Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2104/05.4TBPVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RODRIGUES PIRES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
ERRO MÉDICO
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP201502102104/05.4TBPVZ.P1
Data do Acordão: 02/10/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Actualmente predomina a orientação segundo a qual a regra é a da responsabilidade contratual do médico, sendo a responsabilidade extracontratual a excepção, normalmente correlacionada com situações em que o médico actua em quadro de urgência, inexistindo acordo do doente para a sua intervenção.
II - A ilicitude da actividade do médico será afirmada se concluirmos que a mesma se consubstancia numa violação das “leges artis” impostas a um profissional prudente da respectiva categoria ou especialidade, sem necessidade de aquilatar se, na execução ou inobservância dos deveres que lhe são exigíveis, o médico actuou com a diligência, cuidado ou prudência impostos a um profissional medianamente diligente, zeloso e cuidadoso, uma vez que tal juízo terá lugar a nível da culpa.
III - Embora na actividade médica a fronteira entre ilicitude e culpa seja difícil de determinar, estes dois conceitos permanecem diferenciados, atendendo a que uma coisa é saber o que houve de errado na actuação do médico e outra saber se esse erro deve ser-lhe assacado a título de culpa.
IV - Sucede que a prova da ilicitude da actuação cabe ao lesado, ao passo que ao lesante caberá provar a sua não culpa.
V - O erro médico deve distinguir-se da figura afim que é o acontecimento adverso (“adverse event”) definido este como qualquer ocorrência negativa ocorrida para além da vontade e como consequência do tratamento, mas não da doença que lhe deu origem, causando algum tipo de dano, desde uma simples perturbação do fluxo do trabalho clínico a um dano permanente ou mesmo a morte.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2104/05.4 TBPVZ.P1
Tribunal Judicial de Póvoa de Varzim – 1º Juízo Cível
Apelação
Recorrentes: “B… – Companhia de Seguros, SA”; C…
Recorrida: D…
Relator: Eduardo Rodrigues Pires
Adjuntos: Desembargadores Márcia Portela e Pinto dos Santos

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
Nos presentes autos é autora D…, residente na Rua … n.º …, … e são réus C…, com domicílio profissional na “E…, S.A.” – E1…, Apartado …, ….-… Póvoa de Varzim, Hospital …, com sede em Rua …, Valongo e Hospital de S. João, sito na …, …., Porto.
São chamadas a Companhia de Seguros F…, S.A, com sede em …, …, Lisboa e B… - Companhia de Seguros, S.A., com sede em Rua …, .., Porto.
Pede a autora a condenação dos réus, solidariamente:
- a pagarem-lhe o montante indemnizatório global de 304.711,55€, sendo 200.000,00€ a título de danos não patrimoniais sofridos e o restante a título de danos patrimoniais, acrescidos de juros legais desde a citação até efectivo e integral pagamento;
- o valor relativo a danos futuros e o que se vier a liquidar em execução de sentença.
Funda a autora tal pedido na circunstância de o primeiro réu, enquanto trabalhava na segunda ré, lhe ter realizado uma colonoscopia durante a qual sentiu imensas dores; depois de tal exame foi acometida de obstipação intestinal, intensas dores e vómitos alimentares que a levou a procurar a urgência do Hospital …, aqui terceiro réu, onde esteve em observações por um período de cerca de três horas; tendo regressado a casa os sintomas eram cada vez mais graves, tendo, por isso, recorrido aos serviços de urgência do Hospital S. João, ora também réu, onde, durante cerca de 11 horas, a autora efectuou vários exames e análises, sem que lhe fosse diagnosticada a origem das intensas dores abdominais que sentia e cuja intensidade não diminuía e sem que lhe tenha sido ministrado qualquer medicamento que as diminuíssem, sendo certo que na sequência da ecografia abdominal que lhe foi feita, foi detectada a existência de líquido intraperitoneal; como a situação continuava por resolver a autora acabou por se deslocar para o Hospital de Santo António, no Porto, onde lhe foi diagnosticado quadro de abdómen agudo que se verificou estar relacionado com peritonite fecal secundária à perfuração de sigmóide, ou seja, foi-lhe diagnosticada uma perfuração com cerca de 2 cm de diâmetro no cólon, perfuração feita durante o exame realizado pelo réu; a autora foi sujeita a cirurgia de urgência, seguindo-se um longo período de hospitalização em que esteve em perigo de vida e doença, de difícil e penosa recuperação, tendo ficado com sequelas para o resto da vida.
Alega a autora ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais em virtude da conduta negligente do primeiro réu, que realizou o exame mencionado nas instalações pertencentes à segunda ré, com aparelhos médicos a esta pertencentes e a quem o primeiro réu prestava serviços mediante remuneração (tendo obtido a segunda ré vantagens com a realização do exame já que a autora lho pagou directamente), pelo que estes dois réus são responsáveis pelos danos que lhe foram causados.
Também o terceiro réu é responsável pelo ressarcimento desses danos, na medida em que contribuiu para o agravamento do estado da autora, visto não ter efectuado à autora os exames normais e necessários ao correcto diagnóstico do seu estado, tendo-lhe sido feito apenas um teste sumário de urina e diagnosticada uma infecção urinária.
Da mesma forma, contribuiu o quarto réu para esse agravamento da situação clínica da autora, tendo esta aí permanecido cerca de 11 horas sem que tenha sido internada, não tendo sido dado relevo à situação de líquido intraperitoneal que foi detectada, não tendo sido correctamente diagnosticada e nada tendo sido feito que assegurasse o tratamento da ora autora.
Veio contestar o Hospital … defendendo-se por excepção, alegando que a jurisdição comum é incompetente para conhecer da presente acção, já que o Hospital é um estabelecimento público dotado de personalidade jurídica, cabendo essa competência ao T.A.C. do Porto; mais defende que os factos alegados pela autora para defender a responsabilidade do ora réu são insuficientes para poder determinar qualquer responsabilidade desse réu, não existindo qualquer nexo de causalidade entre tais actos e os danos referenciados pela autora.
O Hospital de S. João contestou alegando que a autora, naquela unidade hospitalar foi sujeita aos exames necessários, tendo sido confirmada a existência de uma infecção urinária (já diagnosticada pelo Hospital …) e, porque se admitiu a existência de outros problemas, pediu-se a colaboração de médicos dos serviços de Medicina Interna e Hematologia Clínica que, contudo, não chegaram a intervir porque a autora abandonou as instalações do Hospital, impedindo a conclusão definitiva do diagnóstico e a terapêutica adequada à sua situação clínica; de qualquer forma, durante o tempo em que a autora permaneceu nas instalações do réu, foi medicada; o réu impugnou ainda a matéria alegada pela autora, defendendo terem sido empolados os danos alegados pela autora, sendo certo que quem suportou os respectivos encargos hospitalares foi a ADSE, referindo ainda que o réu, a ser condenado não o poderia ser solidariamente com os demais réus, sendo a sua responsabilidade limitada.
A ré “E…, S.A”, contestou, alegando que o réu C… presta serviços na E1… desde o ano de 1991, tendo uma vasta experiência profissional e desempenhando a sua profissão com rigor, seriedade e diligência, qualidades com que realizou à autora o exame em causa, o qual decorreu com toda a normalidade; a autora, realizado tal exame, nunca mais retornou às instalações da ré para se submeter a qualquer observação clínica, nem se queixou de qualquer complicação subsequente ao exame; a perfuração do intestino é uma complicação possível à realização da colonoscopia, mesmo agindo-se com todo o zelo e cuidado pelo que a perfuração, a ter ocorrido durante o exame, não ficou a dever-se a incúria ou falta de atenção. Esta ré impugnou ainda os factos alegados pela autora e requereu a intervenção da Companhia de Seguros F…, em virtude de ter celebrado com a mesma um contrato de seguro, para ela transferindo a responsabilidade civil extracontratual por danos patrimoniais e não patrimoniais causados a terceiros decorrentes da sua actividade.
O réu C… contestou também impugnando a factualidade vertida na petição inicial, alegando que a autora, quando o contactou, apresentava já um quadro abdominal de dor crónica, distensão muscular e obstipação, circunstâncias que a levaram a procurá-lo e a realizar o exame de diagnóstico em causa; o exame foi efectuado com total respeito pelas legis artis, sendo que a autora, durante o mesmo, não apresentou queixas que não fossem as consideradas “normais”, tanto mais que lhe havia sido administrado um sedativo; o réu não teve qualquer participação ou, sequer, conhecimento dos actos médicos praticados pelo Hospital de Santo António, sendo que o conjunto de sequelas referenciadas pela autora advêm do conjunto de actos por este praticados; a perfuração do intestino pode ser causado por uma simples espinha ou osso deglutida pela autora. Mais alega o réu que os factos ora em análise se encontram já a ser apreciados em procedimento criminal instaurado contra o réu, por via de queixa apresentada pela autora, pelo que o pedido de indemnização civil deveria ter sido formulado no processo crime; no caso concreto, atenta a descrição dos fatos efectuada pela autora o regime de solidariedade nunca seria o aplicável, configurando um conjunto de relações jurídicas e não apenas uma única relação material controvertida, respeitante a várias pessoas: segundo a versão da autora, do contacto com a mesma havido pelos diferentes réus, emergiram quatro relações jurídicas perfeitamente distintas e autónomas, ainda que encabeçadas pelo mesmo sujeito, pelo que nos encontramos perante uma situação de responsabilidade conjunta.
Replicou a autora alegando que:
- os factos que originam a responsabilidade do Hospital … não são actos de gestão pública, sendo os Tribunal comuns os competentes para conhecer da presente acção;
- no inquérito originado com a sua queixa de índole penal, apresentado há mais de dois anos por referência à data da réplica, até àquele momento, não foi proferido despacho de arquivamento ou acusação pelo que, nos termos do artigo 72.º/1, a) do Código de Processo Penal, era legítimo à autora propor a presente acção;
- mantém tudo o por si já alegado na petição inicial.
Admitida a intervenção da Companhia de Seguros F…, S.A., veio a mesma alegar que o presente sinistro jamais foi comunicado à interveniente, passando a impugnar os factos alegados pela autora e referindo ainda que à E… não foi dada, pela autora, possibilidade para avaliar a situação clínica da autora, depois do exame, não tendo sido alegados fatos que permitam estabelecer um nexo causal entre a eventual perfuração e as complicações relatadas pela autora, sendo esta própria que alega que estas complicações tiveram origem na omissão de deveres de cuidado e diligência por parte dos Hospitais de Valongo e Porto.
O réu C… requereu a intervenção provocada nos autos da B…, Companhia de Seguros, Ld.ª, por ter celebrado, com a mesma um contrato de seguro por via do qual transferiu para a seguradora a responsabilidade civil adveniente dos actos praticados no exercício da sua profissão, sendo que esta, citada, veio esclarecer que tal seguro, à data dos factos alegados pela autora, vigorava para um capital máximo de anuidade e por sinistro de €85.156,77 em danos corporais e €17.654,45 em danos materiais, com franquia no valor de €49.88, sendo que os factos objecto do presente processo nunca foram participados à seguradora; a interveniente impugnou os factos alegados, referindo serem exageradas as quantias peticionadas.
A fls. 489 dos autos, em sede de audiência preliminar, foram os réus Hospital de S. João e Hospital …, absolvidos da instância por se ter julgado incompetente este Tribunal para conhecer dos litígios que envolvem a autora e estas instituições hospitalares.Foi seleccionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória.
Realizou-se audiência de julgamento com observância do legal formalismo, tendo o tribunal respondido à matéria da base instrutória através do despacho de fls. 1282 e segs., que não teve qualquer reclamação.
Depois proferiu-se sentença que julgou parcialmente procedente e provada a presente acção e, em consequência:
a) condenou o réu C… e a chamada “B… - Companhia de Seguros, S.A.” a pagarem à autora o montante indemnizatório de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) a título de danos não patrimoniais, sendo que, deste o valor, o de €85.156,77 será pago pela seguradora e o remanescente pelo réu, sendo que ao montante indemnizatório acrescerão juros legais a contar desta data, até efectivo e integral pagamento, à taxa legal de 4% ao ano;
b) condenou o réu C… e a chamada “B… - Companhia de Seguros, S.A. a pagarem à autora a quantia de €4.594,13 (quatro mil quinhentos e noventa e quatro euros e treze cêntimos) para indemnização de danos patrimoniais, quantia garantida pelo seguro efectuado pelo réu, a que será descontado o valor de €49,88 correspondente à franquia do seguro, sendo que ao montante indemnizatório acrescerão juros legais desde a data da citação, vencidos e vincendos, até efectivo e integral pagamento, à taxa legal de 4% ao ano;
c) absolveu os demandados do demais peticionado;
d) absolveu a ré E…, S.A. – E1… e a interveniente Companhia de Seguros F…, S.A, do pedido contra elas formulado.
Inconformada, interpôs recurso a ré “B… – Companhia de Seguros, SA”, que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. – A decisão sob recurso entendeu subsumir os factos às normas de responsabilidade civil extracontratual e, analisando os seus pressupostos, concluiu pela verificação de todos eles e, consequentemente pela obrigação de indemnizar. Decisão com que a apelante não pode concordar.
2. – Na responsabilidade delitual cabe ao credor (lesado), nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, o ónus da prova dos pressupostos da obrigação de indemnizar do devedor (lesante), incluindo a culpa, salvo se houver presunção de culpa (artigos 483.º e 487.º, n.º 1, do Código Civil). Tratando-se de responsabilidade contratual compete ao credor, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, o ónus de prova do facto ilícito do cumprimento defeituoso, o dano e o nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano. Quanto à culpa, o n.º 1, do artigo 799.º estabelece a presunção de culpa do devedor.
3. – A ilicitude, no domínio da responsabilidade extracontratual, consiste na violação do direito de outrem ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios (art. 483.º), na responsabilidade contratual traduz-se na falta de cumprimento (ou cumprimento defeituoso) da obrigação contratual (art.s 798.º e 799.º).
4. – No campo da responsabilidade médica, em que frequentemente está em causa uma obrigação de meios e não de resultado, valem também estas regras.
5. – Mesmo a entender-se, como ocorre na decisão sob recurso, que é possível extrair-se uma presunção de culpa quando o resultado da intervenção médica é danoso, mesmo nesse caso, o lesado deve provar os restantes requisitos, entre eles, a ilicitude.
6. – Tal como resulta do acórdão do STJ de 15/10/2009 (sendo relator Rodrigues dos Santos) ao paciente incumbirá a prova dos factos demonstrativos do incumprimento ou cumprimento defeituoso das leges artis e da devida diligência por banda do médico.
7. – Referindo-se no acórdão do STJ de 07/10/2010 (sendo relator Ferreira de Almeida) “Em regra, a obrigação do médico é uma obrigação de meios (ou de pura diligência), cabendo, assim, ao credor (lesado) fazer a demonstração em juízo de que a conduta (ato ou omissão) do devedor (ou prestador obrigado) não foi conforme com as regras de atuação suscetíveis de, em abstrato, virem a propiciar a produção do almejado resultado” e que “incumbirá, pois, ao doente o “burden of proof “da invocada inexecução desse contrato por banda do profissional médico”, ou seja, o ónus da prova do incumprimento ou ilicitude cabe ao autor.
8. – Ou, como refere esta Relação do Porto em acórdão de 06/03/2006 (sendo relator Caimoto Jácome) que “Cabia à autora/credora a prova da ilicitude, ou seja, que as rés violaram as legis artis e às demandadas a prova de que, no circunstancialismo apurado, não podiam e não deviam ter agido de modo diferente”.
9. – No caso sub judice alegou a autora que o primeiro réu lhe realizou uma colonoscopia durante a qual terá ocorrido perfuração do intestino, junto ao colo sigmóide.
10. – Em causa está o incumprimento por parte do réu médico de uma obrigação passiva universal que, em contraponto da natureza fundamental dos direitos absolutos e como garantia do seu respeito, vincula erga omnes os sujeitos colocados na mesma ordem jurídica e, portanto, em condições de abstratamente os ofender.
11. – A autora invoca assim a ilicitude da conduta do médico por falta de cuidado e diligência na realização do exame.
12. – Contudo, não demonstrou, como lhe competia, que o médico manipulou ou conduziu mal o aparelho fosse por distração, falta de destreza ou imperícia e que, por isso, provocou a perfuração do cólon sigmóide.
13. – Não se vislumbra o que o réu médico fez e não devesse ter feito ou o que não fez e devesse ter feito que permita concluir pela ilicitude da sua conduta, fazendo recair sobre este o ónus de ilidir a presunção de culpa que então, e como defende a douta sentença ora posta em crise, resultaria em evidência.
14. – Pelo que a presente ação teria que improceder.
15. – Sem prescindir, e caso se venha a julgar não assistir razão à recorrente quanto à pretendida improcedência da presente ação, sempre a douta sentença terá que ser alterada quanto aos valores computados para a indemnização.
16. - São sobejamente conhecidas as dificuldades em quantificar os danos não patrimoniais e em traduzi-los numa quantia em dinheiro que, de alguma forma, compense o sofrimento, o desgosto e a dor.
17. - Resta o recurso à equidade e, enfim, ao que vai sendo a jurisprudência dos nossos tribunais neste domínio.
18. - Para que se salvaguarde o valor da segurança jurídica é necessário que os tribunais fixem uma compensação para os danos não patrimoniais passível de ser alcançada por qualquer decisão judicial.
19. – Ponderado o princípio da igualdade e analisando comparativamente os valores arbitrados para a indemnização do dano perda do direito à vida, valor supremo, dano biológico e perda de ganho em diversos arestos (acórdão da Relação de Coimbra de 16-01-2008 – www.dgsi.pt, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-05-2008 – CJ STJ XVI, II, 44, acórdão do STJ de 24-09-2009 – www.dgsi.pt) conclui-se que o valor fixado pela douta sentença - €150.000,00 - é exagerado para compensar o dano sofrido pela autora.
20. – Atentemos de um modo particular na jurisprudência e nas decisões do Supremo Tribunal de Justiça, publicadas no sítio www.dgsi.pt:
Segue-se a citação de diversos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: Acórdão de 22-09-2005 - Revista n.º 2470/05; Acórdão de 27-04-2006 – Revista 914/06; Acórdão de 08-05-2006 - Revista 1144/06; Acórdão de 27-06-2006 - Revista nº 1779/06; Acórdão de 14-09-2010 - Proc. 797/05.1TBSTS.P1; Acórdão de 14-09-2010 - Proc. 267/06.0TBVCD.P1.S1; Acórdão de 11-11-2010 - Proc. 270/04.5TBOFR.C1.S1; Acórdão de 07-10-2010 -Proc. 370/04.1TBVGS.C1.
21. – Neste contexto, ponderando comparativamente os valores apontados nos citados arestos e as circunstâncias acima enunciadas, entendemos que o valor atribuído a título de indemnização pelos dano morais, pelo Juiz do tribunal “a quo”, na situação concreta, mostra-se desajustado, não estando conforme com um juízo de equidade, para compensar os danos sofridos e por esse motivo, não se justifica a atribuição de um valor de €150.000,00 para compensar o sofrimento e a dor sentida pela recorrida com fundamento nos danos descritos nos presentes autos.
