Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
445/12.3T3AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: PROVA PESSOAL
CREDIBILIDADE
DOCUMENTO PARTICULAR
Nº do Documento: RP20150211445/12.3T3AVR.P1
Data do Acordão: 02/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Quando a prova seja pessoal ao tribunal de recurso cabe aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita na 1ªinstância sobre a prova produzida e apreciada.
II – Para conceder uma credibilidade, a um dado depoimento, sobreponível aos demais importará que a coerência e consistência do relato, a segurança com que depõe, a ausência de contrastes com outros meios de prova não permitam formular reservas sobre essa credibilidade.
III – Tal não ocorre se estão em contradição com o conteúdo de um documento autêntico cujo valor probatório está subtraído à livre apreciação do julgador.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 445/12.3T3AVR.P1
Recurso Penal
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório

No âmbito do processo comum que, sob o n.º 445/12.3T3AVR, corria termos pelo Juízo de Média Instância Criminal da (entretanto extinta) Comarca do Baixo Vouga (agora, pela Instância Local, Secção Criminal, da Comarca de Aveiro), B…, devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento, por tribunal singular, acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material, de um crime de falsidade de testemunho previsto e punível pelo artigo 360.º, n.os 1 e 3, do Código Penal.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, foi proferida sentença (fls. 711 e segs.), datada de 17.06.2014 e depositada na mesma data, que absolveu o arguido.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso da sentença condenatória para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que condensou nas seguintes conclusões (em transcrição integral):
“1. Urge asseverar que o auto de inquirição redigido pelo funcionário de polícia criminal em obediência ao disposto nos art.ºs 99º e 100º do Código de Processo Penal é um documento autêntico.
2. Resulta da conjugação dos art.ºs 127º e 169.º, ambos do Código de Processo Penal que, os factos materiais constantes do auto de inquirição de fls. 17 a 22, como documento autêntico que é, deveriam ter sido considerados provados, conquanto a autenticidade daquele documento e a veracidade do seu conteúdo não foram fundadamente postas em causa.
3. A sentença ora em escrutínio entendeu que as declarações do arguido, à luz de critérios de normalidade e de experiência comum, constituíam elemento probatório bastante para colocar, fundadamente, a veracidade do conteúdo do auto de inquirição em crise - salvo o devido respeito, não nos parece que assim seja.
4. E não o é, desde logo, porque aquelas declarações não conheceram corroboração em mais algum meio de prova - o arguido alegou, mas não demonstrou!
5. Fundadamente reconduz-se a uma ideia de fundamento, algo construído sobre bases sólidas, firmes e consolidadas.
6. Uma mera alegação, por mais verosímil que pareça, não revela aptidão para, por si só, desacompanhada de outros meios de prova que a confirmem e robusteçam, preencher o conceito de fundadamente. É manifestamente insuficiente.
7. O ora arguido afirmou sem comprovação mínima ou remota que fosse do que disse.
8. Não foram carreados para os autos quaisquer meios de prova que permitam ter por boa a alegação de que o auto de inquirição não traduz correcta e fielmente aquilo que o ora arguido e então testemunha disse ou pretendeu dizer e, bem assim, que não o haja lido nem atenta nem integralmente.
9. A exiguidade do dito para subsunção à noção de fundadamente revela-se, também, na circunstância do ora arguido nunca por nunca ter chamado à colacção semelhante justificação para a discrepância verificada nas declarações que prestou em inquérito e em julgamento.
10. Quando colocado perante a iminência de contra si ser instaurado inquérito crime, olvidou o ora arguido qualquer alvitre assemelhado que fosse com a omissão de leitura cuidada e integral do auto de inquirição.
11. E não só seria natural que o tivesse feito, como ao fazê-lo podia mitigar ou mesmo evitar as consequências penais a que, no futuro, estaria sujeito.
12. Dizem-nos as regras da experiência e a normalidade do acontecer, que alguém quando vislumbra vir a ser criminalmente perseguido, lança mão dos argumentos à sua disposição tendentes a eximir-se daquela responsabilidade.
