Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
146/23.7GAVGS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LÍGIA FIGUEIREDO
Descritores: CRIME DE BURLA QULIFICADA
CRIME DE ACESSO ILEGÍTIMO
CRIME DE INTERCEÇÃO ILEGÍTIMA
APREENSÃO EM ESTABELECIMENTO BANCÁRIO
IDENTIDADE DO TITULAR DA CONTA BANCÁRIA
Nº do Documento: RP20240207146/23.7GAVGS-A.P1
Data do Acordão: 02/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECUSO PENAL/CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário:
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 146/23.7GAVGS-A.P1
1.ª secção criminal

       Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

     Nos autos de inquérito nº146/23.7GAVGS-A.P1 a correr termos no departamento de investigação criminal de Vagos, Comarca de Aveiro, foi proferido o seguinte despacho:

(…)

Os presentes autos tiveram a sua génese na denúncia pelos seguintes factos:

A denunciante sociedade denunciante mantinha uma relação comercial com a empresa Italiana “A...”, tendo encomendado material no valor de €49.175,12.

Apresentada a respetiva fatura a pagamento, em 13-03-2023, no dia 15-03-2023, a denunciante recebeu um email do endereço eletrónico ... , como sendo da sociedade A..., em que esta solicitava que cancelasse o pagamento e que efetuasse o mesmo para o IBAN: ...13.

Fazendo fé que tal email era legitimo, por pertencer à sociedade A... e, assim, da veracidade dos dados bancários fornecidos, a sociedade denunciante, em 16-03-2023, deu ordem de transferência da quantia de €49.175,12, para a conta bancária com o IBAN n.º ...13.

Contudo, tal conta não pertencia à A..., mas a terceiro, ora desconhecido, como a sociedade denunciante veio a apurar, o qual terá acedido ao sistema informático/servidor da denunciante ou da sociedade A..., intercetando as ditas comunicações trocadas entre estas sociedade e, dessa forma, fazendo-se passar pela sociedade A..., obtendo o pagamento de tal quantia, que não lhe era devida.


*

Os factos em causa são susceptíveis de consubstanciar, em abstracto, de um crime de burla qualificada, p.p. artigo 217.º, n.º1 e 218.º, n.º2, alínea a) do CP, em concurso com um crime de acesso ilegítimo, p.p. artigo 6.º, n.º1 e com um crime de interceção ilegítima, p.p. pelo artigo 7.º, ambos da Lei do Cibercrime, aprovada pela Lei 109/2009, de 15/09.

Não foi, para já, desenvolvida qualquer diligência outra diligencia de investigação que não audição da denunciante e junção de elementos relativamente a mesma.

No entanto e na presente data foi determinado o MP o, nos termos do artigo 79, nº1, al. d) do Decreto-Lei 298/92 na redação da Lei n.º 23/2019, de 13/03, que se obtenha junto do Banco 1... UK PLC, com sede em ..., LONDON, ... e com base nas eventuais informações daí decorrentes -a identificação do titular da conta bancária e sua constituição como arguido.

Veio concomitantemente, o MP promover que se proceda à apreensão das quantias depositadas na conta bancária em crise.

Quanto a apreensão requerida e como é bom de ver nos termos do disposto no art. 178º/1 do Código de Processo Penal, são apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova.

Ainda segundo estatui o art. 181º/1 do mesmo diploma, o juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantia e quaisquer outros objectos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome. 

A apreensão, enquanto meio de obtenção de prova (veja-se a inserção sistemática sob o Título III – dos meios de obtenção de prova), destina-se essencialmente a conservar provas reais e, bem assim, objectos que, em razão do crime com que estão relacionados, podem ser declarados perdidos a favor do Estado, nos termos do disposto nos arts. 109º e sgs. do Código Penal - neste sentido, Código de Processo Penal Comentado, Comentário de António Henriques Gaspar e outros, Almedina, 2014, pág. 757.

