Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | JTRP000 | ||
| Relator: | ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA | ||
| Descritores: | CLÁUSULA PENAL COMPULSÓRIA REDUÇÃO DE CLÁUSULA PENAL | ||
| Nº do Documento: | RP2016030311709/15.4T8PRT.P1 | ||
| Data do Acordão: | 03/03/2016 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | ALTERADA | ||
| Indicações Eventuais: | 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 52, FLS.235-248 VRS.) | ||
| Área Temática: | . | ||
| Sumário: | I - A cláusula penal que as partes acordaram ser devida em caso de mora ou incumprimento definitivo «para além da quantia em dívida» e cujo montante é igual a metade do valor em dívida é, em regra, uma cláusula penal exclusivamente compulsória. II - A cláusula penal exclusivamente compulsória é válida no nosso ordenamento jurídico e não se lhe aplica o regime do artigo 811.º do Código Civil cuja razão de ser está ligada às cláusulas penais de fixação antecipada de indemnização. III - A redução da cláusula penal pelo tribunal não é oficiosa e carece de pedido, explícito ou implícito, do interessado nos respectivos articulados. IV - A cláusula penal exclusivamente compulsória está sujeita ao controlo do abuso de direito, mas, no tocante ao excesso do seu valor, o controlo deve ser feito por aplicação do artigo 812.º e não do artigo 334.º do Código Civil. | ||
| Reclamações: | |||
| Decisão Texto Integral: | Recurso de Apelação Processo n.º 11709/15.4T8PRT.P1 [Comarca do Porto/Instância Local/Porto/Sec. Cível] Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto: I. Relatório: B…, contribuinte n.º ………, residente…, Vila do Conde, intentou a presente acção judicial contra C…, contribuinte n.º ………, e D…, contribuinte n.º ………, ambos residentes em …, Matosinhos, pedindo a condenação solidária destes no pagamento da quantia de €49.700,00, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento. Para o efeito, alegou que em 1 de Julho de 2014, por documento particular, trespassou ao 1º réu o estabelecimento comercial denominado “Café E…”, pelo preço de €35.000,00, o qual devia ser pago numa prestação de €5.000, na data do contrato, e 75 prestações iguais e sucessivas, com periodicidade mensal, a partir de 29.08.2014, por transferência ou depósito na conta bancária da autora; foi acordado que a falta de pagamento de qualquer das prestações implicava o vencimento imediato das restantes, que em caso de mora ou incumprimento seria devida uma indemnização fixada a título de cláusula penal correspondente a 50% do valor que se encontrasse em dívida e que em caso de litígio judicial o 1º réu pagaria todas as despesas judiciais e extrajudiciais, num montante que então fixaram de €2.000,00; o 2º réu interveio no contrato como fiador, garantindo o integral cumprimento de todas as obrigações assumidas pelo 1º réu com renuncia ao benefício da excussão prévia; até à data, o 1º réu apenas pagou a quantia global de €2.700,00, permanecendo em dívida a quantia de €31.800,00, tendo entretanto encerrado o estabelecimento e dele retirado máquinas e equipamentos; sucede que a falta de pagamento da prestação vencida em Janeiro de 2015 e das entretanto vencidas importou o vencimento de todas as restantes, a cuja quantia acresce o valor que autora e réus fixaram a título de cláusula penal e €2.000,00 que fixaram a título de compensação em caso de litígio judicial. A acção foi contestada, pugnando-se pela improcedência total do pedido, mediante a alegação de que apesar de o trespasse ter sido feito pelo valor de €35.000,00, o 1.º réu pagou à autora, em sucessivas entregas em dinheiro, a importância de €37.700,00, nada lhe devendo a esse propósito; que a cláusula penal é nula por o seu valor exceder o valor do prejuízo resultante do incumprimento da obrigação principal. Após julgamento foi proferida sentença julgando a acção procedente e condenando os réus no pedido e ainda o 1.º réu como litigante de má fé em multa e indemnização a favor da autora. Do assim decidido, o 1.º réu interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões[1]: A – Na sentença proferida é feita uma errada interpretação da prova constante do processo assim como uma errada aplicação do direito. B – Efectivamente e com o devido respeito, houve pela Meritíssima juiz a quo erro na interpretação da prova constante do processo, a qual merecia ter tido uma apreciação mais criteriosa, por forma a ter sido interpretada correctamente. O que não aconteceu. C – Deveria ter sido dado como provado que, pois consta de documento junto aos autos, que a importância de €500,00 (quinhentos euros) paga a título de sinal, referente ao contrato de trespasse, foi paga no dia 26 de Abril de 2014. D – Portanto tal importância nunca poderia ter sido paga no dia da assinatura do contrato de trespasse. E – Está provado documentalmente que o Recorrente em 1 de Julho de 2014 levantou da sua conta a importância de €10.000,00 (dez mil euros), Doc nº 2 junto com a contestação. E que o fiador não esteve presente na assinatura do contrato o qual já ia por si assinado, sendo a Autora clara no seu depoimento de parte a dizer que na data da assinatura do contrato, o qual foi assinado no estabelecimento apenas se encontrava ela, o seu companheiro a testemunha F…, o Réu G… e a sua companheira a testemunha H…, depoimento que foi corroborado pela testemunha H… e pelas declarações de parte do Réu D…, testemunha H…, que confirmou no seu depoimento, que naquele dia da assinatura do contrato foi entregue à Autora a importância de €10.000,00 (dez mil euros). F – Em sede do depoimento de parte da Autora a Meritíssima juíza questionou-a sobre se a mesma se tinha deslocado ao estabelecimento posteriormente ao trespasse, tendo aquela respondido afirmativamente. Então pela Meritíssima juíza foi a mesma questionado se o Réu havia realizado obras no estabelecimento, tendo aquela, respondido que não, que o estabelecimento se encontrava na mesma não tendo sido efectuada qualquer obra no mesmo. O que demonstra que nenhuma das importâncias pelo Réu G… levantadas foi utilizada em obras no estabelecimento. Foram sim entregues à A. a qual das mesmas se apropriou não tendo das mesmas passado recibo de quitação. G – No seu depoimento a testemunha F… companheiro da A. profere a declaração enigmática e conclusiva “ Quem é ingénuo não se mete num negócio”. H – Resultou, ainda, provado no processo que o Recorrente recebeu do contrato celebrado com a I…, S. A. a importância de €20.295,00 (vinte mil duzentos e noventa e cinco euros) o que comprovou com a cópia do contrato, cópia do depósito e com a cópia do extracto da sua conta que juntou aos autos com a sua contestação. I – Sendo que esse depósito chegou à sua conta no dia 23 de Julho de 2014 tendo o réu C… logo nesse dia levantado a importância de €10.000,00 (dez mil euros) e no dia seguinte a importância de mais €10.000,00 (dez mil euros), tudo conforme melhor resulta da cópia do seu estrato bancário junto com a contestação. J – Sendo que, esses €20.000,00 foram entregues à autora em … perto da sua residência, junto ao … ai existente, entrega que foi presenciada pela testemunha J…, como resulta da gravação do seu testemunho. L – Ora, na sentença nenhuma referência é feita ao depoimento da testemunha J… o qual prestou o seu depoimento de forma, clara isenta e desinteressada, contrariamente ao depoimento da testemunha F… o qual vive em união de facto com a autora, e que beneficia assim economicamente do facto de aquela ir receber duas vezes o valor do trespasse. M – Posteriormente em 6 de Agosto, conforme consta dos extractos da conta do recorrente o mesmo procedeu ao levantamento da sua conta da importância de €5.000,00 (cinco mil euros) importância que entregou à autora, entrega que foi presenciada e comprovada pela testemunha H…, como consta do seu testemunho. N – Desta forma o réu demonstrou e provou o levantamento e entrega à autora da importância de €35.000,00 (trinta e cinco mil euros) para pagamento do contrato de trespasse. O – Assim, deveria ter sida dado como provado, que a quantia de €500,00 (quinhentos euros) paga a titulo de sinal foi paga no dia 26 de Abril de 2014, bem como deveriam ter sido dados como provados os factos constantes dos itens 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11 e12, dos factos não provados. P – Sendo que, posteriormente à realização do julgamento nos presentes autos foi o Recorrente citado no âmbito do processo executivo o qual sob o nº 13906/15.3T8PRT corre os seus termos na Comarca do Porto – Porto – Inst. Central – 1ª Secção de Execução – J7, no qual a A. lhe exige a importância de €7.845,98 (sete mil oitocentos e quarenta e cinco Euros e noventa e oito cêntimos) relativo a um empréstimo no valor de €7.700,00 (sete mil e setecentos euros) efectuado em 4 de Novembro de 2014 confissão de divida que é a reformulação de uma outra pelo réu e sua companheira entregues à autora e outorgada em 2 de Julho de 2014 no montante de €15.000 (quinze mil euros) Q – Sem prescindir, é nula da clausula penal constante da clausula quarta ponto 3 do contrato de trespasse, pelo que, nunca poderiam assim os réus ser condenados a pagar à autora a importância de € 15.900,00 (quinze mil e novecentos euros) a título de cláusula penal. R – Sendo que, nos presentes autos ainda existe mais uma clausula penal, na cláusula quarta nº 4 “Para além disso, e em caso de litigio judicial, o segundo contraente obriga-se a pagar todos as despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários de advogado e de agente de execução, no montante que aqui fixam de €2.000,00 (dois mil euros)”. S – De facto, refere o art. 811 nº 1 do C.C. estabelece que “O credor não pode exigir cumulativamente, com base no contrato, o cumprimento da obrigação principal e o pagamento da clausula penal, salvo se esta tiver sido estabelecida para o atraso da prestação; é nula qualquer estipulação em contrário”. Assim nos presentes autos aquela clausula prevista na clausula quatro nº 3 não se pode aplicar, pois que o art. 811 nº 1 do C.C. na sua parte final é claro “é nula qualquer estipulação em contrário.” Ou seja em caso de mora a autora poderia exigir o pagamento da importância de 50% como forma de o réu fazer cessar a mora, mas em caso de incumprimento definitivo não pode a autora vir exigir o cumprimento do contrato (obrigação principal) e o pagamento da clausula penal. Nesse sentido vide Acórdão de 22 Out. 2008 do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 08S2056, Relator: José Manuel de Sepúlveda Bravo Serra. Jurisdição: Cível. T – Sem prescindir, dispõe o Artigo 812.do C. C. sob a epígrafe “Redução equitativa da cláusula penal” no seu nº 1 o seguinte: “A cláusula penal pode ser reduzida pelo tribunal, de acordo com a equidade, quando for manifestamente excessiva, ainda que por causa superveniente; é nula qualquer estipulação em contrário.”. Ora no caso em apreço os réus foram condenado a titulo de clausula penal em quase 50% da importância total do contrato, o que é manifestamente excessivo, já que os réus são condenados praticamente a pagar o contrato duas vezes, é que tal clausula até poderia não ser excessiva se se entendesse que, como acontece no contrato de arrendamento, para colocar fim à mora terá de ser pago o valor em mora acrescido de 50%. No entanto, alegar o incumprimento do contrato e exigir quase 50% da totalidade é manifestamente excessivo, pelo que, deveria o tribunal ter recorrido às regras da equidade e ter reduzido a importância a pagar para um valor justo e equitativo. U – Também não deveria o Recorrente ter sido condenado como litigante de má fé, pois que nunca em qualquer fase do processo agiu com má fé, sendo que todos os factos por si alegados são verdadeiros e resultam provados através, da conjugação dos documentos por si juntos com a prova testemunhal produzida e com as regras da experiência, através de uma interpretação criteriosa que leve em conta a totalidade da prova disponível no processo. V – Sendo certo que, como resulta do Acórdão de 05-07-2012 proferido no Processo nº 5367/09.2 TBGMR-A.G1 do Tribunal da Relação de Guimarães “I. Relativamente aos factos subjectivos ou do foro interno do agente ou de terceiro, refere o ilustre Prof. A. Varela, in obra citada: “ … a prova, no domínio do direito (processual), ao invés do que ocorre com a demonstração, no campo da matemática, ou com a experimentação, no âmbito das ciências naturais, não visa a certeza lógica ou absoluta, mas apenas a convicção (o grau de probabilidade) essencial às relações práticas da vida social. 2. A responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, com dolo ou negligência grave, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça, ou, a deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;” o que não acontece nos presentes autos, em que o Recorrente pugna pela justiça e pela verdade, a qual pode ser mais ou menos difícil de provar, mas nem por isso deixa de ser verdade. X – Violou, assim, a douta sentença recorrida, entre outros o disposto nos arts. 542º, 811º e 812º do Código Civil. Com as alegações de recurso o recorrente juntou o documento referido na alínea P) das “conclusões”. A recorrida respondeu às alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado. Após os vistos legais, cumpre decidir. II. Questões a decidir: As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões: i) Se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto. ii) Qual a natureza da cláusula penal e, em função disso, se a mesma é válida. iii) Se deve fazer-se a redução da cláusula penal. iv) Se o 1.º réu deve ser condenado como litigância de má fé. III. Os factos: Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos: 1) Em 1 de Julho de 2014, por documento particular, a autora trespassou ao primeiro réu o estabelecimento comercial de café, confeitaria e salão de chá, denominado “Café E…”, instalado nos n.ºs 65 e 67 do prédio urbano sito à Rua…, edifício e sede da …. 2) O trespasse abrangeu os alvarás e licenças, bem como os utensílios, as mercadorias, os móveis e demais equipamentos e maquinismos que integravam o identificado estabelecimento comercial. 3) Como contrapartida do referido trespasse, o primeiro réu comprometeu-se a pagar à Autora o preço de €35.000,00. 4) A apontada quantia seria paga da seguinte forma: a) Como sinal e princípio de pagamento, o primeiro réu pagou, na data do contrato, a quantia de €500,00, de que lhe foi dada quitação. b) A restante parte do preço em dívida, ou seja, €34.500,00, seria paga pelo primeiro réu em setenta e cinco prestações iguais, mensais e sucessivas de €460,00 cada, através de transferência ou depósito na conta bancária da autora, vencendo-se a primeira no dia 29 de Agosto de 2014 e as restantes no último dia útil dos setenta e quatro meses seguintes. 5) A falta de pagamento de qualquer das prestações implicava o vencimento imediato de todas as outras. 6) Em caso de mora ou incumprimento, o primeiro réu obrigou-se, ainda, a pagar à Autora, para além da quantia em débito, uma indemnização fixada a título de cláusula penal correspondente a 50% do valor que se encontrasse em dívida. 7) Para além disso, e em caso de litígio judicial, o primeiro réu obrigou-se a pagar todas as despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários de advogado e de agente de execução, num montante que então fixaram de €2.000,00. 8) Foi fiador do referido contrato o segundo réu, que garantiu o integral cumprimento de todas as obrigações assumidas pelo primeiro réu, no contrato de trespasse em causa, expressamente renunciando ao benefício da excussão prévia. 9) O primeiro réu precedeu ao pagamento das prestações vencidas nos meses de Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2014, num total de €2.300,00. 10) Sendo certo que entre Janeiro e Abril de 2015, o primeiro réu pagou à autora, de forma fraccionada, a quantia de €400,00, nos seguintes termos: a) €80,00, em 3.02.2015; b) €80,00, em 5.02.2015; c) €60,00, em 6.02.2015; d) €30,00, em 11.02.2015; e) €50,00, em 12.02.2015; f) €100,00, em 6.04.2015. 11) Em meados de Abril de 2015, o primeiro réu encerrou, definitivamente, o estabelecimento. 12) No dia 30 de Abril de 2015, e não obstante a cláusula de reserva de propriedade, o primeiro réu, com a ajuda de terceiros, retirou do estabelecimento todos os equipamentos, maquinarias e mobiliário, vendendo-os de seguida. 13) A companheira do primeiro réu havia trabalhado para a autora em dois estabelecimentos comerciais. 14) Sendo por intermédio daquela que se veio a realizar o trespasse. IV. Questão prévia (junção de documentos com as alegações de recurso): Com as suas alegações de recurso, o recorrente apresentou um documento, composto por uma nota de citação do recorrente com data de 28.10.2015 numa execução para pagamento de quantia certa que lhe foi instaurada pela aqui autora. Nos termos do artigo 651.