Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | RUI MOREIRA | ||
Descritores: | EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE INDEFERIMENTO DO PEDIDO | ||
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Nº do Documento: | RP202303141852/22.9STS.P1 | ||
Data do Acordão: | 03/14/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA. | ||
Indicações Eventuais: | 2. ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
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Sumário: | I - O preenchimento da hipótese constante da al. b) do nº 1 do art. 238º do CIRE exige a concretização das informações falsas ou incompletas que tenham sido prestadas por escrito, pelo insolvente sobre a sua situação económica, bem como das operações de crédito que assim foram conseguidas, não se bastando com uma presunção de que essa tenha sido a razão da obtenção de diferentes financiamentos ocorridos; II - A obtenção de sucessivos empréstimos junto de instituições de crédito, ao longo do ano e meio anterior à declaração de insolvência e quando o insolvente já apresentava uma situação económica da qual resultava a sua incapacidade para satisfazer as responsabilidades já existentes conduz ao agravamento da sua situação de insolvência, em termos que justificam que se lhe indefira a pretensão de exoneração do passivo restante. III - O mesmo indeferimento se justifica quando, previamente, o insolvente alienou o único imóvel de que era proprietário em comum, entregando parte do dinheiro que obteve a seus familiares a quem o devia e privando outros credores de obterem qualquer pagamento. | ||
Reclamações: | |||
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Decisão Texto Integral: | PROC. N.º 1852/22.9T8STS.P1 Tribunal Judicial da Comarca do Porto Juízo de Comércio de Santo Tirso- Juiz 1 REL. N.º 755 Relator: Rui Moreira Adjuntos: João Diogo Rodrigues Anabela Andrade Miranda * ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO: 1.RELATÓRIO AA veio requerer a sua declaração de insolvência, que foi declarada por sentença já transitada em julgado. Ulteriormente, por não existirem bens móveis ou imóveis da titularidade do insolvente em face do que, por se constatar que a massa insolvente era insuficiente para satisfazer as custas do processo e as demais dívidas da massa insolvente, foi decretado o encerramento do processo. Apreciando sucessivamente a pretensão do insolvente quanto à concessão de exoneração do passivo restante, decidiu o tribunal indeferi-lo liminarmente, nos seguintes termos: “O insolvente AA veio requerer a concessão do benefício de exoneração do passivo restante. O(A) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência veio deduzir oposição ao pedido de exoneração do passivo restante por insolvente ter fornecido informações erróneas e incompletas sobre a sua circunstância económica com vista à obtenção de crédito. Mais pugnou que o insolvente deveria ter-se apresentado à insolvência em momento anterior à contratação sucessiva de créditos pessoais, pelo que, não o fazendo, agravou sucessivamente a situação de insolvência em que se encontrava, prejudicando de forma clara e concreta os seus credores. Concluiu que, e ao abrigo do disposto nas alíneas b), d) e e) do n.º 1 do artº 238.º do CIRE, deve ser indeferido liminarmente o benefício da exoneração do passivo sobrante. Os credores Banco 1..., A..., Sucursal em Portugal da S.A. francesa A..., aderiram à posição do(a) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência. O insolvente, nos autos, nada expôs quanto ao parecer do(a) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência. (…) Atento o teor da informação prestada pelo(a) Exm(a) Sr(a) Administrador(a) da Insolvência, a atuação do devedor, não contestada nos autos, integra, pois, a previsão das alíneas b), d) e e) do nº 1 do artº 238º do CIRE, pelo que, e sem necessidade de quaisquer outras considerações, a pretendida exoneração do passivo restante deve ser liminarmente indeferida. * Pelo exposto, indefiro liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.”