Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
398/18.4T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO IN ITINERE
Nº do Documento: RP20230918398/18.4T8VNG.P1
Data do Acordão: 09/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; CONFIRMADA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - O artigo 9.º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, alarga o conceito de acidente trabalho aos acidentes ocorridos “No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste” [n.º1 al. a)], nos termos referidos nas alíneas do n.º2, do mesmo artigo, isto é, compreendendo “(..) o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador” nas situações aí previstas.
II - Em qualquer dos casos ai previstos, sendo essa uma característica dos acidentes de trabalho in itinere, estar-se-á perante um acidente ocorrido fora do tempo e do local de trabalho.
III - O propósito da lei é proteger o trabalhador do risco de ocorrência de acidente nos percursos -normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador (n.º2)- que carece de fazer para prestar o seu trabalho à entidade empregadora, no local por esta definido e dentro do horário que por aquela lhe esteja fixado, obrigações a que está vinculado pelo contrato de trabalho subordinado.
IV - A caracterização de um acidente como de trabalho de trabalho in itinere pressupõe sempre que exista uma ligação ao trabalho, isto é, uma conexão ou causalidade com a prestação laboral ou, pelo menos, com a relação laboral.
V - É de todo irrelevante que o sinistrado não tenha chegado a entrar em casa por ter interrompido esse propósito quando ocasionalmente encontrou o amigo e se deteve a falar com ele sobre a recuperação da operação a que este fora submetido, ficando sem margem de tempo para cumprir aquela rotina e vendo-se na necessidade de iniciar de imediato o percurso para o local de trabalho.
VI - Esse facto não põe em causa a ocorrência do acidente no percurso habitualmente usado e no tempo em que habitualmente o iniciava e realizava, não havendo qualquer quebra da conexão ou causalidade entre a sua verificação e a relação laboral, nem tão pouco acrescentou qualquer agravamento ao risco normal da execução desse trajecto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 398/18.4T8VNG.P1
SECÇÃO SOCIAL

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I.RELATÓRIO
I.1 AA, deu início à fase litigiosa da presente acção para a efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, apresentando petição inicial e demandando “A..., S.A.”, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe o seguinte:
A) € 15,00 de despesas de deslocação de casa ao IML e ao Tribunal;
B) € 9.747,99 referente ao período em que se encontrou de incapacidade temporária absoluta (de 04/10/2017 a 03/02/2019), num período fixável em 488 dias, sendo 365 dias a 70% e 123 dias a 75%;
C) O capital de remição da pensão anual e vitalícia, de € 143,26, devida desde o dia 04/02/2019, calculada com base na retribuição anual x 70% x IPP.
D) Juros de mora à taxa legal sobre todas as quantias até efectivo e integral pagamento.
Na tentativa de conciliação realizada no termo da fase conciliatória não foi obtido o acordo da seguradora, em razão desta não ter reconhecido o acidente dos autos como sendo de trabalho, nem o nexo de causalidade entre este e as sequelas, não aceitando “qualquer responsabilidade no acidente, [por entender] que a ocorrência participada não se enquadra no conceito de acidentes de trabalho, de acordo com o disposto no arto 9º, no 2, alínea a) e nº 3 da Lei 98/2009 de 04 de Setembro”.
Na petição inicial, o autor legou, em síntese, que foi vítima de um acidente de viação quando se dirigia para o seu local de trabalho, sito no B..., tendo iniciado o seu trajecto de casa.
Em consequência do acidente sofreu várias lesões que lhe vieram a determinar uma incapacidade temporária absoluta e, a final, uma incapacidade permanente parcial nunca inferior a 2%, em consequência tendo direito ao pagamento do capital de remição de uma pensão anual, bem como ao pagamento das quantias que não lhe foram pagas durante o período de incapacidade temporária, bem como das suas despesas em deslocações obrigatórias, estando a responsabilidade do seu pagamento a cargo da ré.
Citado para o efeito, veio o ISS,IP pedir a condenação da ré a pagar-lhe as quantias pagas ao autor a título de subsídio de doença, no valor total de € 2.462,52.
A ré contestou, defendendo-se por impugnação (motivada) e excepção peremptória de descaracterização do acidente de trabalho, pretendendo que a acção seja julgada improcedente, sendo absolvida do pedido.
Alegou, para o efeito, no essencial, que o acidente de viação ocorreu depois de o autor ter estado a conversar com um amigo durante não menos de 15 minutos e depois de ter feito um desvio entre os dois locais de trabalho de cerca de 2 Km. Entre o momento em que saiu do emprego na C... e o do acidente, ocorreu um período de tempo muito mais dilatado que o necessário para a deslocação entre os dois locais de trabalho.
Notificado para o efeito veio o autor esclarecer o percurso efectuado com o motociclo desde as 18 horas até às 19 horas do dia 03 de Outubro de 2017.
A ré respondeu ao novo articulado impugnando, de novo, a matéria ali vertida e reiterando a posição assumida.
Foi proferido despacho saneador e elaborada a seleção dos factos assentes e fixados os temas de prova.
Foi ordenado o desdobramento do processo para conhecimento da questão da incapacidade do autor no apenso próprio.
Realizou-se audiência de julgamento com observância das formalidades legais.
I.2 Subsequentemente o Tribunal a quo proferiu sentença, concluída com o dispositivo seguinte:
-«(..)
Pelo exposto, julgo procedente e provada, a presente acção e, em consequência:
1. Fixo ao autor, AA, a incapacidade permanente parcial de 4%, desde 03/02/2019.
2. Condeno a ré "Companhia de Seguros D..., S.A” a pagar ao autor:
a) a quantia de € 7.084,41 (sete mil, oitenta e quatro euros e quarenta e um cêntimos), a título de indemnização pelo período de incapacidade temporária;
b) o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no valor de € 286,51, (duzentos e oitenta e seis euros e cinquenta e um cêntimos), desde 04/02/2019;
c) a quantia de € 15,00 (quinze euros) a título de deslocações obrigatórias;
d) juros de mora sobre as prestações supra atribuídas e em atraso, vencidos e vincendos, à taxa anual de 4%, até integral pagamento.
3. Condeno a ré “A..., S.A.” a pagar ao "Instituto da Segurança Social, I.P." a quantia de € 2.462,52 (dois mil, quatro centos e sessenta e dois euros e cinquenta e dois cêntimos), acrescida de juros calculados à taxa anual de 4% desde a data da notificação do respectivo pedido de reembolso de prestações da Segurança Social à ré.
*
Custas da acção a cargo da ré - art.º 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil ex vi art.º 1.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho.
*
(..)».
I.3 Inconformado com esta decisão, a Ré Seguradora apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito adequados. As alegações foram sintetizadas nas conclusões seguintes:
A. O Tribunal a quo deu como não provada a factualidade descrita na alínea d) (dos Factos não provados); “O Autor percorreu mais 2 quilómetros do que seria necessário para efectuar o percurso entre os seus dois locais de trabalho.”
B. Por tudo quanto ficou exposto, entende a Apelante que o cariz preciso e concreto dos dois depoimentos ora evidenciados, bem como a declaração de parte do Sinistrado/Recorrido e os documentos carreados nos autos deveriam servir o propósito de formação de convicção probatória para levar o Tribunal a quo a considerar como provado que o Sinistrado/Recorrido percorreu mais de 2 quilómetros do que seria necessário para efetuar o percurso entre os seus dois locais de trabalho.
C. Assim, crê a Recorrente que o ponto 3. dos Factos não provados deveria, outrossim, integrar um novo ponto n.º 30 dos Factos provados.
DA MATÉRIA DE DIREITO, DAS NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS E DO SENTIDO EM QUE AS NORMAS QUE CONSTITUEM FUNDAMENTO DA DECISÃO DEVERIAM TER SIDO INTERPRETADAS E APLICADAS
D. Contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, em consequência com o supra expendido a propósito da peticionada reapreciação da prova produzida, temos que não ficou suficientemente demonstrada a existência de um acidente de trabalho in Itinere, tendo ficado por demais demonstrado a descaracterização do acidente de trabalho ou inexistência de acidente de trabalho.
E. Achando-se, pois, inequivocamente verificados todos os pressupostos previstos pelo artigo 9.º n.º3 da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro, para a descaracterização de acidente de trabalho in itinere, bem como afastado a aplicação do número 1 e 2 do artigo 9.º da LAT.
