Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2734/07.0TAAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARTUR OLIVEIRA
Descritores: CRIME DE DESCAMINHO
FIEL DEPOSITÁRIO
SUBTRACÇÃO
Nº do Documento: RP201506172734/07.0TAAVR.P1
Data do Acordão: 06/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A conduta do fiel depositário que muda de residência e transfere os bens para outro local, sem comunicar, não é suficiente para se concluir que houve destruição, danificação, inutilização ou subtração dos bens à sua guarda subjacente à previsão do tipo de crime de descaminho, do art. 355.º do Cód. Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO – SECÇÃO CRIMINAL (QUARTA)
- no processo n.º 2734/07.0TAAVR.P1
- com os juízes António Gama [presidente], Artur Oliveira [relator] e José Piedade,
- após conferência, profere, em 17 de junho de 2015, o seguinte
Acórdão
I - RELATÓRIO
1. No processo comum (tribunal singular) n.º 2734/07.0TAAVR, da secção criminal (J1) – Instância Local de Aveiro, Comarca de Aveiro, em que é arguida B…, depois de acórdão da Relação de Coimbra que declarou nula a sentença, foi proferida nova decisão que decidiu [fls. 793]:
«(…) 1 - Condeno a arguida B… pela prática de um crime de descaminho p.p pelo art. 355º do CP na pena de 4 (quatro) meses de prisão substituída por 120 (cento e vinte) dias de pena de multa ao quantitativo diário de 6 € (seis euros) num total de 720 € (setecentos e vinte euros).
(…)»
2. Inconformada, a arguida recorre, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [fls. 811-812]:
«1) O depoimento prestado pela testemunha, cujo depoimento acima se transcreveu parcialmente e aqui se dá por integralmente reproduzido, foi isento e merece credibilidade, devendo motivar a alteração da matéria de facto, mormente os nº 2 a 5 dos factos provados da douta sentença.
2) Dando-se por provado que a arguida partiu não para parte incerta mas para Inglaterra, onde se encontra há mais de dez anos a trabalhar, sendo o seu paradeiro conhecido.
3) Dando por provado que a arguida não deu destino diferente aos bens, pois estes foram deslocalizados de …, apenas porque vivendo há meses em Inglaterra, teve necessidade de entregar o apartamento arrendado em … ao senhorio e os bens penhorados estão como sempre estiveram disponíveis para serem entregues a quem de direito, conhecendo-se a sua localização, a identificação e a morada das pessoas que os têm à sua guarda, em … e …, como melhor consta da sua contestação.
4) Dando-se por provado que não houve subtração, nem descaminho dos bens.
5) Quando porventura tal se não entendesse, os factos dados na douta sentença, não permitem concluir que se encontrem preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos do crime de descaminho, assim se violando o disposto no art. 355º do C.P.;
6) De igual forma, os factos dados por provados não poderiam, por insuficientes, fundamentar a aplicação à arguida da pena de prisão aplicada;
7) Do teor da decisão condenatória recorrida, ressalta assim a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, assim se violando o disposto na alínea a) do no 2 do art. 410 do C.P.P., nomeadamente, quando a arguida não foi notificada para apresentar os bens, nunca se recusou a entregar os bens, não foi advertida de que a sua não apresentação a faria incorrer em sanção penal, nem muito menos que deveria comunicar ao tribunal da execução a sua alteração de residência ou a deslocalização dos bens penhorados.
8) Mais, o Tribunal a quo pronunciou-se agora sobre parte do alegado pela arguida na sua contestação dizendo que não se provou que antes de partir para Inglaterra a arguida tenha pedido à sua mãe e à sua ex-sogra para em casa delas guardar os bens móveis penhorados de que era fiel depositária, o que se aceita, mas esquecendo-se de dar por provado que o arguido-marido passados meses de ambos os arguidos estarem em Inglaterra fez idêntico pedido telefonicamente, à testemunha C… supra indicada, que por sua vez o terá comunicado à mãe do arguido e à sua ex-sogra (sendo esta mãe da arguida e da testemunha), só assim se concebendo que os bens estejam e tenham estado sempre disponíveis, parte em casa da mãe da arguida e parte em casa da ex-sogra, respetivamente em … e …, a fim de serem entregues a quem de direito.
9) Nunca a arguida teve intenção de destruir, danificar, inutilizar, desviar, desaparecer ou subtrair os bens penhorados, pelo que não houve crime de descaminho.