22. - Crê a recorrente que, tendo em conta o quadro lesivo e doloroso sofrido pela recorrida, bem como as sequelas de que ficou a padecer, a indemnização fixada terá que ser alterada, atribuindo-se um valor que não exceda os €50.000,00.
23. - A sentença em apreciação condenou o R. e a interveniente no pagamento da quantia de €4.594,13, valor que não se alcança pela análise dos factos provados.
24. - Crê a recorrente que a menção àquele montante apenas poderá traduzir um lapso aritmético.
25. - Na verdade, e conforme resulta da própria fundamentação da douta sentença, apenas está demonstrado ter a autora despendido €618.00 em consultas médicas, €2.000,00 na compra de medicamentos, €147,90 em exames e tratamentos e €199.00 na aquisição de uma cadeira de rodas.
26. - Pelo que o dano emergente teria que ser computado em €2.964,90 e nunca nos € 4.594,13 que se fixou na douta sentença.
27. – Ao decidir diferentemente fez o Tribunal errada interpretação e aplicação dos artigos 483.º, 496.º, 563.º e 566.º, do Código Civil.
Nestes termos, pretende a recorrente que seja revogada a sentença recorrida e substituída por outra que julgue a acção improcedente, absolvendo o réu e a chamada do pedido. Caso assim se não entenda, sempre deve proceder-se à alteração do valor fixado em primeira instância como indemnização pelos danos sofridos pela apelada.
Igualmente interpôs recurso o réu C… que finalizou as suas alegações com as seguintes conclusões:
1º O ora recorrente, com o presente recurso de apelação, interposto da aliás douta sentença de 11/11/2013 que julgou a acção parcialmente provada e procedente, tem em vista, não apenas a interpretação e a aplicação da lei aos factos já dados como provados mas, também, a reapreciação da prova produzida, documental e testemunhal (gravada), com vista à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos e para os efeitos do estatuído v.g. no art. 712º do CPC (actual art. 662º do NCPC).
Nulidades
2º Nos termos do art. 668º nº 1 alínea c) do CPC (actual 615º NCPC) a sentença é nula porque omitiu matéria dada como provada e considerou como matéria provada alguma que o não foi.
3º No seu ponto 100º, a sentença recorrida reproduziu matéria que não foi levada à base instrutória, pois que, sendo tal ponto relativo ao quesito 121º nele apenas se perguntava se “A autora sentia-se envergonhada e humilhada pela situação em que se encontrava” e nada mais!
4º Por outro lado, a matéria constante do quesito 129º, dada como provada, não consta da sentença em análise.
5º Face à resposta dada àqueles quesitos (e independentemente da impugnação da matéria de facto que deles ao diante eventualmente se faça) deveria ter sido considerada como provada a seguinte matéria:
Q. 121º: “A autora sentia-se envergonhada e humilhada pela situação em que se encontrava?”
Q. 129º: “As alterações corporais decorrente da peritonite fecal e subsequentes cirurgias geraram na autora uma diminuição significativa da auto estima?”
Subsidiariamente, caso assim se não entenda,
Matéria de facto
Quanto ao exame de colonoscopia
6º Relativamente a este item, encontra-se incorrectamente decidida a seguinte matéria de facto:
Ponto 6: No decurso do exame e aquando da passagem do aparelho pelos intestinos a autora sentiu dores (cfr. quesito 4º);
Ponto 7: Facto que, de imediato, comunicou ao primeiro réu (cfr. quesito 5º);
Ponto 8: A autora soltou gritos, demonstrando, desta forma, ao primeiro réu as dores que sentia (cfr. quesito 8º)
7º Tendo em consideração:
. Que não houve qualquer testemunha presencial do referido exame, para além do ora recorrente (1º réu) e das Srªs Enfermeiras H… e I…;
. O teor do relatório do exame endoscópico (colonoscopia) realizado no dia 22/06/2002 e constante de fls. 231 do apenso volume 1 dos autos;
. O depoimento de parte do réu C… (na sessão de julgamento do dia 14/12/2011, do 0:00:01 a 00:26:24);
. O depoimento da testemunha I… (na sessão de julgamento do dia 10/07/2012, do 0:00:01 a 00:16:26);
. O depoimento da testemunha J… (na sessão de julgamento do dia 11/01/2012, do 0:00:01 a 01:12:42);
. O depoimento da testemunha K… (na sessão de julgamento do dia 18/01/2012, do 0:00:01 a 01:10:16);
- a resposta aos aludidos quesitos 4º, 5º, 6º e 8º deveria ter sido, em cada um, a de “não provado”.
8º igualmente, deveria ter sido dado como “não provado” os quesitos 40º e 41º (que tiveram resposta conjunta) por referência ao seguinte ponto da sentença:
. Ponto 37: Durante a realização da colonoscopia a que a autora foi submetida em 22 de Junho de 2002, realizado pelo primeiro réu, a autora sofreu perfuração do intestino, junto ao cólon sigmóide, o que veio a determinar o que consta do nº anterior (cfr. resposta aos quesitos 40º e 41º).
9º Não ficou provado que a autora tenha sofrido a referida “perfuração” durante ou por causa do exame que o 1º réu realizou.
Na verdade,
10º As perícias e decisões (de diversas instâncias e entidades) constantes dos autos são unânimes em reafirmar a impossibilidade de estabelecer no caso concreto a causa/efeito da dita perfuração intestinal:
. cfr. fls. 446 dos autos – certidão do processo crime com arquivamento;
. cfr. fls. 678/703 dos autos – decisão da Ordem dos Médicos no sentido do arquivamento do processo disciplinar;
. cfr. fls. 708, 710/715 dos autos – parecer do Conselho de Especialidade de Gastrenterologia da Ordem dos Médicos;
. cfr. fls. 719, 721/722 dos autos – Relatório do Instituto de Medicina Legal de 13/12/2004;
. cfr. fls. 857 dos autos – Relatório final do I. M. Legal;
. cfr. fls. 884 dos autos – Relatório complementar do I. M. L.;
. cfr. fls. 1042/1058 dos autos – relatório da Inspecção Geral das Actividades de Saúde.
11º Podendo-se concluir que a lesão verificada na autora poderia ser adequada a uma causa como a realização de uma colonoscopia, não se admitindo, no entanto e no caso concreto, afirmar que tal aconteceu.
12º Todos os médicos ouvidos em Tribunal foram unânimes em afirmar que era perfeitamente impossível, no presente caso, estabelecer esse nexo de causalidade (entre o exame e a lesão).
13º Tanto mais que decorreram cerca de 4 dias entre o exame e a constatação da perfuração, existindo muitas outras causas para tal lesão ou traumatismo.
14º No mesmo sentido, vejam-se ainda os depoimentos das seguintes testemunhas:
. Dr. L... (na sessão de julgamento do dia 10/07/2012, do 0:00:01 a 01:04:58);
. Dr. M… (na sessão de julgamento do dia 10/07/2012, do 0:00:01 a 01:14:09);
. Dr. N… (na sessão de julgamento do dia 10/07/2012, do 0:00:01 a 00:45:21)
15º O que tudo, e só por si, inviabiliza a procedência dos efeitos pretendidos com a presente acção.
16º Ainda no que respeita a esta questão outros pontos existem que igualmente não podem ser dados por assentes.
17º É o caso dos seguintes pontos:
. Ponto 84: Como consequência directa e necessária dos factos supra descritos e do que consta de 37., a autora apresenta, como sequelas com carácter permanente:
- cicatriz no abdómen, com 34 cm de comprimento e com 1 cm de largura, máxima, estendendo-se ao hipogastro, facilmente visível;
- cansaço frequente;
- diminuição de auto-estima;
- mal-estar no abdómen. Cfr. quesito 95º
. Ponto 85: Como consequência dos mesmos factos, e do que consta de 37., a autora sofreu muitas dores. Cfr. quesito 96º
18º Como é bom de ver, pelas razões já apontadas supra, designadamente as referidas para alterar a resposta a dar ao quesito 40 da BI, ponto 37 da sentença e que por economia processual se mostra despiciendo repetir), a referência a que as sequelas e dores ali invocadas se ficam a dever ao que consta do ponto 37 da sentença (ou seja, que a perfuração foi realizada no exame de colonoscopia efectuado pelo aqui recorrente) é inaceitável (e sem qualquer fundamentação), desde logo por não se encontrar demonstrado que tal perfuração ocorreu em tal exame.
19º Termos em que deve tal referência (“… e do que consta de 37., …”) ser suprimida dos factos dados por assentes nos pontos 84 e 85, alterando-se igualmente e em conformidade a resposta dada aos quesitos 95 e 96, suprimindo-se em ambos a expressão “… e do que consta da resposta ao quesito 40º, …”.
Quanto à actuação do recorrente
20º Deveria ter sido dada como “provada” a matéria do quesito 180º, que perguntava: “O exame (colonoscopia) realizado pelo 1º réu à autora foi feito com respeito legis artis do ofício, e com zelo e cuidado exigíveis por tal procedimento (acto médico)?”
21º Nada existe nos autos que faça reflectir estarmos perante um erro ou negligência médica.
22º Em primeiro lugar, face às decisões, perícias e depoimentos referidos nas anteriores conclusões 10ª a 14ª.
23º Depois, mesmo partindo do princípio de que a perfuração intestinal verificada decorreu da colonoscopia (coisa que não está provada, antes pelo contrário…), dado esta consubstanciar um exame invasivo com riscos, não significa (nem sequer indicia) que tenha havido qualquer erro médico ou descuido, como resulta dos seguintes depoimentos:
. Dr. O… (na sessão de julgamento do dia 28/05/2012, do 0:001 a 00:32:29);
. Dr M… (na sessão de julgamento do dia 10/07/2012, do 0:00:01 a 01:14:09)
24º Aliás, no caso concreto (ou seja na acção) não foi indicado (sequer…) nem provado, qual o erro que vem imputado ao réu recorrente: Erro de diagnóstico? Erro na “realização do exame propriamente dito? Manipulação e condução do aparelho de forma deficiente, fosse por distracção, falta de destreza ou imperícia? Alta precoce?
25º Depois, encontra-se provada matéria que leva a conclusão contrária à decidida pela douta sentença recorrida, nomeadamente que o recorrente é um médico experiente e conceituado na sua especialidade (cfr. resposta ao quesito 183º); que é conhecido pelo cuidado imposto nos serviços por si prestados (tanto assim que a autora que é enfermeira o escolheu…); que, no caso concreto, prestou todos os cuidados e atenção à autora (não obstante o decurso de tempo verificado entre o exame por si realizado e as queixas apresentadas – 3 dias) – cfr. resposta aos quesitos 24º, 25º, 27º; que a perfuração do intestino é uma complicação possível no tipo de exame como o que está em causa nos autos, mesmo cumprindo-se com as regras de boa prática da medicina (cfr. resposta ao quesito 165º), que 3 dias depois da realização da colonoscopia a autora foi vista na Urgência do Hospital de Valongo, tendo-lhe sido diagnosticada uma infecção urinária (cfr. pontos 13 a 17, 23 e 24 da sentença).
26º Note-se, ainda, que foi dado (correctamente) como “não provado” o quesito 157º (ou seja, foi dado como não provado que quando o 1º réu atendeu a autora no Hospital de São João não se tenha preocupado em fazer o diagnóstico da situação).
27º As próprias filhas da autora reconhecem que esta nos dias 23 e 24 (os dias seguintes à realização daquele exame) não apresentava queixas anormais, apresentando um mero quadro de obstipação intestinal, que lhe era anormal.
28º No mesmo sentido, vejam-se os seguintes depoimentos:
. Depoimento de parte do réu C… (na sessão de julgamento do dia 14/12/2011, do 0:00:01 a 00:26:24);
. Testemunha I… (na sessão de julgamento do dia 10/07/2012, do 0:00:01 a 00:16:26);
. Testemunha J… (na sessão de julgamento do dia 11/01/2012, do 0:00:01 a 01:12:42);
. Testemunha D… (na sessão de julgamento do dia 11/01/2012, do 0:00:01 a 01:31:50);
Quanto ao Hospital de São João
29º Relativamente ao ponto 34 da douta sentença recorrida (“Não obstante ter sido submetido aos exames referidos, a autora permaneceu neste serviço de Urgência cerca de 11h sem que tenha sido elaborado um diagnóstico da situação ou definida a terapêutica a seguir”) a mesma reproduz a resposta conjunta que foi dada aos quesitos 37º e 38º.
30º Não obstante, a mesma deveria ter sido conjugada (e completada) com aquela que foi dada aos quesitos 169º (foi observada cerca de uma [hora] depois de ter dado entrada nos Serviços de Urgência), 173º (que abandonou o HSJ pelas 22 horas), e, ainda, no sentido de que se aguardava o resultado e análise dos referidos exames médicos.
31º Assim, a resposta conjunta aos quesitos 37º e 38º deveria ter sido do seguinte ou semelhante teor:
“Não obstante ter sido submetida aos exames referidos, a autora permaneceu neste Serviço de Urgência cerca de 11h sem que tenha sido elaborado um diagnóstico da situação ou definida a terapêutica a seguir, porque a mesma esteve a aguardar o resultado e análise de exames complementares àqueles, v.g. de Hematologia”.
32º Nesse sentido, os seguintes documentos: Fls. 659 e 660: Ficha Hospitalar subscrita pelo Dr. M…; Fls. 661: análises ao sangue da autora; fls. 662: análises de urina da autora (resultados compatíveis com a infecção urinária que tinha sido diagnosticada à autora no Hospital de Valongo.
33º No mesmo sentido, confrontar os seguintes depoimentos:
. Depoimento de parte do réu C… (na sessão de julgamento do dia 14/12/2011, do 0:00:01 a 00:26:24);
. Testemunha Dr M… (na sessão de julgamento do dia 10/07/2012, do 0:00:01 a 01:14:09);
. Testemunha Dr. O… (na sessão de julgamento do dia 28/05/2012, do 0:001 a 00:32:29).
34º De tudo se podendo concluir que o atendimento prestado na urgência do S. João à autora foi realizado em termos normais (e possíveis) em Urgência Hospitalar, em tempo oportuno, foi quase imediatamente vista pelo Dr. M…, sujeitou-se aos exames indispensáveis ao diagnóstico e, logo após estarem disponíveis os seus resultados, foi analisada pelo recorrente (cfr. resposta ao quesito 28º).
35º E só não lhe foi completado o atendimento (e intervenções necessárias) porque aquela entendeu abandonar a urgência, pelas 22 horas, sem dar conhecimento a quem quer que fosse (cfr., fls. 659 e fls. 660 – Fichas Hospitalares).
36º Por isso, bem andou (neste particular) a douta sentença recorrida ao dar como provada a matéria do quesito 174º (“Tal injustificado abandono impediu os respectivos serviços médicos de realizarem o respectivo diagnóstico e de adoptarem as medidas adequadas ao mesmo”).
37º Foi expressamente reconhecido pelo Sr. Dr. M… que o réu tão logo soube da presença da autora na dita urgência, solicitou ao seu colega para que a atendesse, deu-lhe as indicações e informações (designadamente a realização da colonoscopia) necessárias e bastantes a tal atendimento, deslocando-se (como se disse e ficou provado) à Urgência para observar a autora logo que os primeiros resultados dos exames de mostraram disponíveis.
38º Cfr. ainda o depoimento de parte do réu C… (na sessão de julgamento do dia 14/12/2011, do 0:00:01 a 00:26:24).
Quanto ao Hospital de Santo António
39º A autora foi operada no Hospital de Santo António uma primeira vez (cfr. ponto 38 da sentença).
40º Não tendo a primeira intervenção (operação) corrido da melhor forma, cerca de 24 horas depois sofreu nova intervenção (cfr. pontos 40, 41 e 42).
41º Em 3, 12 e 16 de Julho, novamente (cfr. ponto 43 da sentença).
42º É forçoso, portanto, perguntar se a intervenção inicial poderia ter tido outra abordagem ou amplitude que evitasse todos os transtornos subsequentes.
43º Vejam-se os seguintes documentos: fls. 10 – Apenso – volume 1: quanto à necessidade de posteriores intervenções para além da primeira; fls. 13 – Apenso – volume 1: atenta a verificação de lesões de necrose isquémica/hemorragia que, após a primeira intervenção no Hospital de Santo António, não se devia ter verificado; - fls. 275 e segs. – Apenso – volume 1: nota de alta do Hospital de Santo António que refere a realização de segunda intervenção cirúrgica 24 horas após a primeira que foi realizada à autora; - fls. 254 – Apenso – volume 1: refere que a autora foi admitida na U.C.I.P. pelas 6 horas do dia 27/06/2002.
44º E, no mesmo sentido, os seguintes depoimentos:
. Testemunha Dr. L… (na sessão de julgamento do dia 10/07/2012, do 0:00:01 a 01:04:58);
. Testemunha Drª P… (na sessão de julgamento do dia 16/04/2012, do 0:00:01 a 00:35:12).
45º O abandono voluntário, mas injustificado, da autora do Hospital de S. João, atrasou esta por diversas horas o diagnóstico e tratamento adequado,
46º Os médicos que intervencionaram a autora no H. Santo António referiram que a gravidade da situação não resultava da perfuração propriamente dita (que seria rectificada facilmente …) mas sim da septicemia, sendo que ninguém (como foi por todos reconhecido) pode estabelecer a duração da instalação e evolução de tal estado.
47º Nesse sentido, vejam-se os seguintes depoimentos:
. Testemunha Dr. L… (na sessão de julgamento do dia 10/07/2012, do 0:00:01 a 01:04:58);
. Testemunha Drª P… (na sessão de julgamento do dia 16/04/2012, do 0:00:01 a 00:35:12);
. Testemunha Dr. N… (na sessão de julgamento do dia 10/07/2012, do 0:00:01 a 00:45:21);
. Testemunha Dr M… (na sessão de julgamento do dia 10/07/2012, do 0:00:01 a 01:14:09)
48º Ao contrário de erro ou negligência do réu recorrente (que não se vislumbra e não foi alegada, nem no exame de colonoscopia, nem na assistência prestada no H. S. João), o que existe, objectivamente, é uma clara culpa da lesada pelo insólito comportamento por ela adoptado e nas consequências por ela sofridas.
49º A autora foi, no mínimo, inconsciente em abandonar a urgência do H. S. João, tendo colocado em causa a sua saúde, de forma grave.
50º A ter existido erro ou negligência médica, ela terá sido alheia ao réu recorrente: - Existiu erro ou negligência no diagnóstico ou tratamento realizado no H. de Valongo? Existiu neste Hospital erro de diagnóstico? – Existiu erro ou negligência na 1ª intervenção cirúrgica realizada no Hospital de Santo António (onde foi necessário realizar sucessivas e posteriores intervenções cirúrgicas para rectificar a primeira intervenção?
51º E, quanto aos danos, não foi realizada prova nem do necessário nexo de causalidade nem, (pelo menos em parte) que o suportado pela autora não tenha resultado de características pessoais desta, designadamente quanto à má cicatrização, infecções recorrentes, depressões anteriores, iniciadas anteriormente ao episódio aqui em causa, etc.).
