencionada excepção, deitando mão das regras do direito interno processual civil, ao entender que os tribunais internacionalmente competentes para conhecer do litígio introduzido em juízo eram os tribunais portugueses, atendo o disposto nas disposições conjugadas nos arts. 65, n.º1, al. b) e 74 do CPC, sendo irrelevante o pacto de “competência” invocado pela Ré-agravante e impugnado pela Autora.

Antes de tomarmos posição definitiva sobre esta problemática e mais precisamente sobre o objecto do agravo, tal como foi circunscrito pela recorrente, interessará delinear em termos resumidos o que motivou a instauração da presente acção e a defesa deduzida pela Ré, tudo para uma melhor compreensão da posição aqui a tomar.

Assim, a Autora, para fundamentar os aludidos perdidos de indemnização, decorrentes da cessação de fornecimentos, alegou a celebração com a Ré de um contrato verbal de distribuição comercial, em regime de exclusividade, contrato esse que passou a vigorar nos precisos termos do clausulado constante do documento de fls. 31 a 33, com as correcções decorrentes do documento de fls. 34 a 35, tudo aceite por aquela, dessa documentação não constando qualquer convenção ou pacto de jurisdição quanto ao tribunal competente para dirimir eventual litígio surgido entre as partes quanto ao cumprimento desse acordo.

Já a Ré, por sua vez, para além de impugnar a celebração desse acordo nos termos adiantados pela Autora na petição inicial, suscitou a excepção de incompetência relativa do tribunal para conhecer do litígio em causa na base sustentada pela Autora, pois que, fundamentando-se o mesmo na violação do contrato invocado por esta última e nos termos por si indicados, então ter-se-ia de atender ao pacto de jurisdição que constava desse mesmo acordo escrito e que a demandante deliberadamente omitiu na aludida documentação que juntou.

O tribunal “a quo”, para solucionar a excepção deduzida pela Ré, recorreu ao que vem estatuído no nosso direito processual civil para determinar o tribunal internacionalmente competente, concluindo pela competência do tribunal nessa ordem, deitando mão do disposto no assinalado art. 65, n.º 1, al. b), do CPC, dado a obrigação resultante do contrato celebrado entre as partes dever ser cumprida no Porto e sendo irrelevante para o caso o alegado pacto de “competência” – utilizando a sua expressão – aliás impugnado pela Autora.

Sobre toda esta questão, cremos que a solução a dar à excepção suscitada pela agravante vai no sentido proposto pelo tribunal “a quo” – a sua improcedência – ainda que o caminho seguido por este último não seja o por nós defendido para alcançar idêntica conclusão.
Vejamos.

Ao contrário do expendido no despacho agravado, cremos que a resolução a dar à questão da competência do tribunal na ordem internacional deve ser avaliada na base do que a tal respeito prescreve o Regulamento da Comunidade Europeia (Reg. CE) n.º 44/2001, relativo à “Competência Judiciária, ao Reconhecimento e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial”, entrado em vigor em 1.3.2002, posto que se nos depara um litígio emergente de relação transaccional, em que uma das partes se encontra sediada em Estado que não o do foro, membro da CE , sendo certo que o aludido regulamento vincula o Estado Português e o Reino de Espanha, por força da sua adesão à Comunidade Europeia.

E, em termos genéricos, estando em causa matéria contratual, a acção em presença tanto podia ser instaurada no tribunal do domicílio do Réu, como no tribunal do lugar onde a obrigação que serve de fundamento à acção devia ser cumprida – v. arts. 2 e 5 do citado Regulamento.

Ora, tanto quanto é possível retirar do alegado pelas partes e dos demais elementos constantes dos autos parece que a obrigação relevante para estabelecer a competência do tribunal na ordem internacional e que serve de fundamento à acção – o falado fornecimento de produtos de marca “S.....” – devia ocorrer no Porto.
Esta constatação – determinação da obrigação relevante para os aludidos efeitos – não é abalada pelo facto de vir também formulado pedido de reconhecimento de validade e eficácia do contrato invocado pela Autora, pois que a obrigação principal decorrente da celebração desse mesmo contrato não deixará de ser aquele fornecimento em regime de exclusividade – v., no âmbito de toda esta problemática que vimos analisando, Luís de Lima Pinheiro, in “Direito Internacional Privado”, vol. III, págs. 81 a 83.

Assim, caso não fosse suscitada a questão do aludido pacto de jurisdição, sempre teríamos de concluir que, face às citadas normas do mencionado Regulamento, o tribunal internacionalmente competente para conhecer do presente litígio poderia ser o do domicílio do Réu ou então o do lugar do cumprimento da dita obrigação relevante, ou seja, os tribunais cíveis do Porto ou os tribunais de Madrid, cabendo a opção à Autora.

Desta forma, percorrendo caminho diverso do seguido pelo tribunal “a quo”, chegaríamos a idêntica conclusão da alcançada por aquele quanto à determinação do tribunal competente na ordem internacional para conhecer do litígio.

Porém, a agravante para concluir que no caso sempre caberia aos tribunais de Madrid a apreciação do litígio, excluindo essa competência dos tribunais cíveis do Porto, sustenta-se num pacto de jurisdição estabelecido entre as partes e que fazia parte do invocado acordo escrito que foi alegado pela Autora.

