Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1027/22.7T8AGD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: CASO JULGADO
CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: RP202403041027/22.7T8AGD-A.P1
Data do Acordão: 03/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No instituto de caso julgado temos a distinguir o caso julgado formal do caso julgado material, pressupondo este aquele.
II - A sentença que recai sobre o mérito da causa, sobre a relação jurídica substancial, conhecendo do pedido, produz caso julgado material (v. art. 619º), impondo-se, para além de dentro do processo, fora do mesmo, e as demais decisões, sejam elas proferidas na ação principal sejam outras, designadamente em incidentes, produzem caso julgado formal, com força obrigatória apenas dentro do processo (cfr. art. 620º) em que foram proferidas.
III - Proferido, em incidente de oposição à penhora, apenso a ação executiva, despacho liminar a admitir o incidente, não é admissível novo despacho liminar, não podendo a questão da admissibilidade liminar do incidente ser reapreciada, ser objeto de uma segunda decisão liminar.
IV - A segunda decisão proferida, inadmissível e incompatível com a primeira, tem de ser afastada, sem o que se originaria dentro do processo duas decisões liminares contraditórias, impondo-se a ulterior tramitação do incidente (cfr. nº 2 e segs do art. 785º, do CPC e v., ainda arts 293º a 295º e art. 732º, nº1 e 3, aplicáveis ex vi, nº2, do art. 785º, todos daquele diploma legal) e que, na consideração da oposição já oferecida pela exequente, seja proferida decisão, de apreciação da procedência ou não do deduzido incidente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1027/22.7T8AGD-A.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)

Tribunal de origem do recurso: Juízo de Execução de Águeda


Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto:  Des. Manuel Fernandes
2º Adjunto: Des. Fernanda Almeida

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):

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I. RELATÓRIO

Recorrentes: os executados, AA e mulher BB

Recorrido: a exequente, A..., SARL

AA e mulher BB, executados nos autos em que é exequente A..., SARL, deduziram incidente de oposição à penhora, ao abrigo do disposto nos artigos 784º e segs, do Código de Processo Civil, pedindo:

i) - se julguem as exceções, que deduziram, procedentes por provadas, recusando-se a execução e ordenando-se a sua extinção;

ii) - a assim se não entender, se ordene a, imediata, suspensão da execução e das penhoras em curso.   


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Em 5/6/2023, foi proferido despacho com o seguinte teor:

Admito liminarmente o incidente de oposição à penhora.

Notifique o exequente para, querendo, em 10 dias, deduzir contestação à mesma – artigo 785/2 e 293/2 do Código de Processo Civil.

Notifique e dê conhecimento à Sr.ª Agente de Execução”(negrito nosso).


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Notificada veio a exequente, em 21/6/2023, apresentar “contestação”, requerendo seja proferida decisão a “julgar improcedente, por não provada, a Oposição à Penhora e, consequentemente” e a “ordenar o prosseguimento da execução até efetivo e integral pagamento da quantia exequenda”.

Em 9/10/2023, foi proferido despacho com o seguinte teor:

Os executados AA, e BB deduziram o presente incidente de oposição à penhora alegando para o efeito:

- a exceção dilatória da litispendência;

- da legitimidade;

- do beneficio da excussão prévia;

- da violação do art.º 752.º do CPC

- da boa fé


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Dispõe o artigo 784.º do Código de Processo Civil que “Sendo penhorados bens pertencentes ao executado, pode este opor-se à penhora com algum dos seguintes fundamentos:

a-) Inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente aprendidos ou da extensão com que ela foi realizada;

b-) Imediata penhora de bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda;

c-) Incidência sobre bens que, não respondendo, nos termos do direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido atingidos pela diligência.

No relatório do DL329-A/95 encontra-se vertida a ratio deste preceito, nos seguintes termos: “Institui-se, por outro lado – na perspetiva de tutela dos interesses legítimos do sujeito passivo da execução -, uma forma específica de oposição incidental do executado à penhora ilegalmente efetuada (…) Assim, se forem penhorados bens pertencentes ao próprio executado que não deviam ter sido abrangidos pela diligência – quer por inadmissibilidade quer por excesso da penhora, quer por esta ter incidido sobre bens que, nos termos do direito substantivo não respondiam pela dívida exequenda – pode este opor-se ao ato e requerer o seu levantamento, suscitando quaisquer questões que não hajam sido expressamente apreciadas e decididas no despacho que ordenou a penhora.”