Quanto à boa disposição anterior da autora
52º No ponto 106 da sentença consta que a autora, antes da situação em apreço nos autos “Era uma mulher habitualmente alegre e bem disposta” (cfr. quesito 134).
53º Ora, não se percebe como é que o Tribunal deu por assente tal facto, que é contrariado, frontalmente, pela resposta dada ao quesito 184, reproduzido no ponto 141 da sentença que exara o seguinte “A autora já vinha tendo acompanhamento psiquiátrico antes dos factos a que se refere na sua petição inicial.”
54º Como resulta pacífico no processo, a autora tinha antecedentes depressivos, há longo tempo, que originaram tratamento psiquiátrico.
55º E se assim é – como é -, não se vislumbra como é que o Tribunal dá por assente que a autora era habitualmente uma mulher alegre e bem disposta.
56º Termos em que por manifesta contradição entre a matéria dada por assente (quesitos 134 e 184) e tendo em atenção a prova produzida e constante dos autos deve dar-se o quesito 134 como não provado.
Do Direito
57º Realizadas as correcções à matéria de facto reclamadas no presente recurso (e impostas pela prova efectivamente produzida …) toda a invocada fundamentação perde razão de ser ou aplicação efectiva, por inexistência de pressupostos factuais, sendo evidente que da mesma resulta a improcedência “in totum” da presente acção de responsabilidade médica, com a consequente absolvição dos réus de todos os pedidos formulados pela autora.
58º Mas, mesmo nos pressupostos fácticos utilizados pela douta sentença recorrida (no que não se concede e só se admite por mero dever de ofício) a “conclusão” de direito (e a quantificação da indemnização fixada) não pode ser a constante do aresto aqui em crise.
Inexistência de responsabilidade contratual do recorrente e nulidade da sentença
59º A douta sentença recorrida incorre em contradição na sua fundamentação, ao entender absolver a ré “E…” e integrar os factos imputando ao aqui recorrente responsabilidade contratual…!
60º É que, caso se verificasse responsabilidade contratual do 1º réu não se compreenderia como é que a ré “E…” poderia teria sido absolvida do pedido formulado.
61º Já que o contrato (a ter existido) foi celebrado entre a autora e aquela (a dita ré E…).
62º Como, aliás, é patente e resulta dos factos assentes (cfr. os factos dados por provados reproduzidos na sentença sob os pontos 3, 4, 5, 124, 125, 126 e 127), do que decorre que o dito exame foi realizado nas instalações da dita ré (E…) pelo aqui recorrente (no âmbito de uma prestação de serviços entre Hospital e Médico, sujeita a remuneração), tendo sido paga pela autora ao Hospital.
63º Nem se diga como faz a douta sentença recorrida que, no caso, a dita ré (E…) se limitou a facultar os meios materiais para a realização do exame, acabando por concluir que só na esfera organizativa o médico está dependente da clínica.
64º É que, se é certo que o médico (como não podia deixar de ser…) tem autonomia técnica no diagnóstico e prescrição do tratamento, também o é que, objectivamente, a existir qualquer contratação, esta ocorreu entre a Clínica e o doente.
65º Pelo que, a existir responsabilidade contratual, nunca poderia ocorrer absolvição da clínica (E…) e, simultaneamente, a condenação do médico, uma vez que qualquer eventual contratação teria ocorrido entre o paciente e o Hospital… e não com aquele (médico).
66º O médico (in casu, o aqui recorrente) sendo “mero auxiliar ou pessoa utilizada para o cumprimento da obrigação”, não se obrigou directamente perante o doente.
67º Assim, a responsabilidade que lhe poderia ser imputada seria (única e exclusivamente) a extra contratual, na hipótese de se verificarem os pressupostos indispensáveis a tanto (o que, como se verá, também não ocorre…!!).
68º O preço total do exame foi pago directamente pela paciente autora à Clínica (pelo que, a haver responsabilidade contratual, tal só poderia ocorrer entre estas).
69º E o médico recorrente nada recebeu daquela (autora).
70º Razão pela qual a contratação entre a E… e a paciente foi total (no conceito e designação da doutrina “contrato total”) não podendo ser caracterizado por “contrato dividido” (sendo que, para o caso, é indiferente a autonomia técnica inerente ao exercício da medicina, até porque a assim não ser, nunca existiria outro tipo de contrato, por tal autonomia fazer parte integrante da génese e prática da medicina – seja no âmbito da medicina privada, mesmo, no âmbito da medicina pública).
71º Sempre incumbiria ao paciente a prova da existência de um contrato celebrado entre ela e o recorrente (sendo certo que a autora não só não invocou tal contrato, como até configurou a responsabilidade do recorrente como extra contratual – enquadramento reconhecido na própria sentença…).
72º A douta sentença recorrida padece e incorre numa manifesta (e absoluta) petição de princípio e verdadeira contradição entre a fundamentação por si invocada (existência de responsabilidade contratual) e a decisão por si proferida (designadamente ao absolver a ré “E…”), incorrendo na nulidade prevista no art. 668º, nº 1, alínea c/ do CPC (com correspondência no art. 615º do NCPC).
73º Nulidade que aqui se deixa invocada para todos os efeitos legais.
Sem prescindir,
Da inexistência dos pressupostos para responsabilizar o recorrente 1º réu, quer contratual quer extra contratualmente
74º De facto, mesmo em termos de responsabilidade contratual (em que competia ao médico ilidir a presunção de culpa), cabe ao doente fazer prova da falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso por parte do profissional de saúde.
75º O que só por si levará à improcedência da acção, bastando, para tanto, atentar nos factos dados por assentes (sem discutir sequer aquilo que devia ter sido dado por assente e não o foi, ou aquilo que não poderia ter sido dado por assente tendo-o sido…).
76º Considerando a matéria constante dos pontos 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 84, 85, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141 e 142, da douta sentença recorrida, aqui dada como integrada e reproduzida, não se vislumbra onde o Tribunal descortinou a falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso dos serviços médicos prestado pelo recorrente à autora.
77º Será que foi pelo facto de se encontrar provado (embora impugnado) que durante o exame a autora teve dores e gritou?
78º Mas tal foi contrariado pelos depoimentos de todas as testemunhas (mas não só, até por se tratar de um facto notório e do conhecimento generalizado e portanto isento de prova – art. 514º do CPC, correspondente ao art. 412º do NCPC), no sentido de que tal exame causa desconforto, sendo que em algumas pessoas dá origem a mais dores que em outras.
79º Nenhuma prova existe que o exame de colonoscopia realizado pelo aqui recorrente e em discussão nos autos, foi efectuado com incúria, ou de forma deficiente, ou contra as artes legis (cfr. pontos 5, 6, 37 e 128 da sentença).
80º Por outro lado e no que respeita à passagem da autora pelo Hospital de São João, apenas se encontra provado o que consta dos pontos 26, 27, 28, 29, 130, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 133 e 134.
81º Também aqui não se vislumbra qualquer indício de incumprimento ou cumprimento defeituoso das obrigações médicas do recorrente (o réu teve o cuidado de pedir a um médico daquela urgência para avaliar a situação da autora, tendo ele próprio ido à urgência para análise da situação e discussão do caso com os colegas ali em serviço).
82º Refira-se, aliás, que tudo o que se passou na Urgência do Hospital de S. João, sempre seria da responsabilidade dos serviços de tal Urgência e não do réu.
83º A atitude da autora em ter abandonado a Urgência do Hospital de S. João sempre impossibilitaria a responsabilização de quem quer que fosse até tal momento pela situação clínica com que se veio a deparar.
84º Tal atitude não só impossibilitou o correcto diagnóstico por parte dos serviços de Urgência do S. João (facto 134 da sentença), como obrigou ao Hospital de Santo António ter de realizar nova bateria de exames, razão pela qual a autora só pôde ser intervencionada já no dia 27.06, em hora que não se pode precisar mas que se situará entre as 3 e as 5 horas da madrugada.
85º Tal circunstância impede estabelecer qualquer nexo de causalidade (directo, necessário e adequado) entre a colonoscopia (e qualquer eventual perfuração do cólon sigmóide que tenha ocorrido em tal exame, no que não se concede…) com a situação diagnosticada no Hospital de Santo António (quadro agudo que se verificou estar relacionado com peritonite fecal secundária e perfuração com cerca de 2 cms. de diâmetro, no cólon sigmóide distal e peritonite generalizada – facto 36 da sentença).
86º Em termos médicos, não se conseguiu apurar quando se estabeleceu o quadro antes referido e a sua gravidade, sendo certo que todos os médicos ouvidos quanto a tal matéria foram unânimes em testemunhar que isso depende de paciente para paciente, sendo que por vezes a situação se desenvolve lentamente e outras repentinamente.
87º Ou seja, não se sabe se a situação com que o Hospital de Santo António se deparou e levou a uma intervenção de urgência durante a noite do dia 27.06, seria a mesma (muito provavelmente não…) de um diagnóstico mais precoce, impossibilitado pela autora (que abandonou os serviços de urgência do H. São João) – ponto 134 da sentença.
88º Não foi efectuada prova (nem o Tribunal deu qualquer facto assente quanto a tal matéria) do incumprimento ou cumprimento defeituoso por parte do aqui recorrente, indispensável à conclusão da existência de responsabilidade contratual ou extra-contratual.
89º Não se mostrando verificados os pressupostos indispensáveis a uma eventual condenação.
90º Prova que compete ao lesado (aliás, como a sentença recorrida refere).
91º Também não existiu prova no sentido de que a perfuração tivesse ocorrido no dito exame de colonoscopia e – ainda que assim fosse, no que não se concede – que os danos suportados pela autora tivessem nexo de causalidade (directo, necessário e adequado) com a referida perfuração.
92º No que concerne à primeira questão (a perfuração ter ocorrido na colonoscopia) basta atentar no depoimento unânime de todos os médicos que prestaram depoimentos na respectiva audiência de julgamento e já antes assinalados (Dra. P…, Dr. L…, Dr. M… e Dr. N…, etc., etc.) para se concluir que ninguém afirmou tal facto (por ser técnica e cientificamente impossível determinar tal “causa/efeito” tendo em atenção o tempo decorrido desde o referido exame e a verificação da perfuração – 4 dias).
93º E, no que concerne ao nexo de causalidade dos danos suportados pela autora, com uma eventual perfuração do intestino no exame realizado pelo recorrente, face ao dado por provado nos pontos 15 a 20, 23, 24, 26 a 36, e 38 a 44, não é possível estabelecê-lo (esse nexo de causalidade).
94º Também por aqui, face à evidente contradição de pressupostos de facto e de direito da sentença, que obsta à correcta apreensão do real alcance da mesma, decorre necessariamente a absoluta nulidade da mesma (art. 668º nº 1, al. c/ do CPC, com correspondência no art. 615º do NCPC).
Sem prescindir
95º E, ainda que a aludida nulidade não se verificasse (no que não se concede), pelas razões atrás explanadas sempre estaria o Tribunal impedido de considerar procedente o pedido por não se verificarem os pressupostos indispensáveis à responsabilização do recorrente (quer contratualmente, quer extra contratualmente).
96º São elementos constitutivos da responsabilidade civil (i) o facto, (ii) a ilicitude, (iii) a culpa, (iv) o dano e (v) o nexo de causalidade entre o facto e o dano,
97º O ónus da prova da culpa médica e do prejuízo produzido, bem como da relação de causalidade entre estes elementos, está a cargo de quem invoca a responsabilidade do profissional.
98º Tratando-se de responsabilidade do médico, para que proceda o pedido de ressarcimento dos prejuízos suportados tem o lesado de provar não só a sua existência, como também serem os mesmos consequência directa e imediata de um agir negligente daquele a quem se imputa a sua produção.
99º O lesado, tem assim, do seu lado o ónus da prova da culpa do profissional, desde logo porque o dever médico (regra geral) é de meios (ou seja, a sua responsabilidade limita-se ao atendimento do paciente com prudência e diligência).
100º Dando-se aqui como reproduzido o constante, quanto a tal matéria, do Acórdão proferido pela Secção do Conselho Disciplinar Regional do Norte da Ordem dos Médicos, que arquivou o processo disciplinar instruído ao aqui recorrente (cfr. fls. 678 a 703 dos autos), do Parecer do Colégio da Especialidade de Gastrenterologia (cfr. fls. 710 a 715 dos autos), do Relatório da Perícia Médico Legal, que na resposta aí dada aos quesitos 160 e 165, e do relatório da Inspecção Geral das Actividades de Saúde (cfr. fls. 1042 a 1058 dos autos) no sentido da inexistência de qualquer prova de conduta susceptível de censura jurídico-disciplinar.
101º O tribunal não podia considerar o facto ilícito consubstanciado na violação da integridade física da autora, aquando da realização da colonoscopia, sem atentar no facto 128 da sentença, o que sempre desoneraria o profissional de realizar prova quanto à prática das legis artis.
102º Para tanto, a lesada teria de provar (o que nem sequer foi invocado…!!) o erro, incúria, desleixo ou desconformidade praticado pelo recorrente…!!
103º A douta sentença recorrida também não poderia ter dado por provado o invocado nexo de causalidade, tendo em conta, v.g. o constante dos pontos 15 a 24, 26 a 36, e 38 a 44º.
104º Tanto mais que o comportamento da própria lesada é susceptível de ter influenciado, determinantemente, quer os danos, quer a sua extensão ou gravidade…).
105º Face ao supra exposto, a única decisão compatível com a prova produzida e demais elementos processuais, era a absoluta improcedência da acção de responsabilidade médica aqui em causa.
106º O tribunal recorrido interpretou deficientemente a prova produzida (e mesmo a por si considerada provada) e violou por erro de interpretação e/ou aplicação as disposições aplicáveis ao caso, designadamente os arts. 342º, 483º e seguintes, 562º e seguintes e 789º, 799º e 800º, todos do C. C. e, ainda, o Código Deontológico da Ordem dos Médicos (maxime arts. 31 e 359), do que decorre dever a sentença recorrida ser anulada e/ou pelo menos revogada, no sentido antes referido (ou seja, pela absoluta improcedência da acção de responsabilidade médica, desde logo por manifesta inexistência de pressupostos).
Sem prescindir e subsidiariamente,
Do quantum indemnizatório
107º Ainda que não se entendesse no sentido antes defendido, ainda assim a douta sentença recorrida teria de ser alterada, por deficiente quantificação da indemnização fixada à autora.
108º Tendo em consideração o disposto nos arts. 496º nº 3, 562º e 563º do C. C., que o Tribunal violou por erro de interpretação, as indemnizações fixadas para os danos morais (danos não patrimoniais), de 150.000,00 euros, e danos patrimoniais (danos emergentes), de 4.594,13 euros, são manifestamente desproporcionadas e contrárias aos ditames da razoabilidade e bom senso, desatendem o circunstancialismo do caso concreto e afastam-se dos padrões adoptados pela jurisprudência maioritária.
109º O Tribunal não atendeu às circunstâncias e factos referidos nos pontos 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35, 109, 128, 130, 131, 133, 134, 140, 141 e 143, considerados estes factos quer com as alterações pugnadas pelo ora recorrente na impugnação que realizou quanto à matéria de facto quer, até, nos termos que a própria sentença considerou para a sua decisão.
110º A matéria de facto de tais pontos traduz circunstâncias concretas da situação em apreço nos presentes autos, consubstanciadoras de factos potencializadores das sequelas e padecimentos que vieram a ser suportados pela autora, absolutamente alheias ao recorrente e, muitas delas, a ela (autora) exclusivamente imputáveis.
111º No processo de quantificação o Tribunal não ponderou, ainda e devidamente, quer a idade da autora, bem como os antecedentes que a mesma possuía – hipertensão, síndrome depressivo, patologia tiroideia.
112º Pelo que, considerando verificarem-se os requisitos para se atribuir uma indemnização por danos não patrimoniais à autora (no que não se concede e só se admite nesta sede subsidiária), mas atendendo a tudo o que vem de ser referido, julga-se num juízo de equidade, adequado à compensação dos danos suportados pela autora (aqui recorrida), a indemnização a ser fixada não poderá ultrapassar a quantia de 50.000,00 euros.
113º Acresce que o tribunal fixou e atribuiu à autora, a título de danos patrimoniais, uma indemnização de 4.594,13 euros por erro material, de cálculo ou mero lapso de escrita, pois que a soma das verbas constantes da sentença recorrida (Consultas médicas: 618,98 eur; Medicamentos: 2.000,00 eur; Exames e tratamentos: 147,90 eur; Cadeira de rodas: 199,00 eur) somam apenas o valor global de 2.965,88 euros.
114º Devendo ser rectificado o aludido erro material ou lapso de escrita, ou caso o não seja, deverá ser revogada a sentença recorrida também neste item sendo fixada (sempre nesta sede subsidiária) a indemnização por danos patrimoniais (danos emergentes) na quantia de 2.965,88 euros.
115º A douta sentença recorrida é nula e, como tal, deve ser declarada.
116º Quando assim se não entenda, deve então ser revogada, por ter violado por erro de interpretação o disposto nos citados preceitos e diplomas legais, e substituída por outra que decida no sentido antes defendido, v. g. da improcedência da presente acção …
A autora apresentou contra-alegações a ambos os recursos, pronunciando-se no sentido da confirmação do decidido. No que toca ao recurso apresentado pelo réu C… pugna também pela sua imediata rejeição no que toca à impugnação da matéria de facto e depois, em consequência, pela extemporaneidade da sua interposição.
Colhidos os vistos legais, cumpre então apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
Uma vez que estamos perante decisão proferida em 11.11.2013 em processo que foi instaurado antes de 1.1.2008, é aplicável ao presente recurso o regime introduzido pelo Dec. Lei nº 303/07, de 24.8, com as inovações resultantes do Novo Cód. do Proc. Civil, excepcionando-se apenas a norma do art. 671º, nº 3 que restringe a revista a situações de dupla conforme (art. 7º, nº 1 da Lei nº 41/2013, de 26.6).
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QUESTÃO PRÉVIA
Nas suas contra-alegações, a autora no que toca ao recurso interposto pelo réu C… vem pugnar pela sua imediata rejeição na parte relativa à impugnação da matéria de facto, em virtude de não ter sido observado o disposto no art. 640º, nº 2 do Novo Cód. do Proc. Civil, o que teria depois, como consequência, a extemporaneidade de tal recurso.
Dispõe o seguinte este preceito nos seus nºs 1 e 2:
«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas,
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
(…)»
Entende a autora/recorrida que o réu C… nas suas alegações apenas indicou a hora de início e fim de cada depoimento, o que não satisfaz a exigência de indicação, com exactidão, das passagens em que funda o seu recurso, não podendo essa omissão ser suprida com a transcrição das passagens que se consideram importantes, como foi feito.
Na verdade, percorrendo as alegações que foram apresentadas pelo réu C… o que se constata é que este na impugnação da matéria de facto indicou os depoimentos em que a fundava, referenciando a sessão em que os mesmos foram produzidos com menção do respectivo tempo de duração.
Procedeu depois à transcrição das passagens desses depoimentos que reputou de relevantes para a sua impugnação, sem que tivesse indicado expressamente os minutos dos depoimentos a que as mesmas se referem.
