Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1040/13.5PHMTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AUGUSTO LOURENÇO
Descritores: PENA DE MULTA
SUBSTITUIÇAO POR TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
ARGUIDO EM CUMPRIMENTO DA PENA DE PRISÃO
Nº do Documento: RP201411051040/13.5phmts-A.P1
Data do Acordão: 11/05/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Não deve ser substituída por trabalho a favor da comunidade (artº 48º1 CP) o cumprimento da pena de multa se o condenado se encontra em cumprimento de pena de prisão, por se diluir no cumprimento desta e não deverem ser cumuladas;
II – A prestação de trabalho em substituição do cumprimento da pena de multa tem como pressuposto que o condenado se encontre em liberdade e que o trabalho assuma uma restrição dessa liberdade ao sujeitar-se a determinadas actividades laborais impostas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1040/13.5PHMTS-A.P1

Acordam, em conferência, os Juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto,

RELATÓRIO
No âmbito do processo nº 1040/13.5PHMTS-A, que correu termos no 3º Juízo Criminal de Matosinhos foram os arguidos, B… e C…, julgados e condenados nos seguintes termos:
- «Por todo o exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal Colectivo, operando a convolação da qualificação jurídica dos factos nos termos acima enunciados, em julgar parcialmente provada a acusação e consequentemente em:
1. Condenar o arguido D…, como autor de um crime de tráfico de menor gravidade, previsto e punido pelo art. 25º/a) do DL 15/93 de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C anexa ao mesmo diploma, na pena de um ano e um mês de prisão, cuja execução se suspende por igual período;
2. Absolver os arguidos B… e C…, da prática em co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punível pelos art.s 21º/1 e 24º/h) do DL 15/93 de 22 de Janeiro;
3. Condenar o arguido B…, como autor de um crime de detenção de estupefacientes para consumo, previsto e punido pelo art. 40º/2 do DL 15/93 de 22 de Janeiro, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, com o quantitativo diário de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o montante de € 400,00 (quatrocentos euros).
4. Condenar o arguido C…, como autor de um crime de detenção de estupefacientes para consumo, previsto e punido pelo art. 40º/2 do DL 15/93 de 22 de Janeiro, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, com o quantitativo diário de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o montante de € 400,00 (quatrocentos euros).
5. Condenar ainda os arguidos no pagamento das custas do processo, fixando-se em duas UC a taxa de justiça devida por cada um (artº 513º e 514º do Código de Processo Penal, e art. 8º e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais)».
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Tal sentença já transitou em julgado.
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Em 29.04.2014, vieram os condenados e ora recorrentes requerer que a pena de multa que lhe foi imposta fosse substituída por prestação de trabalho comunitário, (cfr. fls. 30 e 32 deste traslado).
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Na sequência de tal requerimento, o Sr. Juiz veio a indeferir liminarmente o requerido pelo recorrente, (cfr. fls. 42 deste traslado), nos seguintes termos:
Despacho Recorrido
«A fls. 367 e 369, vieram os arguidos B… e C…, respectivamente, requerer que a pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, o que perfaz o montante global de 400 euros, a que a cada um foi condenado no âmbito dos presentes autos, seja substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, nos termos do disposto no artº 48º nº 1 do cód. penal, aduzindo, para o efeito, a sua situação actual de reclusão em cumprimento de penas anteriormente determinadas que os impede de lograr o cumprimento de uma pena de cariz económico.
Nos termos do disposto no artº 48º nº 1 do cód. penal, “[a] requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada iI e suficiente as finalidades da punição”,
A prestação de trabalho a favor da comunidade configura uma verdadeira pena de substituição de carácter não detentivo destinada a evitar a execução de penas de prisão de curta duração, centrando o seu conteúdo punitivo na perda, para o condenado, de parte dos seus tempos livres, sem o privar da sua liberdade e, concomitantemente, da integração social e familiar (J. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime (Tomo II), Coimbra Editora, 2005, p.372). Esta pena traduz-se na prestação de serviços gratuitos ao Estado e outras entidades de direito público ou entidades privadas de solidariedade social.