Da deslocação entre qualquer dos seus locais de trabalho (alínea a) do número 2 do artigo 9.ºda LAT)
F. Constitui por demais claro, pelos elementos carreados aos autos, que o Sinistrado/Recorrido pretendia deslocar-se do seu local de trabalho na “C..., SA” em Matosinhos para o seu local de trabalho na “E..., SA” em ... e, neste trajeto, procedeu a um desvio para se deslocar à sua residência habitual.
G. Na verdade, entende a Seguradora/Recorrente que é demais evidente que o desvio ou interrupção para falar com um amigo determina um “corte” com a relação laboral e que não é abarcado pelas situações previstas no n.º 3 do artigo 9.o da LAT.
H. Face ao exposto, nesta sede, se pugna pela revogação da douta sentença ora posta em crise, devendo decidir-se no sentido da descaracterização do acidente de trabalho in itinere, por não aplicação da alínea a) de n.º 2 e do n.º 3 do referido artigo 9.ºda LAT e, consequentemente, não seja a Seguradora/Recorrente responsável por reparar o evento lesivo em apreço, nem proceder ao reembolso dos montantes pagos pelo Instituto da Segurança Social, I.P.
Da deslocação entre a residência habitual e o local de trabalho (alínea b) do número 2 do artigo 9.º da LAT)
I. Tal como refere Tribunal a quo que “para que o evento ocorrido entre a residência habitual ou ocasional do trabalhador e o local de trabalho, ou entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego, mereça a qualificação de “acidente de trabalho” é necessário o preenchimento de dois requisitos, quais sejam: 1 que o evento se verifique no trajeto normalmente utilizado pelo trabalhador entre a sua residência e o local de trabalho, ou entre os dois locais de trabalho, o chamado “percurso normal”; 2 - que o evento ocorra durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador para chegar da sua residência ao local de trabalho, ou entre os dois locais de trabalho o tal “período habitual”.”
J. Isto posto, os elementos probatórios carreados nos autos determinaram que o Tribunal a quo, considerasse que o Sinistrado/Recorrido nunca entrou na sua residência habitual, tendo permanecido na via pública, o que resultou no ponto 23. dos factos provados (“O autor constatando que já não tinha tempo de ir a casa, decidiu dirigir-se de imediato para o seu local de trabalho, nos termos descritos em 9.”) e, assim, não iniciou o trajeto da residência habitual para o local de trabalho.
K. Contrariamente ao expresso na Sentença posta em crise, o quadro fáctico dos presentes autos não era enquadrável na situação descrita alínea b) do n.º2 do artigo 9.º da LAT (“Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho”) e, consequentemente, não seria enquadrável como acidente de trabalho, por não aplicação da alínea a) do n.º 1 do referido artigo 9.º da LAT.
L. Face ao exposto, nesta sede, se pugna pela revogação da douta sentença ora posta em crise, devendo decidir-se no sentido do evento lesivo em apreço não ser considerado um acidente de trabalho, por não aplicação da alínea b) de n.º 2 do referido artigo 9.º da LAT e, consequentemente, não seja a Seguradora/Recorrente responsável por reparar o evento lesivo em apreço, nem proceder ao reembolso dos montantes pagos pelo Instituto da Segurança Social, I.P.
SEM PRESCINDIR:
M. Caso se considere que não há qualquer reparo a efetuar face à decisão relativa à matéria de facto, sempre se dirá que, ainda assim, que os elementos dos autos e a prova produzida (e dada como provada), nomeadamente, o ponto 22 e 23 dos factos dados como provados, apontariam para diferente desfecho do seguido pelo Tribunal a quo, e, naquela que seria a correta aplicação do direito, deveria se ter considerado que o evento lesivo em apreço não se enquadra no disposto do n.º 1 a 3 do artigo 9.º da LAT.
N. Assim, a referida factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo, também nesta sede, ditaria a revogação da douta sentença ora posta em crise, devendo decidir-se no sentido da descaracterização do acidente de trabalho in itiniere (atendendo ao facto do ponto 22. dos factos provados) ou não se considerar o evento lesivo como acidente de trabalho (relativamente ao facto do ponto 23. Dos factos provados) imputação da responsabilidade pelo sinistro, e, consequentemente, em ambas as situações não ser a Seguradora/Recorrente responsável por reparar o evento lesivo em apreço, nem proceder ao reembolso dos montantes pagos pelo Instituto da Segurança Social, I.P.
Nestes termos, e nos que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso merecer provimento, (i) ser modificada a decisão proferida acerca da matéria de facto nos termos sufragados nas alegações e conclusões que antecedem e (ii) ser revogada a sentença recorrida na parte aqui posta em crise por qualquer um dos fundamentos alegados pela Recorrente e, em consequência, ser a Apelante absolvida de todos pedidos nos quais foi condenada, com todas as demais e legais consequências.
I.4 O Recorrido autor apresentou contra alegações, encerrando-as com as conclusões seguintes:
FALTA DE FUNDAMENTO E IMPROCEDÊNCIA DO RECURSO: DECISÃO LIMINAR
1. A Recorrente conformou-se com a prova dos factos enunciados na douta sentença recorrida sob os itens 11, 17, 18, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e todos estes isolada, ou conjuntamente considerados são objectivamente incompatíveis com a pretendida prova do facto 3.º dos não provados, basta que se compagine o seu teor;
2. Conforme resulta transparente dos factos provados, da prova recolhida, das regras da vida, da normalidade e da experiência o Autor não pretendia realizar, nem realizou, a deslocação entre os seus dois locais de trabalho, mas antes de casa para o seu local de trabalho;
3. A Apelante sabendo que a análise livre, crítica e global da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento ao abrigo dos princípios da oralidade e da imediação, realizada pelo Julgador de Primeira Instância, está perfeitamente realizada e justificada na douta sentença recorrida, não lhe possibilita alterar a decisão dos supra citados nove factos, optou por tentar incluir na decisão um facto avulso da sua tese, incompatível com os demais apenas como um indevido factor de perturbação do processo;
4. A Recorrente insiste e persiste, desta feita também contra toda a prova documental, testemunhal e declarativa produzida, contra o tramitado em sede de processo judicial, processo administrativo junto do Ministério Público e contra os factos ocorridos na relação contratual de seguro, em alegar que o Autor fazia a deslocação entre dois locais de trabalho(!?), quando nenhum elemento suporta tal absurda tese;
5. Independentemente da absurda tese da Apelante, verifica-se uma originária impossibilidade de procedência do recurso pois não é possível alterar a decisão da matéria de facto conforme alegado em sede de recurso pois, não impugnando a Recorrente os factos 11, 17, 18, 20, 21, 22, 23, 24 e 25 dos provados na douta sentença, nunca se poderá, por evidentes razões de coerência, sistemática e lógica, sob pena de nulidade da decisão (art.º 615.o do C.P.C.), dar-se por provado um novo facto contrário e incompatível com aqueles outros nove do elenco dos provados;
6. Sendo manifesta a improcedência do recurso esta deverá ser conhecida em sede de decisão liminar;
SEM PRESCINDIR, DA IMPROCEDENTE IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
7. Da análise crítica e global da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, colhida no respeito dos princípios legais da oralidade e imediação, não se verifica a existência de qualquer erro de apreciação ou julgamento, muito menos grosseiro;
8. Nenhuma prova produzida impõe a demonstração do absurdo e incompatível facto do A. estar a fazer a deslocação entre os seus dois locais de trabalho, deslocação essa objecto simultaneamente de desvio e interrupção(!) que o colocaram à porta de casa, sem ter intenção de o fazer(?);
9. Pelo contrário, como muito bem se analisou, ponderou e decidiu, na douta sentença recorrida os factos cuja prova se impunha e se impõe são aqueles que afirmam que o Sinistrado terminou a sua jornada de trabalho na C... se dirigiu, no seu motociclo para casa, junto à qual estacionou num lugar disponível e conveniente e já no percurso pedestre para sua casa a cerca de 70 m do estacionamento, encontrou e esteve a conversar com um amigo recentemente operado e decorridos cerca de 15min, constatando que já não tinha tempo de ir a casa, decidiu dirigir-se de imediato para o seu local de trabalho na E... utilizando o seu percurso habitual e encontrando-se dentro da janela temporal normalmente utilizada para esse efeito;