* É desta decisão que vem interposto o presente recurso, através do qual o insolvente pretende a revogação da decisão recorrida e o deferimento liminar da sua pretensão ou, pelo menos a anulação da decisão recorrida.Concluiu o seu recurso alinhando as seguintes conclusões: 1 – Os vícios formais da decisão da matéria de facto são também erros de julgamento e se não tiverem sido objeto de reclamação na 1ª instância, como é o caso, podem ser suscitados em sede de recurso, sendo mesmo do conhecimento oficioso do Tribunal ad quem, implicando: a) a anulação da decisão sobre a matéria de facto e a repetição do julgamento, caso não constem do processo todos os elementos provatórios que permitam a reapreciação da matéria de facto; ou, b) o suprimento dos vícios pelo Tribunal da Relação, caso constem do processo todos os elementos referidos. 2 – In casu, sempre com o devido respeito por opinião contrária, o único remédio que a lei preconiza por se ter omitido na decisão que se sindica a matéria de facto que releva para sustentar a decisão, terá que ser a nulidade da sentença, que aqui expressamente se invoca, por violação do disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 607º do C. P. Civil. 3 - Deve ser dada ao insolvente a possibilidade de demonstrar que não agiu de má-fé e que se vai pautar por tudo fazer para cumprirem escrupulosamente os deveres perante os credores, dando assim uma possibilidade de se reerguer. 4 - Devendo concluir-se que não houve qualquer intencionalidade de omitir informação à massa insolvente. Com efeito, 5 - O insolvente até, pelo menos, o primeiro trimestre no ano de 2022, obtinha rendimentos que lhe permitiam cumprir com os compromissos que assumiu, maxime a prestação de €900,00 mensais perante o Banco 2..., S. A. e as prestações dos microcréditos que contraiu para fazer face a algumas despesas urgentes e inadiáveis; 6 - Aliás, como é observado pela Administradora de Insolvência (pela consulta às declarações de rendimento anual) os rendimentos do insolvente no ano de 2021 foram de €28.000,00, o que lhe permitia suportar a predita prestação de €900,00 mensais e as prestações dos microcréditos, entretanto, contraídas, que consumiam cerca de 60% dos seus rendimentos; 7 - Acresce ainda que, as dívidas a cargo do insolvente constam da base de dados do Banco de Portugal, pelo que jamais o insolvente as poderia esconder ou camuflar, designadamente a dívida perante o Banco 2..., S. A., sendo ridícula, para não dizer outra coisa, a afirmação que o insolvente “(…) continuou a contrair créditos sem informar os seus credores do valor do passivo que já possuía.” 8 - O insolvente deixou de ter condições de cumprir com as suas obrigações apenas quando os seus rendimentos diminuíram substancialmente, por a atividade da formação ter sofrido um decréscimo acentuado, o que teve reflexos na remuneração variável do devedor. 9 - Do parecer não resulta qualquer factualidade e muito menos provada, que o devedor tenha tido uma conduta dolosa ou grave como exigido para lhe ser negada a concessão do benefício solicitado. 10 - O insolvente explicitou e comprovou junto da Administradora de Insolvência as dúvidas que colocou, não passando de conjeturas baseadas em erradas perceções as considerações tecidas no relatório, inexistindo qualquer meio de prova que as possa suportar. 11 - O ónus da prova dos elementos que conduzem ao indeferimento liminar cabe aos credores e ao administrador de insolvência. 12 - Sem meios de prova que suportem, indeferir liminarmente a exoneração de passivo restante alicerçada em conjunturas vertidas no relatório produzido pela Administradora de Insolvência, as quais, inclusivamente são contraditórias entre si, é manifestamente injusto para com o insolvente, que tenta erguer-se financeiramente mas que sozinho não consegue e em consciência se apresentou à insolvência numa derradeira tentativa de se reorganizar e de ter a segunda oportunidade baseada no tão badalado “princípio do fresh start” e que, a manter-se a decisão proferida não passará de mais um princípio doutrinário. 13 - Ceifar desta forma ao insolvente a possibilidade de durante três anos demonstrar que pode merecer a segunda oportunidade, é precipitado, cruel e injusto. 