13. O ora arguido, não obstante tenha perspectivado a não correspondência do auto de inquirição com aquilo que disse ou pretendeu dizer como circunstância excludente da sua responsabilidade criminal, não invocou este argumento em sede de audiência de discussão e julgamento quando acossado pela instauração de um processo criminal contra si.
14. Persistiu em tal omissão na contestação que apresentou nos presentes autos.
15. Não o tendo feito, conclusão única importa retirar – se a justificação era já de si “coxa”, resultou amputada de qualquer pingo de credibilidade.
16. Acaso o arguido não tivesse, efectivamente, lido e controlado o conteúdo do auto de inquirição, certamente que o teria invocado desde o primeiro momento em que contra si foi instaurado procedimento criminal - é o que os ditames postulados pela experiência comum e normalidade do acontecer impõem que se conclua.
17. Canhestra, não confirmada por qualquer outro meio de prova e desprovida de credibilidade, alegação assim caracterizada não apresenta virtualidade suficiente para fundadamente pôr em causa a correspondência do conteúdo do auto de inquirição com o sucedido na diligência que este documenta.
18. Mais entendeu a Meritíssima Juiz a quo ser de atribuir credibilidade à alegação do ora arguido por ser “(…) verosímil que na redução a escrito das declarações então prestadas pelo ora arguido possam ter ocorrido desconformidades entre o que foi escrito e aquilo que o ora arguido disse ou quis significar (…).”
19. Desconformidades aceitamos como possível que sim, mas as discrepâncias assinaladas na acusação não – desde logo, porque estamos perante duas versões do acontecido, absolutamente, incompatíveis entre si.
20. Não há confusão possível entre “(…) que os autos de medição lhe eram entregues pelo encarregado da C…, que lhe transmitia as horas, quer da máquina, quer da mão-de-obra, bem como os materiais utilizados na obra, no que confiava, limitando-se a contabilizar os custos e a devolver de seguida ao empreiteiro que, por sua vez, os fazia chegar à D…; que, por tal motivo, não podia confirmar que os valores transmitidos pelo encarregado da C… correspondessem efectivamente aos meios e horas empregues em obra” – extracto do depoimento prestado em sede de inquérito – e “(…) verificou e mediu as obras realizadas pela C… nos exactos termos descritos nos autos de medição por si subscritos, respondeu que sim. Disse, então, que apesar de não poder estar fisicamente a toda a hora e em todos os locais da obra, os factos constantes nos autos de medição correspondem à verdade, tendo sido verificado e contado por si, com a ajuda de um seu funcionário, só assinando tais documentos após verificação da sua exactidão em obra, nunca tendo assinado tais autos com base em elementos fornecidos apenas pelos empreiteiros.” – extracto do depoimento prestado em sede de audiência de discussão e julgamento –.
21. Não há sequer identidade mínima entre aquilo que o arguido sustentou em sede de audiência de discussão e julgamento e aquilo que afirmou em inquérito.
22. Uma dessintonia absoluta quer se considere parcelarmente quer globalmente os depoimentos prestados pelo arguido - entre o dia e a noite, entre o sol e a lua, entre o vinho e a água, não há equívoco equacionável.
23. O próprio arguido reconheceu-o em audiência de discussão e julgamento, pelo que alvitrar uma qualquer desarmonia resultante de uma qualquer deficiente interpretação do afirmado pelo arguido pelo órgão de polícia criminal que recolheu o seu depoimento emerge virtualmente impossível.
24. O detalhe, a minúcia, o pormenor do depoimento prestado em sede de inquérito não se mostra compatível com uma qualquer confusão ou deficiente interpretação do funcionário que o recolheu, ainda para mais quando estamos a falar de um senhor inspector da Policia Judiciária que tem especiais obrigações relativamente à verdade.
25. A discordância é de tal forma pronunciada que haveria de ter sido resultado de uma vontade pré-ordenada de adulteração.
26. Para além de nenhuma evidência de tal haja dimanado da prova produzida, o próprio arguido afastou, liminarmente, qualquer propósito de viciar dolosamente o por si dito.