Não se nos afigura, porém, que tal omissão possa ter o drástico efeito da imediata rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, pretendido pela autora/recorrida.
A transcrição efectuada pelo recorrente equivale, na prática, à indicação exacta das passagens da gravação em que apoia o seu recurso, tornando desnecessária a menção aos precisos minutos e segundos em que foram produzidos os segmentos dos depoimentos transcritos.
Diversamente seria se o recorrente não tivesse procedido a essa transcrição. Aí sim, impor-se-lhe-ia a indicação precisa, em termos horários, de tais passagens.
Em breve síntese, poderemos afirmar que face ao regime de impugnação da matéria da facto consagrado no actual Cód. do Proc. Civil, tendo sido os meios probatórios gravados, incumbe ao recorrente o ónus de, sob pena de rejeição do recurso, determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende impugnar, motivar o seu recurso com indicação das passagens da gravação, que reproduzem os meios de prova, em que funda a sua impugnação, podendo, porém, proceder à respectiva transcrição e, ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser tomada pelo tribunal da relação.[1]
Temos assim por certo que o réu/recorrente cumpriu os ónus a que estava obrigado em sede de impugnação da matéria de facto e, não havendo motivo para a sua rejeição, tal tem como efeito a tempestividade do recurso interposto, uma vez que o réu se podia valer do acréscimo de 10 dias de prazo previsto no art. 638º, nº 7 do Novo Cód. do Proc. Civil.
Por conseguinte, rejeita-se a questão prévia suscitada pela autora/recorrida D… nas suas contra-alegações.
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Prosseguindo:
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Novo Cód. do Proc. Civil.
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As questões a decidir são as seguintes:
a) Nulidades da sentença;
b) Impugnação da matéria de facto;
c) Responsabilidade médica/Ónus da prova;
d) “Quantum” indemnizatório.
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São os seguintes os factos dados como provados pela 1ª Instância:
1. A Ré e a Companhia de Seguros F…, no dia 27 de fevereiro de 2002, celebraram entre si um contrato de Responsabilidade Civil - Clínica Médica e Lar de Idosos, titulado pela Apólice n.º ……………, pelo qual aquela transferiu para esta a responsabilidade civil extracontratual por danos patrimoniais e não patrimoniais causados a terceiros, incluindo clientes, em consequência de lesões corporais e ou materiais, que ocorram durante o período de vigência da apólice, decorrente da actividade Clínica Médica e Lar de Idosos, utilizando para o efeito instalações, equipamentos e pessoas.
2. A Interveniente B… - Companhia de Seguros, SA celebrou, em 19-02-1990, com o Réu C… um acordo de seguro do ramo responsabilidade civil garantindo os riscos inerentes ao exercício da profissão - Gastrenterologia - acordo esse titulado pela apólice nº ..-..-…… que à data dos factos em causa nos autos, vigorava com o capital máximo por anuidade e por sinistro de 85.156,77 € em danos corporais e de 17.654,45 €, em danos materiais, estando sujeito a uma franquia a cargo do segurado de 49,88 € em danos materiais.
3. No dia 22 de Junho de 2002, a autora foi submetida a um exame de colonoscopia, nas instalações da segunda ré, E1…, sita nesta cidade da Póvoa de Varzim.
4. Tal exame foi efetuado pelo primeiro réu, Dr. C…, que ali exercia, e exerce atualmente, a sua atividade profissional de gastroenterologista.
5. Sendo que, tal exame, foi realizado a requisição do mesmo réu, Dr. C….
6. No decurso do exame e aquando da passagem do aparelho pelos intestinos, a autora sentiu dores.
7. Facto que, de imediato, comunicou ao primeiro réu.
8. A autora soltou gritos, demonstrando, desta forma, ao primeiro réu as dores que sentia.
9. Concluído o exame, o primeiro réu, Dr. C…, comunicou à autora que estava tudo bem.
10. Segundo referiu, a autora não apresentava quaisquer lesões nos intestinos.
1. Durante os dois dias que se seguiram à realização daquele exame, colonoscopia, a autora foi acometida de obstipação intestinal.
12. Em face dessa situação, no dia 24 de Junho, a autora ingeriu dois comprimidos Dulcolax.
13. Não obstante a ingestão dos mesmos, a situação manteve-se inalterada.
14. No dia 25 de Junho, da parte da manhã, a autora sentiu intensas dores abdominais, concretamente no fundo da barriga, e vómitos alimentares.
15. Tendo, de imediato, sido chamada uma ambulância que a transportou ao Hospital …, aqui terceira ré.
16. Onde deu entrada no Serviço de Urgência, cerca das 10h13m.
17. Nesse Estabelecimento de Saúde esteve a autora em observações por um período de cerca de 3h.
18. Durante o qual lhe foi efectuado um teste sumário de urina que revelou corpos cetónicos e leucócitos.
19. Diagnosticada uma infecção urinária, tendo sido medicada para o efeito.
20. Cerca das 13h foi-lhe concedida alta médica tendo a autora regressado a casa.
21. Nesse mesmo dia, dado o mau estar que persistia em não terminar, e o agravar das dores, que cada vez eram mais fortes e insuportáveis, a autora telefonou ao réu, Dr. C…, a quem pôs ao corrente do seu estado.
22. E referiu que sentia muitas dores no abdómen e um mau estar geral.
23. Bem como, referiu que havia recorrido à Urgência do Hospital de Valongo.
24. Tendo-lhe sido diagnosticada uma infecção urinária e ministrada medicação para o efeito.
25. Em face desse telefonema, o réu, Dr. C…, disse à autora para, caso a situação agravasse, comparecer no dia seguinte, no Hospital de S. João, altura em que o mesmo estava de serviço na urgência.
26. De acordo com as indicações do primeiro réu, e também porque o estado de saúde da autora apresentava-se cada vez mais grave, no dia 26 de Junho, cerca das 11h08m a autora deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital de S. João.
27. De imediato, o marido da autora tentou contactar o primeiro réu, Dr. C…, o que conseguiu, no serviço de gastrenterologia.
28. O réu referiu que iria ao serviço de urgência consultar a autora.
29. Decorridas que foram cerca de cinco horas, depois de disponíveis os exames complementares é que o réu se deslocou ao serviço de urgência para analisar a autora.
30. Nesse Hospital, e no período de tempo em referência, a autora foi submetida a diversas análises clínicas, efectuou raio-x e uma ecografia abdominal.
31. Para além de que, durante várias horas, foi injectada com soro fisiológico.
32. Sem que lhe fosse diagnosticada qual a origem das dores abdominais que sentia.
33. Cuja intensidade não diminuía.
34. Não obstante ter sido submetida aos exames referidos, a autora permaneceu neste Serviço de Urgência cerca de 11h sem que tenha sido elaborado um diagnóstico da situação ou definida a terapêutica a seguir.
35. A sua situação clínica piorava de minuto a minuto, e uma vez que a situação não se resolvia, a autora deslocou-se para o Hospital de Santo António, no Porto, onde deu entrada no Serviço de Urgência, cerca das 22h49m.
36. Nesse Hospital foi-lhe diagnosticado quadro de abdómen agudo que se verificou estar relacionado com peritonite fecal secundária a perfuração com cerca de 2 cms de diâmetro, no cólon sigmóide distal e peritonite generalizada.
37. Durante a realização da colonoscopia a que a autora foi submetida em 22 de Junho de 2002, realizado pelo primeiro réu, a autora sofreu perfuração do intestino, junto ao colo sigmóide, o que veio a determinar o que consta do n.º anterior.
38. Em face do diagnóstico, e nessa mesma noite, foi a autora submetida a uma intervenção cirúrgica de urgência, designada por "operação de Hartmann".
39. O estado pré-operatório era o de sépsis com disfunção multiorgânica dominada pela falência respiratória, cardio-circulatória, digestiva, hematológica e renal.
40. Cerca de vinte e quatro horas do pós-operatório a autora foi relaparotomizada por isquemia segmentar do território dependente da artéria mesentérica inferior.
41. É sujeita a colectomia segmentar esquerda.
42. A persistência do quadro séptico intra-abdominal determinou que fosse necessária relaparotomização.
43. Nos dias 3, 12 e 16 de Julho de 2002, a autora foi relaparotomizada de novo.
44. A evolução do quadro clínico foi lenta e difícil, complicando-se com sucessivas bacteriemias, e agravamento da sépsis no contexto da peritonite e infecção da ferida operatória.
45. No dia 24 de Julho de 2002, a autora foi traqueostomizada para protecção da via aérea.
46. No dia 4 de Agosto passou a ventilação espontânea, suficiente do ponto de vista respiratório e hemodinâmico.
47. Com função renal e hematológica recuperadas.
48. Sendo que, nessa data, a autora já era capaz de se alimentar por via oral.
49. A autora esteve internada na Unidade de Cuidados Intensivos do Hospital de Santo António cerca de 43 dias, por referência à data de entrada na urgência daquele Hospital.
50. No dia 8 de Agosto de 2002, a autora foi transferida para o UCPO, tendo em 21 de Agosto de 2002 sido transferida para os Serviços de Cirurgia I do mesmo Hospital, até ao dia 29 de Agosto de 2002, data em que lhe foi concedida alta hospitalar.
51. Durante o período de tempo que esteve nos cuidados intensivos do Hospital de Santo António, a autora esteve em permanente perigo de perder a vida.
52. Esteve ligada a um ventilador durante vários dias, completamente inanimada.
53. Sem reconhecer os próprios familiares mais próximos.
54. A sobreviver à custa de máquinas artificiais, que lhe mantinham os órgãos essenciais e vitais em funcionamento.
55. Após a alta Hospitalar, a autora regressou a sua casa, em situação de total dependência de terceiras pessoas.
56. Foi transportada numa ambulância, deitada numa maca, uma vez que apenas mexia a cabeça e as mãos.
57. Na data da alta hospitalar, a autora regressou para casa com colostomia (saco que armazena as fezes, dado que o recto estava fechado em consequência das cincos intervenções cirúrgicas a que foi submetida).
58. Durante os cerca de dois meses e meio que esteve completamente imobilizada na cama do Hospital, a autora perdeu massa muscular.
59. O que originou a situação de tetraparésia em que se manteve por cerca de três meses.
60. E determinou que, durante cerca de três meses após a alta hospitalar, a autora se visse na necessidade de se deslocar numa cadeira de rodas, pois não se conseguia deslocar pelos seus próprios meios.
61. Nesse período de tempo, e dado o facto de não se poder movimentar, a autora necessitava permanentemente que lhe efectuassem os cuidados diários de higiene.
62. Que providenciassem pela sua alimentação.
63. E a acompanhassem, à casa de banho, para urinar.
64. O que, nos primeiros dias se revelava necessário sensivelmente de duas em duas horas.
65. A autora esteve algaliada bastante tempo.
66. Durante esse período de tempo em que esteve em casa sem se poder movimentar, a autora precisou da ajuda permanente de uma terceira pessoa, para lhe dar a medicação prescrita, proceder à desinfecção diária da pequena incisão resultante da traqueostomia e proceder ao tratamento diário da sutura.
67. A sutura tinha cerca de 25 cm de cumprimento e não se encontrava cicatrizada.
68. A colostomia encontrava-se muito próximo da incisão.
69. Era frequente o saco da colostomia deslocar-se este deslocar-se, e verificar-se o resvalamento das fezes para a zona da sutura.
70. O que determinava a necessidade de lavagem cuidadosa da zona da ferida para evitar perigo de infecção.
71. Após a alta hospitalar a autora continuou a ser acompanhada pelo Hospital de Santo António em regime de consulta externa.
72. Por indicação do mesmo Hospital, a autora recorreu ao Centro de Saúde … para lhe prestar assistência, designadamente, no tratamento diário da incisão no abdómen, resultante das intervenções cirúrgicas a que foi sujeita, bem como, no tratamento diário da colostomia.
73. Recebeu diariamente em sua casa, e durante cerca de quatro meses, a assistência de uma enfermeira que efectuava a limpeza da ferida e procedia à mudança do saco de que era portadora.
74. Como a sutura não cicatrizava, no dia 22 de Janeiro de 2003, a autora foi internada no Hospital de Santo António, onde foi observada por um cirurgião.
75. No dia 4 de Fevereiro de 2003, foi a autora submetida a nova intervenção cirúrgica, para reconstrução do trânsito intestinal com coloproctostomia termino terminal e correcção de eventração.
76. No dia 10 de Fevereiro de 2003, em face de seroma da ferida operatória, foi efectuada drenagem da mesma com abertura parcial da ferida.
77. Em face de supuração da ferida operatória foi efectuado abertura da mesma em quase toda a sua extensão.
78. No dia 3 de Novembro de 2003 foi concedida à autora alta médica.
79. Depois do internamento referido em 74. a autora regressou a casa.
80. Após o que, continuou a receber assistência da enfermeira do Centro de Saúde e dos seus familiares.
81. E a ser consultada no Hospital de Santo António em regime ambulatório.
82. Onde efectuou tratamentos de medicina física de reabilitação (fisioterapia).
83. Após ter recuperado a consciência a autora apercebeu-se da gravidade da situação, tendo plena consciência de que correra perigo de vida.
84. Como consequência directa e necessária dos factos supra descritos e do que consta de 37., a autora apresenta, como sequelas com carácter permanente:
- cicatriz no abdómen, com 34 cm de cumprimento e com 1 centímetro de largura, máxima, estendendo-se ao hipogastro, facilmente visível;
- cansaço frequente;
- diminuição de auto-estima;
- mal-estar no abdómen.
85. Como consequência dos mesmos factos, e do que consta de 37., a autora sofreu muitas dores.
86. Sofreu de grande angústia, ansiedade e revolta, que ainda hoje sente.
87. Não fosse a rápida intervenção dos técnicos do Hospital de Santo António, a autora não teria sobrevivido e teria perdido a vida naquele dia.
88. A autora ainda hoje sofre com as sequelas resultantes da lesão de que foi vítima.
89. Sequelas estas que jamais desaparecerão e a acompanharão até ao resto da sua vida.
90. Após a ocorrência dos factos supra descritos, a autora padeceu de angústias e sofrimentos múltiplos e receou pela própria vida.
91. Toda a evolução das lesões sofridas foi para a autora um tormento, na medida em que durante cerca de um ano, não viu muitas melhoras do seu estado de saúde.
92. A sutura permaneceu cerca de 13 meses até à cicatrização completa.
93. Ao longo desse tempo teve muitas complicações de saúde relacionadas com as lesões de que foi vítima, e que originaram as várias intervenções cirúrgicas a que foi submetida.
94. Foram imensas as noites em que não dormiu, devido às dores que sentia.
95. Foram imensos os dias em que chorou.
96. Durante um período de vários meses após a alta hospitalar, a autora foi portadora de colostomia (portadora de saco que armazena as fezes).
97. O que a envergonhava bastante.
98. Sempre que saía à rua, a autora passava imensos tormentos, tendo sempre a sensação de que exalava um mau cheiro e que as outras pessoas se apercebiam do mesmo, sofrendo muito com isso.
99. Achava sempre que as pessoas se afastavam dela, devido ao mau cheiro que exalava.
100. A autora sentia-se pois envergonhada e humilhada pela situação em que se encontrava e para a qual em nada contribuiu.
101. Toda esta situação gerou na autora um sentimento de tristeza profundo.
102. Como consequência dos factos descritos, a autora apresenta actualmente um agravamento de doença depressiva.
103. O que acarreta uma limitação da sua autonomia pessoal.
104. À data do incidente, a autora era uma mulher completamente independente.
105. Exercia a profissão de enfermeira e estava profissionalmente activa.
106. Era uma mulher habitualmente alegre e bem-disposta.
107. Após a lesão de que foi vítima, a autora não mais voltou a trabalhar.
108. A autora é actualmente uma mulher triste.
109. Como consequência dos factos descritos a autora apresenta uma incapacidade permanente geral de 16 pontos.
110. A execução das tarefas diária implica, para a autora, esforços suplementares.
111. A autora jamais esquecerá todo o sofrimento, dor e tormentos por que passou.
112. Como consequência directa e necessária das lesões sofridas, a autora é actualmente portadora de cicatrizes que resultaram na sequência das intervenções cirúrgicas a que foi sujeita.
112. A autora é portadora de uma cicatriz na base da face anterior do pescoço resultante da traqueostomia a que foi sujeita, com 5 cm de comprimento e 3 mesmo de largura.
113. As referidas cicatrizes são facilmente visíveis.
114. O que suscita na autora um sentimento de vergonha e desgosto.
115. Que é determinante no tipo de roupas que veste.
116. Após a ocorrência dos factos descritos nos presentes autos, a autora nunca mais foi à praia.
117. Sente imensa vergonha e desconforto em expor a todos os olhares, as referidas cicatrizes que lhe cobrem o corpo.
118. Em data anterior, a autora não era portadora de qualquer cicatriz.
119. Em consultas médicas realizadas na sequência da lesão sofrida, a autora despendeu, pelo menos, a quantia de € 618,98.
120. Na sequência da lesão sofrida, na compra de medicamentos, despendeu a autora quantia não concretamente apurada, mas que ascendeu, pelo menos, a quantia de € 2.000,00.
121. Em exames e tratamentos efectuados na sequência e por via da lesão sofrida, despendeu a autora, pelo menos, a quantia de € 147,90.
122. Na compra de uma cadeira de rodas despendeu a autora a quantia de € 199,00.
123. O exame em apreço nestes autos foi realizado nas instalações da segunda ré, com aparelhos médicos pertencentes à mesma.
124. E com o seu acordo e autorização.
125. À data dos factos, o primeiro réu prestava serviços à segunda ré, sendo remunerado por esta, tendo efectuado o exame em questão no âmbito dos serviços que lhe estava a prestar na altura.
126. A autora pagou o valor em que orçou o dito exame, à segunda ré.
127. A perfuração do intestino é uma complicação rara que pode ocorrer na realização de um exame de colonoscopia, mesmo cumprindo-se com as regras de boa prática da medicina.
128. O resultado da ecografia abdominal a que a ré foi submetida, revelou a existência de uma pequena quantidade de líquido intraperitonal.
129. A Autora, depois de aberta a respectiva ficha de urgência, foi observada pelas 12.15 horas por um dos médicos que se encontrava nos serviços de urgência do Hospital de S. João do Porto, o qual trocou impressões, depois, com o Réu C… sobre os exames que haviam de ser realizados à Autora.
130. Tais exames, análises ao sangue, raio x abdominal simples e ecografia abdominal foram realizados cerca das 14 horas.
131. À Autora foram administrados analgésicos.
132. A autora abandonou, cerca das 22 horas, os serviços de urgência do Hospital de S. João.
133. Tal facto impediu os respectivos serviços médicos de realizarem o respectivo diagnóstico e de adoptarem as medidas adequadas ao mesmo.
134. A Autora quando contactou o primeiro réu apresentava já um quadro abdominal de dor e obstipação.
135. Daí a marcação de consulta com o 1º Réu.
136. E daí também a realização do exame de diagnóstico em análise (colonoscopia) concretamente realizado.
136. Antes da realização do exame em causa à Autora foi administrado à mesma sedativo (sedação consciente).
137. O exame em questão (colonoscopia) não constitui um exame rotineiro, nem tem, na situação em causa, qualquer função curativa.