14 - Roga-se que lhe seja dada a oportunidade de demonstrar nos três anos que se seguem que é pessoa séria e honesta e que cumprirá escrupulosamente os seus deveres perante os credores; 15 - E aí sim, nessa altura o Tribunal, coadjuvado pela informação detalhadamente transmitida pela Administradora de Insolvência, poderá com toda a certeza emitir um juízo de valor sobre o caráter, a honestidade e a pontualidade no cumprimento dos deveres impostos ao insolvente. 16 – Deste modo, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas, deve julgar-se procedente a apelação e, em consequência disso, deve ser revogado o douto despacho recorrido, prosseguindo o incidente de exoneração do passivo restante com a prolação do despacho a que se refere o artigo 239º do CIRE. Assim decidindo, mais uma vez será feita, Venerandos Desembargadores, a costumada e verdadeira JUSTIÇA“ O recurso foi admitido, como de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo. Foi depois recebido nesta Relação. Cumpre decidir. 2- FUNDAMENTAÇÃO O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº 3, e 685º-A, nº 1 e 2, do C.P.Civil. Assim, as questões a resolver, extraídas de tais conclusões, reconduzem-se à apreciação da nulidade apontada à decisão recorrida (em razão da falta de enumeração dos factos levados em conta na decisão recorrida) e, sucessivamente, sendo caso disso, à verificação das premissas que levaram o tribunal a indeferir a pretensão do insolvente, de exoneração do passivo restante * Considerando que a decisão recorrida opera uma expressa remissão, no que respeita à definição dos seus pressupostos factuais, para o teor do relatório da Administradora da Insolvência, é útil considerar o teor do mesmo, na parte que para aqui releva. Ali se diz: “ALÍNEA A) Análise dos elementos a que se reportam as Alíneas a) b) c) e d) do n.º 1 do artigo 24.º do CIRE Por análise às declarações de rendimento é possível confirmar que o insolvente é trabalhador por conta de outrem na B... UNIPESSOAL, Lda., NIPC ..., com as funções de Supervisor Comercial, atividade da qual auferiu em 2021 rendimentos de 28.130,00€ (brutos). O devedor alega que uma situação de dependência em apostas de jogo de futebol levou a que, aproveitando-se da posição de gestão de clientes particulares que desempenhava junto do Banco 2..., S.A., tivesse acedido ilegitimamente a contas de clientes, movimentado fundos sem autorização, que teria utilizado em tal vício – nos anos de 2016 a 2017. Como consequência de tal comportamento, entrou numa espiral descendente de endividamento, seja comprometendo-se com os clientes a pagar directamente os valores indevidamente movimentados, seja comprometendo-se em acordos celebrados em processos executivos, e solidariamente com a entidade patronal, a repor os valores indevidamente movimentados, seja em sede de condenação em Pedido de Indemnização Cível no âmbito de processo-crime de que foi alvo. Como consequência destes processos judiciais viria a divorciar-se em 2020 e a vender com a sua ex-mulher, em 24.11.2020, a fração autónoma designada pela letra I, no prédio com a descrição ... da freguesia .... O preço da venda foi pago com a entrega de Sinal de 21.500,00€ pago em 20.10.2020; Cheque no valor de 117.029,87€, e dois Cheques no valor de 38.235,06€. Tudo levando a crer que o insolvente procedeu à venda do imóvel, pagou o valor hipotecário em dívida (que não foi reclamado), e que tanto o insolvente como a ex-mulher receberam cada um o valor de 38.235,06€. Questionado, este veio apresentar os seguintes esclarecimentos: “quando foi vendida a casa de morada de família, o insolvente com o produto dessa venda, na quantia de €38.235,06, utilizou parte para amortizar a dívida perante os seus pais, uma vez que o insolvente lhes tinha retirado indevidamente das suas contas bancárias verbas para o jogo e ainda para os reembolsar de empréstimos que lhe concederam para ressarcir lesados. A dívida aos pais cifrava-se num valor superior a €50.000,00. A outra parte para pagamento de custas judiciais respeitante ao processo crime no valor de €4.000,00, pagamento de mais valias pela venda do imóvel na quantia de €7.500,00 e devolução a ex-mulher da quantia de €10.000,00.” Porque relevante para compreender o comportamento do insolvente, salientam-se algumas datas relevantes: - Movimentação de contas de clientes indevidas: entre Julho de 2016 e Março de 2017; - Momento que foram detetados os movimentos: início de Março de 2017; - Rescisão do contrato de trabalho com o Banco 2..., S.A.: 10.03.2017. - Bloqueio judicial das contas eletrónicas utilizadas em jogo on-line: 17.03.2017; - Transações judiciais em que o insolvente se confessa devedor de quantias ilicitamente movimentadas: 02.03.2018; - Acórdão proferido no âmbito de processo-crime n.