º do novo Código de Processo Civil as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º e no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância. A junção de documento só com o recurso não é pois um direito processual de natureza potestativa, que qualquer das partes possa exercer livremente em função do seu livre arbítrio, é um direito subordinado a condições legais que necessitam de estar verificadas para que a prática do acto seja consentida. O recorrente não se deu ao trabalho de justificar a junção do documento com as alegações de recurso, quando essa junção só é admitida nas referidas condições cuja verificação deveria por isso ter sido alegada e justificada. Sucede que não cabe a esta Relação o dever de indagar se estão reunidos factos para julgar verificada alguma das referidas condições excepcionais que permitem a junção. Acresce que os documentos são meios de prova de factos. O seu relevo consiste em serem capazes de comprovar determinados factos. Esse relevo tem, por isso, como pressuposto óbvio que os factos que os documentos visam demonstrar possam ser atendidos em juízo por terem interesse para a decisão da mesma. Se os factos não puderem ser atendidos, designadamente por não terem interesse, os documentos também não têm (não podem ter) qualquer interesse para a lide e não devem, por conseguinte, ser admitidos. Ora o documento nenhum relevo tem para a discussão suscitada pelo recurso uma vez que a citação se refere a uma acção perfeitamente distinta da presente, com uma causa de pedir totalmente diferente e para cumprimento de obrigações diversas das que são exigidas na acção, que em nada contendem, prejudicam ou inutilizam as obrigações que são objecto desta acção. O documento não tem, aliás, qualquer valor probatório em relação à matéria de facto que se discute nos autos. Em suma, não está alegada nem demonstrada qualquer das situações que tornariam admissível a junção do documento com as alegações de recurso. Pelo exposto, decide-se não admitir a junção do documento, o qual não será atendido nos autos para qualquer efeito. V. do mérito do recurso: i) do recurso da decisão sobre a matéria de facto: O recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto, pretendendo que o tribunal altere a decisão relativa ao facto provado do item 4, alínea a), julgando que o pagamento ali mencionado teve lugar noutra data, e bem assim julgue provados os factos constantes dos itens 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 11 e 12, do elenco dos não provados. Nos termos do artigo 639.º do Código de Processo Civil as alegações de recurso dividem-se em corpo das alegações, nas quais o recorrente expõe os fundamentos ou argumentos através dos quais procura convencer o tribunal de recurso da sua razão, e conclusões das alegações, nas quais o recorrente sintetiza as concretas questões que pretende que o tribunal de recurso aprecie e o sentido com que as deverá decidir. Com base nos artigos 608.º, nº 2, 609.º, n.º 1, 635.º, nº 4, e 639.º, do Código de Processo Civil constitui jurisprudência continuamente reafirmada que o thema decidendum do recurso é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não sendo permitido ao tribunal ad quem conhecer de questões que extravasem as conclusões de recurso, excepto se as mesmas forem de conhecimento oficioso. A delimitação do objecto do recurso pela formulação das conclusões das alegações conduz a que seja em função destas, e não propriamente do corpo das alegações, que se devam interpretar a balizar as questões que o tribunal de recurso pode e deve conhecer, as quais só podem exceder o mencionado nas referidas conclusões no caso de se tratar de questões de conhecimento oficioso e cujo conhecimento não esteja precludido ou prejudicado. Uma vez que são as conclusões das alegações de recurso que delimitam as questões colocadas à apreciação do tribunal de recurso, é também nelas que se devem mostrar cumpridos os requisitos da impugnação da decisão da matéria de facto, sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte. No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15/02, que introduziu o artigo 690º-A do Código de Processo Civil, na versão anterior à do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, justificava-se essa solução da seguinte forma: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso. Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido. A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”. A violação deste ónus, preciso e rigoroso, conduz, nos termos expressos e, por conseguinte, intencionais da norma, à rejeição imediata do recurso na parte afectada, não havendo sequer lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento da falha – neste sentido cf. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, pág. 145 e seguintes – porquanto esse convite se encontra apenas consagrado no n.º 3 do artigo 639.º do Código de Processo Civil para as conclusões das alegações sobre matéria de direito. Ora, lendo as conclusões das alegações do recurso afigura-se-nos que no caso é altamente discutível que a recorrente haja cumprido os aludidos requisitos na sua totalidade. Conforme prevê o artigo 640.º do novo Código de Processo Civil, querendo impugnar a decisão da matéria de facto o recorrente tem de especificar, obrigatoriamente e sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, os seguintes aspectos: os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que na óptica dos recorrentes impunham decisão diversa e o sentido da decisão que deve ser proferida, sendo que no tocante aos depoimentos gravados carece de indicar as passagens da gravação em que se funda o seu recurso. A lei impõe assim ao recorrente que individualize os factos que estão mal julgados, que especifique os meios de prova concretos que impõem a modificação da decisão, que indique o sentido da decisão a proferir e, inclusivamente, tratando-se de depoimentos de testemunhas gravados, que precise as passagens dos depoimentos que tal hão-de permitir. Refira-se que temos vindo a seguir o entendimento de que o requisito da indicação das passagens exactas da gravação dos depoimentos em que se funda o recurso pode considerar-se preenchido ainda que essa indicação conste apenas do corpo das alegações de recurso e não tenha sido levado às respectivas conclusões, uma vez que essa indicação serve apenas o objectivo de auxiliar o tribunal de recurso a localizar os segmentos dos depoimentos que o recorrente assinala e pretende que sejam reavaliados e já não o objectivo de delimitar os meios de prova em que o recorrente funda a sua discordância com a decisão da 1.ª instância que é o sentido último do estabelecimento de requisitos legais específicos da impugnação da decisão da matéria de facto. No caso em apreço, lendo as conclusões das alegações de recurso constata-se que o recorrente especifica aquilo que a seu ver deve ser julgado provado ou não provado, assim cumprindo os requisitos da especificação dos concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados e do sentido da decisão que deve ser proferida. Constata-se ainda que o recorrente faz referência concreta a diversos meios de prova: documentos e depoimentos de testemunhas. Todavia, nem no corpo das alegações nem nas respectivas “conclusões” – que como referido apenas repetem aquele - o recorrente faz qualquer menção às passagens da gravação dos depoimentos em que se funda o seu recurso. No caso, em parte alguma das suas alegações o recorrente se dá ao trabalho de indicar as passagens da gravação dos depoimentos, tal como não procede a qualquer transcrição dos depoimentos ou de excertos dos mesmos com as passagens significativas. Nem sequer, como por vezes se vê, menciona a que horas e minutos se iniciaram e/ou terminaram os depoimentos em causa, o que de todo o modo seria insuficiente uma vez que isso não se traduz na indicação exacta das passagens da gravação relevantes. Esta situação conduz, a nosso ver, a que se deva rejeitar o recurso da decisão da matéria de facto na parte em que o mesmo tem como fundamento os meios de prova em relação aos quais o recorrente omitiu o cumprimento da totalidade dos requisitos legais de impugnação, ou seja, tem como fundamento a prova testemunhal. O que significa que o recurso deve ser apreciado somente na parte em que tem como fundamento os documentos mencionados pela recorrente, já que em relação a estes meios de prova o requisito omitido não se aplica. Fica, naturalmente, ressalvava a possibilidade de o tribunal, no uso dos seus poderes oficiosos, sindicar todos os demais meios de prova no caso de aqueles documentos possuírem valor probatório para justificar a alteração da decisão, caso em que haverá que analisar a totalidade da prova produzida para formular uma nova convicção integral sobre a prova produzida. Isto dito, com a indicada restrição, entremos na análise da impugnação da decisão sobre a matéria de facto. Os factos objecto da impugnação reportam-se a pagamentos que o réu diz ter efectuado à autora em dinheiro, apesar de o contrato estipular que os pagamentos deviam ter lugar por depósito ou transferência bancária. Para fazer a prova destes factos era pois indispensável produzir meios de prova que revelassem que o autor fez a entrega à autora de determinadas quantias, em determinada data e lugar e tendo por finalidade o cumprimento das obrigações emergentes deste contrato. Os documentos a que o recorrente se refere e que se mostram juntos com a contestação são uma lista de movimentos da conta bancária do 1.