1. Do depoimento escorreito, espontâneo, descomprometido e revelador das respectivas razões de ciência da testemunha BB cujo depoimento se encontra gravado em suporte digital identificado na acta da audiência de discussão e julgamento do dia 23-09-2022, decorre o acerto da decisão impugnada e nunca a sua alteração no impossível sentido do recurso;
11. Neste particular, como nas demais transcrições selectivas realizada pela Apelante, não pode ser dispensada a audição da integralidade dos depoimentos para que se compreenda o seu contexto e sistemática (atendendo-se também às transcrições parciais supra), todos que revelam de forma concordante o acerto da decisão recorrida;
12. Ainda relevante para demonstrar a improcedência da tese recursiva da Apelante são as declarações de parte prestadas pelo Sinistrado, AA, identificadas na acta da audiência de 23-09-2022, que foram correctamente valorizadas pelo Tribunal a quo, que verificou a sua objectividade, verosimilhança e concordância com a demais prova recolhida;
13. Depoimento que além de coerente, leal e transparente, admite com a mesma naturalidade e espontaneidade factos que, em abstrato, interessavam à tese da Ré;
14. Invoca, por fim, a Apelante o depoimento da testemunha CC prestado da audiência de discussão e julgamento de 19-10-2022, para fundar a prova do único facto em causa no seu recurso;
15. Porém, ficou a todos evidente, como ficou ao Tribunal de Primeira Instância, auxiliado pelos princípios da oralidade e da imediação que o depoimento desta testemunha foi parcial e comprometido com a tese da Apelante ao ponto de ser apanhada em contradição e ser obrigada a corrigir: as declarações prestadas anteriormente no seu depoimento- vejam as transcrições supra-, e as conclusões do relatório de averiguações que elaborou e consta a fls. ... dos autos;
16. Esta testemunha suscitou a hipótese, na pág. 16.a do relatório que elaborou e que se encontra junto por cópia como Doc. 1 anexo à contestação, do acidente ter ocorrido nas mesmíssimas circunstâncias que resultaram provadas nos autos; mas tendo suscitado e escrito essa hipótese não a aceitou;
17. Ouvido integralmente o seu depoimento não ficamos esclarecidos sobre os motivos e circunstâncias que levaram esta testemunha a levantar uma hipótese, na sua tese, apenas teórica e especulativa sem adesão à realidade;
18. Aliás é sã decorrência das regras da vida, da normalidade e da experiência, que a hipótese não foi imaginada por esta depoente, antes terá decorrido das averiguações realizadas que a suscitaram;
19. Apesar de todas as incongruências internas deste depoimento, verificadas na douta sentença recorrida e entre este e o relatório subscrito pela mesma (mas rapidamente destruído):
- desde logo na hora do acidente que a depoente diz não ser a inscrita no relatório por si elaborado e que nesse caso colocaria o acidente fora do período usualmente utilizado para tal deslocação (!);
- testemunha que escreveu no relatório que o trajecto entre a C... e o F... demoraria 15 minutos (pág. 16 do relatório da sua autoria na legenda do croquis “Trajecto sem desvio (13 km em 15 minutos)”) na audiência de julgamento, a instâncias do Mandatário do Sinistrado, diz poder tal deslocação, nas mesmas circunstâncias em causa no relatório, demorar mais de uma hora;
- testemunha que diz não ter suscitado a hipótese que escreveu na mesma página do relatório: “Caso o Sinistrado ...”;
- testemunha que afirma que a participação do acidente refere a deslocação entre os dois locais de trabalho, o que não é verdade – cfr. facto 11.º dos provados;
-testemunha que tentou gerar a dúvida sobre a residência do sinistrado, depois de ter recolhido as declarações deste naquela que foi aprovada(!?);
20. Esta testemunha é a mesma que acaba por admitir que, caso o Sinistrado se tivesse deslocado a casa, à porta da qual esteve, e desta para o F... estaria, nas circunstâncias de espaço e tempo do acidente de viação, dentro do percurso normalmente utilizado e dentro do período usual para o realizar;
21. Daí que também este depoimento não justifica a alteração da factualidade julgada provada, tendo sido corretamente apreciado e valorado na douta sentença recorrida, que aqui, como no mais não é merecedora de qualquer censura;
22. Improcede integralmente o recurso da Apelante no que concerne à impugnação da decisão de facto.
SEM PRESCINDIR AINDA, QUANTO À MATÉRIA DE DIREITO
23. Improcedendo a impugnação da matéria de facto, improcederá necessariamente a pretendida aplicação do Direito à nova configuração factual que se pretendia realizar no recurso e que assim originariamente soçobra;
24. Inexiste qualquer factualidade provada capaz de suportar a alegada descaracterização do acidente ensaiada novamente em sede de recurso pela Apelante;
25. É incontroverso, da factualidade apurada, que o acidente em causa nos autos se verificou dentro do percurso normalmente utilizado pelo trabalhador entre a sua residência e o seu local de trabalho e dentro do período de tempo habitualmente gasto pelo mesmo, sendo por isso sólida e sã a interpretação e aplicação do art.º 9.º n.º 1 al. a) e n.º2 al b) da LAT, realizada na douta sentença recorrida, que não merece censura;
26. O Sinistrado apenas sofreu o acidente porque cumpria a sua obrigação acessória de se apresentar ao serviço da Empregadora no seu horário e local de trabalho e apenas por ocasião e com causa determinante na execução e cumprimento do contrato de trabalho o acidente aconteceu;
27. Nada nos autos permite afirmar qualquer “corte” na relação laboral ou acréscimo da responsabilidade da Apelante, ou do risco transferido face ao local, hora e demais circunstâncias do acidente, àquele que foi o trajecto do Sinistrado e a conduta do mesmo que não provocou um qualquer agravamento imprevisto e intolerável do risco que está transferido pelo contrato de seguro;
28. Nada justifica a descaracterização do acidente como acidente de trabalho;
29. O “convívio” com o amigo avocado pela Apelante, leia-se o que ficou provado: perguntar-lhe sobre o seu estado de saúde, na sequência de uma operação, é quanto a nós louvável e representa a adesão a, e realização de valores social e individualmente relevantes;
30. E ainda que se equacione em abstrato, sem o conceder, a tese da Apelada do “corte na relação laboral”, verdade é que, mesmo nessa configuração, aquilo que Apelante chamou de “convívio” terminou antes do Sinistrado iniciar o seu trajecto de casa, encurtado é certo, para o seu local de trabalho e, desde que o iniciou não o suspendeu, quebrou, ou cortou com qualquer intenção de concluir a deslocação, ou desviar a atenção, ou afastou a sua vontade da relação laboral e do cumprimento das inerentes obrigações, que lhe determinaram a deslocação em que se verificou o acidente;
31. Mais uma vez se afirma que em circunstância alguma o Apelado interrompeu ou se desviou do seu trajecto normal demonstrado na factualidade provada, nada impondo a descaracterização do acidente alegada em sede de recurso;
32. Improcede assim totalmente o recurso da Apelante;
TERMOS EM QUE deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, com as legais consequências
I.5 O Digno Procurador Geral Adjunto nesta Relação, emitiu o parecer a que alude o art.º 87.º n.º 3 do CT, pronunciando-se pela improcedência do recurso, na consideração, no essencial, do seguinte:
-«[..]
5. Pretende a Recorrente que o facto não provado, sob o n.º 3, dos Factos não provados, deveria dar-se como provado, ou seja, que “O Autor percorreu mais 2 quilómetros do que seria necessário para efectuar o percurso entre os seus dois locais de trabalho.”
A Recorrente parte da ideia, se bem se entende, de que o sinistrado se deslocou de um emprego/trabalho para o outro. E nesta situação, dirigindo-se a casa, percorreu mais 2 quilómetros do que seria necessário para efectuar o percurso entre os seus dois locais de trabalho.
Mas entende-se que na verdade, o sinistrado saiu do primeiro emprego e deslocou-se para casa. Não chegou a entrar porque encontrou um amigo, a quem perguntou pela saúde e com quem conversou alguns minutos, o suficiente para se atrasar e não entrar em casa, decidindo, antes, dirigir-se para o local de trabalho (segundo emprego).
Neste percurso sofreu um acidente de viação. E, entende-se que, na verdade, é, também, um acidente de trabalho.
O facto de o Recorrido ter dois empregos não é aqui relevante, salvo melhor opinião.
Na verdade, o Recorrido não se deslocava de um para o outro local de trabalho; entre os dois períodos de trabalho ia para casa. Ou seja, ia de casa para o primeiro emprego e regressava a casa. Ia de casa para o segundo emprego e regressava a casa.