º 669/17.7JAPRT que condena à restituição de valores: proferido a 16.12.2020 e transitado em julgado a 28.01.2021; - Créditos contraídos após tal data: a) Banco 3...: a 21.11.2018 contratou cartão de crédito com limite de 3.000,00€ e a 01.06.2021 um segundo financiamento no valor de 6.500,00€. b) A..., S.A.: a 20.01.2021 subscreveu mútuo no valor de 2.500,00€ e a 31.01.2022 contratou mútuo de 6.000,00€; c) Banco 4...: 17.04.2021 no valor de 15.578,43€ e a 04.11.2021 no valor de 5.794,58€; d) C..., S.A.: a 22.05.2021 subscreveu cartão de crédito universo. e) Banco 5...: a 16.06.2021 celebrou mútuo no valor de 5.188,99€; f) Banco 6..., S.A.: 15.09.2021 celebrou mútuo no valor de 2.682,00€ (que declarou ser destinado a pagamento de propinas de pós-graduação) e em 28.03.2022 contratou novo mútuo no valor de 5.749,36€ Declarou expressamente não ser titular de quaisquer bens ou direitos suscetíveis de apreensão. Feitas as buscas nas bases de dados disponíveis, junto das Conservatórias de Registos e dos Registos fiscais, não resulta a existência de quaisquer bens ou direitos na sua titularidade, confirmando-se assim as informações prestadas. Note-se que a Conservatória do Registo Automóvel informou que o insolvente é proprietário de uma viatura com a matrícula ..-..-VV, da marca .... No entanto, ponderando o valor em dívida reclamado pelo credor detentor da reserva de propriedade, e o valor do veículo, a requerente optou por não cumprir o contrato, solicitando a entrega imediata do veículo ao credor. O insolvente indicou de forma clara e circunstanciada os seus créditos e as ações contra si pendentes, não se tendo apurado que esta tenha de alguma forma ocultado os seus credores ou litígios pendentes. Causas da situação de Insolvência: Foi o devedor que se apresentou à insolvência, justificando tal apresentação na situação de dependência ao jogo e os comportamentos a este associados. O rendimento mensal por si auferido não é suficiente para fazer face às despesas correntes do dia-a-dia. Analisadas as reclamações de crédito, tudo leva a crer que a insolvência pessoal se deve essencialmente à alegada dependência ao jogo e suas consequências práticas posteriores, decorrentes das sucessivas tentativas de sanear os sucessivos incumprimentos. (…) Análise dos factos para efeitos do disposto no artigo 186.º do CIRE: Analisada a Petição Inicial, os documentos juntos com esta peça, e cotejada esta informação com os dados constantes das bases de dados de acesso público a que a Requerente teve acesso, resultam factos que poderão ser integrados na previsão do n.º 1 do artigo 186.º do CIRE. Verifica-se que pelo menos desde Fevereiro de 2018 que o insolvente tinha a obrigação de ter consciência de que devia cerca de 600.000,00€ apenas decorrentes do crime que cometeu. Desde essa data, saneou os bens de que dispunha, fazendo pagamentos a credores que seriam consigo especialmente relacionados. Note-se que do valor de €38.235,06, apenas 11.500,00€ foram pagos a credores não especialmente relacionados consigo próprio. E mesmo após a condenação, e respetivo trânsito em julgado, pela prática de crime, o insolvente continuou a contrair créditos sucessivamente, de valores significativos, sem informar os seus credores do valor do passivo que já possuía. Mais, chega mesmo a exagerar claramente o valor do seu rendimento mensal por forma a facilitar a concessão de crédito. Assim, parece que se encontram reunidos os pressupostos para que seja declarado o carácter culposo da insolvência porque verificados os pressupostos previstos nas alíneas f) e g) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE e da alínea a) do n.