27. Deveria ter sido dado por provado que, quando inquirido no dia 21 de Setembro de 2010 o arguido prestou declarações nos precisos termos que constam do auto de inquirição de fls. 17 a 22, mormente “(…) que os autos de medição lhe eram entregues pelo encarregado da C…, que lhe transmitia as horas, quer da máquina, quer da mão-de-obra, bem como os materiais utilizados na obra, no que confiava, limitando-se a contabilizar os custos e a devolver de seguida ao empreiteiro que, por sua vez, os fazia chegar à D…; que, por tal motivo, não podia confirmar que os valores transmitidos pelo encarregado da C… correspondessem efectivamente aos meios e horas empregues em obra”.
28. Ressuma vítreo da transcrição do depoimento prestado pelo ora arguido na qualidade de testemunha na sessão de audiência de discussão e julgamento do Processo Comum Colectivo 362/08.1JAAVR de 23 de Fevereiro de 2012, que o arguido, quando inquirido enquanto testemunha na audiência de discussão e julgamento do Processo Comum Colectivo 362/08.1JAAVR, asseverou, reiterada e peremptoriamente, na qualidade de encarregado de infra-estruturas de construção civil da D…, ter verificado e medido as obras realizadas pela C… nos exactos termos descritos nos autos de medição por si subscritos.
29. Deveria ter sido dado por provado que, no dia 23 de Fevereiro de 2012, em audiência de discussão e julgamento, em Aveiro, após ter sido advertido que a falta ou falsidade da resposta o poderiam fazer incorrer em responsabilidade penal e de ter prestado juramento, o arguido perguntado sobre se, na qualidade de encarregado de infra-estruturas de construção civil da D…, verificou e mediu as obras realizadas pela C… nos exactos termos descritos nos autos de medição por si subscritos, respondeu que sim.
30. Concatenando o depoimento do ora arguido com os testemunhos de E…, F… e G… resulta, inequívoco, que o arguido sabia que não verificou os dados constantes nos autos de medição, tendo aceitado os dados que lhe foram entregues pelos encarregados da C… e limitando-se a contabilizar os custos inerentes.
31. Ainda que titubeantemente, o próprio arguido reconheceu no seu interrogatório a impossibilidade de marcar presença em todas as frentes de trabalho e, como tal, de fiscalizar os trabalhos que os autos de medição se destinavam a documentar.
32. Ou o arguido possui o dom da ubiquidade ou então forçoso é concluir que lhe era impossível ter procedido à fiscalização dos trabalhos que supostamente aqueles autos de medição documentam - chegaram a decorrer em simultâneo 16 frentes de trabalho numa extensão de via superior a 200 km!
33. Para além de em nenhum dos autos de medição ter sido aposta a assinatura de um técnico responsável, não se mostravam instruídos com os documentos de suporte da sua elaboração, não obstante o arguido ter alvitrado a sua existência - Mais uma vez alvitrou, mas não logrou demonstrar.
34. O ora arguido não juntou aos respectivos processos qualquer documentação relativa ao acompanhamento dos trabalhos efectivamente executados que justificassem os autos de medição por si assinados.
35. Avulta uma ausência total de conformidade da documentação de suporte aos valores facturados, dado que a maior parte dos autos de medição apenas se encontram validados pelo encarregado responsável pelo acompanhamento dos trabalhos (o ora arguido B…), não existindo qualquer validação por parte do Director do órgão competente.
36. A dimensão dos trabalhos alegadamente realizados, a área pela qual se estenderam, a sua contemporaneidade, a ausência de meios materiais e humanos de auxílio impõem que se conclua pela absoluta impossibilidade da sua fiscalização.
37. Arengou o arguido que teria sido ajudado pela testemunha G… nas tarefas de fiscalização que lhe incumbiam - contudo esta testemunha desvendou que tal não aconteceu.
38. G… cingiu o seu auxílio, em obras efectuadas pela C…, a dois ocasiões que identificou - … e em ….
39. Recorde-se que os autos de medição em análise respeitam a trinta e quatro obras e que nenhum se relaciona com ….
40. Equivale por dizer que tal ajuda se reduziu a uma das trinta e quatro que ora se encontram em causa.
41. Se mais não fosse, estes constrangimentos teriam sempre obrigado o arguido a recorrer aos elementos fornecidos pelo empreiteiro para elaborar os autos de medição.