º réu onde consta que no dia 01.07.2014 foram feitos dois movimentos descritos como “pagamento de cheque”, cada um no valor de €5.000 (doc. 1); um recibo-quitação com data de 26.04.2014, assinado pela autora, a dar como recebida a quantia de €500 referida no contrato de trespasse (doc. 2); um contrato com data de 07.07.2014 celebrado entre a I…, o 1.º réu e a autora (fiadora daquele) no qual aquela se obriga a pagar ao 1.º réu uma determinada quantia como contrapartida, dita publicitária, pelo contrato de fornecimento de café em regime de exclusividade (doc. 3); um comprovativo de transferência dessa quantia para a conta bancária do 1.º réu com data-valor de 23.07.2014 (doc. 4); uma lista de movimentos da conta bancária do 1.º réu onde consta aquela transferência e ainda que nos dias 23 e 24 de Julho e 6 de Agosto de 2014, foram feitos no total cinco movimentos descritos como “pagamento de cheque”, cada um no valor de €5.000 (doc. 5). É absolutamente seguro que estes documentos não têm, em circunstância nenhuma, a virtualidade de fazer prova de que o 1.º réu entregou à autora quaisquer quantias em dinheiro, designadamente as quantias de que o 1.º réu terá alegadamente beneficiado através dos movimentos referidos nos aludidos documentos, sendo certo que os documentos não atestam que o “pagamento de cheque” representou um levantamento de dinheiro, tal como não atestam nem podem atestar o destino que pode ter sido dado ao dinheiro no caso de o autor ter levantado essas importâncias com uso de um cheque. A única ilação que se pode retirar do documento n.º 2 referido, por se tratar de uma declaração de quitação assinada pela própria autora que faz prova plena contra a mesma quanto ao valor recebido e à data em que foi recebido, prova essa que não podia ser contrariada por testemunhas (artigos 376.º e 394.º do Código Civil) é que o valor de €500.00 correspondente à 1.ª prestação de pagamento do preço do trespasse não ocorreu na data aposta no contrato de trespasse (01.07.2014) mas na data confessada pela autora nesse documento (26.04.2014). Essa conclusão obrigava de seguida a esquadrinhar a totalidade dos meios de prova produzidos para verificar se o valor da prova representada pelo documento não foi afastada por nenhum outro meio de prova com essa capacidade legal, em ordem a confirmar se o tribunal a quo podia dar como provado que o pagamento dessa quantia ocorreu na data do contrato ou tinha de dar como provado, por confissão, que o foi na data mencionada na declaração de quitação. Todavia, essa tarefa é absolutamente inútil porque da alteração desse facto não resultaria nunca qualquer consequência jurídica para a apreciação do mérito da acção. Com efeito, ambas as partes estão de acordo que esse pagamento teve lugar e nenhum dos pedidos formulados tem como causa de pedir esse pagamento ou o atraso na sua realização, pelo que a data em que ele possa ter tido lugar não tem o mais pequeno relevo jurídico para o mérito da acção. Por esse motivo, abstemo-nos de conhecer do recurso da decisão relativa a esse facto em concreto. Uma vez que em relação aos demais factos a impugnação da decisão soçobra pelas razões já aduzidas, a impugnação da decisão da matéria de facto improcede in totum. Pese embora nas alegações de recurso não esteja formulada uma única conclusão sobre as ilações de direito que em sede de conhecimento do mérito o tribunal de recurso deveria retirar da matéria de facto que se pretendia que fosse agora julgada provada, sempre se dirá que não tendo ficado provado nenhum dos pagamentos alegados pelo autor e não havendo qualquer alteração da matéria de facto não se pode questionar a fundamentação jurídica da sentença, com excepção apenas dos aspectos especificamente focados nas alegações de recurso e que de seguida serão analisados. ii) da natureza e validade da cláusula penal: Os nos. 2, 3 e 4 da cláusula 4.ª do contrato consagram as seguintes estatuições: - A falta de pagamento de qualquer uma das prestações previstas importa o vencimento imediato de todas, podendo a trespassante cobrar judicialmente o valor em dívida. - Em caso de mora ou incumprimento, o trespassário obriga-se a pagar à trespassante, para além da quantia em dívida, uma indemnização, que aqui fixam a título de cláusula penal correspondente a 50% do valor total que se encontre em dívida. - Para além disso, e em caso de litígio judicial, o trespassário obriga-se a pagar todas as despesas judiciais e extrajudiciais, incluindo honorários de advogado e de agente de execução, num montante que aqui fixam de €2.000,00. A autora formulou um pedido que compreende a totalidade dos valores previstos nestas estipulações contratuais. A sentença recorrida afirmou que a autora tinha o direito de exigir a totalidade desses valores e condenou os réus a efectuar o seu pagamento. Repetindo a excepção que alegou na contestação, o recorrente sustenta no recurso que a cláusula penal de 50% do valor em dívida «é nula nos termos do artigo 811.º do Código Civil». De forma inovadora, o recorrente suscita ainda nas alegações de recurso algo que não alegou na contestação e que não foi abordada na decisão recorrida, qual seja a questão de que «deveria o tribunal ter recorrido às regras da equidade e ter reduzido a importância a pagar para um valor justo e equitativo». Em ambos os casos o recorrente refere-se somente à cláusula penal estabelecida no n.º 3 da cláusula 4 do contrato para as situações de mora ou incumprimento do trespassário. A argumentação do recorrente já não se estende à cláusula prevista no n.º 4 para a situação de o trespassante ter de lançar mão de uma acção judicial para obter o pagamento do preço do trespasse. A questão suscitada obriga a determinar a natureza da cláusula penal acordada pelas partes, para decidir se a mesma é consentida pela ordem jurídica e se se lhe aplica o regime do artigo 811.º do Código Civil. No dizer de Vaz Serra, in Pena Convencional, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 67, pág. 240, “há cláusula penal ou pena convencional quando o devedor promete ao seu credor uma prestação para o caso de não cumprir ou de não cumprir perfeitamente a obrigação”. Calvão da Silva, in Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, pág. 247, define a cláusula penal, na acepção de cláusula penal indemnizatória, como “a estipulação negocial segundo a qual o devedor, se não cumprir a obrigação ou não cumprir exactamente nos termos devidos, maxime no tempo fixado, será obrigado, a título de indemnização sancionatória, ao pagamento ao credor de uma quantia pecuniária. (…) Dada a sua simplicidade e comodidade, a cláusula penal é instrumento de fixação antecipada, em princípio ne varietur, da indemnização a prestar pelo devedor no caso de não cumprimento ou mora, e pode ser eficaz meio de pressão ao próprio cumprimento da obrigação. (…) a cláusula penal prevê antecipadamente um forfait que ressarcirá o dano resultante de eventual não cumprimento ou cumprimento inexacto”. É diversa a definição de cláusula penal sustentada por Pinto Monteiro. Para este autor, in Cláusula penal e comportamento abusivo do credor, Estudos de Homenagem ao Prof. Dr. António Castanheira Neves, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, 2008, vol. II, pág. 504, a cláusula penal é a “estipulação em que qualquer das partes ou uma delas apenas, se obriga antecipadamente, perante a outra, a efectuar certa prestação, normalmente em dinheiro, em caso de não cumprimento ou de não cumprimento perfeito (maxime, em tempo) de determinada obrigação, a fim de proceder à liquidação do dano ou para compelir o devedor ao cumprimento”. Como se vê, Calvão da Silva acentua a correspondência da cláusula penal à definição que dela fornece o artigo 810.º do Código Civil – fixação por acordo do montante da indemnização exigível –, enquanto Pinto Monteiro alarga o âmbito da figura a fins puramente compulsórios – compelir a parte a cumprir –. A doutrina (cf. Pinto Monteiro, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 141.º, n.º 3972, pág. 177 e seguintes, e Nuno Pinto de Oliveira, in Cláusulas Acessórias ao Contrato, Almedina, 2.