138. O 1.º réu não teve qualquer participação no serviço de urgência dos hospitais de Valongo e de Santo António.
139. Desconhecendo todo o procedimento e actuação médicas.
140. O 1.º réu é um gastrenterologista com uma vasta experiência, altamente prestigiado e de grande competência, aliás por todos reconhecida.
141. A autora já vinha tendo acompanhamento psiquiátrico antes dos factos a que se refere na sua petição inicial.
*
Passemos à apreciação do mérito de ambos os recursos.
a) Nulidades de sentença
1. O réu C… arguiu a nulidade da sentença porque na mesma, por um lado, se omitiu matéria dada como provada e, por outro, se considerou provada matéria que não o foi, o que integraria a situação prevista no art. 615º, nº 1, al. c) do Novo Cód. do Proc. Civil (art. 668º, nº 1, al. c) do Cód. do Proc. Civil de 1961).
Mais concretamente referiu que no nº 121 da base instrutória perguntava-se “a autora sentia-se envergonhada e humilhada pela situação em que se encontrava?”, o que obteve a resposta de “provado”, sendo que no nº 100 da factualidade da sentença recorrida que lhe corresponde se escreveu: “A autora sentia-se pois envergonhada e humilhada pela situação em que se encontrava e para a qual em nada contribuiu.”
Por outro lado, a matéria constante do nº 129 da base instrutória – “As alterações corporais decorrentes da peritonite fecal e subsequentes cirurgias geraram na autora uma diminuição significativa da auto estima” -, dada como provada, não consta da factualidade da sentença recorrida.
O art. 615º, nº 1, al. c) do Cód. do Proc. Civil diz-nos que «é nula a sentença quando: (…) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade que torna a decisão ininteligível.»
Patentemente as situações descritas pelo réu C… não cabem nos casos de nulidade de sentença a que se refere a norma acabada de citar. Tratam-se antes de inexactidões devidas a manifesto lapso e que, por isso, podem ser corrigidas a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz nos termos do art. 614º do Novo Cód. do Proc. Civil (art. 667º do Cód. do Proc. Civil de 1961).
É o que iremos fazer.
Deste modo:
i) o nº 100 da factualidade da sentença recorrida passará a ter a seguinte redacção: “A autora sentia-se envergonhada e humilhada pela situação em que se encontrava”;
ii) adita-se à factualidade da sentença recorrida o nº 142 com a seguinte redacção: “As alterações corporais decorrentes da peritonite fecal e subsequentes cirurgias geraram na autora uma diminuição significativa da auto estima”
*
2. O réu C… igualmente suscita a nulidade da sentença recorrida prevista no art. 615º, nº 1, al. c) do Novo Cód. do Proc. Civil, por na sua perspectiva existir contradição entre a fundamentação invocada na sentença recorrida (existência de responsabilidade contratual) e a decisão proferida (absolvição da ré “E…”) – conclusões 59º a 73ª.
Nulidade esta cuja verificação é reiterada na conclusão 94º a propósito do estabelecimento do nexo de causalidade entre os danos suportados pela autora e a eventual perfuração do intestino ocorrida durante o exame.
Sobre esta nulidade escreve o seguinte José Lebre de Freitas (in “A Acção Declarativa Comum – À Luz do Código do Processo Civil de 2013”, 3ª ed., pág. 333): “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decide noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição é causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão for tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se.”
Depois, este mesmo autor (ob. cit., pág. 333, nota 48) aponta, como exemplos desta nulidade, o caso em que o juiz justifica, na fundamentação, a condenação do réu no pagamento de dívida por ele contraída, mas, sem qualquer outra explicação, o absolve ou o caso em que o juiz acolhe um fundamento de nulidade do contrato, mas acaba condenando o réu no seu cumprimento.
Já no seu segundo segmento - ininteligibilidade da decisão – e continuando a seguir o mesmo autor (ob. cit., pág. 333) esta nulidade ocorre “quando não seja percetível qualquer sentido da parte decisória (obscuridade) ou ela encerre um duplo sentido (ambiguidade), sendo ininteligível para um declaratário normal”.
Ora, da leitura da sentença recorrida o que decorre é a inexistência de qualquer contradição entre os seus fundamentos e a decisão, tal como esta se mostra perfeitamente inteligível. Com efeito, a decisão proferida surge como o resultado lógico dos argumentos que vão sendo expostos pela Mmª Juíza “a quo” e que apontam no sentido do decidido, não se vislumbrando nela qualquer ambiguidade ou obscuridade.
Aliás, dessa leitura o que se depreende é que a Mmª Juíza “a quo” integrou a responsabilidade do réu não no âmbito contratual, mas sim no delitual ou extracontratual (cfr. fls. 1319/1320), nem tão pouco se vislumbra qualquer contradição quanto ao estabelecimento do nexo de causalidade entre as lesões sofridas pela autora e a perfuração do intestino ocorrida durante o exame.
Por isso, a sentença não enferma da nulidade que lhe é atribuída pelos recorrentes.
O que se pode questionar é a correcção jurídica da decisão proferida pela 1ª Instância, o que nos remete já não para o terreno das nulidades de sentença, mas sim para o eventual erro de julgamento, que adiante será apreciado.
Como tal, nesta parte improcede o recurso interposto pelo réu C…. *
b) Impugnação da matéria de facto
O réu C… impugna também diversos pontos da matéria de facto provada e não provada, tendo subdividido a sua impugnação em cinco itens: 1. O exame de colonoscopia; 2. A actuação do réu; 3. No Hospital de São João; 4. No Hospital de Santo António; 5. A boa disposição anterior da autora.
Em primeiro lugar, no que toca ao exame de colonoscopia insurge-se contra os pontos 6, 7, 8 e 10 da matéria de facto da sentença recorrida, que correspondem às respostas afirmativas dadas aos nºs 4, 5, 6 e 8 da base instrutória, sustentando que todos eles deveriam ter sido respondidos negativamente.
Nesse sentido indica elementos documentais (relatório da colonoscopia efectuada no dia 22.6.2012), o depoimento de parte do réu C… e os depoimentos das testemunhas I…, J… e K….
Sustenta igualmente que deveria ter sido dado como não provado o nº 37 da sentença recorrida, que corresponde à resposta conjunta que obtiveram os nºs 40 e 41 da base instrutória, indicando para esse efeito diversos elementos documentais extraídos do processo crime e do processo disciplinar na Ordem dos Médicos e ainda relatórios do Instituto de Medicina Legal e da Inspecção Geral das Actividades de Saúde. Indica também nesse sentido os depoimentos das testemunhas L…, M… e N….
Discorda ainda da redacção dos pontos 84 e 85 da matéria de facto, que correspondem às respostas dadas aos nºs 95 e 96 da base instrutória, por neles se fazer referência ao ponto 37 (resposta ao quesito 40º).
É a seguinte a redacção de todos estes pontos factuais da sentença recorrida que aqui se mostram impugnados:
“6. No decurso do exame e aquando da passagem do aparelho pelos intestinos, a autora sentiu dores.
7. Facto que, de imediato, comunicou ao primeiro réu.
8. A autora soltou gritos, demonstrando, desta forma, ao primeiro réu as dores que sentia.
10. Segundo referiu, a autora não apresentava quaisquer lesões nos intestinos.
37. Durante a realização da colonoscopia a que a autora foi submetida em 22 de Junho de 2002, realizado pelo primeiro réu, a autora sofreu perfuração do intestino, junto ao colo sigmóide, o que veio a determinar o que consta do n.º anterior.
84. Como consequência directa e necessária dos factos supra descritos e do que consta de 37., a autora apresenta, como sequelas com carácter permanente:
- cicatriz no abdómen, com 34 cm de cumprimento e com 1 centímetro de largura, máxima, estendendo-se ao hipogastro, facilmente visível;
- cansaço frequente;
- diminuição de auto-estima;
- mal-estar no abdómen.
85. Como consequência dos mesmos factos, e do que consta de 37., a autora sofreu muitas dores.”
Em segundo lugar, no que concerne à sua actuação, entende o recorrente que a matéria não provada do nº 180 da base instrutória [“O exame (colonoscopia) foi realizado pelo 1º réu à autora foi feito com respeito legis artis do ofício?” – sic][1] deveria ter sido dada como provada.
Indica nesse sentido a documentação já referida quanto ao exame de colonoscopia, os depoimentos das testemunhas L…, M…, N…, O…, I…, J… e S…, bem como o seu próprio depoimento de parte.
Alerta ainda para diversa matéria fáctica que se acha provada e que aponta na direcção pretendida pelo recorrente – respostas aos nºs 183, 24, 25, 27 e 165 da base instrutória.
Em terceiro lugar, quanto ao ocorrido no Hospital de São João, o réu insurge-se contra o ponto 34 da factualidade da sentença recorrida [“Não obstante ter sido submetida aos exames referidos, a autora permaneceu neste Serviço de Urgência cerca de 11h sem que tenha sido elaborado um diagnóstico da situação ou definida a terapêutica a seguir”] que corresponde à resposta conjunta dada aos nºs 36 e 37 da base instrutória.
Entende que esta resposta deverá ser conjugada com as que foram dadas aos nºs 169 e 173 da base instrutória, passando a ter a seguinte redacção: “Não obstante ter sido submetida aos exames referidos, a autora permaneceu neste Serviço de Urgência cerca de 11h sem que tenha sido elaborado um diagnóstico da situação ou definida a terapêutica a seguir, porque a mesma esteve a aguardar o resultado e análise de exames complementares àqueles, v.g. de Hematologia”.
Indica nesse sentido a documentação hospitalar constante de fls. 659 a 662 dos autos e ainda o seu depoimento de parte, bem como os depoimentos das testemunhas M… e O….
Em quarto lugar, no segmento referente ao Hospital de Santo António, o réu/recorrente faz referência a diversos pontos da matéria de facto da sentença recorrida – nºs 38, 40, 41, 42 e 43 -, a vária documentação existente nos autos, constante do volume 1 dos apensos de documentação e também a alguns depoimentos testemunhais (L…, P…, N… e M…), não propondo, porém, qualquer concreta alteração da factualidade dada como provada ou não provada pela 1ª instância.
Por último, quanto à boa disposição anterior da autora o réu/recorrente afirma que o ponto 106 factualidade constante da sentença recorrida [“Era uma mulher habitualmente alegre e bem disposta”], que corresponde à resposta dada ao nº 134 da base instrutória, não devia ter sido dado como provado porque é contrariado frontalmente pela resposta dada ao nº 184 – ponto 141 da sentença [“A autora já vinha tendo acompanhamento psiquiátrico antes do(s) factos a que se refere a petição inicial.”].
Procedemos assim à audição dos depoimentos prestados pelas testemunhas que acima se deixaram referidas e também do depoimento de parte produzido pelo réu C….
O réu C…, ouvido em depoimento de parte, disse que a colonoscopia decorreu normalmente sem queixas de que se recordasse. Pelo menos a doente não se queixou mais do que seria normal num caso desses. Referiu também que lhe foi ministrada “sedação consciente”. Depois do exame disse-lhe que estava tudo normal. Dias depois a autora telefonou-lhe, tendo-lhe dito que tinha ido ao Hospital de Valongo, onde lhe disseram que tinha uma infecção urinária e que estava com dores e com dificuldade em urinar. Recomendou à senhora para no dia seguinte, se se mantivessem as dores ou se elas se agravassem, tal como a sintomatologia urinária, recorrer à urgência do Hospital de São João, onde trabalhava, o que ela fez. Não ficou com a ideia que fosse uma sintomatologia muito intensa. O réu estava de urgência no serviço de “gastro”. Foi um colega que estava a fazer equipa consigo que a viu e que lhe telefonou a dizer o que se passava. Combinaram os exames complementares a fazer, os quais demoraram algum tempo, cerca de 5 horas. Apareceu quando esses exames complementares estavam prontos, mas antes tinha enviado um seu colega, que examinou a doente pouco tempo depois de ela entrar, porque estava envolvido noutras actividades. Disse à doente que precisava de ser examinada por outros colegas. Não se lembra de ter falado com o marido da autora.[3]
I… é enfermeira e costumava acompanhar o réu C… na realização de colonoscopias, não se lembrando se o fez – ou não – no caso dos autos. Por isso, não sabe dizer se houve gritos, embora acrescente “se fosse uma coisa fora do normal, se calhar recordava-me”. De qualquer modo, referiu que é um exame em que as pessoas se queixam bastante. Quanto ao procedimento habitual do Dr. C… disse que este dava sedativo e o doente ficava um bocadinho na sala até ficar bem. O Dr. C… costumava falar com ele antes de ir embora. O doente só ia embora quando estivesse sem dor. Define o Dr. C… como bom profissional, preocupado com os doentes.
J… é filha da autora, mas não a acompanhava aquando da realização do exame. Quando chegou a casa disse que lhe tinha custado muito a fazer o exame. Nos dias 23 e 24 não apresentou queixas relevantes, que justificassem ida ao hospital. Estava com obstipação, mas esteve sempre. Esse era o grande problema da sua mãe. Tomou Dulcolax – um laxante -, não sabe se no dia 23, se no dia 24. No dia 25 de manhã a sua mãe foi para o Hospital de Valongo por estar com dores muito fortes e aí foi-lhe diagnosticada uma infecção urinária. Ligou então para o Dr. C… que lhe disse para ir no dia seguinte ao Hospital de S. João e para tomar Buscopan. No dia 26 não esteve no Hospital de São João. Aí esteve acompanhada pelo seu pai e pela sua irmã.
K… é marido da autora. Acompanhou a sua mulher na realização do exame. A determinado momento ouviu uns gritos aflitivos e a sua mulher a pedir para que parasse, pois não suportava as dores. Entretanto, terminou o exame, a sua mulher saiu e sentou-se num banquinho junto ao gabinete onde fora efectuado o exame e ali ficou à espera que o Dr. C… aparecesse e lhe dissesse alguma coisa. Este veio, cerca de 10 minutos depois, e disse à sua mulher. “está de parabéns, não tem nada, não há problema nenhum com o seu intestino.”
L…, médico, é assistente hospitalar de cirurgia geral. Operou a autora, que entrou na urgência com uma perfuração do cólon. A colonoscopia fora feita cinco dias antes, daí depreendendo que a perfuração estará relacionada com aquele exame. De qualquer modo, salienta não ser muito normal que numa situação destas as queixas só surjam três dias depois. Mais adiante acrescentou que há outras causas para as perfurações do cólon – por espinhas de peixes ou ossos. Referiu ainda que uma pequena perfuração do colón no início cinco dias depois é uma grande perfuração do cólon. O buraco vai alargando. Vê alguns casos em que fazem colonoscopias em hospitais a doentes com dores abdominais. A distensão do cólon provoca dores abdominais. Mas nem sempre provoca dores. Cada um reage à sua maneira. Algumas colonoscopias, numa percentagem relativamente baixa, cerca de 10% a 15% dos doentes, têm dores abdominais no imediato, ao longo e algumas horas após. Disse também que o facto do doente ter feito uma colonoscopia não quer dizer que no dia seguinte não possa ter dores abdominais por outra causa qualquer – uma apendicite, uma colecistite. Mais adiante sublinhou que uma perfuração do cólon no contexto de uma colonoscopia à partida é sempre uma “negligência” – um doente não deve sair de lá com um buraco. A probabilidade de, neste caso, a colonoscopia ser a causa da perfuração é de 90/95%, mas a certeza absoluta não a pode dar (não estava lá). O mais normal num caso de perfuração do cólon é o doente ter dores abdominais logo a seguir à colonoscopia – algumas horas depois (2/3), depende, designadamente, do tamanho do orifício, da preparação feita e também das características do doente. Referiu ainda que o gastrenterologista nem sempre tem a certeza de ter perfurado o intestino. Por vezes, eles dizem-lhe “eu acho que perfurei o cólon”. Sublinhou que para si não é uma boa prática médica fazer uma colonoscopia e o doente acabar com um furo no intestino. A situação, se não tivesse surgido a peritonite fecal, ter-se-ia resolvido facilmente. Mas, conforme realçou no seu depoimento, “a senhora estava às portas da morte”.
M… é médico e colega de trabalho do réu C…. Trabalha para a “E…” em Amarante. Atendeu a autora na urgência do Hospital de São João, onde se encontrava, às 12,15h. O Dr. C…, depois de a doente ter recorrido a um hospital distrital da periferia onde lhe foi diagnosticada uma infecção urinária, disse-lhe para ela ir ao Hospital de São João. Aí, a testemunha pediu Raio x, ecografia abdominal, análises e medicação específica para a dor e o mal-estar. Pelas análises, cujos resultados constam de fls. 661, não se pode dizer que a doente tivesse uma perfuração intestinal e uma peritonite. Numa situação de peritonite não se consegue tocar no doente, o que não era o caso da D.ª D…. E a seguir realça que a peritonite habitualmente não cursa com leucócitos baixos, como nesta caso sucedia, realçando que os resultados das análises eram claramente compatíveis com infecção urinária. Pediram depois a colaboração da Medicina Interna e da Hematologia. Da Hematologia por causa da diminuição dos glóbulos brancos que não “jogava” muito bem num quadro infeccioso. Porém, a doente abandonou a urgência. Confrontado com o relatório da ecografia efectuada no hospital constante de fls. 1136 disse que o mesmo revelava a existência de um processo infeccioso, que poderia estar associado a colo nefrite, infecção urinária e infecção das vias biliares, não se excluindo a perfuração intestinal. Aliás, havia a suspeita dessa perfuração e o relatório manteve tudo em aberto. Realçou que o Dr. C… não só esteve com a doente, como esteve sempre informado, por si, da sua evolução clínica. A circunstância de terem passado cinco dias após a colonoscopia colocou a possibilidade da ocorrência de uma perfuração intestinal num plano mais remoto. Com base na experiência que tem na realização deste tipo de exames disse que não é necessariamente uma negligência médica ocorrer uma perfuração intestinal. Esta depende de muitos factores, entre os quais a experiência médica. A própria testemunha referiu que já teve casos de perfuração do intestino neste tipo de exames, embora em quadro terapêutico. A perfuração é um risco inerente ao exame. Disse também ser possível haver perfurações de intestino por causas diferentes de uma colonoscopia. Caracterizou o Dr. C… como um médico “excepcionalmente bom, como pessoa, como técnico e como homem de ciência” e muito dado aos doentes. Salientou que a autora enquanto permaneceu no Hospital de São João esteve estável. Tem dificuldades em dizer quando é que iriam intervir. Provavelmente interviriam, mas poderiam simplesmente orientá-la para uma unidade de observação, numa unidade de cuidados intermédios. Tinham ainda poucos dados. Com instabilidade hemo-dinâmica, a pessoa não estaria de pé, não estaria sentada, não poderia sair pelo seu pé. Disse que durante a sua permanência no Hospital de São João terá visto a doente pelo menos três vezes. Pediram a colaboração da Hematologia Clínica, a cuja chamada a doente não respondeu às 23,30h, por causa da diminuição significativa dos glóbulos brancos – poderiam até estar perante uma situação leucémica. Esclareceu que no seu caso nenhuma das situações em que ocorreu perfuração intestinal trouxe problemas, porque esta foi detectada de imediato. Referiu na parte final do seu depoimento que a maior probabilidade é a da colonoscopia ter sido a responsável pela perfuração, embora não possa excluir outras causas.