Como refere Germano Marques da Silva, na obra “Curso de Processo Penal”, Vol. II, 4ª Edição, Verbo, pág. 242, A apreensão não é apenas um meio de obtenção e conservação de provas, mas também de segurança de bens. Nesta perspectiva a apreensão é um meio de segurança dos bens que tenham servido, ou estiveram destinados a servir, a prática do rime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objectos ou direitos apreendidos à ordem do processo até à decisão final.

Ora, no caso em mãos, com o devido respeito, os parcos elementos probatórios que constam dos autos não permitem com segurança decretá-la.

Na verdade, os factos ocorreram há cerca de 8 meses sem que de tal adviesse qualquer outra diligência com resultado probatório relevante, que não inquirição da denunciante, não foram ainda sequer constituídos arguidos/aventados suspeitos, correndo o presente inquérito ainda sem arguidos constituídos, sendo que quanto a conta indicada no oficio que antecede se desconhece a totalidade dos seus elementos, mormente identificação dos elementos bancários associados e respetivos titulares; - telefones, moradas e contas de correio eletrónico associadas e sendo que, tendo a conta titular identificado, este ainda não foi ouvido/constituído arguido.

Da mesma forma o dinheiro, a ter por lá passado, fê-lo a cerca de oito meses;

Pelo que, e sem mais, nos parece insuficiente para podermos concluir, como legalmente requerido no art. 181º/1 do Código de Processo Penal pela existência de fundadas razões para crer que eles [os saldos bancários] ali existentes nesta data estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.

Nestes termos, indefere-se para já a promoção que antecede.

(…)    


*

         Inconformado, o Magistrado do MP interpôs recurso, no qual formula as seguintes conclusões:

(…)

1. Por despacho/promoção de 02-11-2023, o Ministério Público promoveu a apreensão do saldo bancário existente até ao limite de €49.175,12(quarenta e nove mil euros cento e setenta e cinco euros e doze cêntimos), depositado na conta bancária ...13, domiciliada no Banco 1... UK PLC, a qual veio a ser indeferida por despacho proferido no dia 07-11-2023, com base, e em síntese, nos seguintes fundamentos:

a. Os factos ocorreram há mais de 8 meses, apenas com a inquirição como testemunha do denunciante e sem que se conheça a titularidade da conta bancária e demais dados bancários. Sendo que o titular de tal conta bancária não foi ouvido/constituído como arguido;

b. O dinheiro, a ter por lá passado, fê-lo há cerca de oito meses, pelo que não se pode concluir pela existência de fundadas razões para crer que os saldos bancários ali existentes, nesta data, estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.

2. A apreensão de bens e vantagens e, bem assim, de saldos bancários visa não só a conservação de meios de prova, mas ainda a conservação de objetos e vantagens provenientes da prática de crimes, adequados e destinados a garantir a execução da decisão que vier a os declarar perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos dos ofendidos (artigo 110.º, n.º6 do Código de Processo Penal).

3. Tal medida incide sobre “…património contaminado do suspeito ou terceiros (id est: todas as coisas direta ou indiretamente relacionadas com um facto ilícito típico)”, podendo ser apreendidas “as vantagens (todos os benefícios economicamente quantificáveis, direta ou indiretamente provenientes de um crime, incluindo as coisas misturadas e os seus sucedâneos, bem como as recompensas.5

4. Não se limitando ao património do arguido/suspeito, a apreensão (que corresponde a uma compressão meramente temporária e provisória dos direitos dos visados) pode ainda recair sobre bens na posse de terceiro, desde que corresponda àqueles bens e vantagens acima referidos, porquanto também estes podem vir a ser declarados perdidos a favor do Estado, quando se verifique o disposto no artigo 111.º, n.º2 do Código Penal. Terceiros que, quando de boa fé, podem exercer os seus direitos, nos termos do disposto nos números 7 e seguintes do artigo 178.º do Código de Processo Penal.