Da exceção dilatória da litispendência e da legitimidade:

Ora, no caso dos autos, a questão suscitada pelos executados, relativa à exceção dilatória da litispendência e da legitimidade, não integra nenhuma das alíneas do artigo 784.º do Código de Processo Civil, nem se prende com o decretamento ou não da penhora propriamente dita, no sentido de atingir ou não aqueles concretos bens, com que extensão os atinge ou devia ou não atingir.

Com efeito, pretendendo os executados invocar as exceções da litispendência e da legitimidade, teriam através dos meios próprios da oposição à execução.


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Quanto ao do benefício da excussão prévia e da violação do art.º 752.º do CPC

Prescreve o artigo 752.º do CPC que “1- Executando-se dívida com garantia real que onere bens pertencentes ao devedor, a penhora inicia-se pelos bens sobre que incida a garantia e só pode recair noutros quando se reconheça a insuficiência deles para conseguir o fim da execução”.

Ora, na presente execução, pesem embora a dívida original seja garantida por hipoteca, a execução da hipoteca não se encontra em curso no âmbito da presente ação.

Ademais, os opoentes/fiadores renunciaram ao benefício da excussão prévia, pelo que, a penhora dos seus bens, não padece de qualquer violação da lei.


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Decisão

Em face de todo o exposto, a oposição à penhora não tem cabimento no disposto no artigo 784.º do Código de Processo Civil, quanto às duas primeiras questões suscitadas e é manifestamente improcedente, quanto ao terceiro, quarto e quinto pontos alegados.

Assim, indefiro liminarmente a oposição à penhora por falta de fundamento legal para o efeito e por manifesta improcedência ao abrigo do disposto no artigo 732.º1, alíneas b-) e c-) do Código de Processo Civil, aplicável "ex vi" artigo 785.º do mesmo diploma legal.


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Custas do incidente a cargo dos opoentes” (negrito nosso).

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Notificados os executados do referido despacho vieram os mesmos dele apresentar recurso de apelação pretendendo a revogação da referida decisão e a sua substituição por outra que:

“A/ Ordene o prosseguimento dos autos, nos termos do disposto no art.º 295º do CPC, aplicável ex vi nº 2 do art.º 785º do mesmo código, pela verificada violação de caso julgado, ao indeferir-se liminarmente o incidente de oposição à penhora anteriormente admitido;

Ou, quando assim não se entenda,

B/ Julgue verificada a excepção dilatória da ilegitimidade dos executados, nos termos do disposto no nº 2 do art.º 576º, da al. e) do art.º 577º e do art.º 578º, por violação pela exequente do disposto nos art.ºs 53º e 54º do CPC, absolvendo os aqui recorrentes da instância;

Ou, quando assim não se entenda,

C/ Julgue verificada a excepção da litispendência, nos termos do disposto no nº 2 do art.º 576º, da al. i) do art.º 577º e do art.º 578º, absolvendo os aqui recorrentes da instância;

Ou, quando assim não se entenda,

D/ Julgue preenchida a hipótese prevista na al. b) do nº 1 do art.º 784º do CPC, ordenando o imediato levantamento da penhora sobre 1/3 do vencimento auferido pela aqui recorrente, BB, constante no Auto de Penhora de 13/03/2023, mais determinando que a exequente não proceda à penhora de quaisquer bens dos aqui recorrentes sem que se encontre devidamente verificada a condição estabelecida no nº 1 do art.º 752º do CPC, concretamente o eventual reconhecimento da insuficiência do bem onerado com garantia real dado à execução na acção nº 1495/21.0T8AGD”,

apresentando as seguintes

Conclusões:

“I. A decisão que indeferiu liminarmente a oposição à penhora deduzida pelos aqui apelantes é ilegal e injusta, na medida em que faz uma incorrecta interpretação e aplicação do Direito.