42. Urge concluir que o arguido não podia ter verificado os dados constantes dos autos de medição, pois que não só não dispunha dos adequados meios materiais, nomeadamente viatura, como também não beneficiava do auxílio de qualquer outro funcionário na hercúlea tarefa de fiscalização dos inúmeros trabalhos que aqueles pretendiam documentar.
43. Acresce ainda que a ausência de projectos, cadernos de encargos, propostas de preços, especificação de materiais e quantificação dos trabalhos a executar, sempre tornaria muito complicada a sua fiscalização.
44. Se atentarmos que os autos de medição em crise representavam um conjunto de obras tecnicamente impossíveis de executar, trabalhos esses realizados durante, sensivelmente, seis meses com um valor global superior a um milhão de euros, cumpre asseverar que documentam algo que não pode ter acontecido.
45. Nem sequer o prestador de serviços dispunha de um parque de máquinas tão extenso que permitisse em simultâneo naqueles seis meses intervencionar tantas zonas, tantas frentes de trabalho.
46. O conteúdo dos autos é assaz revelador – omissão de assinatura pelo técnico responsável, relato de trabalhos de execução técnica impossível e horas de máquina que implicavam a utilização de uma máquina numa determinada estação a trabalhar 24 horas por dia durante um mês e no mês seguinte a destruir o que havia sido feito.
47. Acresce que o ora arguido e a ora testemunha H…, seu superior hierárquico de então, quando chamados, em diferentes ocasiões e reuniões no interior da D… a justificar os trabalhos a que os autos de medição supostamente respeitavam ou outros que, por impossibilidade de subsunção ao contrato de terras e detritos, tivessem sido realizado, nunca o conseguiram fazer.
48. Nem eles, nem quem lhes sucedeu – testemunha E….
49. E… e as comissões de inquérito da D… não encontraram qualquer evidência que os trabalhos que os autos de medição supostamente documentavam tivessem sido realizados. Estes ou quaisquer outros, sublinhe-se.
50. Diga-se que até seria fácil justificar os trabalhos alegadamente efectuados ou quaisquer outros que, por impossibilidade de subsunção ao contrato de terras e detritos, tivessem sido realizado – fosse como fosse, a ordem de grandeza dos valores facturados impunha intervenções de idêntica dimensão, ou seja, facilmente perceptíveis.
51. Na sequência desta incapacidade e demonstrada que foi na D… a desconformidade dos autos com a realidade que alegadamente pretendiam documentar, a ora testemunha H… foi suspensa de funções.
52. Daí que atribuir relevância probatória a este depoimento em desfavor do da testemunha E… nos parece, no mínimo, desajustado.
53. Se a testemunha H…, para além de apresentar vínculos de afectividade e amizade com o arguido que enfraquecem consideravelmente a credibilidade, o valor e a consistência probatórias do seu depoimento, revela um nível de comprometimento com os factos assinalável, já a testemunha E… se mostra livre de quaisquer peias ou grilhetas que ensombrem a sua credibilidade.
54. O seu distanciamento face aos factos é considerável, inexistindo da sua parte qualquer interesse na sorte dos autos.
55. Pelo contrário, a aqui testemunha H… é arguido no Processo Comum Colectivo 362/08.1JAAVR, pelo que tem interesse directo em que os factos que, em parte, coincidem com o objecto deste último processo sejam apreciados de uma forma que, também, lhe seja favorável.
56. Sugeriu o ora arguido que a não correspondência dos trabalhos realizados com o efectivamente sucedido decorreria da sua conversão em horas de máquina – todavia, também, esta putativa explicação padece de irrazoabilidade.
57. A quantidade de horas consignada na generalidade dos autos de medição implicava que cada máquina houvesse laborado um mês consecutivo, no mesmo local e nas vinte e quatro horas de cada dia. E, muitas vezes, que, no mês seguinte, regressasse ao local da intervenção para destruir o que havia sido feito.
58. Resulta da prova produzida que o arguido não podia ter fiscalizado os trabalhos que os autos de medição pretendiam documentar – por ausência de meios humanos e materiais – e que os trabalhos não foram, efectivamente, realizados.
59. O arguido não verificou os dados constantes nos autos de medição, limitando-se a aceitar os dados que lhe foram entregues pelos encarregados da C… e a contabilizar os custos inerentes.
