Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12323/17.5T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ IGREJA MATOS
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ACÇÃO DE INCUMPRIMENTO
CONTRATO DE UTILIZAÇÃO
PLATAFORMA DIGITAL
Nº do Documento: RP2017121412323/17.5T8PRT.P1
Data do Acordão: 12/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º801, FLS.79-82)
Área Temática: .
Sumário: I - A competência da jurisdição afere-se em função da natureza da relação material em litígio, conforme configurada pelo autor na petição inicial.
II - A competência para julgar uma acção de incumprimento de um contrato destinado à utilização de uma plataforma digital, celebrado entre entidades privadas, ao qual se aplicam as normas de direito privado, encontra-se atribuída aos tribunais comuns – e não aos tribunais administrativos - independentemente de, nessa plataforma, se ter em vista a apresentação de candidaturas a concursos públicos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Processo 12323/17.5T8PRT.P1

Recorrente(s): B…, S.A.
Recorrido(s): C…, S.A..
Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível do Porto
I – Relatório
Em sede de saneamento da lide, o tribunal de primeira instância proferiu a decisão, ora sob recurso, a qual se transcreve na íntegra:
A A., “B…, S.A.”, intentou a presente ação contra a Ré “C…, S.A.”.
Alegou, em síntese, que sofreu prejuízos ao tentar submeter a sua candidatura a concurso público na plataforma electrónica. Prejuízos causados pela Ré que, entre outros, violou os requisitos exigidos pela Lei nº 96/2015, de 17/08.
Tal normativo legal regula a disponibilização e a utilização das plataformas electrónicas de contratação pública e transpõe o artigo 29.º da Diretiva 2014/23/UE, o artigo 22.º e o anexo IV da Diretiva 2014/24/UE e o artigo 40.º e o anexo V da Diretiva 2014/25/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de fevereiro de 2014, revogando o Decreto-Lei n.º 143-A/2008, de 25 de julho.
A demandada contestou.
Conhecendo.
A este propósito dispõe o art. 65 do C.P.C., aprovado 41/2013, de 26/06, que “ As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”.
Face ao teor dos articulados, bem como do aludido diploma legal, constata-se que a matéria em discussão nos autos é da competência dos Tribunais Administrativos, aliás, como se pode verificar pela leitura do art. 144.º da Lei 62/2913, de 26/08, vulgo LOSJ e ainda do art. 4º ETAF, designadamente das als. a), e) j) e o).
Neste sentido, veja-se ainda o douto acórdão proferido pelo S.T.J., com o qual se concorda inteiramente, nº 08 B2 779, datado de 4/12/2008, www.dgsi.pt., se bem que tratando uma questão um pouco distinta. Do qual se retira que para dirimir questões relativas a um contrato de subempreitada, ainda que celebrado entre entidades privadas, referente a obra pública, é competente a jurisdição administrativa.
Deste modo, sem necessidade de mais considerações, conclui-se que o tribunal competente para decidir a presente causa é o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto (cfr. o já referido art. 144 da LOSJ).
Em conformidade, ao abrigo do disposto nos sobreditos preceitos legais e ainda do preceituado nos arts. 96 e 97 d C.P.C., declaro este tribunal incompetente, em razão da matéria, para dirimir a lide.
Pelo exposto, julgo verificada a aludida exceção dilatória da incompetência em razão da matéria e, em consequência, absolvo da instância a Ré, ““C…, S.A.” (arts. 99, 576, nº 1 e 2, 577, al. a) e 578, todos do C.P.C.).
Custas: pela A. que a elas deu causa, com a taxa de justiça fixada no mínimo legal (art. 527 C.P.C.).
Registe e notifique, nomeadamente as partes de que, querendo, podem fazer uso do disposto no art. 99, nº 2, C.P.C.