Violação de caso julgado – indeferimento liminar da oposição à penhora

II. No dia 05/06/2023 foi proferido douto despacho com a Ref.ª 127793607, no apenso que corre termos no Tribunal Judicial de Aveiro – Juízo de Execução de Águeda sob o nº 1027/22.7T8AGD-A, admitindo liminarmente a oposição à penhora deduzida pelos aqui recorrentes, despacho esse que transitou em julgado, sendo aplicável ao processamento do incidente o disposto no art.º 785º, cujo nº 2 remete para os nºs 1 e 3 do art.º 732º e para os art.ºs 293º a 295º, todos do CPC.

III. Os recorrentes foram surpreendidos com a sentença objecto do presente recurso, a qual veio indeferir liminarmente a mesma oposição à penhora anteriormente admitida, o que se consubstancia numa manifesta contradição de caso julgado anterior, em violação do disposto nos artºs 620º, 625º, 785º, nº 2, 732º, nº 1 e 295º, todos do CPC, excepção dilatória prevista na al. f) do art.º 577º do mesmo Código, impondo-se a sua revogação, substituindo-se tal decisão de indeferimento liminar por outra que determine o prosseguimento dos autos, nos termos do art.º 295º do CPC.

Excepções dilatórias da legitimidade e da litispendência:

IV. O Tribunal a quo pronunciou-se sobre as excepções dilatórias da litispendência e da legitimidade, oportunamente deduzidas pelos aqui recorrentes em sede de oposição à penhora, julgando que as mesmas não são atendíveis por não integrarem nenhuma das alíneas do art.º 784.º do CPC, entendendo que apenas poderiam ser deduzidas em sede de oposição à execução.

V. No plano factual, correm termos duas acções executivas distintas no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Execução de Águeda, ambas instauradas pela exequente com fundamento nos mesmos contratos de mútuo e respectivos títulos executivos, onde a exequente reclama as mesmas dívidas originais, uma sob o nº 1495/21.0T8AGD, onde é executada a sociedade mutuária, B..., LDA (B...), e outra sob o nº 1027/22.7T8AGD, onde são executados apenas os fiadores daquela sociedade (onde se integram os aqui recorrentes).

V. Ao instaurar aquela acção executiva nº 1495/21.0T8AGD, a exequente pretendeu fazer se valer da garantia hipotecária que foi constituída a seu favor pela B..., sobre um bem imóvel que é propriedade desta sociedade mutuária e que se encontra na sua posse, não tendo a exequente alegado, sequer, o eventual reconhecimento da insuficiência daquele bem imóvel para garantir as responsabilidades reclamadas naquela acção executiva para vir, mais tarde, a instaurar a execução nº 1027/22.7T8AGD.

VI. O nº 1 do art.º 53º do CPC estabelece que “a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tinha a posição de devedor”, e o art.º 54º do CPC estabelece os possíveis desvios à regra geral da legitimidade das partes na acção executiva.

VII. Da conjugação daquelas disposições legais, resulta que o exequente, quando pretenda fazer-se valer da garantia real constituída a seu favor, está obrigado a instaurar a execução contra o proprietário do bem dado de garantia, podendo (ou não) demandar, desde logo e na mesma acção, os demais responsáveis, pelo que à exequente não era legítimo instaurar uma acção executiva autónoma contra os aqui recorrentes, quando se encontra em curso uma acção onde deu aquela hipoteca à execução, pois não se encontra verificada (nem a exequente alega) nenhuma das situações de desvio à legitimidade passiva estabelecidas no art.º 54º do CPC, pelo que a acção executiva nº 1027/22.7T8AGD não se encontra conforme ao título no que respeita aos executados e aqui recorrentes, precisamente porque a B... não foi demandada nesta acção.

VIII. Esta ilegitimidade dos aqui recorrentes constitui uma excepção dilatória (art.º 577º, al. e) do CPC), na medida em que corresponde à ausência de um pressuposto processual essencial, não é susceptível de sanação ou suprimento, obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e determina a absolvição da instância, sendo de conhecimento oficioso (art.º 578º do CPC).