60. Deveria ter sido dado por provado que, o arguido sabia que não verificou os dados constantes nos autos de medição, tendo aceitado os dados que lhe foram entregues pelos encarregados da C… e limitando-se a contabilizar os custos inerentes.
61. Preencherá o tipo legal de crime de falso testemunho aquele que investido na qualidade, in casu, de testemunha e, como tal, sujeito a um dever processual de verdade e de completude, produz declaração falsa.
62. Como declaração falsa entenda-se aquela em que se verifica contradição entre o declarado e a realidade, entre a palavra e a realidade ou verdade histórica.
63. Subsumindo a conduta do arguido ao tipo legal de crime de falso testemunho, resulta inequívoco que quis faltar à verdade no que diz respeito às declarações por si prestadas como testemunha em audiência de julgamento.
64. Na verdade, ao contrário do que asseverou em audiência de discussão e julgamento, a prova produzida impõe concluir que o arguido não podia ter fiscalizado os trabalhos que os autos de medição pretendiam documentar – por ausência de meios humanos e materiais – e que os trabalhos não foram, efectivamente, realizados.
65. Assim sendo, o arguido não verificou os dados constantes nos autos de medição, limitando-se a aceitar os dados que lhe foram entregues pelos encarregados da C… e a contabilizar os custos inerentes.
66. Por outro lado, a omissão do dever de verdade a que o arguido se achava adstrito mostra-se plasmada na dessintonia entre as declarações que prestou em sede de inquérito e em sede de audiência de discussão e julgamento.
67. Conforme demonstra à saciedade a acta da audiência de discussão e julgamento de dia 23 de Fevereiro de 2012, mormente a fls. 11 e 12 dos autos, os requisitos plasmados no n.º 3 do art.º 360º do Código Penal foram satisfeitas pelo Meritíssimo Juiz Presidente em momento prévio ao testemunho falso produzido naquele acto pelo ora arguido.
68. Deveria ter sido dado por provado que, o arguido livre, voluntária e conscientemente quis faltar à verdade no que diz respeito às declarações por si prestadas como testemunha em audiência de julgamento.
69. Tudo visto e ponderado, dúvidas não restam que se mostram preenchidos os elementos típicos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de falso testemunho, pelo que o arguido deve ser condenado pela sua comissão.
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Admitido o recurso (despacho a fls. 790) e notificados os sujeitos processuais por ele afectados, veio o arguido apresentar resposta à respectiva motivação, pugnando pela sua improcedência e consequente confirmação da sentença absolutória.
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Ordenada a subida dos autos a este tribunal de recurso, e já nesta instância, na intervenção a que alude o art.º 416.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer em que, sufragando a posição do Ministério Público na 1.ª instância, expressa na motivação do recurso, se pronuncia pela procedência deste.
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Foi cumprido o disposto no n.º 2 do art.º 417.º do Cód. Proc. Penal, mas não houve qualquer resposta.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

IIFundamentação
São as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[1] e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso, naturalmente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Não pode dizer-se que o recorrente tenha cumprido escrupulosamente esse ónus de formular conclusões, pois as que apresentou estão longe de ser as proposições sintéticas que se exige, antes se evidencia que não fez o esforço de síntese que se impunha (69 (!) conclusões, sendo certo que o caso está longe de ser complexo e as questões suscitadas são, apenas, duas).
Por isso, em bom rigor, justificava-se um convite ao recorrente para apresentar conclusões que satisfizessem as exigências legais.
Não obstante, e sendo, ainda, certo que as conclusões visam habilitar o tribunal superior a conhecer as razões (de facto e de direito) da discordância do recorrente relativamente à decisão recorrida, a indicação especificada dos fundamentos do recurso tem, também, uma função garantística: que seja o recorrente a seleccionar as questões que pretende sejam examinadas e decididas, e não que se deixe ao livre arbítrio do tribunal essa selecção.
Por isso que, quando as razões da discordância do recorrente sejam facilmente identificáveis, há que ter alguma maleabilidade na apreciação do cumprimento das mencionadas exigências legais.