5. Face ao exposto, não pode concordar este Ministério Público com os fundamentos aduzidos e que sustentaram o indeferimento de tal pretensão, porquanto, não se estando perante uma medida de garantia patrimonial, como é o caso do arresto preventivo, não há imposição legal de previamente constituir o suspeito ou visado pelo mesmo como arguido, como impõe o artigo 192.º, n.º2 do Código de Processo Penal, ou que este seja interrogado como tal, nos termos do disposto no artigo 194.º, n.º4 do CPP. O que, aliás, permitiria que, no caso provável, de se tratar do autor dos factos ou comparticipante, este diligenciasse pela dissipação do saldo bancário ainda existente em tal conta bancária, acarretando o elevado risco de ficar efetivamente gorada a possibilidade de anular, mesmo parcialmente, a vantagem ilícita, com a sua futura perda de vantagens.

6. Por outro lado, como decorre dos artigos 178.º e 181.º do Código de Processo Penal é irrelevante a titularidade da conta bancária onde os ditos proventos se encontrem depositados, já que se pode apreender saldos bancários “mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome”, bastando que se verifiquem fundadas razões para se crer que estão relacionados com a prática de um crime.

7. Não se exigirá, para que seja ordenada a apreensão, que se esteja perante suficientes ou fortes indícios de que as quantias que se encontrem depositadas, em tal conta bancária, ainda existam ou que sejam provento de tal crime, mas apenas indícios, enquanto fundadas razões para crer que seja esse o caso.

8. O que sucede, porquanto atentos os elementos colhidos neste momento (comprovativo de transferência a fls.9, as declarações do denunciante, a fls.29 a 31, que atesta ter ficado prejudicado nesse valor, o email onde é indicado tal IBAN, a fls.6 e a informação por email da A..., que nega ser titular dessa conta bancária, a fls.33), ditam as regras da experiência que os autores de tais factos usam contas de destino, a que têm acesso e disponibilidade (dos próprios ou terceiros comparticipantes), visando o seu enriquecimento, ou contas de bancários de terceiros, que cedem as suas contas bancárias para receber tais valores, mediante contrapartida ou não, prestando assim o seu auxílio à prática de tal crimes e com vista a ocultar e dissipar tais quantias. Auxílio esse que, no presente caso, atento o elevado valor envolvido, se acredita que foi consciente da proveniência ilícita deste depósito.

9. Efetivamente, se for o caso de se estar perante terceiro de boa fé, os mesmos sempre poderão, oportunamente, apresentar a sua versão dos factos e exercer os seus direitos como tal, sem que tal privação de disponibilidade seja definitiva.

10.Ademais, o caso de terem decorridos mais de 8 meses, desde o conhecimento dos factos, também não poderá ser fundamento para aumentar essa distância temporal (aumentando o risco de que tal montante seja dissipado), nem será o suficiente para afirmar a inexistência de fundadas razões para crer que os saldos bancários ali existentes, nesta data, estejam relacionados com a prática deste crime, até porque, tratando-se de bem fungível (dinheiro), os valores depositados anteriormente ou posteriormente nessa conta bancária, podem assumir a natureza de vantagem ilícita, enquanto sucedâneos da mesma, suscetíveis de apreensão e de declaração de perda quer das vantagens diretas ou indiretas, quer do valor correspondente, nos termos do disposto no artigo 110.º, n.º4 e 111.º, n.º3 do Código Penal.

11.Destarte, existindo nos autos indícios de que, o(os) agente(s) determinaram a transferência do montante global de €49.175,12 (quarenta e nove mil cento e sentença e cinco euros e doze cêntimos) para a conta bancária com o n.º ...13, e ter-se-á(ão) astuciosamente apropriado da mencionada quantia, é ainda claro e inegável o interesse da apreensão requerida, mesmo que parcial e na parte que agora for possível, destinada a acautelar o cumprimento de certos efeitos de direito substantivo que estão associados à prática do ilícito penal, nomeadamente, garantir a (eventual) execução ou perda desses valores a favor do Estado.