***
A autora não se conformou com o decidido e deduziu recurso apresentando as seguintes conclusões:
1. Recorrente e Recorrida, ambas sociedades comerciais sob a forma anónima, ou seja, entidades privadas, celebraram entre si um contrato de utilização de uma plataforma digital, que a primeira pretendia usar com vista a apresentar a sua candidatura a um concurso público (anunciado pelo D…).
2. Por incumprimento da Recorrida, isto é, por se ver impossibilitada de aceder à referida plataforma, a Autora viu gorada a sua pretensão de formular a sua candidatura por tal via.
3. A Recorrente liquidou todas as suas obrigações pecuniárias, que, sucessivamente lhe foram exigidas pela Recorrida para aceder e usar a sua plataforma digital.
4. No entanto, não logrou a Recorrida cumprir a sua contraparte do contrato de utilização: ter a plataforma operacional para que a Autora utilizasse na sua candidatura.
5. Vendo frustradas todas as tentativas de acordo extrajudicial, não restou outra alternativa à Autora, ora Recorrente, que não a propositura de uma ação de condenação com vista a ver devolvido tudo o quanto gastou na execução desse mesmo contrato de utilização, acrescido de juros vencidos e vincendos até integral pagamento.
6. Face à forma e conteúdo da relação jurídica delineada pela autora na petição inicial, parece certo à mesma que o incumprimento em questão está diretamente relacionada com normas de direito privado, maxime, o cumprimento ou incumprimento das obrigações, in casu, da obrigação contratual de prestação de um serviço, mediante o pagamento de um preço, nos termos do disposto nos Arts. 790º e 795 nº1 Código CCiv..
7. Ao decidir como decidiu, a Douta decisão em crise, ao declarar a incompetência dos Tribunais comuns em razão de matéria, interpretou erradamente e com isso violou ao Arts. 66º e ss do CPCiv. e 40º LOSJ, os quais deverão ser interpretados e aplicados no sentido de se atribuir ao Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto, J1 competência para conhecer e julgar a presente acção.
8. Solução que é igualmente imposta pelas alíneas a), e), j) e o).do nº 1 do art. 4º do ETAF, interpretadas ad contrarium.
Termina a apelante requerendo que se julgue o presente recurso totalmente procedente, revogando a sentença em causa e substituindo-a por outra que declare competente o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto, J1 para conhecer e julgar a presente acção, nos termos dos arts. artºs 66º e ss do C.P.C e 40º LOSJ e das as alíneas a), e), j) e o).do nº 1 do art. 4º do ETAF ad contrarium.
II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar.
O objecto do recurso é delimitado, no essencial, pelas conclusões das alegações dos recorrentes.
Em causa nos autos apenas a questão da definição do tribunal competente para a presente lide.
III -Fundamentação de Direito
Resulta pacífico que a competência em razão da matéria do tribunal se afere pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respectivos fundamentos (causa de pedir).
Por outro lado, em termos de competência residual, regula o art. 64º do C.P.C. que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” sendo certo que a nossa Constituição define no seu art.º 212.º, n.º 3, que a competência dos Tribunais Administrativos diz respeito ao julgamento das acções cujo objecto tenha por fundamento apenas “os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais ”
No caso dos autos, temos que a autora (uma sociedade anónima, de natureza privada) intentou a presente acção contra uma outra sociedade anónima, também privada, requerendo que se declare definitivamente incumprido o contrato de utilização de plataforma electrónica celebrado entre as partes e, consequentemente, que a ré seja condenada no pagamento dos prejuízos causados na execução desse mesmo contrato, acrescido de juros vencidos e vincendos até integral pagamento – cfr. arts. 790 e 795 nº1 do Código Civil.
Na sentença, como vimos acima, invocam-se quatro alíneas do artigo 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) para denegar a competência. As mesmas estipulam que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.
Constatando-se que nos encontramos perante pessoas colectivas de direito privado e que as relações em apreço envolvem um incumprimento contratual em que se invocam as normas substantivas civis de direito privado estará afastada a aplicação das invocadas alíneas j) e o), restando analisar se está em causa a aplicação da alínea e) uma vez que, no domínio em apreço – relações comerciais entre empresas – não se nos afigura aplicável a alínea a) tanto mais que se restringiria sempre à tutela de direitos fundamentais ou similares.