IX. A excepção da ilegitimidade é um meio de defesa de que o Tribunal pode e deve conhecer oficiosamente (art.º 608.º, nº 2 do CPC), sendo lícito ao demandado deduzi-la a todo o tempo, a coberto da última parte do nº 2 do art.º 573.º do CPC, não constituindo meio de defesa exclusivo do incidente de oposição à execução, pelo que, a decisão aqui em crise, na parte em que faz referência à dita excepção, viola as disposições conjugadas do nº 2 do art.º 576º, da alínea e) do art.º 577º e do art.º 578º, todos do CPC, devendo ser revogada nessa parte, substituindo-a por outra que julgue verificada a excepção da ilegitimidade dos executados e, em consequência, absolvendo os aqui recorrentes da instância.

X. Por outro lado, estamos perante duas acções instauradas pela exequente que são idênticas quanto ao pedido e à causa de pedir, apenas não se verificando a integral identidade quanto aos sujeitos – embora haja coincidência na sua qualidade jurídica – porque a exequente, não obstante pretender fazer-se valer daquela garantia hipotecária constituída a seu favor, optou por instaurar uma outra acção executiva apenas contra os fiadores, os quais garantem as mesmas dívidas originais, fazendo-o, como se viu, em manifesta violação dos já mencionados nº 1 do art.º 53º e art.º 54º, ambos do CPC.

XI. A excepção da litispendência é, igualmente, um meio de defesa de que o Tribunal pode e deve conhecer oficiosamente (art.º 608.º, nº 2 do CPC), não dependendo da sua dedução pelas partes, pelo que a decisão aqui em crise, na parte em que faz referência à dita excepção, viola as disposições conjugadas do nº 2 do art.º 576º, da alínea f) do art.º 577º e do art.º 578º, todos do CPC, devendo ser revogada nessa parte, substituindo-a por outra que julgue verificada a excepção da litispendência e, em consequência, absolvendo os aqui recorrentes da instância.

Violação do disposto no art.º 752.º do CPC:

XII. Na decisão aqui em crise, o Tribunal a quo entendeu não ser aplicável o disposto no nº 1 do art.º 752º do CPC, fazendo constar que, “pese embora a dívida original seja garantida por hipoteca, a execução da hipoteca não se encontra em curso no âmbito da presente ação.”

XIII. Ao abrigo do disposto no nº 1 do art.º 752º do CPC, os bens dos aqui recorrentes só responderão pelo valor que, eventualmente, venha a apurar-se estar ainda em dívida, depois de eventualmente reconhecida a insuficiência do imóvel da B..., onerado com hipotecas constituídas a favor da exequente, para garantia específica do pagamento das obrigações reclamadas nas acções executivas nº 1495/21.0T8AGD e nº 1027/22.7T8AGD, circunstância que funciona como verdadeira condição legalmente imposta para que a exequente possa avançar com a penhora dos bens dos aqui recorrentes.

XIX. A obrigação do fiador não perde a sua qualidade acessória, nos termos do disposto no nº 2 do art.º 627º do Código Civil, e mesmo considerando que essa característica acessória não permitirá aos fiadores beneficiar da excussão prévia dos bens da devedora principal, manter-se-á quanto aos limites do exercício da garantia pela credora, que deve respeito ao princípio da boa-fé, traduzida na “normalidade comportamental” expectável, que no processo executivo apontaria para que a exequente aguardasse pelo eventual reconhecimento da insuficiência do bem onerado com garantias reais para a satisfação integral dos seus créditos e, só depois, recorresse aos bens dos aqui recorrentes e dos demais fiadores para alcançar o fim da execução.

XX. É que, apesar de os recorrentes serem principais pagadores, tendo renunciado ao benefício da excussão prévia, na prática o carácter acessório da sua responsabilidade encontra-se salvaguardado pelo disposto no nº 1 do art.º 752º do CPC, ao estabelecer a ordem da penhora de bens para a satisfação do crédito da exequente, sendo que os bens dos recorrentes apenas responderão pela dívida exequenda se (e quando) vier a concluir-se pela insuficiência do bem imóvel onerado com garantia real específica relativa às dívidas exequendas reclamadas nas duas acções executivas supra identificadas.