12.Face ao exposto, entende o Ministério Público que mal andou tribunal a quo ao entender que os artigos 178.º, n.º1 e 181.º, n.º1 do Código de Processo Penal demandam o conhecimento da titularidade da conta bancária onde se encontram depositados os saldos a apreender e que apenas se poderá apreender o concreto valor apropriado, e não outro seu sucedâneo ou o valor, mesmo que parcial, do mesmo.


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Nestes termos e, nos mais de direito aplicáveis que Vs. Exas. doutamente suprirão, dando provimento ao presente recurso de apelação, deverá a douta decisão ser revogada e substituída por uma outra que ordene a apreensão do saldo existente na conta bancária com o ...13, domiciliada no Banco 1... UK PLC, até ao limite de €49.175,12(quarenta e nove mil euros cento e setenta e cinco euros e doze cêntimos),ao abrigo do disposto nos artigos 178.º, n.º1 e 181.º, n.º1 do Código de Processo Penal, fazendo-se assim INTEIRA E SÃ JUSTIÇA.

(…)

          Inexiste resposta.

           Nesta instância, o Exmº Procurador-Geral Adjunto aderindo ao recurso do Ministério Público emitiu parecer no sentido da respectiva procedência.


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         Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

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Transcreve-se a promoção do Ministério Público para apreensão de conta bancária, sobre a qual recaiu o despacho ora recorrido.

 (…)

Resulta do auto de notícia que a denunciante sociedade denunciante mantinha uma relação comercial com a empresa Italiana “A...”, tendo encomendado material no valor de €49.175,12.

Apresentada a respetiva fatura a pagamento, em 13-03-2023, no dia 15-03-2023, a denunciante recebeu um email do endereço eletrónico ... , como sendo da sociedade A..., em que esta solicitava que cancelasse o pagamento e que efetuasse o mesmo para o IBAN: ...13.

Fazendo fé que tal email era legitimo, por pertencer à sociedade A... e, assim, da veracidade dos dados bancários fornecidos, a sociedade denunciante, em 16-03-2023, deu ordem de transferência da quantia de €49.175,12, para a conta bancária com o IBAN n.º ...13.

Contudo, tal conta não pertencia à A..., mas a terceiro, ora desconhecido, como a sociedade denunciante veio a apurar, o qual terá acedido ao sistema informático/servidor da denunciante ou da sociedade A..., intercetando as ditas comunicações trocadas entre estas sociedade e, dessa forma, fazendo-se passar pela sociedade A..., obtendo o pagamento de tal quantia, que não lhe era devida.


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Sem prejuízo de melhor entendimento, os factos denunciados mostram-se suscetíveis de consubstanciar a prática de um crime de um crime de burla qualificada, p.p. artigo 217.º, n.º1 e 218.º, n.º2, alínea a) do CP, em concurso com um crime de acesso ilegítimo, p.p. pelo artigo 6.º, n.º1 e com um crime de interceção ilegítima, p.p. pelo artigo 7.º, ambos da Lei do Cibercrime, aprovada pela Lei 109/2009, de 15/09.

(…)

Apreensão de saldos bancários:

Promovo que seja ordenada a apreensão imediata e provisória do saldo bancário

existente na conta bancária ...13, domiciliada no Banco 1... UK PLC, até ao limite de €49.175,12(quarenta e nove mil euros cento e setenta e cinco euros e doze cêntimos), nos termos conjugados do artigo 178.º, n.º1, 181.º e 268.º, n.º1, alínea c) do CPP.

A qual se mostra necessária e essencial, não só, para servir de meio de prova, comprovando o seu recebimento, mas ainda para salvaguardar os direitos e a possibilidade do lesado vir a ser ressarcido, bem como uma futura declaração de perda de bens, anulando, dessa forma, o beneficio ilegítimo obtido com a prática de tal crime.