N… é médico, sendo Presidente da Q…. Presta serviços para a “E1…”, desde 1989/90 e o réu é seu colega de profissão e colaborador. Disse que a colonoscopia é um procedimento invasivo com um risco importante associado. Mesmo quando tudo decorre no mais estrito rigor pode ocorrer uma perfuração. Há circunstâncias que aumentam o risco, por exemplo, fragilidade do intestino, cirurgias prévias. As perfurações não são todas iguais. Por isso, a perfuração pode não ser observável durante o exame (se o rasgão for atrás duma prega do intestino, por exemplo), embora esta situação seja rara. Esclareceu que a ocorrência de dor durante o exame não tem nada a ver com a perfuração. Quando ocorre perfuração, a não ser que esta seja dramaticamente grande, a dor, na altura e de uma maneira geral, não é acentuada. Acrescentou a seguir que a perfuração pode não ocorrer durante o próprio procedimento. Há circunstâncias, da própria biologia individual, que podem favorecer uma lesão dias depois, embora não seja comum ser muitos dias depois. Teoricamente, se o doente tomar laxante tal pode favorecer a lesão. As pessoas, às vezes, são muito ansiosas com a obstipação e tomam laxantes em excesso para resolver essa ansiedade. Portanto, se houver uma sobrecarga de laxantes dos dias seguintes isso pode ser problemático. Afirmou depois que se numa pessoa, após o exame, a dor e o incómodo subsistem, tal pode significar que qualquer coisa não correu bem. Se a pessoa nos surge com sintomas e diz que fez uma colonoscopia há quatro dias, nós ficamos com a “orelha levantada”, mas não se pode dizer, invariavelmente, que tenha sido esse o procedimento que causou aquilo. Mas pode ser um factor precipitante, mesmo que não seja condicionante. Pode não ser a única coisa. E fala a seguir das diverticulites, complicações que podem elas próprias furar dias depois de uma colonoscopia. Se a perfuração é reconhecida durante o exame ela é normalmente solucionada logo nessa altura. Referiu ainda não ter tido contacto directo com o presente caso, tendo também afirmado que fez na sua carreira cerca de 30.000 colonoscopias e só ter tido três perfurações, duas em situações de diagnóstico e uma terapêutica.
O… é médico no Hospital de Santo António. Disse que supervisionou a intervenção cirúrgica, mas já não se recorda dela. O tipo de perfuração do cólon que se verificou neste caso ocorre a grande maioria das vezes, senão a totalidade, na sequência de colonoscopias. Salientou que, face ao teor do relatório clínico elaborado no Hospital de Santo António, não pode concluir que tenha havido negligência. Se houver uma certeza diagnóstica de que há uma perfuração o doente é de imediato operado. Se houver uma suspeita terá que haver uma observação clínica e quando a suspeita for forte e o doente começar a ter um estado clínico compatível com a perfuração, então é operado. Uma dor só não chega para fazer um diagnóstico de perfuração. Salientou depois que basta haver aderências intra-abdominais, uma acumulação mais acentuada que não é normal, mas que pode existir em todos nós, e o colonoscópio, que é semi-rígido, pode fazer perfeitamente uma perfuração. É um risco inerente à colonoscopia. Há casos de perfurações do intestino por espinhas de peixe ou por ossos de frango, mas são situações muito raras (anedóticas).
S… é filha da autora. Não acompanhava a mãe aquando da realização da colonoscopia na “E1…”. Disse que a mãe veio para casa e até ao dia 25, depois do São João, teve dores ligeiras. A grande dor que a levou para o hospital foi no dia 25. Durante esses dias estava com obstipação. Foi conduzida ao Hospital de Valongo onde lhe diagnosticaram uma infecção urinária. Regressou a casa, mas as dores continuaram. Então a mãe contactou o Dr. C… que lhe disse para comparecer no dia seguinte no Hospital de São João onde estaria de serviço e para tomar “Buscopan”. Acompanhou a sua mãe ao Hospital de São João e ao chegarem o pai foi falar com o Dr. C… que disse que logo iria ver o que se passava. Mas o Dr. C… não apareceu logo, não se interessou por nada. A mãe ficou praticamente abandonada na urgência. Não davam nenhuma explicação sobre a sua situação. Abordou o chefe do serviço de urgência e este disse-lhe que a mãe estava a ser tratada, estava a soro e tinha tomado uma injecção para as dores. Mais tarde, talvez por volta das 10 horas da noite, foram para o Hospital de Santo António. Aí informaram-nos da existência da perfuração intestinal e da situação de choque séptico, tendo-a operado. Afirmou, porém, presumir que o Dr. C… terá ido ver a sua mãe, mas horas depois de ela ter entrado na urgência.
P… é assistente hospitalar graduada. Disse que operou a senhora pela primeira vez em 28.6.2002 e que esta se encontrava em choque séptico, correndo risco de vida. Retirou um segmento do intestino. A sua intervenção foi a segunda cirurgia; a primeira foi feita pelos Drs. O… e L…. Afirmou que assim que se faz o diagnóstico de perfuração intestinal há indicação cirúrgica, logo que possível. Sublinhou várias vezes que dez anos passados já não se lembra de nada; só pela consulta do processo. Nunca fez colonoscopias. Referiu que não se pode fazer ligação entre o uso de laxantes e o agravamento de uma peritonite. Disse ainda que a doente entrou com uma peritonite que tinha como ponto de partida uma perfuração intestinal.
Passando à prova documental e também pericial.
No relatório da colonoscopia realizada à autora em 22.6.2012, constante de fls. 231 do apenso de documentação – volume 1, o réu C… escreveu, com data de 25.6.2012:
“Introdução fácil do aparelho até ao cego.
Na retirada não se observaram lesões nomeadamente do foro tumoral, vascular ou inflamatório.
Conclusão: Colonoscopia total normal”
No despacho de arquivamento proferido no processo-crime - nº 402/02.8 TAPVZ de Póvoa de Varzim - escreveu-se (cfr. fls. 446 e segs.):
“(…) Ora, conjugando o depoimento das enfermeiras ouvidas, o relatório médico-legal, a proposta que precedeu o Acórdão do Conselho Disciplinar da Ordem dos Médicos, o Parecer do Colégio da Especialidade de Gastrenterologia ali mencionado e o Parecer do Conselho Médico-Legal de Coimbra, constata-se não haver indícios de que o arguido tenha actuado com falta de diligência e cuidado que o caso impunha, tanto na realização da colonoscopia como na observação seguinte que fez à queixosa.
Tudo indica que o exame em questão decorreu dentro da normalidade, sendo a perfuração cólica ocorrida um risco, ainda que reduzido, deste tipo de exame. (…)”
No parecer emitido sobre o caso pelo Colégio da Especialidade de Gastrenterologia da Ordem dos Médicos escreveu-se o seguinte como conclusão (cfr. fls. 714/5):
“1. Não há evidência de ter havido negligência ou má prática por parte do Dr. C…, nem na realização da colonoscopia, nem no acompanhamento posterior da Denunciante, Dª D….
2. Que a perfuração cólica ocorrida durante a realização da colonoscopia, tem de ser considerada como uma complicação descrita e inerente ao risco, embora reduzido, deste tipo de exame, que tem carácter invasivo.
3. Que a situação de imunodepressão do doente, desconhecida dos colegas intervenientes, poderá ter determinado a evolução atípica do quadro clínico e os achados pouco apelativos das observações abdominais. Este facto determinou:
a) Provável subavaliação da doente no Hospital …, que se pode justificar pelas circunstâncias acima citadas e, por naturalmente, se tratar de um Hospital com recursos humanos e técnicos limitados.
b) Dificuldade no estabelecimento do diagnóstico clínico na Urgência do Hospital de S. João, embora as hipóteses clínicas, inicialmente colocadas, tenham sido correctas.
4. Que se verificou uma grande demora na execução e obtenção dos resultados dos exames complementares de diagnóstico requeridos na Urgência do Hospital de S. João, que se lamenta, mas que é sabido ocorrer em todas as Urgências Hospitalares com grande afluência de doentes.
5. Que teria sido mais prudente, perante a intensidade das queixas, hipóteses clínicas colocadas e a demora previsível na obtenção do resultado dos exames, o internamento da doente na Sala de Observações, para vigilância mais atenta.
6. Pelas mesmas razões mencionadas na alínea anterior e reforçadas pelo achado de líquido intraperitoneal na Ecografia Abdominal, teria sido aconselhada a opinião e observação da doente por um cirurgião.
7. Que as circunstâncias em que ocorreu o abandono da doente do Serviço de Urgência do Hospital de S. João foram estranhas e devem ser prevenidas no futuro. De qualquer modo, o ocorrido permite pressupor que a doente, nessa altura, ainda se encontrava hemodinamicamente estável e “facilmente” mobilizável.
8. Que a deterioração do estado clínico da doente, aparentemente só ocorrida após a avaliação inicial no Hospital de Santo António, facilitou a decisão pela cirurgia de emergência, que veio a estabelecer o diagnóstico de perfuração cólica.”
O teor destas conclusões foi reproduzido na decisão proferida pelo Conselho Disciplinar Regional do Norte da Ordem dos Médicos que arquivou o processo disciplinar instaurado contra o réu C… na sequência da participação efectuada pela aqui autora D… (cfr. fls. 679 e segs.).
No relatório do Instituto Nacional de Medicina Legal de 15.12.2004, elaborado no âmbito do processo-crime - nº 402/02.8TAPVZ –, escreveu-se o seguinte (cfr. fls. 721/2):
“O Ex.mº Magistrado do Ministério Público da Póvoa de Varzim solicita informação sobre “se a perfuração do cólon que resultou como efeito necessário da colonoscopia teria necessariamente que ocorrer durante a realização desse exame e detectável na altura ou se poderia ter ocorrido posteriormente, como e porquê, ou seja, como foi essa evolução clínica.”
Respondendo ao quesito colocado, somos de parecer que a perfuração do cólon é uma situação rara, que pode surgir espontaneamente, fora de qualquer acto médicocirúrgico, ou ocorrer durante a execução de uma colonoscopia, sendo então o diagnóstico em regra só realizado horas ou dias depois, quando a doente exibe um quadro clínico de peritonite, relacionada com a perfuração da víscera oca e subsequente infecção.”
No relatório efectuado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal de 15.6.2010, no âmbito dos presentes autos, escreveu-se o seguinte (cfr. fls. 859v):
“Os elementos disponíveis permitem admitir o nexo de causalidade entre o traumatismo e o dano atendendo a que: existe adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e a adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a uma etiologia traumática, o tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões e se exclui a existência de uma causa estranha relativamente ao traumatismo.”
No relatório complementar efectuado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal em 2.11.2010 escreveu-se (cfr. fls. 885):
“A perfuração do intestino é uma complicação rara que pode ocorrer durante a realização da colonoscopia, mesmo cumprindo-se as regras de boa prática da medicina.”
Por seu turno, no relatório de 21.12.2007 elaborado pela Inspecção-Geral das Actividades de Saúde diz-se o seguinte sob a epígrafe “Apreciação e Conclusões” (cfr. fls. 1054/1057):
“3.1. Envolvendo o presente processo, uma questão eminentemente técnica, procedeu-se à elaboração de pedido de peritagem de Medicina Interna (…) de que se respigam, por mais significativas, as seguintes conclusões:
Neste caso, a colonoscopia foi total, i.e., visualizou-se todo o intestino grosso, o que permite inferir que não foi “catastrófica” do ponto de vista da paciente. Quando a intolerância é grande, naturalmente a pessoa sugere a sua interrupção – o que é, de imediato, executado. Pelo descrito, não houve grande intolerância.
No relatório desta colonoscopia não há menção a resíduos fecais os quais complicam sempre o procedimento e impedem um diagnóstico seguro. Assim, temos como certa uma correcta preparação (alimentar e farmacológica) feita pelo paciente.
As queixas e as dores sentidas pela paciente aquando da realização da colonoscopia são habituais em tal procedimento, principalmente na fase inicial. (…) Se tivesse havido procedimento inadequado ou deletério, a paciente queixar-se-ia durante todo o procedimento e continuaria com queixas após o seu termo. Três dias depois começaram as queixas.
Pelo acima exposto e pelos danos relatados, não é legítimo estabelecer-se um nexo causal entre estas queixas e dores e a situação clínica que determinou a ida da paciente aos três estabelecimentos hospitalares, tanto mais que a descrição da cirurgia feita no Hospital Geral de Santo António menciona “perfuração do sigmoide”, segmento do cólon que é avaliado logo no início de qualquer colonoscopia – se a causa fosse, seguramente, do procedimento as queixas da paciente não terminariam, mesmo após o termo da colonoscopia;
Desde a preparação – feita pela paciente – até à prova e à sua conclusão, nada sugere falta de cuidados;
Concordo [com o diagnóstico feito pela Drª T…];
São correctos, suficientes e adequados [os exames complementares de diagnóstico e a terapêutica prescrita pela Drª T…];
Claro que não [se impunha a transferência da doente do Hospital … para hospital central, a sua intervenção cirúrgica ou o pedido de colaboração de outra valência hospitalar];
Sabe-se que a Drª T… pensou em complicação de colonoscopia; contudo, não só a sua observação, a algaliação que aliviou a paciente e a radiografia do abdómen que não tinha sinais de alarme, foram dados que a tranquilizaram;
O Dr. M…, no 2º Ano do Internato Complementar de qualquer especialidade, está habilitado à prestação de cuidados de saúde a qualquer pessoa;
O Dr. M… colocou as hipóteses correctas – “perfuração intestinal” e “infecção do tracto urinário complicada”.
Assisadamente, não só se manteve sempre em contacto com o Dr. C…, como pediu apoio de especialistas de Medicina Interna e Hematologia. (…) As respostas biológicas – por estarem “amputadas”, diminuídas ou mesmo ausentes – iriam induzir uma tranquilidade que o Dr. M… recusou – pediu o apoio de especialistas de Medicina Interna e de Hematologia, no que foi correctíssimo;
São suficientes, correctos e adequados à situação clínica [os exames complementares de diagnóstico pedidos no Hospital de S. João];
Não era urgente a realização de intervenção cirúrgica [face à colocação do diagnóstico de pielofrenite aguda] mas sim aguardar a colaboração da Medicina Interna e Hematologia para deslindar a leucopenia e a neutropenia – a imunodeficiência;
Não era premente a colaboração pessoal do Dr. C…. Sendo prática corrente e correcta que um Chefe delegue funções de acompanhamento, diagnóstico, decisão, nada mais natural que, tendo avisado o Dr. M… da vinda da paciente, seguisse, não presencialmente, o “andamento do caso”;
Quando houve critérios de urgência abdominal, i.e., parâmetros de abdómen agudo – ou temporalmente, quando foi observada no Hospital Geral de Santo António [a realização de intervenção cirúrgica tornou-se mandatória];
Sem qualquer dúvida [considero correcta a realização da 1ª intervenção cirúrgica]
(…)
3.1.1. Em face do atrás exposto, é lícito inferir que a assistência médica prestada à utente, nas circunstâncias atrás descritas, foi correcta e adequada, aqui se abrangendo os Hospitais … (Valongo), Hospital de S. João e Hospital de Santo António.
(…)
Em coerência com todo o exposto, apreciado e concluído, propõe-se
4.1. Que seja determinado o arquivamento do presente processo, dado não se terem apurado quaisquer condutas susceptíveis de censura jurídico-disciplinar;
(…)”
No plano documental há ainda que ter em atenção a ficha hospitalar subscrita pelo Dr. M…, no Hospital de São João, constante de fls. 659/660, bem como os resultados das análises ao sangue e à urina efectuadas nesta mesma unidade hospitalar juntos a fls. 661/662.
Tal como se terá em conta a documentação relativa às intervenções cirúrgicas realizadas no Hospital de Santo António e que consta do volume 1 do apenso de documentação.
Posto isto, há agora que regressar aos concretos pontos factuais que foram objecto de impugnação por parte do réu C…, seguindo a sistematização que por este foi adoptada nas suas alegações.
*
1. Quanto ao exame de colonoscopia.
Da conjugação de todos os elementos probatórios (testemunhais e documentais) que atrás se deixaram referenciados, e tendo em conta a natureza invasiva que sempre reveste uma colonoscopia, é de concluir que a autora no decurso desse exame sentiu dores e soltou, até, gritos.
O seu marido – K… – que a acompanhou na realização do exame, ouvido como testemunha, confirmou que a sua mulher, durante o mesmo, sentiu dores e gritou.
I…, enfermeira que costumava acompanhar o réu C…, embora não se lembrasse de pormenores relativos ao presente caso, pelo que não o considerou fora do normal, sublinhou que a colonoscopia é um exame em que as pessoas se queixam bastante.
As dores e, inclusive, os gritos não são incompatíveis com uma colonoscopia, mesmo que esta aparentemente tenha corrido dentro da normalidade.
Neste contexto, não vemos razão para divergir da 1ª instância no que toca à matéria fáctica constante dos nºs 6, 7, 8 e 10 da sentença recorrida, onde se deu como provado que a autora durante o exame sentiu dores e soltou gritos.
Igualmente não dissentimos da 1ª instância, face ao conjunto da prova produzida, quando esta dá como assente que a autora sofreu a perfuração do intestino durante a colonoscopia efectuada pelo réu C… em 22.6.2002.
Embora a perfuração do intestino pudesse em abstracto ser resultado de outras ocorrências, no que se mencionaram os casos de espinhas de peixe ou de ossos, certo é que o curto lapso temporal que se situa entre a realização da colonoscopia – em 22.6.2002 – e a intervenção cirúrgica imposta por tal perfuração – em 27.6.2002 – é de molde a excluir qualquer outra causa que pudesse estar na sua origem.
Aliás, a perfuração cólica é uma complicação inerente ao risco, embora reduzido, que sempre envolve a realização de uma colonoscopia, no que se mostra convergente toda a prova reunida nos autos.
Deste modo, são de manter nos seus precisos termos os nºs 37, 84 e 85 da factualidade da sentença recorrida, onde se deu como demonstrado que a perfuração do intestino da autora se verificou durante a colonoscopia efectuada em 22.6.2002.
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2. Quanto à actuação do réu C….
Neste segmento, entende o réu que deveria ter sido dado como provado o nº 180 da base instrutória, ficando assim assente que a colonoscopia foi realizada pelo 1º réu à autora com respeito pelas “legis artis” do ofício.
Sucede que a redacção deste quesito [“O exame (colonoscopia) foi realizado pelo 1º réu à autora foi feito com respeito legis artis do ofício?” – sic] tem manifesta formulação conclusiva, razão pela qual não pode ser objecto de resposta nem afirmativa, nem negativa.
Aliás, no plano conceptual, estamos claramente no terreno do “thema decidendum” da acção.