Assim, o facto de ter encontrado um amigo, quando se deslocava a pé para casa, que o impediu, por falta de tempo, de entrar efectivamente em casa, não pode transformar a situação numa deslocação do 1º emprego para o 2º emprego, com um desvio (desnecessário) de 2 km.
E não havendo dúvidas de que o Recorrido se dirigia para o local de trabalho, não pode haver dúvidas de que sofreu um acidente de trabalho, atento o disposto no artigo 9º, n.º1, al. a) e n.º 2, al. b), da Lei 98/2009, de 04.09.
Deverá, pois, ser confirmada a douta sentença em recurso, para a qual se remete, evitando desnecessárias repetições.
[..]».
I.6 Cumpriram-se os vistos legais e determinou-se que o processo fosse inscrito para ser submetido a julgamento em conferência.
I.7 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho] as questões suscitadas pela recorrente consistem em saber se o Tribunal a quo errou o julgamento quanto ao seguinte:
i) Na apreciação da prova e fixação da matéria assente, ao ter considerado não provado a factualidade descrita na alínea d) dos Factos não provados);
ii) Na aplicação do direito aos factos, ao ter concluído que o acidente em causa é caracterizável como acidente de trabalho in itinere, nos termos dos artigos 8º e 9º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 al. b), da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. MOTIVAÇÃO DE FACTO
O Tribunal a quo fixou o elenco factual seguinte:
Factos Provados
1. No dia 03 de Outubro de 2017 o autor mantinha um contrato de trabalho com a sociedade “E..., SA”, exercendo para esta as funções inerentes à categoria profissional de operador de supermercado, no estabelecimento comercial pertencente à mesma, sito em ..., Vila Nova de Gaia.
2. O autor auferia então a retribuição anual global de 10 232,80€.
3. A responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho do autor encontrava-se transferida da entidade empregadora do mesmo para a ré, pelo valor integral mencionado em 2., através de contrato de seguro titulado pela apólice no ....
4. Aquando do mencionado em 1., o autor deveria iniciar a sua jornada de trabalho, nas instalações aí identificadas, pelas 19:00 horas.
5. Nessa altura, o autor mantinha também um contrato de trabalho com a sociedade “C..., SA”, no âmbito do que exercia funções no estabelecimento comercial pertencente à mesma, sito junto ao “G...”, em Matosinhos.
6. Nesse dia, o autor terminou o seu turno nas instalações identificadas em 5. pelas 18:04 horas, após o que se deslocou-se no seu motociclo, com a matrícula ..-HS-.., para Vila Nova de Gaia.
7. A dada altura, o autor estacionou o seu motociclo na Rua ..., em Vila Nova de Gaia.
8. Após o mencionado em 7., o autor permaneceu na rua a conversar com um amigo, cerca de 15 minutos.
9. Posteriormente ao mencionado em 8., o autor dirigiu-se no seu veículo identificado em 6. para as instalações da sua empregadora, referidas em 1.
10. Quando circulava na Rua ..., em Vila Nova de Gaia, junto ao cruzamento/entroncamento com a Rua ..., o autor perdeu o controlo do seu motociclo e foi embater na traseira de um veículo automóvel que ali se encontrava estacionado.
11. No dia 04 de Outubro de 2017, a entidade empregadora do autor participou à ré que este tinha sido vítima de um acidente de trabalho no dia 03 de Outubro de 2017, descrevendo-o do seguinte modo: “O colaborador encontrava-se em deslocação para o trabalho num veículo de duas rodas quando escorregou a caiu, sendo projetado e partindo a perna em dois lados”.
12. Na sequência do mencionado em 10., a ré prestou assistência ao autor nos seus serviços clínicos.
13. No dia 04 de Dezembro de 2017 a ré remeteu uma carta ao autor, junta a fls. 134 dos autos e cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido, através do qual, entre outras coisas, lhe comunicou que:
“(...) a ocorrência participada não é da nossa responsabilidade.
(...) o acidente participado não se enquadra no conceito de acidente de trabalho (...), uma vez que a interrupção do trajeto normal não se verificou para satisfação de necessidades atendíveis de V/Exa, por motivos de força maior ou caso fortuito.
Nessa conformidade, informamos que declinamos toda a responsabilidade decorrente do acidente, pelo que suspendemos de imediato todos os tratamentos a V/Exa. (...)”.
14. A ré não pagou ao autor qualquer quantia, a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária com que o mesmo esteve afectado.
15. A Segurança Social pagou ao Autor as seguintes quantias:
- 1774,68€, a título de subsídio de doença respeitante ao período compreendido entre 13 de Dezembro de 2017 e 23 de Abril de 2018.
- 687,84€, a título de subsídio de doença respeitante ao período compreendido entre 20 de Novembro de 2018 e 30 de Janeiro de 2019.
16. O autor iniciou a deslocação para Vila Nova de Gaia, mencionada em 6., pelas 18:10 horas.
17. Pretendia então o autor dirigir-se para a sua residência, sita na Rua ..., ..., 5º Esquerdo, em Vila Nova de Gaia, a fim de se alimentar e tratar da sua higiene pessoal.
18. Para tal, o autor efectuou o percurso que usualmente utiliza para se deslocar daquelas instalações até sua casa.
19. O mencionado em 7. ocorreu cerca das 18:25 horas.
20. O local identificado em 7. dista cerca de 70 metros a pé, da residência do autor.
21. Quando já se encontrava apeado, após o referido em 7., o autor dirigiu-se a pé para sua casa.
22. Durante esse percurso o autor encontrou o amigo mencionado em 8., o qual havia sido recentemente operado, tendo-lhe o autor perguntado pelo seu estado de saúde.
23. O autor constatando que já não tinha tempo de ir a casa, decidiu dirigir-se de imediato para o seu local de trabalho, nos termos descritos em 9.
24. Para tal, efectuou o percurso que usualmente utiliza para se deslocar de sua casa até ao mesmo.
25. O acidente mencionado em 10. ocorreu cerca das 18:40 horas.
26. Em consequência do acidente, o autor sofreu fractura distal da tíbia (pilão tibial) esquerda.
27. Em virtude de tal lesão o autor esteve em situação de ITA de 04-10-2017 a 03-02-2019 (488 dias).
28. O Autor teve alta médica em 03 de Fevereiro de 2019.
29. Em consequência das lesões sofridas no acidente o autor apresenta actualmente uma IPP de 4%.
*
III – Factos não provados:
1. A conversa com o amigo demorou até cerca das 18:45 horas.
2. O acidente mencionado em 10. ocorreu pouco antes das 19:00 horas.
3. O autor percorreu mais 2 quilómetros do que seria necessário para efectuar o percurso entre os seus dois locais de trabalho.
4. O autor demorava cerca de 15 minutos a efectuar tal percurso.
5. O autor dirigiu-se para a Rotunda da Rua ..., em Vila Nova de Gaia, para conversar com o amigo referido em 8.
II.2 Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
A recorrente seguradora insurge-se contra a sentença, por alegado erro na apreciação da prova e fixação da matéria assente, ao ter sido considerado não provada a factualidade descrita na alínea d) dos Factos não provados.
No facto em causa lê-se: “O Autor percorreu mais 2 quilómetros do que seria necessário para efectuar o percurso entre os seus dois locais de trabalho.”
A recorrente pretende que em consequência da reapreciação da prova que indica, nomeadamente, os testemunhos de BB e CC, bem como as declarações de parte do Sinistrado/Recorrido, nos extractos que invoca, seja alterada a resposta e dada como provado o que consta naquele ponto.
Indica os tempos da gravação em que se encontram os extractos invocadas e, além disso, procede à sua transcrição no corpo das alegações.
Conforme decorre do n.º1 do art.º 662.º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Nas palavas de Abrantes Geraldes, “(..) a modificação da decisão da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância” [Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 221/222].