Prescreve o artigo 178.º, n.º1 do CPP, que “… 1 - São apreendidos os instrumentos,

produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova”.

Por outro lado, prescreve o artigo 181.º do CPP, que “…1 - O juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objectos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome.”

Face ao supra exposto, resulta que, mesmo não se tratando de uma apreensão física

(de numerário, por exemplo), à luz da legislação portuguesa a apreensão de saldos bancários (valores intangíveis), em fase de inquérito, é da competência do juiz de instrução, como ainda previsto no artigo 268.º, n.º1, alínea c) do CPP.

Assim, promove-se a apreensão do saldo bancário até ao limite de €49.175,12(quarenta e nove mil euros cento e setenta e cinco euros e doze cêntimos), depositado na conta bancária ...13, domiciliada no Banco 1... UK PLC, porquanto tal quantia é produto e vantagem de tal crime (mesmo que, eventualmente, depositada em conta de terceiro), cuja apreensão é relevante quer para efeitos de prova, quer para efeitos cautelares, com vista a futura declaração de perda de vantagem ou ressarcimento da sociedade denunciante.


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Para efeitos do previsto no ponto III. que antecede, remetam-se os autos ao M. Juiz

de instrução junto do Juízo de instrução de Aveiro, por não caber nos atos jurisdicionais de inquérito da competência do juízo de competência genérica de Vagos.

Caso ordenada, atendendo em que, em virtude do “Brexit” e da sua vigência atual,

não se mostra aplicável o disposto na Directiva 2014/41/EU, que implementou a Decisão Europeia de Investigação no seio dos Países-Membros da União Europeia, importará lançar mão dos meios clássicos de cooperação judiciária internacional, emitindo assim pedido de Auxílio Judiciário Mútuo, através de Carta Rogatória, ao abrigo da Convenção Europeia sobre Auxílio Judiciário Mútuo e seus dois Protocolos Adicionais e nos termos do artigo 145º, n.º1 e 2, alíneas b) e c) da Lei 144/99 de 31 de Agosto, complementado com o disposto no ACORDO DE COMÉRCIO E COOPERAÇÃO ENTRE A UNIÃO EUROPEIA E A COMUNIDADE EUROPEIA DA ENERGIA ATÓMICA, POR UM LADO, E O REINO UNIDO DA GRÃ-BRETANHA E DA IRLANDA DO NORTE, mais concretamente do Anexo LAW-8, deste acordo, que estipulou, quanto aos pedidos de cooperação judiciária internacional, em matéria penal, o recurso a especifico formulário.

Perante a acrescida dificuldade atinente ao recurso a entidades estrangeiras e a morosidade daí decorrente, mais promovo que, a fim de evitar e elaboração de dois pedidos de cooperação judiciária internacional, distintos quanto aos atos da competência do Ministério Público e atos da competência do M. Juiz de instrução, seja preenchido e remetido um único formulário, subscrito por ambas as autoridades judiciárias.

(…)

Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo da matéria de conhecimento oficioso.

          No caso vertente e vistas as conclusões do recurso, a única questão submetida à apreciação deste tribunal é a de saber se estão verificados os pressupostos para a apreensão de conta bancária nos termos dos artºs 178º nº1 e 181º nº1 do CPP.


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II - FUNDAMENTAÇÃO:

Os pressupostos gerais das apreensões encontram-se estabelecidos no artº 178º do CPP, que no seu nº1 dispõe «São apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova..», sendo que nos termos do nº3 do mesmo preceito, «. As apreensões são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária

Relativamente às apreensões bancárias dispõe o artº 181º nº1 do CPP, «O juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objectos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome. »

Sobre as finalidades da apreensão, existe consenso entre a decisão recorrida e o MP recorrente, no sentido de que como escreve Germano Marques da Silva “A apreensão não é apenas um meio de obtenção e conservação de provas, mas também de segurança de bens, embora na grande maioria dos casos esses objectos sirvam também como meios de prova.”[1],