10) A sua vontade e disponibilidade manifesta de imediata entrega dos bens penhorados, tem interesse decisivo para o sentido da decisão e para a medida concreta da pena.
11) Não houve negligência consciente nem muito menos dolo da arguida,
12) Deve julgar-se procedente o presente recurso e decidir-se pela absolvição da arguida do crime de descaminho. JUSTIÇA!
(…)»
3. Na resposta, o Ministério Público refuta todos os argumentos da motivação de recurso, pugnando pela manutenção do decidido [fls. 818-830].
4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto considera que não se deve “considerar provada a sonegação dos bens com intuito de os subtrair à execução (dolo), mas tão só que os mesmos foram deslocados por força de circunstâncias comprovadas nos autos (emigração da fiel depositária com mudança de casa e dos bens penhorados), sem que a mesma tivesse oportunamente comunicado ao processo de execução tal mudança, o que traduz, quanto muito, uma conduta negligente, sendo certo que o crime de descaminho p. e p. pelo art. 355º do CP não prevê a punição a título de negligência (cfr. art. 130 do CP), deve ser revogada a decisão condenatória, decidindo-se pela impetrada absolvição” [fls. 836-837].
5. Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
6. A sentença recorrida deu como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respetiva motivação [fls. 788-791]:
«(…) 1. Factos provados
Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
1 - No âmbito da Carta Precatória 102/03.1TBAVR do 2º Juízo Cível de Aveiro, vinda da 1ª Secção da 11ª Vara Cível de Lisboa, e extraída do Processo de Execução Ordinária 3173/1998, em que eram executados ambos os arguidos e exequente a firma D…, S. A., foram, no dia 26 de Fevereiro de 2003, penhorados vários bens, melhor escritos no respetivo auto de penhora constante a folhas 94 e seguintes dos presentes autos, que ora se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, deles havendo a arguida sido nomeada fiel depositária, e advertida das obrigações de tal cargo, nomeadamente, a de zelar pela guarda, manutenção e funcionamento dos bens que lhe foram entregues, bem como efetivar a sua apresentação quando instada para o efeito.
2 - Em data posterior, não concretamente apurada, os arguidos que então abandonaram a residência onde aqueles bens se encontravam depositados, sita na …, número ., Bloco ., .º Direito, na freguesia …, concelho de Aveiro, levaram-nos consigo em parte incerta, dando-lhe destino diverso daquele a que os mesmos estavam afetos, sendo o seu paradeiro desde então desconhecido.
3 - A arguida sabia que a arguida era fiel depositária daqueles bens, e que no âmbito das funções que lhe cabiam, decorrentes de tal qualidade, tinha o dever de zelar pelos referidos bens que lhe tinham sido confiados, de forma que os mesmos não fossem subtraídos ao poder público a que estavam sujeitos, até porque tinha sido advertida formalmente nesse sentido.
4 - A arguida agiu assim de forma voluntária, livre e consciente com o propósito concretizado de subtrair ao poder público a que estavam sujeitos os bens penhorados, sabendo que era fiel depositária de tais bens.
5 - Tão-pouco ignorava que a sua conduta era proibida e punida por lei.
6 - Os arguidos encontram-se emigrados em Inglaterra.
7 - Não têm antecedentes criminais.
Não se provaram:
Os factos relatados em 3 a 5, relativamente ao arguido.
4. Motivação.
O tribunal fundou a sua convicção:
Nos CRCs juntos aos autos.
Na certidão de fls. 6 e ss mais concretamente,
- fls. 94 e ss - auto de penhora, datado de 26 de Fevereiro de 2003, auto assinado pela arguida. Consta desse auto que a mesma foi nomeada fiel depositária dos bens penhorados, sendo a mesma advertida de que os mesmos ficavam à sua guarda e que os devia apresentar quando lhe fosse exigido
- fls. 163, certidão negativa de notificação, datada de 08 de março de 2005, notificação esta efetuada na morada onde fora anteriormente feita a penhora, havendo informação que não reside ninguém nesse imóvel e que o mesmo está para arrendar;
- fls. 231 e ss - Carta Precatória para venda dos bens penhorados, nomeadamente fls. 262, 269, 273, 288 e 292 de onde resulta que foi impossível contactar com a fiel depositária, a fim de proceder à venda dos bens penhorados.
O tribunal fundou ainda a sua convicção no depoimento das testemunhas E… e F…, ambos funcionários judiciais.