ª edição, págs. 63 e seguintes) e a jurisprudência (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.09.2011, relatado por Nuno Cameira, in www.dgsi.pt, objecto da mencionada anotação favorável de Pinto Monteiro), dividem as cláusulas penais em três modalidades distintas: i) a cláusula penal indemnizatória dirigida à reparação de danos mediante a fixação antecipada e ne varietur da indemnização em caso de não cumprimento definitivo ou de simples mora do devedor (única figura expressamente prevista no artigo 810.º do Código Civil); ii) a cláusula penal exclusivamente compulsória, que tem por objectivo compelir o devedor a cumprir e em que a pena acresce ao cumprimento ou à indemnização pelo incumprimento; iii) e a cláusula penal em sentido estrito ou propriamente dita, cuja estipulação visa ainda compelir o devedor ao cumprimento mas em que a pena substitui o cumprimento ou a indemnização pelo não cumprimento, não acrescendo a nenhuma delas. Entende-se, na sequência da doutrina de Pinto Monteiro, que mesmo não estando expressamente contida na noção de cláusula penal do artigo 810.º do Código Civil, a cláusula penal exclusivamente compulsória, é, em princípio, absolutamente válida. A sua estipulação pelas partes é permitida pelo princípio da liberdade negocial que preside ao nosso sistema jurídico[2] e constitui um óptimo mecanismo para criar condições para se alcançar aquilo que os contraentes e o sistema jurídico intentam com a regulação dos interesses opostos mas convergentes, que as partes cumpram[3] aquilo a que voluntariamente se obrigaram, pacta sunt servanda, o que representa uma razão válida para permitir às partes a adopção de cláusulas dessa natureza. Acresce que a ordem jurídica dispõe de mecanismos de controlo dos abusos que tais cláusulas possam permitir, de ordem geral, como a figura do abuso de direito, ou de ordem particular, como a possibilidade de redução ao abrigo do artigo 812.º do Código Civil, pelo que a permissão de cláusulas desta natureza não constitui um risco acrescido do tráfego jurídico que se deva evitar cautelarmente. A redacção da cláusula motiva alguma dificuldade interpretativa para efeitos de determinação da sua natureza. Por um lado, diz-se que a pena é “uma indemnização”, o que aponta para se estar perante uma cláusula penal indemnizatória, destinada apenas a fixar antecipada e definitivamente o valor da indemnização devida pela “mora ou incumprimento”. Contudo, sabendo-se que a obrigação a cargo do trespassário tem por objecto uma prestação pecuniária e que o atraso ou incumprimento desta prestação gera a obrigação de pagamento de juros sobre o capital em dívida, ainda que em concreto não haja lugar a danos ou os danos não atinjam o valor que decorre da aplicação da taxa de juros, a qualificação da pena como indemnização constante da redacção da cláusula não parece fazer sentido. Por outro lado, diz-se que a pena é devida “para além da quantia em dívida”. Ora a circunstância de as partes acordarem que a pena não exclui nem substitui o valor correspondente ao cumprimento omitido, mas acresce ao mesmo é uma indício forte de que as partes pretenderam que a pena funcionasse no caso como pressão para o cumprimento. Na verdade, sendo certo que a mora ou incumprimento do trespassário só pode dizer respeito, no caso, à obrigação de pagamento das prestações em que foi dividido o preço do trespasse, não faria qualquer sentido que as partes fixassem o valor da indemnização a favor do trespassante num montante inferior ao valor do preço em dívida, querendo com isso que em caso de incumprimento do trespassário o trespassante apenas pudesse exigir daquele metade daquilo a que teria direito em caso de cumprimento. Tal faculdade redundaria afinal num incentivo ao não cumprimento, o que não faz sentido e por isso não pode corresponder à vontade conjecturável das partes ao estabelecerem a cláusula penal. Nessa medida, entendemos que a cláusula deve ser interpretada como sendo uma cláusula penal exclusivamente compulsória, ou seja, como contendo a previsão de uma pena destinada a pressionar ou forçar o trespassário a cumprir a obrigação pecuniária decorrente do trespasse e que, para poder servir essa finalidade, acresce ao valor que o trespassante pode não obstante reclamar para cumprimento integral da prestação. Possuindo essa natureza, a cláusula penal está afinal excluída do âmbito de aplicação do artigo 811.º do Código Civil, cujo regime jurídico e razão de ser está intimamente associado às cláusulas penais de fixação antecipada de indemnização (cf. Pinto Monteiro, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 141.º, pág. 198). E sendo assim, a cláusula penal prevista no contrato é válida[4] e pode perfeitamente ser cumulada com a exigência do cumprimento da prestação devida pelo trespassário. Improcede, portanto, esta questão suscitada no recurso. iii) da redução da cláusula penal: Questão diferente é a que se prende com a possibilidade de operar a redução da pena, o que o recorrente reclama do tribunal ao abrigo do disposto no artigo 812.º do Código Civil. Vejamos. Já se anotou que esta questão foi pela primeira vez suscitada nos autos em sede de alegações de recurso. Na contestação, o réu limitou-se a arguir a ilicitude da cláusula por violação do disposto no n.º 3 do artigo 811.º do Código Civil, não tendo, explicita ou implicitamente, sustentado que o valor da pena era manifestamente excessivo e deveria ser reduzido. Daí que na sentença recorrida, a questão da redução da pena não tenha sido decidida ou sequer apreciada. Ora como se refere nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28.05.2009 e da Relação do Porto de 15.06.2011, in www.dgsi.pt, os recursos são meios de impugnação das decisões judiciais, destinados à reapreciação das matérias anteriormente sujeitas à apreciação do tribunal a quo e não meios de renovação da causa através da apresentação de novos fundamentos de sustentação do pedido (matéria não anteriormente alegada) ou formulação de pedidos diferentes (não antes formulados), pelo que a novidade de uma questão, relativamente à anteriormente proposta e apreciada pelo tribunal recorrido acarreta a impossibilidade pelo tribunal ad quem a apreciar. No mesmo sentido afirmam Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 3º, 2ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 8, que é “constante a jurisprudência no sentido de que aos tribunais de recurso não cabe conhecer de questões novas (o chamado ius novorum), mas apenas reapreciar a decisão do tribunal a quo, com vista a confirmá-la ou revogá-la”, e que os “tribunais de recurso podem, porém, conhecer de questões novas que sejam de conhecimento oficioso” – cf. neste sentido os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14.05.93, in Colectânea de Jurisprudência-STJ, 1993, II, pág. 62, de 29.04.1998 e de 26.11.2014, in www.dgsi.pt, da Relação de Lisboa de 02.11.95, in Colectânea de Jurisprudência, 1995, V, pág. 98, da Relação de Coimbra de 08.11.2011 e de 15.01.2013, in www.dgsi.pt, e da Relação do Porto de 25.06.2013, in www.dgsi.pt. Resulta assim claro que esta Relação apenas poderá conhecer da redução da cláusula penal ora pretendida pelo recorrente se a mesma for de conhecimento oficioso, isto é, se o tribunal gozar do poder de reduzir oficiosamente o valor da pena, caso em que tal como a 1.ª instância o poderia fazer, também esta Relação o poderá fazer se entender que a pena é manifestamente excessiva (artigo 812.º do Código Civil). Sucede que a doutrina e a jurisprudência dominantes entendem que a redução equitativa da cláusula penal com fundamento no artigo 812.º não pode ser decretada oficiosamente pelo tribunal, dependendo sempre de pedido do devedor nesse sentido, admitindo no entanto, que essa pretensão não necessita de ser formulada expressamente e pode sê-lo apenas de forma implícita, designadamente quando o devedor se insurge contra o montante da pena. É esse o entendimento[5] de Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 1986, pág. 81; Galvão Telles, in Direito das obrigações, 7.ª ed., Coimbra Editora, pág. 441: Almeida Costa, in Direito das obrigações, 8.ª ed., Livraria Almedina, pág. 734, Menezes Cordeiro, in Tratado de direito civil português, vol. I, tomo 1, Livraria Almedina, 1999, pág. 466; Pinto Monteiro, in Cláusula penal e indemnização, Livraria Almedina, 1990, pág. 735, Calvão da Silva, in Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, 1997, pág. 275, nota n.