Pretendendo a parte impugnar a decisão sobre a matéria de facto, deve observar os ónus de impugnação indicados no art.º 640.º do CPC, ou seja, é-lhe exigível a especificação obrigatória, sob pena de rejeição, dos pontos mencionados no n.º1 e n.º2, enunciando-os na motivação de recurso, nomeadamente os seguintes:
- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
No que concerne ao que se deve exigir nas conclusões de recurso quando está em causa a impugnação da matéria de facto, sendo estas não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações, mas atendendo sobretudo à sua função definidora do objeto do recurso e balizadora do âmbito do conhecimento do tribunal, é entendimento pacífico que as mesmas devem conter, sob pena de rejeição do recurso, pelo menos uma síntese do que consta nas alegações da qual conste necessariamente a indicação dos concretos pontos de facto cuja alteração se pretende e o sentido e termos dessa alteração [cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: de 23-02-2010, Proc.º 1718/07.2TVLSB.L1.S1, Conselheiro FONSECA RAMOS; de 04/03/2015, Proc.º 2180/09.0TTLSB.L1.S2, Conselheiro ANTÓNIO LEONES DANTAS; de 19/02/2015, Proc.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, Conselheiro TOMÉ GOMES; de 12-05-2016, Proc.º 324/10.9TTALM.L1.S1, Conselheira ANA LUÍSA GERALDES; de 27/10/2016, Proc.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, Conselheiro RIBEIRO CARDOSO; e, de 03/11/2016, Proc.º 342/14.8TTLSB.L1.S1, Conselheiro GONÇALVES ROCHA (todos eles disponíveis em www.dgsi.pt)].
Para além disso, exige-se também que o recorrente fundamente “em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa” [cfr. Ac. STJ de 01-10-2015, Proc.º n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, Conselheira Ana Luísa Geraldes, disponível em www.dgsi.pt].
No caso em apreço, verifica-se que a recorrente, quer nas alegações quer nas conclusões de recurso, cumpriu o que se entende exigível, nada obstando à apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
II.2.1 Passando à apreciação, importa começar por deixar nota da fundamentação da decisão sobre matéria de facto, na parte que aqui assume relevância, nomeadamente a seguinte:
«[..]
No que toca à demais factualidade, fundou-se o Tribunal nos depoimentos conjugados das testemunhas BB, companheira do autor, com quem vive há 10 anos, e DD, gestor de armazém, conhecendo o autor por ter trabalhado com ele no “F...” em ... (supermercado do grupo “E...”), cujos depoimentos se revelaram coerentes, consistentes, credíveis e, logo, convincentes.
A primeira testemunha desde logo referiu não ter presenciado o acidente em causa ou qualquer das situações descritas nos factos provados, salientando, contudo, que à data o autor trabalhava na C... e no F... sendo que terminava o turno na primeira às 18 horas e iniciava o turno no segundo às 19 horas. Como tinha tempo, ia a casa, para lanchar, sendo habitual também deixar a o moto na Rua ..., no local onde a estacionou no dia do acidente, que dista cerca de 70 metros da residência de ambos, local onde habitualmente encontra estacionamento, aí deixando o veículo para “rentabilizar o tempo”. Disse ainda que o local onde o autor estacionou o veículo, como fazia habitualmente, fica em frente a uma padaria, onde aquele costumava ir comprar qualquer coisa para lanchar, antes de ir para a residência de ambos.
Mais esclareceu que o turno do autor na C... termina às 18horas, 18 horas e qualquer coisa, demorando sempre algum tempo a picar o ponto e deslocar-se para o veículo motorizado que costuma conduzir, sendo habitual demorar cerca de 15 minutos entre as instalações daquele estabelecimento e o local onde estacionou o veículo e deste até ao “E...” cerca de 10 minutos (sendo que a duração de tais percursos poderia demorar m pouco mais, dependendo do trânsito e das condições meteorológicas).
Referiu ainda que o autor lhe contou que no dia do acidente, depois de ter estacionado a motorizada, no percurso para casa, encontrou um amigo, com quem esteve a conversar “um bocadinho” e, apercebendo-se de que já não tinha tempo de ir a casa, voltou para a motorizada e dirigiu-se para o E..., tendo ocorrido o acidente quando tinha percorrido cerca de 50 metros.
DD disse residir a cerca de 200/300 metros do autor e que, na altura do acidente, trabalhavam juntos na “E...”, referindo ainda ter sido uma das pessoas que primeiro chegou ao local do acidente. A testemunha disse que por vezes davam boleia um ao outro na deslocação para o dito “E...” sendo que o local onde ocorreu o acidente fica no percurso que habitualmente seguiam para se dirigirem para aquele posto de trabalho (podendo seguir outro se aí o trânsito fosse muito intenso), coincidindo com aquele ilustrado no doc. de fls. 13 do processo físico dos autos. Disse ainda que o local onde o autor alegadamente deixou a motorizada estacionada é um dos locais onde se costumavam encontrar para se dirigirem juntos ao E... por, normalmente, aí haver lugares de estacionamento, se encontrar perto de locais onde poderiam comprar alguma coisa para comer, se fosse necessário, localizando-se perto da residência de ambos, sendo que ele próprio aí costuma estacionar. Disse ainda que o AA, segundo o que se recorda, ia a casa lanchar “entre os dois empregos” e que o percurso do local onde o autor e ele costumavam estacionar até ao “E...” demoraria cerca de 5/10 minutos a percorrer, desde que não houvesse trânsito e as vias estivessem todas desimpedidas.
Ouvido em declarações e tendo presente, naturalmente, que tal meio de prova carece sempre de prova complementar corroboradora, mas que, no caso concreto, se coaduna com os depoimentos atrás mencionados, o autor disse que no dia do acidente, como era habitual, saiu das instalações da C... cerca das 18h10, dirigiu-se a sua casa para “fazer as necessidades e comer qualquer coisa”, também como fazia normalmente, e a seguir dirigir-se ao “E...”. Explicou também, de forma perfeitamente credível e razoável, que, deixou a viatura perto da rotunda que liga a Rua ... à Rua ..., local onde chegou cerca das 18h20/18h30, e onde costuma haver estacionamento disponível.
Depois de ter estacionado a viatura atravessou a rua e encontrou um amigo, por mero acaso e que vinha de um cabeleireiro ali perto, que já não via há algum tempo e que tinha sido operado, detendo-se a conversar com ele para saber como tinha corrido a operação, acabando por demorar mais do que previa. Vendo que já não tinha tempo de ir a casa, regressou à viatura, para se dirigir ao E..., tendo percorrido cerca de 50 metros da Rua ..., quando aconteceu o acidente. Confirmou que percurso que iria fazer (e que fazia habitualmente) é o ilustrado no doc. de fls. 13 dos autos, referindo que costuma sair de casa para o E... cerca de 15 minutos antes das 19 horas e que o acidente ocorreu “por volta” das 18h40.
A testemunha CC, técnica em Higiene e Segurança no Trabalho e perita averiguadora, tendo elaborado o relatório pericial que consta de fls. 266 e seguintes dos autos, confirmou, em audiência de julgamento as conclusões aí vertidas (no sentido de descaracterizar o acidente dos autos como sendo de trabalho), visto que o autor fez um desvio no percurso entre os dois empregos, para conversar com um amigo, sendo que a Rua onde ocorreu o acidente não fica no percurso entre os ditos postos de trabalho e que o sinistrado, nas declarações, não disse que ia a casa.
A testemunha disse ainda que a residência do sinistrado é a que consta da participação de fls. 15 (Rua ...), Vila Nova de Gaia, que dista cerca que 200 metros do local do acidente, sendo que, porém, toda a prova efectuada foi no sentido de o sinistrado residir na Rua ..., como, aliás, consta do relatório elaborado pela própria testemunha, a fls. 286, onde a testemunha reuniu com o sinistrado (cf. fls. 275) onde faz referência à “actual” morada do sinistrado.
Disse ainda a mesma testemunha que o acidente aconteceu cerca das 18h40 (coincidindo com o declarado pelo sinistrado), sendo que, por lapso, no relatório consta 19 horas (cf. fls. 266).
No que toca à matéria dada como não provada, em face do acima exposto, fundando a convicção do Tribunal, não se produziu prova consistente e firme sobre os mesmos, de forma a poder o Tribunal poder formar um juízo isento de dúvida sobre a mesma, tendo tal matéria excluída em face daquela que se deu como provada».
Cabe, ainda, fazer referência à posição assumida pelo recorrido nas contra-alegações, contrapondo que a Recorrente conformou-se com a prova dos factos enunciados na sentença recorrida sob os itens 11, 17, 18, 20, 21, 22, 23, 24, 25 e todos estes isolada, ou conjuntamente considerados são objectivamente incompatíveis com a pretendida prova do facto 3.º dos não provados. Nunca se poderá, por evidentes razões de coerência, sistemática e lógica, sob pena de nulidade da decisão (art.º 615.º do C.P.C.), dar-se por provado um novo facto contrário e incompatível com aqueles outros nove do elenco dos provados.