XXI. Deste modo, é forçoso concluir que se encontra preenchida a hipótese da al. b) do nº 1 do art.º 784º do CPC, o que também fundamenta a oposição à penhora deduzida pelos recorrentes, norma que o Tribunal a quo entendeu não ser aplicável ao caso em apreço, simplesmente porque a execução da hipoteca não se encontra em curso na acção executiva nº 1027/22.7T8AGD, quando isto apenas ocorre porque a exequente optou por instaurar duas execuções distintas para cobrança das mesmas dívidas originais, e isto mesmo depois do Tribunal a quo reconhecer que tais dívidas originais se encontram garantidas por garantias reais constituídas sobre um bem da sociedade devedora originária.

XXII. Com a decisão proferida, o Tribunal a quo violou a norma do nº 1 do art.º 752º do CPC, esvaziando-o de qualquer efeito e sentido práticos, ao entender que aquele dispositivo só seria aplicável se a execução da garantia real ocorresse no mesmo processo executivo, condição que nem sequer se pode extrair da letra daquela norma, pois o que se pretende com tal dispositivo é, isso sim, nos casos em que o exequente pretenda fazer-se valer da garantia real constituída a seu favor, e independentemente da acção em que se execute essa garantia real, a penhora sobre outros bens, sejam estes do devedor ou de terceiros, só poderá verificar-se depois de reconhecida a insuficiência daqueles bens onerados com garantia real, o que manifestamente ainda não ocorreu no caso em apreço.

XXIII. Ao proferir a sentença aqui em crise, o Tribunal a quo violou as disposições conjugadas do nº 1 do art.º 752º e da al. b) do nº 1 do art.º 784º do CPC, permitindo desse modo que a exequente proceda à penhora prematura de bens dos aqui recorrentes, sem que previamente se verifique aquela condição legalmente estabelecida, de reconhecimento da insuficiência dos bens onerados com garantia real e pertencentes à sociedade devedora para obter o fim da execução, devendo por isso revogar-se a decisão também nesta parte, substituindo-a por outra que que determine o imediato levantamento da penhora sobre 1/3 do vencimento auferido pela aqui recorrente, BB, constante no Auto de Penhora de 13/03/2023”.

Respondeu a exequente pugnando pela improcedência de todas as conclusões e pela improcedência do recurso, formulando as seguintes

CONCLUSÕES:

“A) As presentes contra-alegações vêm no seguimento do recurso interposto pelos Recorrentes, da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, a fls., datada de 10/10/2023, que “indeferiu liminarmente a oposição à penhora por falta de fundamento legal para o efeito e por manifesta improcedência ao abrigo do disposto no artigo 732.º1, alíneas b-) e c-) do Código de Processo Civil, aplicável "ex vi" artigo 785.º do mesmo diploma legal”.

B) Com o devido respeito, não poderá a Recorrida concordar com o alegado pelos Recorrentes, conforme infra melhor se discriminará.

C) Vêm, os Recorrentes, invocar que a sentença objeto do presente recurso, na parte em que indeferiu liminarmente a oposição à penhora, viola o disposto nos artigos 620.º, 625.º, 785.º, n.º 2, 732.º, nº 1 e 295.º, todos do CPC, o que se consubstancia na exceção de caso julgado.

D) A sentença proferida pelo Tribunal a quo, andou bem, pois os fundamentos alegados pelos aqui Recorrentes, não se enquadram nos fundamentos previstos para oposição à penhora, previstos nos termos do artigo 784º do CPC, mas sim nos fundamentos de oposição à execução.

E) Relativamente, à alegada violação do caso julgado do despacho liminar que admitiu a oposição à penhora, é unânime e pacifico na doutrina e jurisprudência, que em sede de despacho saneador ou mesmo de sentença final, o indeferimento da oposição não viola o despacho liminar proferido.