Do mesmo modo, e sobre a natureza da apreensão processual penal, escreve Conde Correia, “ é, pois, apenas uma mera medida conservatória de certos bens, seja porque eles têm interesse probatório, seja porque eles devem, no final, ser declarados perdidos. O que está em causa é só a imposição de um vínculo de indisponibilidade sobre uma coisa, com carácter provisório, com vista à sua futura utilização processual.”[2]

E relativamente à apreensão em estabelecimento bancário, escreve o mesmo autor, como também citado pelo recorrente, “ Tal como em todos os restantes casos (supra § 4 da anotação ao art. 178.º), a apreensão em estabelecimento bancário tanto serve finalidades exclusivamente probatórias como finalidades exclusivamente conservatórias. Como refere o ac. TC 294/08 «a apreensão é também um meio de segurança dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objetos à ordem do processo até à decisão final.”[3]

O despacho recorrido indeferiu a apreensão promovida na conta bancária, com fundamento em que os factos teriam ocorrido “há cerca de 8 meses sem que de tal adviesse qualquer diligência com resultado probatório relevante, que não inquirição da denunciante, não foram ainda sequer constituídos arguidos/aventados suspeitos, correndo o presente inquérito ainda sem arguidos constituídos, sendo que quanto a conta indicada no oficio que antecede se desconhece a totalidade dos seus elementos, mormente identificação dos elementos bancários associados e respetivos titulares;”

E ainda que, como tal, não se pode concluir que os saldos existentes na conta estejam relacionados com um crime ou que relevem para a descoberta da verdade.

Ora, à data do despacho recorrido, face à denúncia, declarações do denunciante e documentos juntos, encontram-se indiciados os seguintes factos alegados pelo MP;

que a denunciante sociedade denunciante mantinha uma relação comercial com a empresa Italiana “A...”, tendo encomendado material no valor de €49.175,12.

Apresentada a respetiva fatura a pagamento, em 13-03-2023, no dia 15-03-2023, a denunciante recebeu um email do endereço eletrónico ... , como sendo da sociedade A..., em que esta solicitava que cancelasse o pagamento e que efetuasse o mesmo para o IBAN: ...13.

Fazendo fé que tal email era legitimo, por pertencer à sociedade A... e, assim, da veracidade dos dados bancários fornecidos, a sociedade denunciante, em 16-03-2023, deu ordem de transferência da quantia de €49.175,12, para a conta bancária com o IBAN n.º ...13.

Contudo, tal conta não pertencia à A..., mas a terceiro, ora desconhecido, como a sociedade denunciante veio a apurar, o qual terá acedido ao sistema informático/servidor da denunciante ou da sociedade A..., intercetando as ditas comunicações trocadas entre estas sociedade e, dessa forma, fazendo-se passar pela sociedade A..., obtendo o pagamento de tal quantia, que não lhe era devida.”

Esta factualidade é susceptível de preencher um crime de burla qualificada, p.p. pelo artº 217º nº1 e 218º nº2 al.a) do CP, em concurso com um crime de acesso ilegítimo. p.p. pelo artº 6º nº1 e com crime de intervenção ilegítima p,p, pelo artº 7º, ambos da Lei Cibercrime, aprovada pela Lei 109/2009, ou  um crime de burla informática p.p. pelo artº 221º nº1 e nº5.

Face à natureza da apreensão e finalidades da mesma, afigura-se com o devido respeito, que o regime previsto no artº 178º do CPP, não exige a prévia constituição de arguido, não estando prevista a aplicabilidade do artº 192º nº2 do CPP relativo às medidas de garantia patrimonial, como bem alega o recorrente.

Na verdade, existindo como no caso dos autos, indícios da prática do crime, estando a investigação ainda a decorrer, ainda sem identificação da pessoa civil suspeita, mas existindo indícios de que a vantagem do crime indiciado, se encontra na conta identificada, as razões quer probatórias quer de conservação do património indicam que a apreensão deve ser realizada, apesar de ainda não estar constituído arguido, ou sequer identificada a pessoa suspeita, que no entanto neste momento se indicia ser o titular da conta.