Por esse motivo, a resposta de “não provado” que lhe foi dada pela 1ª instância deve ser havida como não escrita[4] e, como tal, não há que conhecer, neste segmento, da impugnação feita pelo réu.
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3. Quanto ao Hospital de São João.
Nesta parte, sustenta o réu C… que a redacção do ponto 34 da factualidade da sentença recorrida [resposta conjunta aos nºs 36 e 37 da base instrutória] - “Não obstante ter sido submetida aos exames referidos, a autora permaneceu neste Serviço de Urgência cerca de 11h sem que tenha sido elaborado um diagnóstico da situação ou definida a terapêutica a seguir” – deve ser alterada para – “Não obstante ter sido submetida aos exames referidos, a autora permaneceu neste Serviço de Urgência cerca de 11h sem que tenha sido elaborado um diagnóstico da situação ou definida a terapêutica a seguir, porque a mesma esteve a aguardar o resultado e análise de exames complementares àqueles, v.g. de Hematologia”.
Também aqui entendemos, perante os elementos probatórios reunidos nos autos, que foi correcta a decisão factual da 1ª instância na resposta conjunta aos nºs 36 e 37 da base instrutória, a qual retrata com precisão o que se passou com a autora no Serviço de Urgência do Hospital de São João. Ela permaneceu nesse Serviço de Urgência durante cerca de 11 horas e no meio da confusão que sempre caracteriza esse tipo de serviço numa unidade hospitalar de grande dimensão, a que se somou alguma indefinição por parte da equipa médica que a estava a seguir, acabou por durante esse largo período de tempo não ser elaborado um diagnóstico da sua situação, nem definida a terapêutica a seguir.
Como tal, igualmente neste segmento, se manterá o decidido pela 1ª instância.
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4. Quanto ao Hospital de Santo António.
Neste segmento, o réu C… faz referência a diversos pontos da matéria de facto da sentença recorrida – nºs 38, 40, 41, 42 e 43 -, a vária documentação existente nos autos, constante do volume 1 dos apensos de documentação e também a alguns depoimentos testemunhais, não propondo, porém, qualquer concreta alteração da factualidade dada como provada ou não provada pela 1ª instância.
Inexiste assim, nesta parte, impugnação da matéria de facto, razão pela qual nada há a conhecer.
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5. Quanto à boa disposição anterior da autora.
Sustenta o réu que o ponto 106 factualidade constante da sentença recorrida [“Era uma mulher habitualmente alegre e bem disposta”], que corresponde à resposta dada ao nº 134 da base instrutória, não devia ter sido dado como provado porque é contrariado frontalmente pela resposta dada ao nº 184 – ponto 141 da sentença [“A autora já vinha tendo acompanhamento psiquiátrico antes do(s) factos a que se refere a petição inicial.”].
Importa, desde logo, salientar que só há contradição entre os factos provados quando estes sejam absolutamente incompatíveis entre si, de tal modo que não possam coexistir uns com os outros.[5]
Ora, os factos constantes dos nºs 106 e 141 da sentença recorrida não são absolutamente incompatíveis entre si. Com efeito, a circunstância de já antes dos factos a autora ter acompanhamento psiquiátrico não é impeditivo de que esta fosse habitualmente alegre e bem disposta.
O acompanhamento psiquiátrico não é certamente um exclusivo de pessoas tristes e melancólicas.
Por conseguinte, ainda neste segmento, se manterá o factualmente decidido pela 1ª instância.
Improcede, pois, “in totum” a impugnação da matéria de facto feita no seu recurso pelo réu C….
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c) Responsabilidade médica/Ónus da prova
Os réus C… e “B…, S.A” igualmente questionam nos seus recursos a solução jurídica dada ao pleito pela 1ª instância, pugnando pela sua absolvição.
Vejamos então.
Na sentença recorrida, a Mmª Juíza “a quo” subsumiu a factualidade dada como provada às normas da responsabilidade delitual e, procedendo à análise dos respectivos pressupostos, entendeu que os mesmos se encontravam verificados e concluiu pela existência da obrigação de indemnizar, entendimento contra o qual se insurgem tanto o réu C… como a ré “B…, SA”.
Escreve Miguel Teixeira de Sousa[6] que a responsabilidade civil médica “é contratual quando existe um contrato, para cuja celebração não é, aliás, necessária qualquer forma especial, entre o paciente e o médico ou uma instituição hospitalar e quando, portanto, a violação dos deveres médicos gerais representa simultaneamente um incumprimento dos deveres contratuais”; “em contrapartida, aquela responsabilidade é extracontratual quando não existe qualquer contrato entre o médico e o paciente e, por isso, quando não se pode falar de qualquer incumprimento contratual, mas apenas, como se refere no art.º 483º, nº 1, do Código Civil, da violação de direitos ou interesses alheios (como são o direito à vida e à saúde)”.
Estando em causa direitos absolutos como o direito à vida ou à integridade física, oponíveis, por isso, “erga omnes”, a actuação incorrecta e danosa da intervenção médica pode ser vista também como a violação daqueles direitos, portanto, como integradora de responsabilidade delitual ou extracontratual, desde logo quando a acção médica não derive de contrato.
Qualquer que seja a natureza da responsabilidade civil que impende sobre o lesante, ela traduz-se numa obrigação de indemnizar, ou seja, de reparar os danos sofridos pelo lesado.
Sobre esta mesma matéria escreve João Álvaro Dias[7] que hoje no comum das situações “a responsabilidade médica tem, em princípio, natureza contratual. Médico e doente estão, no comum dos casos, ligados por um contrato marcadamente pessoal, de execução continuada e, por via de regra, sinalagmático e oneroso.
Pelo simples facto de ter o seu consultório aberto ao público e de ter colocado a sua placa, o médico encontra-se numa situação de proponente contratual. Por seu turno, o doente que aí se dirige, necessitando de cuidados médicos, está a manifestar a sua aceitação a tal proposta. Tal factualidade é, por si só, bastante para que possa dizer-se, com toda a segurança, que estamos aqui em face dum contrato consensual pois que, regra geral, não se exige qualquer forma mais ou menos solene para a celebração de tal acordo de vontades.”
A responsabilidade civil é contratual quando resulta da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou, inclusive, da lei. É extracontratual quando deriva da violação de deveres ou vínculos jurídicos gerais, isto é, de deveres de conduta impostos a todas as pessoas e que correspondem aos direitos absolutos, ou até da prática de certos actos que, embora lícitos, produzem dano a outrem.[8]
O Código Civil sistematiza a responsabilidade civil em três lugares: a responsabilidade extracontratual, nos arts. 483º e segs., e a responsabilidade contratual, nos arts. 798º e segs. Às duas formas de responsabilidade interessam ainda os arts. 562º e segs., respeitantes à obrigação de indemnização em si mesma, independentemente da fonte de onde procede.
Dispõe o art. 798º que “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”, ao passo que no nº 1 do art. 483º se preceitua que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
São os mesmos os elementos constitutivos da responsabilidade civil, provenha ela de um facto ilícito ou de um contrato, a saber: o facto (controlável pela vontade do homem); a ilicitude; a culpa; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Em qualquer dos casos, a responsabilidade civil assenta na culpa, a qual é apreciada “in abstracto”, ou seja, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, conforme preceitua o nº 2 do art. 487º, aplicável à responsabilidade contratual por força do nº 2 do art. 799º.
De qualquer modo, existe interesse na destrinça das duas espécies de responsabilidade pelo facto de, em regra, a tutela contratual ser a que mais favorece o lesado na sua pretensão indemnizatória face às regras legais em matéria de ónus da prova da culpa (cfr. arts. 799º, nº 1 e 487º, nº 1 do Cód. Civil).[9]
Neste sentido, é de salientar que a lei no art. 799º, nº 1 estabelece uma presunção legal de culpa do devedor, a qual pode, porém, ser elidida mediante prova em contrário (cfr. art. 350º, nº 2 do Cód. Civil).
Prosseguindo, no que tange às obrigações/deveres do médico há que ter em atenção o art. 31º (Princípio geral) do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, onde se diz que “o médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo sempre com correcção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano”. Depois, no nº 1 do art. 35º do mesmo diploma (Tratamentos vedados ou condicionados) estabelece-se que “o médico deve abster-se de quaisquer actos que não estejam de acordo com as leges artis”, impondo-se ainda no seu art. 9º (Actualização e preparação científica) que “o médico deve cuidar da permanente actualização da sua cultura científica e da sua preparação técnica, sendo dever ético fundamental o exercício profissional diligente e tecnicamente adequado às regras da arte médica (leges artis)”.
Por seu turno, no Código Internacional de Ética Médica diz-se que “o médico deve ter sempre presente o cuidado de conservar a vida humana”, sendo, assim, obrigação do médico prestar ao doente os cuidados ao seu alcance, de acordo com os seus conhecimentos e o estado actual da ciência médica, por forma a preservar-lhe a saúde na medida do possível, o que tudo tem a haver com as chamadas “leges artis”, entendidas estas como o conjunto de regras da arte médica, isto é, das regras reconhecidas pela ciência médica em geral como as apropriadas à abordagem de um determinado caso clínico na concreta situação em que tal abordagem ocorre.[10]
Assim, apesar de o contrato médico ser generalizadamente visto como um contrato de prestação de serviços, o «resultado» a que alude o art.º 1154° do Cód. Civil deve considerar-se não a cura em si, mas os cuidados de saúde. O conceito de “resultado” no contrato de prestação de serviços que se estabelece entre o médico e o doente, enquanto obrigação de meios, como deve ser em regra qualificada, corresponde ao esforço na acção diligente do diagnóstico e do tratamento, e não a cura. A obrigação de meios (ou de pura diligência, como também é conhecida) existe quando “o devedor apenas se compromete a desenvolver prudente e diligentemente certa actividade para a obtenção de determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza”. E existe obrigação de resultado quando se conclua da lei ou do negócio jurídico que o devedor está vinculado a conseguir um certo efeito útil. O objectivo pretendido não pode ser atendido para a invocação de incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação, já que o médico apenas promete a diligência em ordem a obter um resultado, a prestação consistirá num “meio” de lograr o cumprimento. Aos médicos cabe a obrigação legal e contratual de desenvolver prudente e diligentemente, atento o estádio científico actual das “leges artis”, certa actividade para se obter um determinado efeito útil, que se traduza em empregar a sua ciência no tratamento do paciente, sem que se exija a este a obtenção vinculada da “cura.”
O médico deve agir segundo aquelas exigências e os conhecimentos científicos então existentes, actuando com um dever objectivo de cuidado, assim como de certos deveres específicos, como seja o dever de informar sobretudo o que interessa à saúde ou o dever de empregar a técnica adequada, que pode prolongar-se mesmo após a alta do paciente. Assim, no contrato médico existe como obrigação contratual principal do clínico, a obrigação de tratamento, que se pode desdobrar em diversas prestações, tais como, de observação, de diagnóstico, de terapêutica, de vigilância, de informação.
O ponto de partida para qualquer acção de responsabilidade médica é assim o da desconformidade da concreta actuação do agente no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes na mesma data.
Por vezes, ainda que partindo de uma obrigação de meios, é exigível ao clínico que atinja um resultado. Tem-se defendido que tal exigência ocorre, por exemplo, nas intervenções cirúrgicas estéticas de embelezamento (não já nas reconstitutivas ou de reparação) e na realização de exames de diagnóstico de grande fiabilidade técnica em que a margem de erro é muito reduzida ou negligenciável.
Aceita-se pois a admissibilidade da obrigação de resultado no contrato médico, mas saber se uma obrigação pertence a um ou outro tipo depende das circunstâncias do caso, que sempre devem ser cuidadosamente ponderadas.
A responsabilidade médica supõe culpa por não ter sido usado o instrumental de conhecimentos e o esforço técnico que se pode esperar de qualquer médico numa certa época e lugar.[11]
Na responsabilidade civil dos médicos, o padrão do bom pai de família tem como correspondente o padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais teria tido em circunstâncias semelhantes, naquela data.[12] “Este critério abstracto de determinação da culpa, apreciado pelo padrão da actuação de um homem ideal, comportará, obviamente, todas as nuances concretas na apreciação da culpa médica, dados os diferenciados “tipos ideais de médico” a que poderá ter de se atender em cada caso: o médico do interior, sem meios e condições profícuas de trabalho, e o médico da cidade; o especialista e o médico de clínica geral, etc.”
Age com culpa, não o médico que não cura, mas o médico que viole os deveres objectivos de cuidado, agindo de tal forma que a sua conduta deva ser pessoalmente censurada e reprovada, culpa a ser apreciada, como se disse, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, nos termos dos arts. 487°, nº 2, e 799°, nº 2 do Cód. Civil.
Não vemos razão que justifique o afastamento da presunção de culpa prevista no nº 1 daquele art.º 799º, desde que seja respeitada a natureza contratual das obrigações a que o médico está adstrito.
Nesta perspectiva, cabe, antes de mais, ao credor da obrigação, o lesado, a prova da ilicitude do acto, ou seja, que a conduta do médico é ilícita no sentido de que, objectivamente considerada, se mostra contrária ao Direito, com desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado, mais concretamente, o “burden of proof” do incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação. E, tratando-se de uma obrigação de meios, caberá ao credor (lesado) fazer a demonstração em juízo de que a conduta (acto ou omissão) do devedor (ou prestador obrigado) não foi conforme com as regras de actuação susceptíveis de, em abstracto, virem a propiciar a produção do almejado resultado. É o lesado que assume o encargo probatório da violação das “leges artis” por parte do médico (assim, a ilicitude), enquanto este último, em caso de responsabilidade contratual, deverá afastar o juízo de censurabilidade fazendo a prova de que naquelas circunstâncias, não podia e não devia ter agido de maneira diferente.
Conforme resulta do acórdão da Relação de Lisboa de 20.4.2006 (in CJ, ano XXXI, tomo II, págs. 110 e segs.) em regra e em caso de responsabilidade contratual, caberá ao doente demonstrar que existiu actuação deficiente na intervenção cirúrgica, que a conduta do devedor não foi conforme com as regras de actuação susceptíveis de, em abstracto, virem a propiciar o resultado almejado, enquanto ao médico, ainda que de obrigação de meios se trate, sempre caberá demonstrar que utilizou as técnicas adequadas, com recurso às regras da arte médica e meios técnicos de que razoavelmente dispunha, ou seja, cumprir-lhe-á demonstrar que não teve actuação culposa. Há-de ser ele a demonstrar que em determinadas circunstâncias agiu com a prudência, o esforço técnico e a diligência a que se obrigou, que no acto médico posto em causa actuou com a diligência “de um bom pai de família” que, tratando-se de um acto funcional, corresponde à diligência de um bom profissional, com emprego dos conhecimentos científicos então existentes, actuando de acordo com um dever objectivo de cuidado. Esta exigência afigura-se equitativa em face da facilidade da prova neste domínio se encontrar do lado do médico, e não do paciente.
Em geral, para que haja culpa torna-se necessário que o agente não só conheça, ou tivesse que conhecer, o desvalor da acção que cometeu, como tenha a possibilidade de escolher a sua conduta e ainda que, nas circunstâncias concretas do caso, possa ser censurável a sua conduta, ou seja, é preciso não apenas que o facto seja imputável ao agente, mas que lhe seja censurável.
A actuação do médico não será culposa quando, consideradas as circunstâncias de cada caso, ele não possa ser reprovado ou censurado por ter actuado como actuou.
A inobservância de quaisquer deveres objectivos de cuidado torna a conduta (do médico) culposa, sendo que a culpa se traduz na inobservância de um dever geral de diligência que o agente conhecia ou podia conhecer aquando da respectiva actuação e que comporta dois elementos: um de natureza objectiva – o dever concretamente violado – e outro de cariz subjectivo traduzido na imputabilidade do agente. A utilização da técnica incorrecta dentro dos padrões científicos actuais traduz a chamada imperícia do médico, pelo que, se o médico se equivoca na eleição da melhor técnica a ser aplicada no paciente, age com culpa e consequentemente, torna-se responsável pelas lesões causadas ao doente.[13]
Dentro desta concepção, a lei inclina-se para a consideração da negligência como erro de conduta, a qual envolve a imperícia ou a incapacidade técnica do lesante, a sua falta de aptidão, mais que a simples deficiência da vontade, não esquecendo as atenuações da lei ao ordenar a apreciação da culpa em face das circunstâncias do caso concreto.[14] A actuação do médico rege-se pela “lex artis ad hoc”, o que significa que é em relação ao preciso caso concreto situado temporalmente que a intervenção médica se afere, de acordo com as circunstâncias em que esta se desenrola. Só assim poderemos ponderar a qualificação de certo acto médico como conforme ou não com a técnica normal requerida.
Nem sempre é fácil definir o limite entre a ilicitude e a culpa do agente médico, em que a ilicitude pode consistir numa infracção aos procedimentos adequados. Tal infracção é - objectivamente - ilícita na medida em que se impunha outra atitude, mas, ao mesmo tempo, indicia ou pode indiciar - subjectivamente - um menor zelo ou a negligência na prática do acto médico. Dir-se-á que uma coisa é saber o que houve de errado na actuação do médico e outra saber se esse erro deve ser-lhe assacado a título de culpa.
Só haverá acto ilícito se houver, como se sabe, previsibilidade e evitabilidade do dano, já que o acto ilícito é um acto voluntário (controlável pela vontade) e só é voluntário o que é conhecido ou, pelo menos, cognoscível. Como refere Gomes da Silva no seu estudo «O Dever de Prestar e o Dever de Indemnizar», pág. 371, citando Esmein, «quando se considera um dever de prestar como o do médico, por exemplo, pode falar-se em dever de prudência e de diligência, mas logo que o credor sofre um prejuízo é necessário averiguar se o devedor praticou certo acto que tinha o dever de não fazer, ou se omitiu determinado acto que tinha a obrigação de não realizar».
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Feitas estas considerações gerais nas quais seguimos em larga medida a exposição feita no Acórdão da Relação do Porto de 1.3.2012 (p. 9434/06.6 TBMTS.P1, disponível in www.dgsi.pt.) delas resulta que a actuação do médico perante o doente/paciente tanto pode, nuns casos, reconduzir-se às obrigações de meios e, noutros, às obrigações de resultado, como a respectiva responsabilidade deverá, umas vezes, ser aferida no quadro da responsabilidade extracontratual e, noutras, no da responsabilidade contratual.
Não se ignora que actualmente predomina a orientação segundo a qual a regra é a da responsabilidade contratual do médico, sendo a responsabilidade extracontratual a excepção, normalmente correlacionada com situações em que o médico actua num quadro de urgência, em que inexiste acordo/consentimento do doente à sua actuação/intervenção. Nesse sentido, Henriques Gaspar (in “A Responsabilidade Civil do Médico”, CJ, ano III, 1978, pág. 341), depois de referir que a regra, na “relação médico-doente haverá de enquadrar-se na figura conceitual do contrato”, acrescenta que “o médico apenas pode ser responsabilizado extracontratualmente, se a sua actuação, violadora dos direitos do doente é culposa, se processou à margem de qualquer acordo existente entre ambos, o que acontecerá em todos os casos em que o médico actue em situações de urgência que não permitem qualquer hipótese de obter o consentimento, o acordo do doente.[15]
Na verdade, à relação médico/doente está hoje subjacente, no comum dos casos, um vínculo de natureza contratual.