F) O Tribunal a quo, apenas admitiu “liminarmente” a oposição para efeitos do andamento do processo com vista notificação da aqui Recorrida, relegando para momento posterior – após a apresentação de contestação – a apreciação da matéria vertida na oposição à penhora.

G) Deste modo, no despacho liminar, não houve uma efetiva apreciação da questão substantiva, pelo que, não houve qualquer violação do caso julgado.

H) Em segundo lugar, quanto à exceção de legitimidade e litispendência, dispõe o artigo 580.º, n. º1, do CPC o seguinte “as exceções de litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência”.

I) A finalidade desta exceção é evitar que o Tribunal, em casos em que exista uma identidade de sujeitos, de causa de pedir e do pedido, seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior.

J) Ora, in casu, na ação executiva que corre nos autos principais, não há identidade de sujeitos, na medida em que, apenas foram executados os fiadores, não tendo estes sido demandados no processo 1945/21.0T8AGD.

K) Termos em que, não ser verificando a existência dos requisitos cumulativos que pressupõem a litispendência, a mesma deverá ser julgada totalmente improcedente.

L) Por outro lado, quanto à questão da legitimidade, nos termos do artigo 53.º, n. º1, do CPC, que respeita às regras especiais da legitimidade nas ações executivas, é referido o seguinte: “a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figura como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição do devedor”.

M) No caso em concreto, estamos perante obrigações solidários, e a este respeito preceitua o artigo 512.º, n. º1, do Código Civil, o seguinte: “A obrigação é solidária, quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou quando cada um dos credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles”

N) Ora, transpondo a solidariedade para o campo da legitimidade processual, sempre se dirá que, estamos perante uma situação de litisconsórcio voluntário passiva, previsto no artigo 32.º do CPC.

O) Dispõe o artigo 32.ºdo CPC o seguinte: N. º1: “Se a relação material controvertida respeitar a várias pessoas, a ação respetiva pode ser proposta por todos ou contra todos os interessados, mas, se a lei ou o negócio for omisso, a ação pode também ser proposta por um só ou contra um só dos interessados; N. º2: Se a lei ou o negócio permitir que o direito seja exercido por um só ou que a obrigação comum seja exigida de um só dos interessados, basta que um deles intervenha para assegurar a legitimidade.

P) Ora, atentas as características da fiança e a renúncia ao benefício da excussão prévia, o mesmo é dizer que a Exequente tinha o poder de decidir se queria demandar conjuntamente os devedores – mutuário e fiadores – ou separadamente.

Q) Tal legitimidade para demandar separadamente os fiadores do mutuário decorre das próprias normas legais subjacentes à fiança.

R) Decorre do artigo 641.º, n. º1, do CC o seguinte: “o credor, ainda que o fiador goze do benefício da excussão, pode demandá-lo só ou juntamente com o devedor (…)”.

S) Concluindo-se, portanto que, não houve qualquer preterição ou violação das normais legais, respeitantes à legitimidade para demandar numa ação executiva – separadamente - os fiadores.

T) Por fim, quanto à questão da aludida violação do disposto no artigo 752.º do CPC, a Recorrida sufraga o entendimento do Tribunal a quo, na medida em que, embora a divida emergente da operação executada seja garantida por garantia real – hipoteca - nesta execução apenas foram demandados os fiadores, correndo a execução sob a forma ordinária.

U) Esta norma, é aplicável aos casos em que é penhorado o imóvel garantido por hipoteca e os demais devedores ou garantes pessoais.

V) No caso em concreto, a execução em que é executada a garantia real, encontra-se em curso sob o processo n.º 1945/21.0T8AGD, na qual apenas é demandada a sociedade devedora e proprietária do imóvel dado de garantia.

W) Nos presentes autos, foram demandados de forma autónoma os fiadores, não existindo qualquer impedimento ao imediato prosseguimento da execução que vise a penhora dos bens patrimoniais dos fiadores.

X) Termos em que, o Tribunal a quo, interpretou de forma correta e aplicou o Direito e as normas aplicáveis, não merecendo qualquer reparo ou censura”.


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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.

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II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.