Antes de avançarmos, mostra-se pertinente relembrar que a Ré veio defender na acção, para além do mais, que o acidente de viação ocorreu depois de o autor ter feito um desvio entre os dois locais de trabalho de cerca de 2 Km. Reiterando essa posição, por via da alteração da decisão sobre a matéria de facto pretende defender [conclusão F] que “Constitui por demais claro, pelos elementos carreados aos autos, que o Sinistrado/Recorrido pretendia deslocar-se do seu local de trabalho na “C..., SA” em Matosinhos para o seu local de trabalho na “E..., SA” em ... e, neste trajeto, procedeu a um desvio para se deslocar à sua residência habitual”.
O que consta no ponto 3, dos factos não provados não corresponde a uma alegação feita literalmente nesses termos pela recorrente, mas antes uma formulação do Tribunal a quo, sintetizando o alegado, para além do mais, nos artigos 18. º e 33.º da contestação, onde aquela alegou, respectivamente, que “Face ao trajecto habitual que o A. teria de percorrer entre os dois locais de trabalho (i.e, entre a C... e o F...), o A. fez um desvio de aproximadamente 2 km”. E “Isto porque o sinistrado, para além de fazer um desvio face ao trajecto que era necessário percorrer entre os dois locais de trabalho, [..]”.
Qualquer daquelas alegações consubstanciavam conclusões extraídas dos factos anteriormente alegados e, logo, pelas razões que de seguida explicaremos, nunca poderiam ser dadas como provadas nesses termos. Porém, salvo o devido respeito, muito menos poderia ser dada como provada, ou não provada, a formulação encontrada pelo Tribunal a quo – “O autor percorreu mais 2 quilómetros do que seria necessário para efectuar o percurso entre os seus dois locais de trabalho - dado ser ainda mais conclusiva, encerrando claramente um juízo valorativo e dando, só por si, resposta a uma das questões fulcrais controvertidas, ou seja, a colocada pela Ré para defender a exclusão da caracterização do acidente como de trabalho in itinere.
Com efeito, conforme é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada. Dito de outro modo, só os factos materiais são susceptíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objecto de prova [cfr. Acórdão de 23.9.2009, Proc. n.º 238/06.7TTBGR.S1, Bravo Serra; e, mais recentemente, reiterando igual entendimento jurisprudencial: de 19.4.2012, Proc.º 30/08.4TTLSB.L1.S1, Pinto Hespanhol; de 23/05/2012, proc.º 240/10.4TTLMG.P1.S1, Sampaio Gomes; de 29/04/2015, Proc .º 306/12.6TTCVL.C1.S1, Fernandes da Silva; de 14/01/2015, Proc.º 488/11.4TTVFR.P1.S1, Fernandes da Silva; 14/01/2015, Proc.º 497/12.6TTVRL.P1.S1, Pinto Hespanhol; todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj].
Segundo elucida Anselmo de Castro “são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos”, depois acrescentando que “só, (…), acontecimentos ou factos concretos no sentido indicado podem constituir objecto da especificação e questionário (isto é, matéria de facto assente e factos controvertidos), o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstractos com que os descreve a norma legal, porque tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste” [Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, vol. III, 1982, p. 268/269].
Em linha com esse entendimento, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-03-2014, afirma-se que “Só acontecimentos ou factos concretos podem integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão, sendo, embora, de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes” [Proc.º n.º 590/12.5TTLRA.C1.S1, Conselheiro Mário Belo Morgado, disponível em www.dgsi.pt].
No Acórdão do STJ de 14 de Julho de 2021, citando-se Helena Cabrita [A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra Editora, Coimbra, 2015, pp. 106-107], afirma-se que “[o]s factos conclusivos são aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa ou, visto de outro modo, se tais factos fossem considerados provados ou não provados toda a acção seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência) com base nessa única resposta” [Proc.º 19035/17.8T8PRT.P1.S1. Conselheiro Júlio Gomes, disponível em www.dgsi.pt].
Assim, as afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que, sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado [Ac. STJ de 28-01-2016, Proc. nº 1715/12.6TTPRT.P1.S1, António Leones Dantas, www.dgsi.pt.].
Significando isto, que quando tal não tenha sido observado pelo tribunal a quo e este se tenha pronunciado sobre afirmações conclusivas, deve tal pronúncia ter-se por não escrita. E, pela mesma ordem de razões, que deve ser desconsiderado um facto controvertido cuja enunciação se revele conclusiva, desde que o mesmo se reconduza ao thema decidendum, não podendo esquecer-se que o juiz só pode servir-se dos factos alegados pelas partes e que “Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir (..)” [art.º 5.º 1 do CPC].
Por conseguinte, por identidade de razões, nem o Tribunal a quo deveria ter dada como não provada aquela formulação, nem este Tribunal de recurso a poderia dar como provada.
Improcede, pois, a impugnação da decisão sobre matéria de facto.
II.3 Motivação de Direito
A Ré discorda da sentença por alegado erro de julgamento na aplicação do direito aos factos, em razão de ter concluído que o acidente em causa é caracterizável como acidente de trabalho in itinere, nos termos dos artigos 8º e 9º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 al. b), da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro.
Estriba-se em duas linhas de argumentação. A primeira partindo do pressuposto de ver alterada a decisão sobre matéria de facto, com os argumentos vertidos nas conclusões D a H. A segunda, para defender que mesmo com base nos factos provados, o caso não é enquadrável previsão da alínea b) do n.º2 do artigo 9.º da LAT (“Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho”) e, consequentemente, não seria enquadrável como acidente de trabalho, por não aplicação da alínea a) do n.º 1 do referido artigo 9.º da LAT [conclusões I a N].
Tendo improcedido a impugnação da decisão sobre matéria de facto, por decorrência lógica, necessariamente soçobra a primeira linha de argumentação.
II.3.1 Quanto à segunda linha de argumentação – acima equacionada - comecemos por atentar na fundamentação da sentença recorrida, dela constando, no que aqui releva, o seguinte:
-«[..]
De acordo com o disposto no art. 8.º da L. A.T – Lei 98/2009, de 4/9, é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
Assim, a caracterização de um acidente de trabalho pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos:
- um elemento espacial (em regra, o local de trabalho);
- um elemento temporal (correspondente, por norma, ao tempo de trabalho);
- um elemento causal (nexo de causa e efeito entre o evento e a lesão, perturbação funcional ou doença, por um lado, e entre estas situações e a redução da capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte).
Porém, a montante dessa verificação cumulativa de pressupostos, torna-se imperioso, desde logo, que o evento possa ser havido como “acidente”, o que exige a sua produção ocasional, súbita e com origem externa.
Acidente pode ser definido como uma acção súbita e violenta de uma causa exterior provocando uma lesão no organismo humano (José Augusto Cruz de Carvalho, “O instituto jurídico da cobertura dos riscos profissionais”, C.E.J.).
O artigo 9.º do mesmo diploma estende depois a definição de acidente de trabalho a uma série de situações que ocorram fora do local e do tempo de trabalho.
Nos termos do n.º 1, al. a) da norma é também considerado acidente de trabalho o ocorrido “no trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste, nos termos referidos no artigo seguinte”.
Por sua vez, preceitua o n.º 2 do dito art. 9.º que “A alínea a) do número anterior compreende o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador:
a) Entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego;
b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho;
...”
O n.º 3 do mesmo preceito dispõe que “não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito”.
Finalmente, de harmonia com o n.º 4 do art. 9.º, “no caso previsto na alínea a) do n.º 2, é responsável pelo acidente o empregador para cujo local de trabalho o trabalhador se dirige.”
Estamos aqui perante a consagração do denominado acidente “in itinere”.
Para o Professor Júlio Gomes, no seu artigo “Breves reflexões sobre a noção de acidente de trabalho”, in 1º Congresso Nacional de Direito dos Seguros, Almedina, página 211, “se o núcleo central - os acidentes ocorridos no local e no tempo de trabalho - corresponde à esfera em que mais intensamente se faz sentir o controlo do empregador e a subordinação jurídica, a extensão do acidente de trabalho ao domínio exterior ao local e/ou ao tempo de trabalho parece ocorrer em homenagem a vários factores”, em que um deles será a necessidade do empregador surgir como garante de custos ligados ao oferecimento da sua prestação por parte do trabalhador, como sucede no caso dos acidentes “in itinere”.