Assim, a atender-se ao dito acordo, do mesmo constaria ainda, segundo a agravante, um cláusula a fixar a competência convencional – a aludida cláusula “nona” – nos termos da qual “para todas as questões que possam emergir da interpretação, execução ou cumprimento do presente contrato, ambas as partes submetem-se, com renúncia expressa ao foro próprio que poderia corresponder-lhes, à jurisdição e competência dos Julgados e Tribunais de Madrid Capital”.

Adianta esta motivação, posto que da documentação junta com a petição inicial – doc. de fls. 31 a 33 – nela foi omitida a aludida cláusula, quando a mesma fazia parte integrante do citado acordo, conforme resultava da cópia desse mesmo acordo junta com contestação a fls. 77 a 80.

Há que adiantar que nada obstaria a que as partes tivessem convencionado tal pacto de jurisdição, no seguimento do que está facultado no art. 23/1, do citado Regulamento, nos termos do qual se “as partes, das quais pelo menos uma se encontre domiciliada no território de um Estado-Membro, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência. Essa competência será exclusiva a menos que as partes convencionem em contrário”.

Só que, como vimos, tal matéria é controvertida entre as partes, já que a Autora recusa que a mesma faça parte do texto daquele documento escrito que lhe foi remetido pela agravante-ré para ser assinado por ambas ou até que verbalmente e previamente tivesse sido convencionado essa cláusula.

Ora, nos termos em que a agravante coloca esta questão da competência convencional e ainda que, face ao citado normativo, a respectiva convenção tanto possa ser expressa como tácita – neste caso por resultar de um acordo verbal – e que a declaração correspondente obedeça apenas a declaração escrita de uma das parte, tendo por base anterior acordo verbal nesse sentido, sempre, no caso em presença, estaríamos diante de matéria controvertida entre as partes que competia averiguar da sua confirmação, por forma a concluir-se pela verificação desse mesmo pacto de jurisdição – v., sobre a possibilidade de fixação da competência convencional no aspecto analisado, Lima Pinheiro, ob. cit., págs. 131 a 138.

A propósito desta constatação, defende a agravante que o despacho recorrido padece de nulidade, por omissão de pronúncia, já que não tomou posição sobre o aludido pacto de jurisdição e nos termos por si invocados, para além do que se imporia fosse ordenada a produção de provas para avaliar do estabelecimento desse aludido pacto de jurisdição.

Relativamente à falada omissão de pronúncia, sempre diremos não ser certo que o tribunal “a quo” não tivesse ponderado a alegada competência convencional, pois que, como acima já referimos, no despacho agravado foi considerada irrelevante a existência de tal pacto para determinar a fixação da competência do tribunal na ordem internacional, já que a solução para a problemática em causa devia ser analisada segundo as normas do direito interno processual civil aplicáveis ao caso, mais precisamente face ao disposto no art. 65, n.º 1, al. b), do CPC.

Resulta do acima expendido que a solução para a situação em análise não deve ser encontrada nos termos reflectidos pelo tribunal recorrido, mas daí não deriva necessariamente que o despacho recorrido padeça da dita nulidade, pois esta só ocorrerá quando o juiz deixe de apreciar a questão fundamental colocada e necessária à solução do litígio, o que não sucede no caso em presença – v., neste sentido, Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 5.º, págs. 54 e segs.

Contudo, entende a agravante que, antes de ser tomada decisão definitiva sobre esta questão impor-se-ia tivessem sido produzidas as provas indispensáveis à apreciação da excepção invocada, atenta a circunstância de para o efeito ter sido alegada a existência de um pacto de jurisdição.

Não colocamos em causa que assim deva suceder, mas para tanto necessário se torna que ao tribunal sejam apresentados em tempo oportuno os meios de prova para executar essa tarefa – v., neste sentido, Lima Pinheiro, ob. cit., pág. 148.

Ora, estando em causa a apreciação do incidente de incompetência relativa, decorrente da eventual violação de pacto de jurisdição, cabe às partes, aquando da dedução de tal incidente, a indicação das respectivas provas, de forma a possibilitar ao tribunal a indagação da factualidade indispensável à solução dessa matéria (art. 109, n.º 3, do CPC) – v., neste sentido, Salvador da Costa, in “Os Incidentes da Instância”, 3. º ed., pág. 327.

No nosso caso, a prova que foi oferecida pelas partes quanto a esta problemática resume-se à documentação supra referida, sendo objecto de desacordo entre as mesmas se a mencionada cláusula “nona” fazia ou não parte do falado acordo escrito, sendo que outra prova não foi oferecida, nem os demais elementos documentais juntos ao processo permitem concluir por uma ou outra tese.

Assim tendo sucedido – ausência de outros meios de prova para avaliar da existência da aludida cláusula a estabelecer o dito pacto de jurisdição – então fica destituído de qualquer fundamento a pretendida ampliação da matéria de facto nesse âmbito, bem assim a revogação do despacho agravado com a finalidade pela agravante sugerida.

Temos, pois, como adquirido que a excepção de incompetência relativa suscitada pela recorrente na sua contestação não poderá proceder, assim se concluindo pela competência do tribunal “a quo” para conhecer do litígio, ainda que se tenha percorrido caminho diferente do seguido no despacho agravado.

Pelo exposto, decide-se negar provimento ao agravo, assim se mantendo o despacho recorrido, embora utilizando diferente argumentação da que sustentou aquela última decisão.

Custas a cargo da agravante.
Porto, 23 de Outubro de 2003
Mário Manuel Baptista Fernandes
Manuel Dias Ramos Pereira Ramalho
Pedro dos Santos Gonçalves Antunes