Assim, as questões a decidir são as seguintes:

  . Se o despacho de indeferimento liminar do incidente de oposição à penhora viola o caso julgado formado por anterior despacho liminar (de admissão do mencionado incidente).

. Na negativa, da verificação das arguidas exceções a apreciar e da violação do disposto no nº1, do art. 752º, do CPC.

. Da responsabilidade tributária.


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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. FACTOS PROVADOS

Os factos provados com relevância para a decisão, vicissitudes processuais, constam já do relatório que antecede.


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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

- Da violação do caso julgado

Insurgem-se os apelantes contra o despacho de indeferimento liminar do incidente de oposição à penhora por violação do caso julgado. Concluem que após ter sido proferido despacho de admissão liminar do incidente de oposição à penhora, transitado em julgado, foram os apelantes surpreendidos com despacho de indeferimento liminar do referido incidente, a consubstanciar contradição com o que havia sido decidido e em violação do disposto nos artºs 620º, 625º, 785º, nº 2, 732º, nº 1 e 295º, todos do CPC, impondo-se, por isso, a revogação e substituição da decisão de indeferimento liminar por outra que determine o prosseguimento dos autos, nos termos do art.º 295º do CPC.
Na verdade, temos que, após ter sido proferido um despacho liminar, de admissão, foi proferido um outro despacho liminar, desta feita, de indeferimento, não estando, pois, em causa a situação que a apelada refere na resposta às alegações de recurso (cfr. als. F a G supra).
Assim, foi o requerimento do incidente objeto de dupla apreciação liminar: uma que, na sua admissão liminar, determinou que prosseguisse para ulterior apreciação, após notificação da parte contrária para responder (como, mesmo, respondeu), e posteriormente, meses após, uma outra, a indeferir liminarmente o incidente, pondo-lhe termo (sem consideração da posição da parte contrária).
Ora, proferida a decisão, fica  esgotado o poder jurisdicional quanto à matéria apreciada (art. 613º, nº1), “o que implica que o juiz já não pode alterar a decisão proferida por seu puro critério”[1], o que conduz, após trânsito em julgado, à formação de caso julgado.
Com efeito, “A decisão torna-se eficaz no processo e mesmo fora dele (…). Durante algum tempo, porém, a sentença pode ser alterada através dos meios previstos nos art. 614º a 617º (art. 613º, nº2) e, além disso, se o valor da causa e da sucumbência da parte o admitir, mediante recurso ordinário (art. 629º, nº1). Passado o momento em que tal tipo de alteração ainda é possível, diz-se que a sentença transita em julgado: esta inalterabilidade (ou imutabilidade) da decisão transitada, decorrente da insusceptibilidade da sua impugnação, constitui o caso julgado (art. 628º)”[2].
E resulta da lei adjetiva que as sentenças que recaem sobre o mérito da causa - sobre a relação jurídica substancial - produzem caso julgado material (art. 619º, do Código de Processo Civil, abreviadamente CPC, diploma a que nos reportamos na falta de outra referência), impondo-se dentro e fora do processo, e as que recaem unicamente sobre a relação processual, sejam elas sentenças proferidas na ação principal sejam outras decisões, designadamente de incidentes da instância, produzem caso julgado formal, com força obrigatória dentro do processo (art. 620º). Assim, o caso julgado material pressupõe o formal, pois transitada em julgado a decisão esta tem força obrigatória dentro do processo e, para além disso, fora do processo[3].
Na verdade, com relação a esta espécie de caso julgado (formal), cumpre esclarecer que “quer a sentença de absolvição da instância (art. 278-1), seja qual for o momento processual em que é proferida, quer o despacho de indeferimento liminar, por fundamento de mérito ou outro, quer a sentença que decida um incidente com a estrutura duma causa, quer os despachos interlocutórios, proferidos ao longo do processo (despacho saneador que julgue verificado um pressuposto, despacho proferido sobre uma arguição de nulidade, despacho que rejeite um meio de prova, despacho que não admita certa pergunta feita a uma testemunha, despacho que admita a segunda perícia, etc), limitam, uma vez transitados em julgado (art. 628), a sua força obrigatória ao processo, sendo nele inadmissível – e, por isso, ineficaz (art. 625-2) – decisão posterior sobre a mesma questão que deles tenha sido objeto. O despacho que recai unicamente sobre a relação processual não é assim apenas o que se pronúncia sobre os elementos subjetivos e objetivos da instância e a regularidade da sua constituição, mas também, todo aquele que, em qualquer momento do processo, decide uma questão que não é de mérito[4]