º 502. Na jurisprudência esse entendimento foi seguido designadamente nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17.02.98, in Colectânea de Jurisprudência, ano VI, Tomo I, pág. 72, de 12.10.1999, de 30.9.2003, de 20.11.2003 e de 17.5.2012 in www.dgsi.pt, e nos Acórdãos da Relação do Porto de 08.04.91, de 23.11.93 e de 26.01.2000, na Colectânea de Jurisprudência, respectivamente, Ano XVI, tomo II, pág. 256, XVIII, V, pág. 225 e XXV, I, pág. 205, e de 15.01.2013, relatado por Fernando Samões, no proc. 2015/09.4TBPFR.P1, in www.dgsi.pt. Para o efeito, entende-se que tendo a cláusula sido acordadas pelas partes e incluída no contrato, a sua redução deve exigir ao menos que uma das partes se insurja contra a aplicação da cláusula no contexto do incumprimento ocorrido por daí resultar uma pena manifestamente excessiva com a qual não contava e não tinha de contar aquando da sua aceitação no contrato. Depois invoca-se que o mecanismo da redução equitativa da cláusula manifestamente excessiva se filia no controlo da usura negocial e da alteração anormal das circunstâncias, pelo que o regime do seu conhecimento deve ser equiparado ao regime dos artigos 282.º e 283.º (negócios usurários) e 437.º (alteração anormal das circunstâncias), nos quais é exigido que a parte interessada argua o vício e reclame a anulação ou modificação do contrato com esse fundamento. Do artigo 812.º do Código Civil não resulta que a redução da pena manifestamente excessiva deve ser feita sempre, resulta apenas que ela pode ser feita pelo tribunal, mesmo que as partes hajam previamente afastado a possibilidade de redução, caso em que esta cláusula será nula, mantendo-se incólume a possibilidade de redução pelo tribunal. Acresce que a própria função da pena, seja ela indemnizatória ou compulsória, pressupõe algum excesso ou, ao menos, a possibilidade de haver nela algum excesso. Por conseguinte, no momento da sua contratação as partes podem ter estado absolutamente conscientes dessa dimensão excessiva da pena e terem aceite voluntariamente o risco da sua aplicação. Faz, pois, sentido que a possibilidade de intervenção do tribunal, que a norma restringe ao controlo do excesso manifesto, reclame a iniciativa do devedor já que é essa iniciativa que permite admitir que a cláusula haja deixado de corresponder ao consenso contratual, haja extravasado o âmbito do acordo de vontades formado conscientemente. Contra este entendimento, Ana Prata invoca a circunstância de a redução da pena convencional ter como fundamento princípios de ordem pública e por essa razão dever ser actuada oficiosamente (in loc. cit, pág. 642). Todavia, como Pinto Monteiro assinalou ao refutar este argumento, do facto de o artigo 812.º do Código Civil ser uma norma de ordem pública, razão que impede as partes de convencionarem o afastamento dessa possibilidade, não decorre ipso facto que o tribunal possa intervir oficiosamente, uma vez que os princípios da ordem pública podem considerar-se satisfeitos com o impedimento de as partes de afastarem previamente a possibilidade de redução e dando ao interessado a faculdade de requerer, querendo, a redução. No Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03.11.2015, relatado por Maria Domingas Simões, no proc. 92/14.5TVLSB.C1, in www.dgsi.pt, ensaia-se um modo de contornar a falta de iniciativa do devedor na arguição do manifesto excesso da pena, defendendo-se que não sendo possível a redução oficiosa da pena é, no entanto, possível ao tribunal reduzi-la usando para o efeito o instituto do abuso do direito. Com todo o devido respeito, não cremos que esta alternativa se deva colocar, não sendo curial do ponto de vista dogmático confundir o que é específico com o que é geral e esquecer as particularidades que justificam a solução específica. Com efeito, pensamos, existindo uma norma legal cujo objectivo particular é a de permitir o controlo judicial do excesso da pena e sendo pressuposto da sua aplicação que o excesso seja manifesto, não vemos que se possa reduzir a pena com fundamento no seu valor, abstraindo desta norma e do seu pressuposto, como se a mesma não existisse. Subjacente à relevância do excesso manifesto até podem estar razões de boa fé que subjazem igualmente ao instituto do abuso do direito; todavia, ainda que assim seja, tem de se admitir que o legislador sopesou essas razões ao definir como definiu o regime da redução da pena no artigo 812.º do Código Civil, o qual representa pois, nessa medida, uma concretização legal da proibição do exercício abusivo do direito à pena, que ao aplicador do direito cumpre respeitar quando o seu fundamento é exclusivamente o valor desta. Não se diga que desta forma estamos a excluir ou reduzir substancialmente a possibilidade de a pena, designadamente a pena exclusivamente compulsória, ser controlada pelo instituto do abuso do direito. Esse controlo é possível e deve obviamente ser feito. O que nos parece é que o artigo 812.º é a resposta normativa específica para o problema do excesso d(o valor d)a pena, a sede dogmática da solução que a ordem jurídica elegeu para essa questão, pelo que o abuso de direito só pode controlar outros problemas que a exigência da pena suscite, dar resposta a outras dimensões em que a exigência da pena apela às regras da boa fé e dos bons costumes (v.g. a exigência da pena em situações de culpa diminuta ou de incumprimentos de escassa relevância). Se bem interpretamos é essa também a posição de Pinto Monteiro na anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.09.2011, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 141.º, pág. 196, quando acentua que «(…) o poder de redução judicial não esgota os meios de controlo a que o devedor pode recorrer, estando a cláusula penal sujeita, como qualquer outra estipulação acordada entre as partes, a um controlo geral, havendo que apurar, designadamente, se o consentimento foi prestado na forma devida, se não há qualquer vício da vontade, se não é ofensiva da ordem pública ou dos bons costumes, etc. Mas é sem dúvida o controlo específico consagrado no art. 812.º, através do qual se permite a redução equitativa da pena, quando verificados certos pressupostos, que assume maior importância e significado no combate a cláusulas penais abusivas.» [sublinhados nossos]. Podemos assim concluir que estando a possibilidade de proceder à redução equitativa da pena com fundamento no seu excesso manifesto dependente da iniciativa processual do devedor e não tendo, no caso, essa iniciativa surgido no momento certo (na contestação) mas apenas a destempo nas alegações de recurso, altura em que representa já uma questão nova que o tribunal de recurso não pode apreciar, está vedado a esta Relação proceder, neste Acórdão, à redução oficiosa da pena prevista no contrato para o caso de mora ou incumprimento do trespassário. Mesmo que, ao invés, se admitisse que esta Relação pudesse proceder à redução da pena, ainda assim, cremos, tal redução não deveria ter lugar. Tendo a redução da pena o efeito jurídico de modificar o direito do credor, ela deve ser vista como uma excepção de direito material cujo ónus de alegação e prova caberá ao devedor. Por outro lado, sendo requisito da redução o excesso manifesto da pena, o processo há-de conter factos que demonstrem esse excesso, não se excluindo, no entanto, que o excesso seja de tal dimensão que possa ser manifesto em qualquer circunstância, o que será uma situação excepcional. Caberá, pois, ao devedor o ónus de alegar e provar os factos que integrem o manifesto excesso, sendo certo que parece dever entender-se que tal excesso deverá ser analisado diferentemente consoante estejamos perante uma cláusula penal indemnizatória – em que o excesso será sempre uma não relação entre a pena e os danos efectivos – ou perante uma cláusula penal exclusivamente compulsória – em que o excesso deverá resultar da enormidade da pressão representada pelo valor da cláusula – (cf., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17.11.98, de 09.02.99 e de 05.12.2002, na Colectânea de Jurisprudência – STJ, ano VI, tomo III, pág. 120, Ano VII, tomo I, pág. 99, e Sumários, ano 2002, pág. 10). No caso da cláusula exclusivamente compulsória é necessário não esquecer que para impelir o devedor a cumprir é necessário cominar-lhe um mal que represente um desincentivo ao incumprimento. Uma vez que esse mal não se relaciona com os danos e acresce mesmo à indemnização dos danos, o excesso manifesto terá de se reportar à dimensão da própria cominação e ocorrerá quando esta seja irrealista, desmesurada, brutal. Só é possível reduzir a cláusula penal quando for manifesto que esta possui uma desproporção substancial e evidente, quando a satisfação da mesma tiver para o devedor efeitos