º 3 do mesmo normativo. (…) Análise dos factos para efeitos do disposto no artigo 238.º do CIRE: A Requerente é da opinião que, atenta cronologia supra feita, o insolvente forneceu informações erróneas e incompletas sobre a sua circunstância económica com vista à obtenção de crédito. Mais, deveria ter-se apresentado à insolvência em momento anterior à contratação sucessiva de créditos pessoais. Não o fazendo, agravou sucessivamente a situação de insolvência em que se encontrava, prejudicando de forma clara e concreta os seus credores. Assim, e ao abrigo do disposto nas alíneas b), d) e e) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE, deve ser indeferido liminarmente o benefício da exoneração do passivo sobrante.” * A apelante começa por arguir a nulidade da decisão recorrida, por totalmente desprovida de uma base factual que sustente a respectiva conclusão.No caso, uma análise literal dessa decisão poderia conduzir-nos à mesma conclusão e, por isso, à identificação do vício previsto no art. 615º, nº 1, al. b) do CPC. Todavia, o que se constata é, que, apesar de o fazer por mera remissão – numa solução menos perfeita e que se não adoptada preveniria este fundamento da sua impugnação – a decisão de indeferimento liminar da pretensão do recorrente não deixa de estar sustentada em diversos factos, em termos que ele próprio compreendeu e tratou de impugnar. Passaremos, pois, a elencar tais factos que, como se verificará infra, são aqueles que, pelo próprio apelante, merecem outra interpretação e relevância: uns por justificarem a sua conduta, não traduzindo qualquer actuação culposa; outros por não merecerem a avaliação negativa que o tribunal lhes dirigiu. A existência de tais factos, que são inteligíveis enquanto substrato da decisão recorrida, exclui que se possa ter por verificada a nulidade que lhe é imputada. Acresce que, ainda que assim não fosse e se concluísse pela ocorrência da nulidade invocada, sempre haveria este tribunal de recurso de a suprir, importando dos autos os factos que, neles resultando provados, se revelem úteis para a apreciação da questão. Assim dispõe o art. 665º do CPC. Atente-se, pois, em tal factualidade, que se retira do relatório do A.I. e em relação à qual não se identifica qualquer controvérsia: - AA requereu a declaração da sua insolvência em 22/6/2022, a qual veio a ser declarada por sentença de 27/6/2022. - O insolvente é trabalhador por conta de outrem na B... UNIPESSOAL, Lda., NIPC ..., com as funções de Supervisor Comercial, atividade da qual auferiu em 2021 rendimentos de 28.130,00€ (brutos). - Uma situação de dependência em apostas de jogo de futebol levou a que o insolvente, aproveitando-se da posição de gestão de clientes particulares que desempenhava junto do Banco 2..., S.A., tivesse acedido ilegitimamente a contas de clientes, movimentado fundos sem autorização, nos anos de 2016 a 2017. - O insolvente divorciou-se em 2020 e, com a sua ex-mulher, em 24.11.2020, vendeu a fração autónoma designada pela letra I, no prédio com a descrição ... da freguesia .... - O preço da venda foi pago com a entrega de Sinal de 21.500,00€ pago em 20.10.2020; Cheque no valor de 117.029,87€, e dois Cheques no valor de 38.235,06€. Com isso, pagaram o valor hipotecário em dívida (que não foi reclamado), e tanto o insolvente como a ex-mulher receberam cada um o valor de 38.235,06€. - Do valor que lhe coube, utilizou parte para amortizar a dívida perante os seus pais, uma vez lhes tinha retirado indevidamente das suas contas bancárias verbas para o jogo e ainda para os reembolsar de empréstimos que lhe concederam para ressarcir lesados. A dívida aos pais cifrava-se num valor superior a €50.000,00. A outra parte para pagamento de custas judiciais respeitante ao processo crime no valor de €4.000,00, pagamento de mais valias pela venda do imóvel na quantia de €7.500,00 e devolução a ex-mulher da quantia de €10.000,00. ·- No percurso de vida do insolvente, assumem relevância as seguintes datas: ·- Movimentação de contas de clientes indevidas: entre Julho de 2016 e Março de 2017; ·- Momento que foram detetados os movimentos: início de Março de 2017; ·- Rescisão do contrato de trabalho com o Banco 2..., S.A.: 10.03.2017. ·- Bloqueio judicial das contas eletrónicas utilizadas em jogo on-line: 17.03.2017; ·- Transações judiciais em que o insolvente se confessa devedor de quantias ilicitamente movimentadas: 02.03.2018; ·- Acórdão proferido no âmbito de processo-crime n.