Essa possibilidade, relativa aos produtos, instrumentos ou vantagens do crime é também revelada, pela norma do artº 109º nº5 do CP, que prevê a perda dos produtos e vantagens do crime, “(…) ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto .

Aliás, não é difícil projectar situações de evidência de prática de crime, em que é precisamente a partir da apreensão dos instrumentos do crime ou das suas vantagens, que a investigação é conduzida à identificação do suspeito, que só depois será constituído arguido.

No sentido de que “A apreensão não exige a prévia constituição de Arguido” pronuncia-se Hélio Rigor Rodrigues, Revista Julgar online Dezembro 2015,pág, 28[4]

Também Conde Correia, escreve sobre os pressupostos da apreensão em estabelecimento bancário, que “.Do ponto de vista subjectivo, a coisa tanto pode pertencer ao arguido como a um mero terceiro, A qualidade processual do seu titular é, pois, irrelevante. O que importa é o interesse probatório da coisa e/ou a necessidade de garantir a execução do seu posterior confisco (artº 111º do CP) que pode existir quer a coisa seja do arguido, quer de terceiro completamente alheio à questão penal. A simples qualidade de suspeito é por outro lado, desde que a coisa tenha aquele interesse ou exista aquela necessidade, suficiente para o efeito: não se exige assim, a prévia constituição do visado como arguido.”[5] (negrito nosso) Isto mesmo resulta do citado artº 182º do CPP.

Assim, o ainda desconhecimento da identidade civil do titular da conta bancária para onde foi transferido o dinheiro, mediante a prática do crime indiciado, não poderá ser obstáculo à efectivação da apreensão do montante transferido, sob pena de se frustrar a obtenção da prova do crime, e a conservação do dinheiro integrador da vantagem ilícita obtida.

É certo que a decisão recorrida, aceitando embora a indiciação da transferência do dinheiro para conta identificada nos autos, sustenta o indeferimento no facto de terem decorrido já cerca de 8 meses, o que perante o desconhecimento dos movimentos bancários, inexistem “ fundadas razões para crer que eles [os saldos bancários] ai existentes nesta data estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.

Porém, e com o devido respeito, não subscrevemos tal fundamento.

Como alega o recorrente, o dinheiro é uma coisa fungível,cf artº 207º do CC e como tal passível de confusão no património, mas também substituível, por outra da mesmo género e quantidade. Como tal a existência de dinheiro em montante igual aquele que foi transferido pela prática de um crime, continua a ser indiciariamente uma vantagem desse crime, face ao disposto nos arts 110º nº4 e 11º nº3 do CP, e revela interesse para a descoberta da verdade, e para prova, apesar da relevância nesta vertente do próprio comprovativo da efectivação da transferência.

Pelo exposto, o despacho recorrido não pode subsistir antes devendo ser substituído por outro que defira à apreensão promovida pelo MP.


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III – DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em, no provimento do recurso interposto pelo Ministério Público, revogar a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que determine a apreensão do saldo bancário nos termos promovidos.

Sem tributação

Elaborado e revisto pela relatora

Porto, 7/2/2024
Lígia Figueiredo
Castela Rio
Eduarda Lobo
___________________
[1] Curso de Processo Penal”, Vol. II, 3ª Edição, Verbo, pág. 217.
[2] Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, anotação ao artº 178º do CPP Tomo II, pág.623 Almedina 2019.
[3] Ob. Cit. Pág. 670.
[4] Revista Julgar online Dezembro 2015, pág, 28, A constituição de arguido enquanto formalidade
(in)exigível para o decretamento do arresto preventivo: de uma norma enganadoramente certa à certeza do dever ser – Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-10-2015, proferido no processo 324/14.0TELSB-I.L1-9
[5] Ob.cit pág.671.