exorbitantes. Não se pode, com efeito, através da redução da pena eliminar o efeito compulsório pretendido pelas partes, pois isso daria aos credores a ideia de que podem aceitar qualquer cláusula penal (para o efeito, quanto mais elevada melhor) sem temerem pelo seu pagamento em caso de não cumprimento uma vez que depois, quando ela lhe for exigida, obterão a sua redução judicial. Tal redundaria na exclusão por via judicial do mecanismo jurídico da cláusula penal voluntária, o que deve ser evitado. Pois bem, no caso, a cláusula penal foi fixada em metade da medida do incumprimento. À partida, não vemos que isso seja manifestamente excessivo para impelir o trespassário a cumprir. Acresce que não está demonstrado nenhum outro facto que releve no sentido da natureza excessiva dessa cláusula. Pelo contrário, estão provados factos que indiciam que o incumprimento teve uma dimensão e uma gravidade acentuadas que mais justificam a pena prevista. Referimo-nos ao facto de o trespassário das 75 prestações previstas para o pagamento do preço do trespasse só ter efectuado o pagamento das primeiras 5. E ainda ao facto de posteriormente ao incumprimento o trespassário, não obstante o contrato estabelecer a reserva de propriedade do estabelecimento a favor do trespassante, ter não apenas encerrado o estabelecimento como retirado do mesmo máquinas, equipamentos e mobiliário que já alienou a terceiros, assim destruindo por completo o estabelecimento comercial e impedindo na prática o trespassante de optar pela resolução do contrato e recuperar o estabelecimento em vez de reclamar o cumprimento da obrigação relativa ao preço. Nesse contexto, parece-nos óbvio que não é possível sustentar que a pena é manifestamente excessiva e que deve ser reduzida, seja por aplicação do artigo 812.º do Código Civil, seja com recurso, que à partida excluímos, ao artigo 334º do mesmo diploma. Improcede assim igualmente esta questão suscitada no recurso. iv) da litigância de má fé: O recorrente insurge-se, por último, contra a sua condenação como litigante de má fé, sustentando que essa condenação só é possível quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, com dolo ou negligência grave, de forma manifestamente reprovável, e que no caso isso não sucede Na sentença recorrida, fundamentou-se a condenação dos autores como litigantes de má fé afirmando o seguinte: “(…) os Réus vieram invocar o pagamento integral das quantias peticionadas. Sem dúvida que estes são factos pessoais e que pelo menos ao primeiro Réu não poderia oferecer qualquer dúvida (o mesmo não se podendo afirmar quanto ao segundo Réu). E, para além de tal versão não ficar provada, resultaram provados os únicos pagamentos realizados, parte dos quais muito para além da data em que foi o integral pagamento alegado. Perante isto, mais não resta do que concluir que o primeiro Réu, pelo menos com negligência grave, deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, pelo que deverá ser condenado como litigante de má fé. (…)” Recordamos que na decisão recorrida, para além dos factos julgados provados, foram ainda julgados não provado os factos relativos aos pagamentos que na contestação os réus afirmaram ter feito, pagando integralmente o preço do trespasse. Na motivação da decisão da matéria de facto, o Juiz a quo assinalou o seguinte: “Relativamente à questão dos pagamentos alegadamente realizados, e que resultaram não provados, e que a testemunha H… referiu ter assistido à entrega da quantia de €10.000,00 no dia da assinatura do contrato, não foi a mesma capaz de esclarecer porque razão tendo o contrato que ser alterado na sequência da alteração do fiador, não exigiram que do mesmo ficasse a constar que a quantia entregue não tinha sido o montante de €500,00 mas sim de €10.500,00. Para além disso, titubeou quando confrontada com a razão pela qual teria sido paga uma quantia superior à devida, acabando por afirmar que a diferença, de €3.000,00, se destina ao pagamento dos móveis existentes no estabelecimento. Ora, tendo sido celebrado um contrato de trespasse, descriminando-se expressamente no mesmo que os móveis e equipamentos estavam incluídos, não colheu tal explicação (cfr. cláusula 2ª n.º 2 do contrato). Também não foi minimamente convincente a afirmação de que foi exigido pela Autora que os pagamentos se realizassem em dinheiro quando, do próprio contrato, resulta que as prestações acordadas o seriam por transferência bancária. A testemunha L…, enteada do primeiro Réu, afirmou no seu depoimento que viu a quantia de €5.000,00, em dinheiro, que se destinava a ser entregue. Quando confrontada com a questão de saber que tipo de notas estavam no envelope que afirmou ter visto em Agosto de 2014 (há menos de um ano), não foi capaz de dar uma resposta, fosse no sentido de serem notas de muito ou pouco valor, qual o volume de dinheiro ou, no absurdo, se eram apenas moedas, o que igualmente deixou tal depoimento sob profunda reserva. Isto posto, e tendo em conta as regras da experiência comum, não resultou minimamente explicado pelas testemunhas que sobre tal depuseram e que revelaram conhecimento directo de tais factos, os motivos que determinaram que o primeiro Réu procedesse a pagamentos de avultadas quantias em dinheiro, sem qualquer tipo de quitação, pagasse para além do valor acordado para o trespasse e, acima de tudo, se pagou a totalidade da dívida em Agosto de 2014, procedeu a transferências bancárias para pagamento das prestações, no valor integral, nos meses de Outubro a Dezembro de 2014, e no valor parcial entre Janeiro e Abril de 2015. Daqui só pode o tribunal concluir que o valor acordado não se encontrava liquidado, caso contrário mostram-se destituídos de qualquer sentido os pagamentos realizados até Abril de 2015.” Vejamos: A Constituição de República Portuguesa consagra no seu artigo 20.º o direito de acesso aos tribunais, dizendo que a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente. O mesmo consagra o legislador ordinário no artigo 2.º do Código de Processo Civil. Sendo o direito de acesso à justiça, um direito constitucionalmente garantido, dotado da tutela que é própria dos direitos fundamentais, é necessário algum cuidado na responsabilização da parte que toma a iniciativa do processo pelas consequências da sua instauração. Como se afirma no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16.06.2014, relatado por Carlos Gil, no processo n.º 117/13.1TBPNF.P1, in www.dgsi.pt, «O instituto da litigância de má fé visa que a conduta dos litigantes se afira por padrões de probidade, verdade, cooperação e lealdade. A concretização das situações de litigância de má fé exige alguma flexibilidade por parte do intérprete, o qual deverá estar atento a que está em causa o exercício do direito fundamental de acesso ao direito (artigo 20º da Constituição da República Portuguesa), não podendo aquele instituto traduzir-se numa restrição injustificada e desproporcionada daquele direito fundamental. Importa não olvidar a natureza polémica e argumentativa do direito, o carácter aberto, incompleto e autopoiético do sistema jurídico, a omnipresente ambiguidade dos textos legais e contratuais e as contingências probatórias quer na vertente da sua produção, quer na vertente da própria valoração da prova produzida. Na verdade, com o passar dos tempos, tem-se verificado, com alguma frequência, que teses jurídicas inicialmente peregrinas vieram a tornar-se teses dominantes. Assim, à semelhança da liberdade de expressão numa sociedade democrática, o direito fundamental de acesso ao direito só deve ser penalizado no seu exercício quando de forma segura se puder concluir que o seu exercício é desconforme com a sua teleologia subjacente, traduzindo-se na violação dos deveres de probidade, verdade e cooperação e numa utilização meramente chicaneira dos meios processuais, com o objectivo de entorpecer a realização da justiça. Por isso, o tipo subjectivo da litigância de má fé apenas se preenche em caso de dolo ou culpa grave.» (sublinhados nossos). Nos termos do artigo 542.