O primeiro efetuou a penhora confirmando que constituiu a arguida como fiel depositária, ficando esta bem ciente de que tinha de mostrar e entregar os objetos quando tal lhe fosse pedido.
Mais disse que o arguido não estava presente.
A testemunha F… afirmou que foi à residência da executada, em …, a fim de proceder a uma notificação, constatando que a casa estava desabitada e que estava para alugar.
Foi ouvida ainda a testemunha C…, irmão da arguida que afirmou que quando a irmã e o cunhado emigraram para Inglaterra, levaram os bens para casa das respetivas mães, não pretendendo subtraí-los à execução. Os móveis ainda lá estão e prontos a serem entregues.
Da análise dos documentos juntos e da inquirição das testemunhas arroladas, resulta que o arguido não teve nenhuma intervenção nos factos pelo que, quanto a ele não existe qualquer prova.
Relativamente à arguida esta foi devidamente alertada de que deveria proceder à entrega dos bens quando solicitada. No entanto, ausentou-se para lugar desconhecido, não informando os autos do local para onde transportou os bens, inviabilizando, por isso, o prosseguimento do processo executivo.
(…)»
II – FUNDAMENTAÇÃO
7. Face às conclusões apresentadas, que delimitam o objeto do recurso, a recorrente (i) impugna a decisão proferida sobre matéria de facto e, de todo o modo, (ii) invoca o não preenchimento dos requisitos objetivos e subjetivos do crime de descaminho pelo qual vem condenada.
8. (i) A recorrente impugna a decisão de dar como provados os pontos 2 a 5. Refere, para tanto, elementos documentais juntos aos autos e o depoimento da testemunha C…, em excertos que transcreve – cumprindo, assim, as exigências impostas nos n.º 3 e 4 do artigo 412.º do Cód. Proc. Penal.
9. Quanto ao ponto 2: tem razão. Nenhuma referência há nos autos que permita afirmar que a arguida deu destino diverso [aos bens apreendidos] daquele a que os mesmos estavam afetos, sendo o seu paradeiro desde então desconhecido. Pelo contrário: a arguida sempre afirmou, designadamente na contestação, que está disposta a entregar de imediato os bens a quem de direito [ver fls. 650 e relatório da sentença]. Referiu que, quando emigrou para Inglaterra, entregou ao senhorio a casa que até então habitava e transportou os bens móveis de que é fiel depositária para as residências da mãe e da ex-sogra – indicando as respetivas moradas. Apesar da anterior sentença ter sido anulada por omissão de pronúncia quanto aos factos alegados pela arguida na contestação [ver Acórdão da Relação de Coimbra, a fls. 771-772], o certo é que a nova sentença volta a desprezar estes factos, omitindo a decisão de dá-los como provados ou como não provados. Entendemos que não é caso de declarar nova nulidade porque, como veremos infra, os factos dados como provados (portanto, na versão mais gravosa que desconsidera em absoluto a alegação da arguida) são insuficientes para conduzir à condenação.
10. Para além do que resulta da alegação da arguida, há o depoimento da testemunha C… que, nesta parte, sem razão conhecida, foi ignorado. Este depoimento reitera, de forma clara e detalhada, que a arguida e o marido emigraram, que entregaram a casa onde habitavam e que os bens foram levados para casa da mãe e da sogra da arguida: “(…) os bens não foram vendidos e encontram-se no sítio para onde foram deixados (…)” – diz a testemunha.
11. Pelo que, na procedência deste aspeto da impugnação, se decide modificar o ponto 2 dos Factos Provados que passa a ter a seguinte redação:
“2 - Em data posterior, não concretamente apurada, mas há mais de 10 anos, os arguidos emigraram para Inglaterra e quando entregaram ao senhorio a casa que habitavam, levaram os bens de que a arguida é fiel depositária para casa da mãe e da ex-sogra”.
12. Quanto ao ponto 3: a advertência feita à arguida sobre o dever de guarda e zelo dos bens é a que consta da notificação que lhe foi feita aquando da sua constituição como fiel depositária [fls. 90]. Pelo que, também neste ponto se modifica a decisão proferida que passa a ter a seguinte redação:
“A arguida sabia que era fiel depositária daqueles bens, e que no âmbito das funções que lhe cabiam, decorrentes de tal qualidade, tinha o dever de zelar por eles de forma que não fossem subtraídos ao poder público a que estavam sujeitos, sendo advertida de que ficavam à sua guarda e que os devia apresentar quando lhe fosse exigido”.