Como se depreende do conteúdo desta pena de substituição, a prestação de trabalho a favor da comunidade pressupõe uma situação de liberdade do condenado que permita, no plano prático e logístico, assegurar a prestação de serviços gratuitos nas entidades beneficiárias, situação que se revela impossível estando os arguidos em situação de reclusão.
Assim, e sem prejuízo da possibilidade de pagamento da multa em prestações (artº 47º nº 3 cód. penal) e da aplicação do art. 49º nº 3 do cód. penal, indefere-se o requerido.
Notifique.»
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Inconformados com tal decisão, interpuseram os arguidos B… e C… o recurso de fls. 2 a 9, pugnando pela respectiva revogação e a substituição por outro que autorize a substituição das penas de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade, concluindo:
«1. As penas de substituição podem substituir qualquer uma das penas principais, de prisão ou de multa;
2. A pena de substituição de prestação de serviço a favor da comunidade pode substituir a pena de multa a que os arguidos foram condenados de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros, perfazendo assim um montante global de 400 (quatrocentos) euros, de acordo com o artigo 48°, nº 1 do cód. penal, independentemente de o(s) arguido(s) estar(em) ou não em situação de liberdade, e, desde que se possa concluir que esta “forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
3. Inexiste no processo ou no próprio despacho recorrido qualquer menção a factos que impeçam tal conclusão.
4. Os estabelecimentos prisionais fazem parte da estrutura do Estado e, assim sendo, o serviço a favor da comunidade pode ser prestado por arguidos presos dentro do Estabelecimento Prisional que deve garantir as condições de prestação de trabalho no seu interior (como aliás acontece com parte dos presos que trabalham dentro dos muros da prisão);
5. Não pode ser impeditivo da substituição da pena de multa pela pena de prestação de serviço a favor da comunidade o facto de os arguidos estarem presos sob pena de violação do Princípio da Igualdade (art.13º, nº 2 da C.R.P) trave mestra de um Estado de Direito.
6. Os arguidos aqui recorrentes não dispõem de meios económicos para pagamento da pena de multa e, como bem se sabe, estão impossibilitados de conseguir um emprego porque não se encontram em liberdade, ficando assim mais vulneráveis do que aqueles que, sendo condenados em pena idêntica, ainda que sejam desfavorecidos economicamente, podem usar a sua liberdade para conseguir um emprego.
7. O arguido não pode ser discriminado em relação aos demais reclusos que dispõem de património, rendimentos ou familiares dispostos a suportar a multa, nem pode ser arredado do tratamento consentido aos demais cidadãos que, estando em liberdade, querendo, podem prestar trabalho a favor da comunidade, em substituição de uma multa em que sejam condenados.
8. Assim sendo, requer-se que seja concedida a possibilidade aos arguidos de cumprirem a pena de substituição de prestação de serviço a favor da comunidade em vez da pena de multa a que cada um deles foi condenado.
Termos em que, dando provimento ao recurso e revogando em conformidade o despacho recorrido, determinando Vossas Excelências a substituição da pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros, perfazendo assim um montante global de 400 (quatrocentos) euros, em que cada um dos arguidos recorrentes foi condenado, por uma (duas) pena de prestação de serviço a favor da comunidade, de acordo com o artigo 48º nº 1 do cód. penal, se fará inteira Justiça»..
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Respondeu o Ministério Público, nos termos de fls. 70 a 72, tendo defendido de forma liminar a improcedência do recurso e a confirmação do despacho recorrido que indeferiu a substituição da pena de multa por trabalho.
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Neste Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da inaplicabilidade do regime de substituição da pena de multa ao caso concreto, defendendo a improcedência do recurso, conforme douto parecer de fls. 79/80.
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O recurso foi tempestivo, legítimo e correctamente admitido.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTOS
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, extraídas pelo recorrente, da respectiva motivação[1], que, no caso "sub judice", se circunscreve à apreciação da legalidade do despacho judicial de rejeição da substituição da pena de multa pela prestação de trabalho a favor da comunidade.