º do Código de Processo Civil diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. Constitui entendimento absolutamente pacífico que a mera perda da demanda nunca é suficiente para permitir concluir pela ilegitimidade da iniciativa processual e pela litigância de má fé (cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09.07.98, 27.02.03 e 05.05.05, todos in www.dgsi.pt e Paula Costa e Silva, in A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 353). Como se afirma no Acórdão desta Relação de 12.05.2005, relatado por José Ferraz, in www.dgsi.pt, «A simples proposição de uma acção ou contestação, embora sem fundamento, pode não constituir uma actuação dolosa ou mesmo gravemente negligente da parte. A incerteza da lei, a dificuldade em apurar os factos e os interpretar, podem levar as consciências honestas a afirmar um direito que não possuem e a impugnar uma obrigação que devem cumprir. O que releva é que as circunstâncias devam levar o tribunal a concluir que a parte apresentou pretensão ou fez oposição conscientemente infundada (em Alberto dos Reis, C.P.C. Anotado, II, 263). Se na vigência da lei processual, anterior à redacção do DL 329-A/95, subjacente ao disposto no artigo 456º do CPC, existia uma intenção maliciosa, ou má fé em sentido psicológico, e não apenas um a leviandade ou imprudência (má fé em sentido ético), a lei actual apenas exige que exista negligência grave ou grosseira para censurar a parte, quando esta actua com a falta de precaução pela mais elementar prudência que deve ser observada nos usos correntes da vida. Mas só quando o processo fornece elementos seguros da conduta dolosa ou gravemente negligente deverá a parte ser censurada como litigante de má fé, o que pede prudência ao julgador, sabendo-se que a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro (a verdade absoluta só está ao alcance da divindade e a humana corre o risco da contingência e relatividade) mas também porque assente em provas, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico (cfr. Ac. STJ, de 11.12.2003, no proc. 03B3893, em www.dgsi.pt). Não basta que a parte não veja acolhida a sua pretensão ou a sua versão dos factos. Pode defender convicta, séria e lealmente uma posição sem dela convencer o tribunal. As circunstâncias do caso hão-de permitir se conclua que a parte apresentou pretensão ou fez oposição conscientemente infundadas, estar-se perante uma situação em que não deva deixar dúvida razoável sobre a conduta dolosa ou gravemente negligente da parte. Por não se provar determinado facto ou factos, não poderá concluir-se pelo facto contrário (em sede de censura à parte por má fé). Nem será por a parte não provar a veracidade de determinada afirmação que pode concluir-se, só por essa situação negativa, pela falsidade ou desconformidade do alegado com a verdade. Significa apenas que não logrou convencer o tribunal dessa posição. A falta de razão não significa sempre má fé, a não ser que a parte dela tenha consciência e, apesar disso, formule pretensão ou deduza oposição em juízo.» Na decisão recorrida, como vimos, fundamentou-se a condenação do 1.º réu como litigante de má fé sustentando que este “deduziu oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar”. Não se entendeu, no entanto, que o 1.º réu alterou a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, que parecia ser a qualificação adequada face à motivação apresentada para a condenação (alegou pagamentos de não fez). A circunstância de o pagamento das prestações ser um facto pessoal apenas pode levar a concluir que a alegação do mesmo nos autos foi feita com plena consciência da sua relevância para efeitos da acção e baseada em conhecimento que não em meras suposições ou expectativas. Por conseguinte, a demonstrar-se que essa alegação é falsa terá de se concluir que a litigância é, nesse segmento, dolosa. Mas para se concluir que houve litigância de má fé não basta isso, primeiro terá de se demonstrar que a alegação é falsa e essa conclusão não se pode retirar sem mais da circunstância de se tratar de um facto pessoal, o qual tanto pode ser verdadeiro como falso. Para concluir que a alegação é falsa o Juiz a quo afirmou que não apenas não se provou a versão do réu como “resultaram provados os únicos pagamentos realizados, parte dos quais muito para além da data em que foi o integral pagamento alegado”. Ora não é exactamente assim. Não foi dado como provado que os pagamentos que a autora alegou terem sido realizados pelo réu foram os únicos a ser feitos, isto é, que para além desses pagamentos nenhuns outros foram feitos. Aqueles pagamentos foram dados como provados porque a autora os confessou e o réu aceitou essa confissão. O que sucedeu foi que o réu alegou outros pagamentos para além desses e tais pagamentos foram julgados não provados. Tanto quanto resulta da motivação da decisão sobre a matéria de facto o réu apresentou meios de prova para demonstração dos pagamentos que alegou ter feito. O Juiz a quo desvalorizou estes meios de prova, não lhes deu credibilidade e, por conseguinte, julgou não provados os pagamentos. Todavia, não se pode esquecer que foi a própria autora a admitir que o réu lhe fez vários pagamentos avulso, fora dos prazos previstos no contrato e por outra modalidade que não a prevista no contrato (transferência ou depósito bancário), o que não sendo decisivo para conferir credibilidade aos meios de prova produzidos por iniciativa do réu é, no entanto, bastante para não excluir de todo alguma dúvida sobre o que se passou realmente entre as partes. Podemos, pois, concluir que não existem elementos nos autos que permitam concluir com segurança (com a segurança necessária) que o réu, de forma dolosa ou gravemente negligente, deduziu pretensão cuja inverdade não podia ignorar e/ou alterou a verdade dos factos. Admitimos que o Juiz a quo em contacto directo com a prova possa ter ficado com essa impressão subjectiva, porventura correcta, mas objectivamente pensamos que faltam elementos para dar a essa impressão a robustez necessária para justificar a condenação. A decisão recorrida deve, por isso, nessa parte ser revogada, pelo que procede o recurso quanto a esta questão. VI. Dispositivo: Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em (i) rejeitar a junção do documento apresentado pelo recorrente com as alegações de recurso; (ii) revogar a decisão de condenar o 1.º réu como litigante de má fé; (iii) julgar, no mais, o recurso improcedente, confirmando a douta decisão recorrida. Condena-se o recorrente nas custas do incidente relativo ao documento com 2 UC de taxa de justiça. As custas do recurso serão suportadas por recorrente e recorrida na proporção de 95% e 1%, respectivamente (tabela I-B). * Porto, 3 de Março de 2016.Aristides Rodrigues de Almeida (Relator, Rto256) Teles de Menezes Mário Fernandes ________ [1] Em rigor não são conclusões, mas a mera repetição, agora numerada para dar a impressão de ser algo diferente, das alegações de recurso antes desenvolvidas sem qualquer numeração. Do ponto de vista material, esta falha, que não pode deixar de ser qualificada como deliberada, pode ser considerada uma omissão da formulação de conclusões que tem como consequência a rejeição, sem mais, do recurso. Do ponto de vista formal, trata-se de uma formulação de conclusões deficientes e complexas que não têm aquela consequência, embora possam carecer de aperfeiçoamento, o que se dispensa, por não ser espectável que quem não as formulou correctamente de início, sabendo da obrigação de o fazer, o venha a fazer à posteriori. [2] Afirma Pinto Monteiro, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 141.º, pág. 193, em anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.09.2011, in www.dgsi.pt, aplaudindo a decisão de considerar válida a cláusula penal exclusivamente compulsória, que “o artigo 405.º constitui «fundamento legal bastante» para permitir às partes estipularem outras modalidades de cláusulas penais, para lá daquela que o legislador definiu no artigo 810.º e regulou nas normas seguintes”. No mesmo sentido, por exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.04.1998, in Boletim do Ministério da Justiça n.º 476, pág. 400. [3] Calvão da Silva, in Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, pág. 67 e segs., refere-se a esse respeito ao “interesse existencial do cumprimento “ referindo que “o credor acredita no normal desenvolvimento da relação, segundo a vontade das partes e a função económica tida em vista no momento inicial, a culminar no cumprimento. Nesta conformidade, o cumprimento, actuação ou realização da prestação devida, constitui o termo do desenvolvimento normal da obrigação, o seu fim natural (…). O cumprimento é o momento capital e decisivo, verdadeiro centro de gravidade da relação obrigacional”. [4] Nesse sentido cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.01.2015, M. Clara Sottomayor, no proc. 3938/12.9TBPRD.P1.S1, in www.dgsi.pt. [5] Contra este entendimento, no entanto, Ana Prata, in Cláusulas de exclusão e limitação da responsabilidade contratual, Almedina, 1985, pág. 642, nota n.º 1157, e Nuno Pinto de Oliveira, in Cláusulas Acessórias ao Contrato, Almedina, 2.ª ed., pág. 123 e seguintes. |