13. Quanto aos pontos 4 e 5: das afirmações anteriores e de acordo com a prova produzida nos autos, resultam claro que não há elementos que permitam afirmar que a arguida “subtraiu” ao poder público os bens de que é fiel depositária: alegadamente, os bens estão em locais que ela identifica e o tribunal não cuidou de confirmar essa indicação. Repare-se que a arguida não foi (nem podia ser) advertida de que devia manter os bens em determinada residência, pelo que o tribunal sempre teria de admitir que ela, por razões suas, os levasse para local diverso daquele onde estavam aquando da penhora e da constituição de fiel depositário. Pelo que estes pontos da matéria de facto devem transitar para os Factos Não Provados [artigos 412.º, n.º 3 e 4 e 431.º, alínea b), do Cód. Proc. Penal].
14. (ii) Com as alterações introduzidas, ficam por preencher os elementos objetivos do crime de Descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público, do artigo 355.º, do Cód. Penal [“Quem destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, documento ou outro objeto móvel, bem como coisa que tiver sido arrestada, apreendida ou objeto de providência cautelar, é punido (…)”].
15. Mas ainda que assim não fosse, sempre teríamos de concluir que os factos dados como provados pela sentença não preenchiam os referidos requisitos objetivos. Na verdade, o que a sentença recorrida, decalcando a acusação [fls. 512], havia dado como provado era que a arguida abandonou a residência onde os bens se encontrava, levando-os consigo para parte incerta e dando-lhe destino diverso daquele a que os mesmos estavam afetos, sendo o seu paradeiro desde então desconhecido. Ora, dar destino diverso não é destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou, por qualquer forma, subtrair. Como se refere no Acórdão desta Relação de 05.11.2014 [Eduarda Lobo]: “I – A ação típica do crime de Descaminho ou destruição de objetos colocados sob o poder público, do art. 355.º, do Cód. Penal, consiste em destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou por qualquer forma, subtrair a coisa arrestada, apreendida ou objeto de providência cautelar. II – A destruição, a danificação ou a inutilização, total ou parcial, abrange todos os atentados à substância ou à integridade física da coisa que a tornem inútil do ponto de vista que justificava a sua custódia oficial. III – No conceito “subtração ao poder público” cabem tão só as condutas que sonegam a coisa ao poder público sem que, no entanto, seja exigida uma intenção de apropriação. IV – A subtração traduz-se na apropriação da coisa, com o reverso do poder público dela ficar desapossado, nomeadamente, através de atos em que o agente extravia a coisa, a esconde ou a entrega a terceiro. V – A acusação, enquanto delimitadora do objeto do processo e dos poderes de cognição do tribunal, deve precisar a factualidade integradora da conduta típica do crime imputado. VI – “Desfazer-se dos bens” não equivale a afirmar que houve destruição, danificação inutilização ou subtração dos referidos bens, sendo certo que a prova de qualquer dessas modalidades da ação é indispensável para se considerar preenchido o tipo objetivo do crime. VII – Da mera não entrega, da falta de apresentação dos bens ou não resultando provado o destino dado pelo arguido aos bens não pode deduzir-se que houve descaminho”. Também o Ac. RP de 08.06.2011 [Maria do Carmo Silva Dias]: “Dar destino desconhecido aos bens arrestados não preenche a factualidade típica do crime de Descaminho, do art. 355.º, do CP. Tal como da mera não entrega ou falta de apresentação dos bens não se pode concluir que tivesse havido descaminho” – www.dgsi.pt].
16. Em suma: a conduta do fiel depositário que muda de residência e transfere os bens para outro local, sem comunicar, não é suficiente para se concluir que houve destruição, danificação, inutilização ou subtração dos bens à sua guarda. Pelo que sempre a arguida teria de ser absolvida do crime por que vem acusada.
A responsabilidade pela taxa de justiça
Sem tributação – procedência do recurso [artigo 513.º, n.º 1, a contrario, do Cód. Proc. Penal].
III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, os Juízes acordam em:
● Conceder provimento ao recurso interposto pela arguida B…, determinando a modificação da decisão proferida sobre matéria de facto nos termos acima referidos [§§ 11, 12 e 13] e absolvendo-a do crime por que vinha condenada.
Sem tributação.

Porto, 17 de junho de 2015
Artur Oliveira - relator
António Gama – presidente da secção
José Piedade