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DO DIREITO
Apreciando a questão suscitada pelos recorrentes e não obstante a controvérsia jurisprudencial nesta matéria, o caso concreto assume algumas particularidades diferentes da generalidade dos apresentados em sede de recuso a este Tribunal, pelo simples facto dos condenados se encontrarem a cumprir pena de prisão efectiva em Estabelecimento Prisional à ordem de outros processos e pretenderem prestar esse serviço comunitário dentro do próprio estabelecimento onde se encontram.
Apreciando genericamente o regime das penas em geral e a substituição da pena de multa por dias de trabalho a favor da comunidade, refira-se que, o legislador de 1982, reconhecendo que a pena, embora deva comportar sempre um sacrifício para o condenado, deve ser um instrumento liberto, de efeitos estigmatizantes, como repositório dos valores fundamentais da comunidade, e da dignidade da pessoa humana, introduziu um arquétipo onde a pena privativa da liberdade reveste carácter excepcional, assumindo a sua aplicação uma natureza residual de último recurso.
Consequentemente, ocorreu uma diversificação das sanções penais e o reforço do papel da pena pecuniária, sendo claramente definidos e explicitados os seus critérios próprios de afirmação e o âmbito da sua aplicação e execução.
Tal orientação foi reforçada nas reformas subsequentes, designadamente na introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4/9, seja pelo alargamento do leque de penas substitutivas, seja ainda pelas alterações substanciais introduzidas às já existentes de forma a conferir-lhes maior abrangência.
Assim, relativamente ao cumprimento da pena de multa, estabeleceu-se um conjunto de etapas, normativamente ordenadas de forma sucessiva, no sentido de se alcançar o pagamento da quantia económica que traduz aquela forma de sanção, afastando-se a pena privativa da liberdade como alternativa e vincando-se o seu carácter subsidiário, (cfr. artº 47º a 49º, do cód. penal).
Consequentemente, para além do normal pagamento voluntário no prazo legal estatuído, consagrou-se ainda a possibilidade de pagamento diferido e em prestações, quando a situação económica e financeira do condenado o justifique (art. 47º n º 3 do cód. penal) e a substituição total ou parcial por dias de trabalho sempre que se entenda que tal forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (art. 48º nº 1).
Na falta de cumprimento voluntário por qualquer dessas vias segue-se a execução patrimonial e, só em caso de frustração desta, ocorre a conversão da multa em prisão subsidiária cuja execução poderá, ainda, ser evitada mediante o pagamento da quantia devida ou suspensão subordinada ao cumprimento de deveres ou regras de conduta (artº 491º nº 1, do cód. proc. penal e 49º nº 1, 2 e 3, do cód. penal).
Nos termos do artº 48º nº 1 do cód. penal:
- «1. A requerimento do condenado, pode o tribunal ordenar que a pena de multa fixada seja total ou parcialmente substituída por dias de trabalho em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda de instituições particulares de solidariedade social, quando concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
No caso concreto os recorrentes foram condenados em pena de multa e requereram tempestivamente a sua substituição por dias de trabalho a favor da comunidade, todavia, a particularidade a assinalar (e já referida) reside no facto de se encontrarem presos em cumprimento de pena à ordem de outros processos.
Será nestes casos exequível a aplicação do regime de substituição da pena de multa por trabalho dentro do próprio estabelecimento prisional? A resposta, prende-se com a natureza da medida e com a finalidade última da aplicação das penas, devendo por isso indagar-se, nestes casos, se a prestação de trabalho dentro do próprio estabelecimento prisional onde o condenado se encontra preso, como pena substitutiva da pena de multa, satisfaz de forma adequada as finalidades da punição.