º 669/17.7JAPRT que condena à restituição de valores: proferido a 16.12.2020 e transitado em julgado a 28.01.2021; - O insolvente contraiu os seguintes créditos: ·Banco 3...: a 21.11.2018 contratou cartão de crédito com limite de 3.000,00€ e a 01.06.2021 um segundo financiamento no valor de 6.500,00€. ·A..., S.A.: a 20.01.2021 subscreveu mútuo no valor de 2.500,00€ e a 31.01.2022 contratou mútuo de 6.000,00€; ·Banco 4...: 17.04.2021 no valor de 15.578,43€ e a 04.11.2021 no valor de 5.794,58€; ·C..., S.A.: a 22.05.2021 subscreveu cartão de crédito universo. ·Banco 5...: a 16.06.2021 celebrou mútuo no valor de 5.188,99€; ·Banco 6..., S.A.: 15.09.2021 celebrou mútuo no valor de 2.682,00€ (que declarou ser destinado a pagamento de propinas de pós-graduação) e em 28.03.2022 contratou novo mútuo no valor de 5.749,36€ - Não foram apreendidos para a massa insolvente quaisquer bens móveis ou imóveis. - Desde Fevereiro de 2018 que o insolvente tinha a obrigação de ter consciência de que devia cerca de 600.000,00€ apenas decorrentes do crime que cometeu centenas de milhares de euros. - Do valor de € 38.235,06, apenas 11.500,00€ foram pagos a credores não especialmente relacionados consigo próprio. Cotejando tais elementos com aqueles que o apelante salienta no seu recurso e que igualmente ressumam dos autos, deve atentar-se ainda em que: - O insolvente indicou de forma clara e circunstanciada os seus créditos e as ações contra si pendentes, não se tendo apurado que esta tenha de alguma forma ocultado os seus credores ou litígios pendentes. Alega ainda o apelante que: - O devedor auferia um ordenado ilíquido de 750 EUR mensais, acrescido de comissões variáveis, mas sempre superiores a 500 EUR mensais e por vezes rondando os 1 500 EUR e cartão de refeição na ordem dos 150 EUR; - A dívida ao Banco 2..., S. A. cifrou-se na quantia de 351 744,81 EUR - O devedor devolveu ao Banco 2..., S. A. as seguintes quantias: (i) Até 05.12.2020 o devedor entregou a quantia de €22.000,00; (ii) Após a prolação do douto Acórdão o devedor passou a pagar a quantia mensal de €900,00. A suspensão da pena de cinco anos de prisão foi condicionada a que durante esse período o arguido pagasse ao Banco o valor global de 104.000,00€, dividida da seguinte forma: - €900,00 mensais durante o período de suspensão (900,00 x 60 = €54.000,00) - €50.000,00. - O insolvente até, pelo menos, o primeiro trimestre no ano de 2022, obtinha rendimentos que lhe permitiam cumprir com os compromissos que assumiu, maxime a prestação de €900,00 e as prestações dos créditos que contraiu. * A não qualificação como provados dos factos alegados pelo ora apelante que acabam simplesmente de se referir resulta da sua inconsequência para a decisão a proferir, já que os mesmos não são de ordem a descaracterizar a sua condição económico-financeira, na fase que antecedeu a sua apresentação à insolvência, ocorrida em Junho de 2022.Cumpre, pois, analisar a factualidade descrita, em ordem a discutir a sua subsunção ao disposto nas alíneas b), d) e e) do nº 1 do artº 238º do CIRE. Recorde-se que deste regime legal resulta: 1 - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: (…) b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza; (…) d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica; e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º; No que respeita à al. b), afirmou o AI, no respectivo relatório, que os créditos contraídos pelo insolvente após a sua condenação no processo-crime n.