Apreciando. “A marca determinante (ou “agravante”) da administratividade de um contrato", nas palavras de Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo Comentado, 2º Edição, pág. 811, “decisiva para este efeito é a simples ligação expressa do contrato à realização de um resultado ou interesse especificamente protegido no ordenamento jurídico, se e enquanto se trata de uma tarefa assumida por entes da própria coletividade, isso é, de interesse que só tem proteção específica da lei quando são prosseguidos por entes públicos – ou por aqueles que atuam por «devoção» ou» concessão» pública”. Ora, no caso, não existe qualquer relação jurídica de cariz administrativo a considerar mas apenas um contrato de prestação de serviços, de natureza privada, em que ambos os contratantes são entidades privadas, não estando em causa, nas relações entre ambas, o exercício do denominado “ius imperium”.
Nos presentes autos quer a autora, quer o réu, são entidades particulares, pelo que, desde logo, e em princípio, não estaria em causa uma relação jurídica tutelada pelo direito público (neste sentido, leia-se Ac. da Relação de Lisboa de 20.01.2015, processo 375014/09.5YIPRT).
Enfatize-se: a causa de pedir nos autos radica na violação da relação sinalagmática pelo incumprimento de um contrato do domínio privado; a solução do litígio, tanto quanto ele foi configurado pelas partes, não será regulada por normas de direito administrativo, mas pelas regras comuns do direito civil.
Donde, o caso vertente não se enquadra na previsão de nenhuma das alíneas do artigo 4 do ETAF tanto mais que não haverá que fazer apelo a normas de direito público para apreciar a acção.
Aventa-se ainda, doutamente, na decisão sob escrutínio que estará em causa uma situação idêntica à tratada no Acórdão do STJ nº 08 B2 779, datado de 4/12/2008, do qual se retiraria “que para dirimir questões relativas a um contrato de subempreitada, ainda que celebrado entre entidades privadas, referente a obra pública, é competente a jurisdição administrativa”.
Analisado tal caso temos, porém, que estaria em causa situação diversa da que ora se discute; naquele processo estava em causa o não pagamento de trabalhos executados ao abrigo dum contrato de subempreitada de obras públicas relativo à Construção de um Mercado Municipal sendo que na empreitada interveio como celebrante um dado Município - sendo, por isso, este o dono da obra; aliás, nessa acção o próprio Município foi directamente accionado a partir da invocação de normas de direito público que regulariam aspectos específicos do respectivo regime substantivo (vide art.º 4º, al. f) do E.T.A.F.).
Porém, como ficou já dito, na presente lide, nenhuma entidade pública foi demandada e a solução do caso, nos termos configurados na petição inicial, envolve estritamente a aplicação de normas de direito privado.
A orientação que propugnamos, que implica a revogação da douta decisão da primeira instância, vem ao encontro de uma consolidada tradição jurisprudencial para casos coincidentes com o dos autos – neste sentido, poderá recensear-se o recente Acórdão desta Relação de 30 de Maio deste ano, processo nº108145/16.2YIPRT.P1 onde se remete para outros idênticos, designadamente do STJ de 5/11/02 Col.III/123, ou ainda da Relação de Guimarães de 3/4/2014, Col.II/302, e de 10/4/2012, processo nº 2321/11.8TBBRG.G1, em dgsi.pt.
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É tempo de sumariar nos termos do artigo 663º, nº7 do Código do Processo Civil:
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V – Decisão
Em conformidade, na procedência do recurso, revoga-se a decisão proferida, considerando-se o Tribunal apelado como materialmente competente, ordenando-se o prosseguimento dos autos até decisão final.
Sem custas.
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Porto, 14 de Dezembro de 2017
José Igreja Matos
Rui Moreira
Lina Baptista