Não obstante a existência de alguma jurisprudência que admite tal possibilidade, (cfr. Ac. Trib. Rel. Lisboa de 16.11.2009 disponível em www.dgsi.pt), propendemos para a tese maioritariamente aceite que a recusa, (cfr. Ac. do Trib. Rel Guimarães de 11.07.2013 disponível em www.dgsi.pt) uma vez que, estando o arguido preso em cumprimento de pena, falecem os pressupostos que permitem a aplicação de tal medida punitiva, a qual, a aceitar-se nos termos requeridos, seria desvirtuar a sua finalidade, uma vez que se diluía no cumprimento de outra pena - a de prisão - quando é sabido que os reclusos exercem muitas vezes diversas tarefas similares dentro dos próprios Estabelecimentos Prisionais, sem que isso assuma natureza de prestação de trabalho a favor da comunidade e muito menos medida punitiva.
Como decorre da interpretação literal da própria norma, o legislador previu tal pena no pressuposto de que o arguido se encontre em liberdade e que tal trabalho assuma, ainda assim, uma restrição dessa mesma liberdade ao sujeitar-se a determinadas actividades laborais impostas; só assim a prestação de trabalho comunitário poderá cumprir a sua finalidade, o que não aconteceria se a cumulássemos com o cumprimento da pena de prisão enquanto esta decorre e no mesmo estabelecimento.
E não se diga, como o fazem os defensores da tese oposta, que a não se aceitar a tese dos recorrentes, se viola o princípio da igualdade, consagrado no artº 13º da CRP, pois não se pode comprar o que a priori não é comparável nem parte de situações igualitárias entre cidadãos. Uma coisa é estar em liberdade e outra é estar legal e legitimamente preso em cumprimento e pena. A violação do princípio a igualdade só ocorreria se, estando os dois cidadãos em iguais condições (de liberdade ou de prisão) se negasse a um o que outro se concedeu.
A prestação de trabalho a favor da comunidade foi contemplada pelo legislador numa dupla vertente:
a) Pena autónoma de substituição, destinada a evitar a execução de penas de prisão de curta duração (2 anos) – art. 58º do cód. penal; e
b) Forma de cumprimento da pena de multa – art. 48º do cód. penal.
Por outro lado, a evolução legislativa dá nota de que o legislador, para além de ter alterado a moldura legal abstracta da pena de trabalho a favor da comunidade (cfr. nº 3 do art. 58º na redacção inicial e na versão vigente), pretendeu uniformizar o critério de substituição dos dias de prisão fixados por horas de trabalho, estabelecendo, na reforma levada a cabo em 2007, que para efeitos da pena de prestação de trabalho a favor da comunidade “cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho”, retirando, assim, a concreta conversão, dentro dos limites abstractamente estatuídos, da livre disponibilidade do julgador que até então vigorava.
“Tal critério é correspondentemente aplicável aos dias de trabalho que tenham que ser fixados como forma cumprimento de uma pena de multa, por força da remissão prevista no art. 48º nº 2, do cód. penal, que o legislador deixou incólume. E bem, diremos nós, já que se pretendeu estabelecer um critério legal de substituição, retirando da equação o factor de insegurança e desigualdade relativa inerente ao juízo valorativo resultante da experiência ou sensibilidade judicial” – cfr. Ac. do Trib, Rel. Porto de 12.09.2012 in www.dgsi.pt.
Salvo melhor entendimento, parece-nos claro que, estando os recorrentes a cumprir pena de prisão efectiva em Estabelecimento Prisional, não faz sentido, cumular com esta pena a de prestação de trabalho comunitário para cumprimento em simultâneo, dentro do próprio estabelecimento, face à diferente natureza de cada uma das penas, o respectivo grau de gravidade e objetivos que perseguem.
Pelo exposto, se conclui pela improcedência do recurso conjunto interposto pelos recorrentes.
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DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso conjunto interposto por B… e C….
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Custas a cargo dos arguidos fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (quatro unidades de conta) cada um, (artº 513º nº 1 do cód. procº penal).
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Porto 5 de Novembro de 2014
Augusto Lourenço[2]
Moreira Ramos
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[1] - Cfr. Ac. STJ de 19/6/1996, BMJ 458, 98.
[2] - Elaborado e revisto pelo relator, sendo da sua responsabilidade a não aplicação do acordo ortográfico.