º 669/17.7JAPRT, proferida a 16.12.2020, só foram concedidos por não ter informado os seus credores do valor do passivo que já possuía e exagerando “claramente” o valor do ser rendimento mensal por forma a facilitar a concessão de crédito. E concluiu: “A Requerente é da opinião que, atenta cronologia supra feita, o insolvente forneceu informações erróneas e incompletas sobre a sua circunstância económica com vista à obtenção de crédito.” Estas afirmações, provenientes de pura presunção e que redundaram na citada conclusão, que o tribunal acabou por importar acriticamente para a decisão recorrida, mostram-se desprovidas de conteúdo material perceptível e de fundamentação. Com efeito, no relatório oferecido, a Sra. Administradora de Insolvência elencou créditos obtidos pelo insolvente entre 2018 e Março de 2022, ou seja, até escassos 3 meses antes de se apresentar à insolvência e depois de ter vendido o único património que se lhe conheceu, bem como as circunstâncias anteriores da sua condenação, que mal permitem compreender que tenha sido admitido a contratar tais financiamentos. Porém, isso não é suficiente para se poder ter por preenchia a previsão da al. b) do nº 1 do art. 238º, que prevê o fornecimento, “…por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito…”. Quais as informações faltas ou incompletas? A que instituição de crédito foram dirigidas? Foi em razão de que informações falsas ou omitidas e prestadas por escrito, que o insolvente obteve crédito que, de outra maneira não obteria? É óbvia a impossibilidade de resposta a estas questões, quer em função de elementos que constem dos autos, quer que tenham servido para instruir as conclusões da Sra. Administradora de Insolvência, apresentadas no relatório invocado pelo tribunal. Ou seja, é impossível descrever como e porquê a actuação do insolvente preencheu a previsão da citada al. b) Consequentemente, tal fundamento não se pode considerar verificado, impedindo que nele se alicerce a decisão de indeferimento liminar da pretensão do insolvente. Não assim, em todo o caso, em relação às previsões constantes das als. d) e e) da mesma norma, isto é, ter-se o insolvente, abstido da apresentação à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica; e identificarem-se elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º, designadamente por ter disposto dos seus bens em proveito pessoal ou de terceiro (al. d) do nº 2 do art. 186º do CIRE) Com efeito, em 24/11/2020, o insolvente, juntamente com a ex-mulher de quem antes se divorciara, vendeu o único bem que lhe foi conhecido – uma fracção de um imóvel – e providenciou pela distribuição do dinheiro assim obtido, segundo ele próprio afirma, à sua ex-mulher e aos seus pais. Porém, nessa data, em resultado dos crimes que cometeu, devia centenas de milhares de euros (600.000,00€, segundo a AI, 351.000,00€, segundo o próprio) e estava em vias de se concluir o correspondente julgamento, de que resultou a sua condenação. Apesar de ter perdido o emprego no Banco onde trabalhava e de ganhar 750.00€ por mês que, segundo afirma, eram acrescidos de valores variáveis que chegavam ao dobro – o que se admite, face ao valor anual de rendimentos declarado em 2021, de 28.130,00€ (brutos) - estando comprometido com o pagamento mensal de 900,00€ para satisfação da indemnização devida ao banco lesado, além de outras prestações como acima se descreveu, bem como de, já então, ter contraído um financiamento de 3.000,00€ junto do Banco 3..., assim se evidenciando uma situação financeira que dificilmente se poderia configurar como habilitante à satisfação de tais compromissos, o ora apelante não se apresentou à insolvência, de forma a que aquele seu único património pudesse ser aplicado à satisfação do interesse de todos os seus credores, de acordo com as categorias dos créditos de cada um. Pelo contrário, privilegiou a ex-mulher e os pais (além do credor hipotecário do próprio imóvel, cuja satisfação era pressuposto da hipótese da venda da fracção; do valor de €38.235,06, apenas 11.500,00€ foram pagos a credores não especialmente relacionados consigo próprio), ficando desprovido de todo o património à custa do qual qualquer outro credor pudesse ver o seu crédito pago. Com isso preencheu a previsão da al. d) do nº 2 do art. 186º do CIRE, sendo óbvia a censurabilidade da sua actuação. Salvaguardou o pouco valor que conseguiu para