O que se pretende, como bem salienta o mesmo Professor, é que “o empregador suporte as consequências em sede de perda de capacidade de trabalho ou de ganho de um acidente que um seu trabalhador sofreu porque tinha de trabalhar e tinha de se deslocar para o seu local de trabalho”.
Como escreve José Andrade Mesquita, in “Estudos em homenagem ao prof. Dr. Manuel Henrique Mesquita”, volume II, 2010, página 205 e seguintes, relativamente ao n.º 3 do art. 9.º da LAT:
“A necessidade atendível tem a ver com a prossecução de objectivos meritórios, de acordo com as valorações do ordenamento jurídico. Pode tratar-se da alimentação do próprio trabalhador, da verificação e uma aparente anomalia no automóvel, ou do transporte dos filhos à escola. Já o desvio para ir fazer compras não se enquadra neste conceito, a não ser que a organização do dia de trabalho não permita ao trabalhador adquirir bens de primeira necessidade noutra ocasião.
Justifica-se, por exemplo, um desvio para comprar água se, entretanto, o abastecimento foi interrompido.
Os casos de força maior relacionam-se com circunstâncias que tornam impossível ou inexigível que o trabalhador proceda diferentemente, como, nomeadamente, cortes de estrada, avarias mecânicas do automóvel, paragem do comboio que o trabalhador utiliza, etc.
Por seu lado, os casos fortuitos abrangem ocorrências que, fugindo à regra, justificam a observância de um comportamento diferente do habitual. Estamos a pensar, por exemplo, no facto de o trabalhador se enganar na saída ou entrada de uma auto-estrada, sendo obrigado a fazer um desvio significativo”.
Como realça Carlos Alegre, o “critério do legislador foi, também aqui, o mesmo: a consideração do risco resultante da subordinação à autoridade patronal, muito embora a atividade prestada nestas circunstâncias escape ao controle e fiscalização direta do empregador”- Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2a edição, Almedina, pág.45.
Trata-se de alargar a tutela legal ao risco de acidentes inerentes ao cumprimento do dever que incumbe ao trabalhador de comparecer no lugar do trabalho, para nele executar a prestação resultante do contrato de trabalho, constituindo assim uma das suas obrigações instrumentais ou acessórias. De facto, sendo o trabalhador obrigado a fazer o percurso necessário ao cumprimento da sua obrigação de trabalhar no lugar determinado pela sua entidade patronal e usando, para tanto, as vias de acesso e os meios de transporte disponíveis, justifica-se que os acidentes ocorridos neste percurso – de ida e também de vinda do local de trabalho - e no tempo habitualmente gasto para o percorrer, já gozem da proteção própria dum acidente de trabalho.
Trajecto ou percurso normal será o que é regularmente utilizado pelo trabalhador nas deslocações entre as extremidades antes referidas. O trajeto normal pode não ser, todavia, o mais curto ou o mais rápido ou, até, o que a generalidade das pessoas utiliza. A normalidade do trajeto não deve apurar-se face a estas condições, devendo antes, entender-se como normal o percurso que um dado trabalhador, em concreto, (no caso o concreto sinistrado) efetua nas suas deslocações regulares (diárias ou não).
Assim, para que o evento ocorrido entre a residência habitual ou ocasional do trabalhador e o local de trabalho, ou entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego, mereça a qualificação de “acidente de trabalho” é necessário o preenchimento de dois requisitos, quais sejam: 1 - que o evento se verifique no trajeto normalmente utilizado pelo trabalhador entre a sua residência e o local de trabalho, ou entre os dois locais de trabalho, o chamado “percurso normal”; 2 - que o evento ocorra durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador para chegar da sua residência ao local de trabalho, ou entre os dois locais de trabalho o tal “período habitual”.
É que só dentro destes parâmetros as deslocações do trabalhador se podem ainda dizer conexionadas com a relação laboral. No fundo, os acidentes de percurso não ocorrem no local e tempo de trabalho, mas não podem também deixar de estar relacionados com o trabalho. Como refere Sérgio Silva de Almeida “Para a lei cumpre apenas que a viagem tenha finalidade laboral, enquanto relação teleológica entre o comportamento do trabalhador que se expôs à conduta lesiva e o objecto da actividade laboral. Por outras palavras reconhece-se valor decisivo à circunstância de que o trabalhador só se encontra no local e na hora do acidente in itinere devido às obrigações decorrentes do seu contrato de trabalho, retirando-se daí as ilações pertinentes em sede de responsabilidade civil” – Reflexões sobre a noção de acidente in itinere – Boletim da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, 5a série, n.º3, Abril de 2007.
A demonstração da verificação dos pressupostos dos acidentes in itinere, depende apenas da prova de que o trabalhador se deslocava para o trabalho ou regressava dele – independentemente de ir a pé, de utilizar meio de transporte público, próprio ou fornecido pela entidade empregadora – e de que no trajeto foi utilizado um percurso normal, sem desvios – elemento espacial – ou interrupções – elemento temporal – para além do legalmente consentido.
No que concerne, em especial, ao requisito de o acidente ocorrer no “tempo habitualmente gasto”, cumpre salientar que o legislador da atual Lei no 98/2009 veio excluir da exigência legal que o acidente ocorresse no “tempo ininterrupto habitualmente gasto”, como exigia o art. 6.º/2, da anterior legislação (Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04, em regulamentação da Lei n.º 100/97, de 13/09).
Não é pois agora necessário, para que o acidente caia no âmbito de proteção da L.A.T., que se demonstre ter ocorrido no tempo mais curto, mais continuado ou seguido possível, bastando que não ocorra num período totalmente desfasado do período médio ou normal de chegada ao trabalho ou a casa.
[..]
Feito este enquadramento geral, haverá agora que apreciar se o autor logrou fazer prova de ter sido vítima de um evento com as apontadas características, posto que era seu o ónus de prova, sempre havendo a dúvida de resolver-se contra a parte onerada com tal prova – cfr. artigo 342.º/1, e 346º do Código Civil.
Do circunstancialismo fáctico apurado não há dúvidas que à data do acidente o autor estava ligado à “E..., SA”, por contrato de trabalho, exercendo para esta as funções inerentes à categoria profissional de operador de supermercado, no estabelecimento comercial pertencente à mesma, sito em ..., Vila Nova de Gaia, sendo que a responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho do autor se encontrava-se transferida da entidade empregadora do mesmo para a ré, pelo valor integral do seu salário anual, através de contrato de seguro, tendo sofrido um acidente rodoviário, que lhe causou lesões corporais que determinaram, direta e necessariamente, uma incapacidade permanente parcial para o trabalho.
O sinistrado, que tinha de entrar ao serviço, às 19 horas, terminou o seu turno na C..., onde também trabalhava, pelas 18:04 horas, após o que se deslocou-se no seu motociclo, pelas 18:10 horas, para Vila Nova de Gaia.
Já nesta cidade, pretendendo dirigir-se para a sua residência, sita na Rua ..., ..., 5º Esquerdo, em Vila Nova de Gaia, a fim de se alimentar e tratar da sua higiene pessoal e tendo efectuado o percurso que usualmente utiliza para se deslocar das instalações da C... até sua casa, estacionou o seu motociclo na Rua ..., em local que dista cerca de 70 metros, a pé, da dita residência, o que aconteceu cerca das 18h25.
Quando já se encontrava apeado, o autor dirigiu-se a pé para sua casa, sendo que durante esse percurso encontrou um amigo, o qual havia sido recentemente operado, tendo-lhe o autor perguntado pelo seu estado de saúde, conversa que durou cerca de 15 minutos.
Ao constatar que já não tinha tempo de ir a casa, decidiu dirigir-se de imediato para o seu local de trabalho (nas instalações do E..., no ...), para o que voltou a utilizar o seu motociclo, efectuando o percurso que usualmente utiliza para se deslocar de sua casa até àquele local de trabalho.
E foi nesse percurso habitual, cerca das 18:40 horas, que veio a sofrer o mencionado acidente rodoviário.
Achamo-nos, pois, no quadro do percurso habitual do trabalhador entre os dois locais de trabalho, sendo que nesse percurso era normal ir à sua residência para se alimentar e tratar da sua higiene pessoal, de resto efectuando o percurso normal e habitual entre a sua residência e as instalações da entidade empregadora no momento em que teve o acidente.