Regressando à situação dos autos o que se verifica é que a autora contactou o réu C…, médico gastrenterologista prestigiado, porque apresentava um quadro abdominal de dor e obstipação e este considerou ser de efectuar a referida colonoscopia como exame de diagnóstico, sem que o mesmo tivesse, no caso, função curativa. Tal exame foi realizado nas instalações da E1…, a requisição do dito médico, que aí exercia a sua actividade profissional (cfr. nºs 4, 5 e 133 a 137).
Foi assim estabelecido entre a autora e o réu C… um vínculo contratual que visava o tratamento da primeira, a qual apresentava o já referido quadro clínico marcado por dor abdominal e obstipação.
No âmbito desse tratamento o réu entendeu então que devia ser feito um exame de diagnóstico – a colonoscopia -, a fim de apurar se esta tinha alguma lesão nos intestinos e o resultado do mesmo foi no sentido da inexistência de qualquer lesão (cfr. nºs 9 e 10).
Pode-se dizer que o resultado visado pelo exame foi obtido, mas este inseria-se no contexto mais alargado do tratamento da autora, razão pela qual nos movimentamos, neste caso, como aliás ocorre na generalidade das situações médicas, no âmbito de uma obrigação de meios.
A actividade do réu não se esgotava na realização da colonoscopia, prosseguiria com o acompanhamento da autora, enquanto pessoa com queixas no plano intestinal.
Só que a colonoscopia, que proporcionou um diagnóstico adequado e onde não é reconhecível qualquer erro, teve uma outra consequência – a perfuração do intestino junto ao colo sigmóide, que apenas foi detectada alguns dias depois.
Entendeu-se na sentença recorrida que não tendo havido erro de diagnóstico, não ocorre incumprimento do contrato ou cumprimento defeituoso do mesmo, partindo daí a Mmª Juíza “a quo” para a conclusão de que nos moveremos no domínio da responsabilidade delitual, colocando o acento tónico na violação de um direito de personalidade – a integridade física da autora – estranho à execução do contrato.
Não concordamos com esta posição.
Com efeito, o vínculo contratual estabelecido entre a autora e o réu médico envolvia a realização de uma colonoscopia, como exame de diagnóstico, mas esse exame, mesmo que o seu resultado seja correcto, deveria ter sido feito sem que daí adviesse para a paciente qualquer lesão.
E não foi isso que sucedeu. No seu decurso a autora sofreu uma muito significativa lesão.
O cumprimento do contrato não foi pois perfeito, o que nos remete não para o campo da responsabilidade delitual, mas sim para o da responsabilidade contratual, diversamente do que se entendeu na sentença recorrida.
Ora, neste domínio, há que ter em conta a presunção de culpa consagrada no nº 1 do art. 799º do Cód. Civil onde se estatui que «incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso não procede de culpa sua.»
A jurisprudência e a doutrina maioritárias consideram que a presunção de culpa do devedor não tem lugar na responsabilidade civil médica, uma vez que não recai sobre o médico, em regra, qualquer obrigação de resultado, pelo que o ónus da prova é determinado exclusivamente pelo regime da responsabilidade civil extracontratual. (cfr. art. 487º do Cód. Civil).[16]
Já Manuel Rosário Nunes (in “O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil por Actos Médicos”, Almedina, 2ª ed., págs. 39/40) escreve que “a doutrina e a jurisprudência italianas consideram que a ideia fundamental em matéria de ónus da prova nas acções de responsabilidade civil por actos médicos consiste em separar os tipos de intervenção cirúrgica, repartindo o ónus da prova de acordo com a natureza mais ou menos complexa da intervenção médica».
“Assim, enquanto nos casos de difícil execução o médico terá apenas de alegar e provar a natureza complexa da intervenção, incumbindo ao paciente alegar e provar não só que a execução da prestação médica foi realizada com violação das “leges artis”, mas que também foi causa adequada à produção da lesão, nos casos de intervenção “rotineira” ou de fácil execução, ao invés, caberá ao paciente o ónus de provar a natureza “rotineira” da intervenção, enquanto que o médico suportará o ónus de demonstrar que o resultado negativo se não deveu a imperícia ou negligência por parte deste”.[17] [18]
Por seu turno, Filipe Albuquerque de Matos (in “Cadernos de Direito Privado”, nº 43, pág. 69)[19] depois de advertir que “no ponto crucial do regime jurídico coenvolvido na distinção entre obrigação de meios e obrigação de resultado, não nos parece razoável concluir pelo afastamento da aplicação de presunção de culpa no âmbito da primeira modalidade de obrigações mencionada”, sustenta que “(…) tendo em conta o tipo de vinculação assumida, no contexto do contrato concluído entre as partes, presume-se sempre a culpa do devedor: a diferença reside tão-somente na diversidade da bitola ou parâmetro a partir do qual se vai formular uma conclusão quanto à censurabilidade ético-jurídica do sujeito passivo da relação contratual. Nas obrigações de meios aquilo que está in obligatio é a realização de uma actividade médica, de acordo com os padrões de diligência exigíveis a um profissional da respectiva categoria. Desta feita, se na sequência da intervenção médica se registarem ou agravarem os danos do paciente, presume-se a culpa do profissional de saúde, independentemente deste não se ter comprometido a alcançar o resultado da cura. Não faz sentido afirmar que nestas situações a presunção de culpa não se revela aplicável em virtude do devedor não se ter vinculado à obtenção de um resultado.”
Prosseguindo, e assente que está movermo-nos no âmbito da responsabilidade contratual, há que apurar se se encontram reunidos os respectivos pressupostos, os quais são, como atrás se referiu, o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
No que tange à ilicitude da actividade do médico esta “será afirmada se concluirmos que a mesma se consubstancia numa violação das “leges artis” impostas a um profissional prudente da respectiva categoria ou especialidade”, sem necessidade de “aquilatar se, na execução ou inobservância dos deveres que lhe são exigíveis, o médico actuou com a diligência, cuidado ou prudência impostos a um profissional medianamente diligente, zeloso e cuidadoso, uma vez que tal juízo terá lugar a nível da culpa. No fundo, a ilicitude traduz-se numa desconformidade objectiva face aos comandos da ordem jurídica e a culpa num juízo de censurabilidade subjectiva à conduta desviante do lesante/devedor.”[20]
Com efeito, a fronteira entre ilicitude e culpa é, por vezes, difícil de determinar, como sucede, nomeadamente, no caso da actividade médica, em que a ilicitude pode consistir numa infracção aos procedimentos adequados. Tal infracção é – objectivamente - ilícita na medida em que se impunha outra atitude, mas, ao mesmo tempo, indicia ou pode indiciar – subjectivamente - um menor zelo ou a negligência na prática do acto médico. Mas os conceitos permanecem diferenciados.
Por outras palavras, dir-se-á, que uma coisa é saber o que houve de errado na actuação do médico e outra saber se esse erro deve ser-lhe assacado a título de culpa.[21]
Ora, a prova da ilicitude da actuação cabe ao lesado, ao passo que ao lesante cabe provar a sua não culpa.
Regressando ao caso concreto, há então que apurar se, face à factualidade dada como assente, é possível concluir no sentido da ilicitude da conduta do réu C….
Está provado o seguinte:
- No dia 22.6.2002, a autora foi submetida a um exame de colonoscopia, nas instalações da segunda ré, E1…, sita na cidade da Póvoa de Varzim (nº 3);
- Tal exame foi efectuado pelo primeiro réu, Dr. C…, que ali exercia, e exerce actualmente, a sua actividade profissional de gastrenterologista (nº 4);
- Sendo que, tal exame, foi realizado a requisição do mesmo réu, Dr. C… (nº 5);
- No decurso do exame e aquando da passagem do aparelho pelos intestinos, a autora sentiu dores (nº 6);
- Facto que, de imediato, comunicou ao primeiro réu (nº 7);
- A autora soltou gritos, demonstrando, desta forma, ao primeiro réu as dores que sentia (nº 8);
- Concluído o exame, o primeiro réu, Dr. C…, comunicou à autora que estava tudo bem (nº 9);
- Segundo referiu, a autora não apresentava quaisquer lesões nos intestinos (nº 10);
- Durante os dois dias que se seguiram à realização daquele exame, colonoscopia, a autora foi acometida de obstipação intestinal (nº 11);
- Em face dessa situação, no dia 24 de Junho, a autora ingeriu dois comprimidos Dulcolax (nº 12);
- Não obstante a ingestão dos mesmos, a situação manteve-se inalterada (nº 13);
- No dia 25 de Junho, da parte da manhã, a autora sentiu intensas dores abdominais, concretamente no fundo da barriga, e vómitos alimentares (nº 14);
- Tendo, de imediato, sido chamada uma ambulância que a transportou ao Hospital … (nº 15);
- Durante a realização da colonoscopia a que a autora foi submetida em 22.6.2002, realizada pelo primeiro réu, esta sofreu perfuração do intestino, junto ao colo sigmóide, o que lhe veio a determinar peritonite fecal secundária (nºs 36 e 37);
- A perfuração do intestino é uma complicação rara que pode ocorrer na realização de um exame de colonoscopia, mesmo cumprindo-se com as regras de boa prática da medicina (nº 127);
- O exame em questão (colonoscopia) não constitui um exame rotineiro (nº 137).
No caso “sub judice” apurou-se pois que durante a realização da colonoscopia, efectuada em 22.6.2002, a autora sofreu perfuração do intestino, sendo que a situação não foi de imediato detectada. Aliás, a autora só começou a sentir intensas dores abdominais mais de dois após a realização do exame, na manhã de 25.6.2002, o que determinou então a sua ida à urgência do Hospital … e todo o percurso clínico que se lhe seguiu.
É certo que ocorreu a perfuração do intestino, mas nada se determinou quanto ao erro médico, cometido durante a colonoscopia, se o houve, que provocou tal perfuração. Mais ainda, não se apurou se houve um erro médico, um acto ilícito e negligente ou mesmo doloso ou um acontecimento adverso (“adverse event”).
Conforme se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.9.2011 (proc. 674/2001.P.L.S1, disponível in www.dgsi.pt.) “o erro em medicina (erro médico), é delineado como «uma falha, não intencional, de realização de uma sequência de actividades físicas ou mentais, previamente planeadas, e que assim falham em atingir o resultado esperado. Sempre que essa falha se não deva à intervenção do acaso».
De acordo com esta definição, para que se possa falar de erro médico, é fundamental a convergência dos seguintes elementos: existência de plano, intencionalidade no seu incumprimento, desvio da sequência das acções previstas, incapacidade de consecução do objectivo proposto e causalidade, vale dizer, que a causa não seja o acaso.”
O erro médico, tal como se escreve no mesmo aresto, distingue-se da figura afim que é o acontecimento adverso (“adverse event”), que é definido como «qualquer ocorrência negativa ocorrida para além da vontade e como consequência do tratamento, mas não da doença que lhe deu origem, causando algum tipo de dano, desde uma simples perturbação do fluxo do trabalho clínico a um dano permanente ou mesmo a morte».
Ora, a colonoscopia total trata-se de um exame realizado por um médico, com a ajuda de um enfermeiro, que permite a observação directa do intestino grosso (o cólon), para o qual é utilizado um endoscópio. Este é uma sonda fina e flexível, com luz na extremidade. Durante o exame, se necessário, poderão ser feitas biopsias (retirados pequenos fragmentos), ou removidos pólipos (polipectomia) para análise.[22]
Tal como já se salientou, nada se apurou quanto à concreta actuação do médico durante a realização do exame, designadamente se se verificou um incorrecto manuseamento do endoscópio fosse por momentânea distracção, por imperícia, por falta de destreza.
Ou seja, não se apurou que no decurso do exame tivesse havido por parte do réu qualquer afastamento das boas práticas da medicina.
E quanto à ocorrência de dores e gritos durante o exame, os mesmos não são de estranhar, nem se afastam da normalidade, face à concreta natureza da colonoscopia, que se trata de um exame, fortemente invasivo, e ao qual está associada a dor.
Ao que tudo acresce ainda ter-se provado que a perfuração do intestino é uma complicação rara que pode ocorrer na realização de um exame de colonoscopia, mesmo cumprindo-se com as regras da boa prática médica.
Acontece pois que a ilicitude da conduta do réu, que se traduziria na desconformidade desta com as “leges artis” a que está sujeito o profissional da medicina, ficou por demonstrar, sendo certo que tal prova incumbia à autora/lesada.
Com efeito, perante a factualidade apurada, não se consegue descortinar o que o réu médico fez e não deveria ter feito ou o que ele não fez e deveria ter feito.
Falta, por isso, um dos pressupostos da responsabilidade civil contratual, na qual assentaria o eventual direito à indemnização da autora.
Fica pois prejudicada a análise dos demais pressupostos da responsabilidade civil, sendo certo que, na sequência do atrás exposto, a autora sempre estaria dispensada da prova da culpa, por esta se presumir, caso se tivesse concluído pela ilicitude da conduta do réu.
Conclui-se assim, diversamente da 1ª instância [e sem embargo de se sublinhar as dificuldades que casos como o dos autos sempre envolvem na sua apreciação] no sentido da improcedência da acção, por não se achar demonstrada a ilicitude da actuação do réu, que a autora sempre teria de provar a fim de ver acolhida a sua pretensão indemnizatória.
O que implica, naturalmente, a procedência dos recursos interpostos pelo réu C… e “B…, SA”.
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Face à solução jurídica adoptada ficam naturalmente prejudicadas as questões suscitadas no tocante ao “quantum” indemnizatório fixado pela 1ª instância (cfr. art. 608º, nº 2 do Novo Cód. do Proc. Civil).
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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Novo Cód. do Proc. Civil):
- Actualmente predomina a orientação segundo a qual a regra é a da responsabilidade contratual do médico, sendo a responsabilidade extracontratual a excepção, normalmente correlacionada com situações em que o médico actua em quadro de urgência, inexistindo acordo do doente para a sua intervenção.
- A ilicitude da actividade do médico será afirmada se concluirmos que a mesma se consubstancia numa violação das “leges artis” impostas a um profissional prudente da respectiva categoria ou especialidade, sem necessidade de aquilatar se, na execução ou inobservância dos deveres que lhe são exigíveis, o médico actuou com a diligência, cuidado ou prudência impostos a um profissional medianamente diligente, zeloso e cuidadoso, uma vez que tal juízo terá lugar a nível da culpa.
- Embora na actividade médica a fronteira entre ilicitude e culpa seja difícil de determinar, estes dois conceitos permanecem diferenciados, atendendo a que uma coisa é saber o que houve de errado na actuação do médico e outra saber se esse erro deve ser-lhe assacado a título de culpa.
- Sucede que a prova da ilicitude da actuação cabe ao lesado, ao passo que ao lesante caberá provar a sua não culpa.
- O erro médico deve distinguir-se da figura afim que é o acontecimento adverso (“adverse event”) definido este como qualquer ocorrência negativa ocorrida para além da vontade e como consequência do tratamento, mas não da doença que lhe deu origem, causando algum tipo de dano, desde uma simples perturbação do fluxo do trabalho clínico a um dano permanente ou mesmo a morte.
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DECISÃO
Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedentes os recursos de apelação interpostos pelos réus C… e “D… – Companhia de Seguros, S.A.”, revogando-se a sentença recorrida, que se substitui por outra que os absolve dos pedidos formulados pela autora D….
Custas, pelo decaimento, a cargo da autora/recorrida.

Porto, 10.2.2015
Eduardo Rodrigues Pires
Márcia Portela
M. Pinto dos Santos
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[1] Cfr. Ac. Rel. Porto de 22.9.2014, proc. 258/14.8 TJPRT-B.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[2] A redacção do nº 180 da base instrutória é esta e não a que é referida na conclusão 20ª [“O exame (colonoscopia) realizado pelo 1º réu à autora foi feito com respeito legis artis do ofício, e com zelo e cuidado exigíveis por tal procedimento (acto médico)?”]
[3] O depoimento de parte do réu C… tem pouco significado probatório, atendendo a que este se limitou a reproduzir em julgamento a sua versão do sucedido, sem admissão de factos desfavoráveis.
[4] Por aplicação analógica do art. 646º, nº 4 do Cód. do Proc. Civil de 1961 – Cfr. Ac. STJ de 15.1.2004, proc. 03B3834, disponível in www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Ac. Rel. Coimbra de 22.2.2000, CJ, ano XXV, tomo I, pág. 29.
[6] In “O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica”, comunicação apresentada ao II Curso de Direito da Saúde e Bioética e publicada in “Direito da Saúde e Bioética”, edição da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, pág. 127.
[7] In “Procriação Assistida e Responsabilidade Médica”, Studia Iuridica, nº 21, BFDC, Coimbra, 1996, págs. 221/2.
[8] Cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, 4ª ed., vol. I, pág. 440; Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 11ª ed., págs. 539/540.
[9] Cfr. Ac. STJ de 22.9.2011, proc. 674/2001.P L.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[10] Cfr. Ac. Rel. Porto de 20.7.2006, p. 0633598, disponível in www.dgsi.pt.
[11] Cfr. Ac. Rel. Lisboa de 20.4.2006, CJ, ano XXXI, tomo II, págs. 110 e segs.
[12] João Álvaro Dias, in “O Problema da Avaliação dos Danos Corporais Resultantes de Intervenções e Tratamentos Médico-Cirúrgicos”, vol. nº 11 do Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pág. 401.
[13] Cfr. Ac. STJ de 7.10.2010, citado no Ac. Rel. Porto de 1.3.2012, p. 9434/06.6 TBMTS.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[14] Cfr. André Dias Pereira, in “Da Responsabilidade Civil por Actos Médicos – Alguns Aspectos”, polic., Lisboa, 2001, págs. 29 a 34.
[15] Cfr. Ac. Rel. Porto de 17.6.2014, p. 11279/09.2TBVNG.P1, disponível in www.dgsi.pt. (relatado pelo aqui 2º adjunto).
[16] Cfr. Ac. Rel. Porto de 6.3.2006, CJ, ano XXXI, tomo II, págs. 151 e segs.
[17] Cfr. também Ac. STJ de 4.3.2008, p. 08A183, disponível in www.dgsi.pt.
[18] Embora seja de mencionar que o referido autor não sufraga este entendimento relativamente às intervenções cirúrgicas mais complexas por, na sua perspectiva, colocarem o paciente, nestes casos, em situação desfavorável (ob. cit., págs. 41/42).
[19] Citado no Ac. Rel. Porto de 17.6.2014, p. 11279/09.2 TBVNG.P1, disponível in www.dgsi.pt.
[20] Cfr. Filipe Albuquerque de Matos, loc. cit., pág. 63.
[21] Cfr. Ac. STJ de 22.9.2011, p. 674/2001.P.L.S1, disponível in www.dgsi.pt.
[22] Cfr. folheto informativo da colonoscopia total, elaborado pela “E1…”, e destinado ao consentimento informado por parte do doente – cfr. fls. 1059.