E a expressão, do nº1, do art. 620º, “dentro do processo” abrange, não só o processo da ação principal, mas também o dos incidentes que, dele dependendo, correm por apenso. Aliás, por sua natureza, a questão incidental relaciona-se com o objeto do processo e a sua decisão destina-se a nele ter eficácia.
Como se refere no Acórdão do STJ de 24/2/2015, processo 915/09.0TBCBR.C1.S1, relatado pela Senhora Juíza Conselheira Maria Clara Sottomayor, ao “caso julgado está inerente a ideia de imutabilidade ou de estabilidade. O fim do caso julgado é o de evitar a reprodução ou contradição de uma dada decisão transitada em julgado.
A excepção do caso julgado traduz-se em «a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, todos tendo de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão e de modo absoluto, com vista não só à realização do direito objectivo ou à actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes, mas também à paz social» (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, pp. 305-306)”.
Aí se esclarece “Diz-se material o caso julgado, nos termos do art. 619.º do CPC, se a decisão recai sobre o mérito da causa, e, portanto, sobre a relação jurídica substancial.
O caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele e por isso não pode ser alterado em qualquer acção nova que porventura se proponha sobre o mesmo objecto, entre as mesmas partes e com fundamento na mesma causa de pedir. A estabilidade ultrapassa as fronteiras do processo e portanto, além da preclusão operada no processo, produz-se a impossibilidade de a decisão ser alterada mesmo noutro processo, com a excepção da possibilidade da sua revogação ou modificação por meio dos recursos extraordinários de revisão (art. 696.º, do CPC) para os casos em que o caso julgado se formou em circunstâncias patológicas ou anormais”[5].
Também Lebre de Freitas e Isabel Alexandre referem que a exceção dilatória de caso julgado baseia-se no caso julgado material, projetado para fora do processo em que se forma, não no caso julgado formal[6] que só vincula no processo em que a decisão que o adquiriu foi proferida, com eficácia estritamente intraprocessual.
Revertendo, de novo, para o caso, verifica-se que tendo o momento liminar passado, com prolação de despacho liminar, veio a ser proferido um outro despacho liminar (contraditório com o primeiro), despacho este inadmissível, não podendo, por isso, permitir-se que se torne eficaz.
A segunda decisão liminar proferida (incompatível com a primeira) tem de ser afastada, sem o que se originaria, dentro do processo, a existência de duas decisões liminares contraditórias.
Assim, impõe-se, na verdade, que o processo siga a sua, ulterior, tramitação (cfr. nº 2 e segs do art. 785º, do CPC e v., ainda arts 293º a 295º e art. 732º, nº1 e 3, aplicáveis ex vi, nº2, do art. 785º, todos daquele diploma legal), na consideração da oposição já oferecida pela exequente, para decisão, para apreciação da procedência/improcedência do incidente de oposição à penhora deduzido.

Neste conspecto, procedem as conclusões da apelação, tendo a decisão recorrida de ser revogada.


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2. Da responsabilidade tributária.

As custas do recurso são da responsabilidade da recorrida, dada a total procedência da pretensão recursória a esta se opôs (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).


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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida - a segunda decisão liminar proferida - e determina-se que o incidente siga os seus ulteriores termos.


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Custas pela apelada – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.


Porto, 4 de março de 2024
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Manuel Domingos Fernandes
Fernanda Almeida
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[1] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume I, AAFDL Editora, pág. 637.
[2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição, Almedina, pág. 753
[3] João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, idem, pág. 638.
[4] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Idem, pág. 752 e seg.
[5] Acórdão do STJ de 24/2/2015, processo 915/09.0TBCBR.C1.S1, in dgsi.net
[6] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2, 2017, Almedina pág. 600