E cremos que, desde logo, importa, conferir alguma flexibilidade na análise do que é um trajeto normal numa cidade como Vila Nova de Gaia, em que o estacionamento (pago e não pago) é relativamente escasso e, naturalmente, variável, de dia para dia, em termos de lugares disponíveis para o efeito (havendo ainda o condutor de ponderar questões como a segurança da viatura), podendo o trabalhador ver-se obrigado a estacionar a viatura a alguma distância da sua residência.
E perante este quadro factual estamos convencidos que a circunstância de o autor ter encontrado, no percurso do seu veículo para casa, um amigo com quem conversou durante cerca de 15 minutos, o que determinou que aquele, por já não ter tempo, resolvesse já não ir a casa e regressar ao veículo para se dirigir ao E... não descarateriza o acidente como sendo de trabalho.
Na verdade, não é de exigir ao trabalhador que retome a sua actividade às 19 horas um turno num local de trabalho, depois de ter acabado turno anterior noutro local de trabalho, sem se ter alimentado ou que o faça na sua residência, entre os dois turnos, por ter tempo para o efeito, o que só não aconteceu no dia do acidente, precisamente porque o autor, diligentemente, acabou por decidir não ir a casa, como sempre fazia, para não chegar atrasado ao seu local de trabalho. Sendo que, para o efeito, retomou o percurso que fazia normal e habitualmente entre a sua residência e as instalações do E..., no ....
Logo, parece-nos correcto a qualificação do acidente rodoviário sofrido pelo autor como um acidente de trabalho in itinere, não tendo existido, in casu, qualquer situação ou acção relevante em termos de agravamento do risco das deslocações levadas a cabo pelo sinistrado e, logo de afastamento da tutela infortunístico-laboral do acidente ocorrido.
[..].».
Alega a recorrente que o Sinistrado/Recorrido nunca entrou na sua residência habitual, tendo permanecido na via pública, por ter encontrado o amigo o que resultou, dos pontos 22 e 23 dos factos provados, assim tendo iniciado o trajeto da residência habitual para o local de trabalho, sendo de excluir a caracterização do acidente como de trabalho in itinere.
Diremos, desde já, concordarmos no essencial, com a fundamentação transcrita e, consequentemente, com a decisão recorrida. Mas importa justificar esta asserção.
O artigo 9.º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, alarga o conceito de acidente trabalho aos acidentes ocorridos “No trajecto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste” [n.º1 al. a)], nos termos referidos nas alíneas do n.º2, do mesmo artigo, isto é, compreendendo “(..) o acidente de trabalho que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador”:
a) Entre qualquer dos seus locais de trabalho, no caso de ter mais de um emprego;
b) Entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho;
c) Entre qualquer dos locais referidos na alínea precedente e o local do pagamento da retribuição;
d) Entre qualquer dos locais referidos na alínea b) e o local onde ao trabalhador deva ser prestada qualquer forma de assistência ou tratamento por virtude de anterior acidente;
e) Entre o local de trabalho e o local da refeição;
f) Entre o local onde por determinação do empregador presta qualquer serviço relacionado com o seu trabalho e as instalações que constituem o seu local de trabalho habitual ou a sua residência habitual ou ocasional.
Acrescenta o n.º3, do mesmo artigo: Não deixa de se considerar acidente de trabalho o que ocorrer quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito”.
Como resulta com clareza do n.º2, o legislador enuncia em cada uma das alíneas hipóteses ou possibilidades de trajectos, definindo o ponto de partida e o destino.
Em qualquer dos casos previstos, sendo essa uma característica dos acidentes de trabalho in itinere, estar-se-á perante um acidente ocorrido fora do tempo e do local de trabalho [cfr. Sérgio Silva de Almeida, Reflexões sobre a noção de acidente in itinere, Boletim da Associação Sindical de Juízes Portugueses, V Série, n.º3, Abril 2007, p. 163].
O propósito da lei é proteger o trabalhador do risco de ocorrência de acidente nos percursos -normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador (n.º2)- que carece de fazer para prestar o seu trabalho à entidade empregadora, no local por esta definido e dentro do horário que por aquela lhe esteja fixado, obrigações a que está vinculado pelo contrato de trabalho subordinado.
Neste sentido, observa o Acórdão de STJ de 26-10-2011 [Proc.º 54/06.2TTCTB.C1.S1, Conselheiro Gonçalves Rocha, disponível em www.dgsi.pt] o seguinte:
- “o que justifica a responsabilização do empregador por este tipo de acidentes é a ligação que o regresso a casa do trabalhador tem com o trabalho, sendo razoável impor-lhe tal ónus em virtude dos trajectos de ida para o trabalho e de regresso a casa depois dele, serem inerentes ao cumprimento do dever de trabalhar.
Por isso, ao deslocar-se para comparecer no lugar do trabalho para o executar, ou ao regressar dele depois de trabalhar, o trabalhador está a dar cumprimento a uma das suas obrigações instrumentais ou acessórias, o que legitima a exigência de responsabilização da entidade patronal pelos acidentes ocorridos neste percurso”.
Protecção que se manterá ainda que o acidente ocorra “quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito”.
Retira-se de tudo isso, que a caracterização de um acidente como de trabalho de trabalho in itinere pressupõe sempre que exista uma ligação ao trabalho, isto é, uma conexão ou causalidade com a prestação laboral ou, pelo menos, com a relação laboral [Cfr. Ac. do STJ de 26-10-2011, acima citado; Ac. STJ de 16-09-2015, proc.º 112/09.5TBVP.L2.S1, Conselheiro Mário Belo Morgado, disponível em www.dgsi.pt; e, Maria Beatriz Cardoso, O conceito de acidente de trabalho, Conexão com a relação laboral, Revista Portuguesa do Dano Corporal (26), 2015, p. 57].
No caso em análise apenas está em causa a previsão da alínea b), ou seja, considerando como de trabalho o acidente ocorrido no trajecto entre a residência habitual ou ocasional do trabalhador e as instalações que constituem o seu local de trabalho. Releva atentarmos no elemento temporal definido pelo n.º2, exigindo-se, para que determinado acidente seja caracterizável como de trabalho in itinere, que ocorra “durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador”.
A propósito deste elemento observa o Professor Júlio Gomes [O Acidente de Trabalho, o Acidente in itinere e a sua descaracterização, 1.ª Edição, Coimbra Editora, 2013, p. 175] que “(..) o acidente há-de ocorrer num segmento temporal próximo da hora de entrada ou de início de trabalho do trabalhador (no caso da viagem de ida) ou próximo da hora de saída do trabalho do trabalhador, sem esquecer num e noutro caso, que circunstâncias várias podem influir na duração de um trajecto (engarrafamento, situações anómalas de trânsito por força, por exemplo, de uma greve de transportes, etc)”, para mais adiante concluir (p.177): “No fundo, este elemento temporal indicia o elemento teleológico que parece ser, ele sim, essencial: o trajecto tutelado é, em princípio, aquele que o trabalhador empreende ao sair da sua residência habitual ou ocasional com a intenção de se deslocar para o seu local de trabalho e aqueloutro, de regresso a essa mesma residência habitual ou ocasional, a partir do seu local de trabalho, uma vez terminada a sua prestação”.
Revertendo ao caso, como refere o Tribunal a quo, o acidente ocorreu quando o sinistrado Autor efectuava o percurso normal e habitual entre a sua residência e as instalações da entidade empregadora e, também, durante o tempo que era usual, ou seja, partiu em direcção ao local de trabalho há hora e com a antecedência que era usual.
É de todo irrelevante que o sinistrado não tenha chegado a entrar em casa por ter interrompido esse propósito quando ocasionalmente encontrou o amigo e se deteve a falar com ele sobre a recuperação da operação a que este fora submetido, ficando sem margem de tempo para cumprir aquela rotina e vendo-se na necessidade de iniciar de imediato o percurso para o local de trabalho. Esse
facto não põe em causa a ocorrência do acidente no percurso habitualmente usado e no tempo em que habitualmente o iniciava e realizava, não havendo qualquer quebra da conexão ou causalidade entre a sua verificação e a relação laboral, nem tão pouco acrescentou qualquer agravamento ao risco normal da execução desse trajecto.
Concluindo, improcede o recurso.
III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso nos termos seguintes:
i) Improcedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
ii) Improcedente a impugnação por alegado erro na aplicação do direito, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas do recurso a cargo do recorrente, atento o decaimento (art.º 527.º do CPC).

Porto, 18 de Setembro de 2023
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Rita Romeira