os seus familiares, prevenindo que estes sofressem tanto quanto outros credores, com a cessação de pagamentos que adviria da sua insolvência e da ausência de qualquer património. Porém, paralelamente, o insolvente continuou a contrair dívidas que só foram ampliando o seu passivo. Se a sua condição patrimonial e financeira já evidenciavam a sua incapacidade para satisfazer as suas responsabilidades, ele continuou a contrair dívidas junto de várias instituições financeiras, que as suas capacidades jamais lhe permitiriam vir a satisfazer: entre 21/1/2018 e 28/3/2022, mas com especial incidência durante os meses de 2021, o insolvente obteve de diferentes instituições de crédito um montante total de cerca de 53.000,00€. Mesmo que se mantivessem os seus rendimentos de 2021, com os compromissos financeiros que já lhe advinham da responsabilidade criminal e civil apreciada no referido processo crime, jamais conseguiria satisfazer o volume crescente de responsabilidades que foi angariando, em especial ao longo desse mesmo ano 2021. O seu recurso sucessivo à obtenção de dinheiro junto de diferentes instituições só pode evidenciar a sua incapacidade de se governar com os rendimentos que obtinha. Mas em vez de se apresentar à insolvência, a solução por si encontrada foi ampliar as suas dívidas e, como não podia deixar de estar consciente, o volume dos créditos que acabaria por deixar de satisfazer. E continuou a fazê-lo até que, perante uma quebra de rendimentos do trabalho, segundo alegou, entendeu requerer a sua insolvência com o que ficaria dispensado de qualquer responsabilidade pelas dívidas que foi contraindo, bem sabendo ou devendo saber que as não conseguiria pagar, se beneficiasse da exoneração do passivo restante, que seria todo, salvo o proveniente do crime – pois que nenhum bem lhe foi apreendido. Aliás, em 28/3/2022, ainda contraiu nova dívida, contratando um mútuo no valor de 5.749,36€, junto do Banco 6..., afirmando que foi depois disso que viu os seus rendimentos diminuir, ficando impedido de cumprir as obrigações que foi contraindo. Porém, o que tem de se concluir é que o insolvente, sem qualquer explicação, foi fazendo desaparecer o capital que sucessivamente obtinha junto das mencionadas instituições de crédito, até que simplesmente entendeu nada mais poder pagar, não tendo património para dar em pagamento sequer parcialmente e ser adequado apresentar-se à insolvência. Toda esta matéria é inequivocamente apta ao preenchimento das als. d) e e) do art. 283º do CIRE: o insolvente não se apresentou à insolvência quando a sua situação, após a sua condenação, já evidenciava a sua incapacidade de cumprir as suas responsabilidades, tendo-se desfeito do património que poderia ser apto à satisfação de algumas delas, em proveito da sua ex-mulher e dos seus pais e em detrimento de outros credores. Mas, para além disso, e sem evidenciar qualquer perspectiva de melhoria da sua situação – a qual, como se viu, só piorou – foi contraindo mais dívidas, ampliando o número de credores que bem sabia ou devia saber que jamais iria satisfazer, agravando a situação de insolvência em que se encontrava. Pelo exposto, de forma alguma se podem acolher os seus argumentos sobre a inverificação dos fundamentos que levaram o tribunal recorrido a concluir pelo indeferimento da pretensão do insolvente e, pelo contrário, pela identificação de uma situação em razão da qual se possa considerar justificado conceder-lhe o benefício constituído pela exoneração das dívidas que angariou antes da sua declaração de insolvência por a sua conduta não ser passível de censura e merecer o fresh start admitido pelo legislador para situações tão diversas da presente. Resta, assim, concluir pela confirmação da decisão recorrida, na improcedência da presente apelação. * Sumariando, nos termos do art. 663º, nº7 do Código do Processo Civil: ……………………………………….. ………………………………………… ………………………………………… * 3 – Decisão Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em negar provimento à presente apelação, na confirmação da decisão recorrida. Custas pelo apelante. Porto, 14 de Março de 2023 Rui Moreira João Diogo Rodrigues Anabela Miranda |