Como decorre das conclusões do recurso que ficaram transcritas, o recorrente impugna a decisão sobre matéria de facto e fá-lo invocando uma das duas vias possíveis: o erro de julgamento por incorrecta apreciação da prova.
Como decorrência da alteração da decisão sobre matéria de facto por que pugna, o recorrente pretende que se reconheça que “se mostram preenchidos os elementos típicos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de falso testemunho” e, em consequência, a condenação do arguido pela autoria deste crime.
Podemos, então, elencar como questões a apreciar e decidir as seguintes:
- se o tribunal incorreu em erro de julgamento sobre matéria de facto, por ter feito incorrecta apreciação e valoração da prova;
- se estão verificados os elementos do tipo objectivo e do tipo subjectivo do ilícito criminal imputado ao arguido na acusação.
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Assim identificado e delimitado o objecto do recurso, é fundamental conhecer os factos que o tribunal considerou provados e não provados.
Factos Provados:
1. Segue termos no Juízo de Instância Criminal de Ovar (Juiz 2) da comarca do Baixo Vouga o processo comum colectivo n.º 362/08.1 JAAVR, no âmbito do qual o ora arguido B… assumiu a qualidade de testemunha.
2. Ainda na fase de inquérito, no dia 21 de Setembro de 2010, na Directoria do Norte da Polícia Judiciária, o arguido foi inquirido como testemunha e aí prestou as declarações a que respeita o auto de fls. 17 a 22, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
3. Designadamente, consta do auto então elaborado que o arguido, para além de outras afirmações, disse que:
- desconhecia o objecto do contrato de recolha de terras e detritos que esteve na origem dos serviços prestados pela sociedade "C…, S.A." e dos autos de medição que subscreveu;
- não teve qualquer poder de decisão quanto à realização desses trabalhos, tendo tais decisões sido tomadas pelo Eng.º H…, agindo sempre segundo a indicação deste, que avalizava a realização dos trabalhos e o informava para contactar e indicar aos encarregados da "C…, S.A." os trabalhos a efectuar;
- não lhe era possível acompanhar a realização da obra e
- os autos de medição eram-lhe entregues pelo encarregado da C…, que lhe transmitia as horas, quer da máquina, quer da mão-de-obra, bem como os materiais utilizados na obra, no que confiava, limitando-se a contabilizar os custos e a devolver de seguida ao empreiteiro que, por sua vez, os fazia chegar à D… e que, por tal motivo, não podia confirmar que os valores transmitidos pelo encarregado da C… correspondessem efectivamente aos meios e horas empregues em obra.
4. No dia 23 de Fevereiro de 2012, em audiência de discussão e julgamento, em Aveiro, o arguido foi novamente inquirido como testemunha no âmbito do referido processo e, no início da inquirição, foi advertido que a falta ou falsidade da resposta o poderiam fazer incorrer em responsabilidade penal e prestou juramento, do que ficou ciente.
5. Aí prestou as declarações transcritas a fls. 183 a 254, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.
6. Designadamente, o arguido disse então que, apesar de não poder estar fisicamente a toda a hora e em todos os locais da obra, os factos constantes nos autos de medição correspondem à verdade, tendo sido verificado e contado por si, com a ajuda de um operário, só assinando os autos de medição após verificação da sua exactidão em obra, nunca tendo assinado tais autos com base em elementos fornecidos apenas pelos empreiteiros.
7. O arguido bem sabia que estava obrigado a depor com verdade, tanto mais que prestou juramento e foi advertido das consequências penais de prestar falsas declarações.
8. O arguido fez a quarta classe, depois de deixar a escola foi aprendiz numa oficina e aos dezassete anos teve o seu primeiro trabalho, na barragem ….
9. Foi ferroviário mais de quarenta anos, cerca de metade dos quais com a categoria de encarregado de infra-estruturas de construção civil, deixando a D… em Fevereiro de 2014 na sequência de rescisão do contrato de trabalho por mútuo acordo, após o que trabalhou um mês como encarregado para uma empresa de construção civil ("I…") de que foi despedido por inadaptação.
10. Está actualmente desempregado, auferindo subsídio de desemprego no valor de cerca de novecentos euros mensais.
12. Em 2008 adquiriu um automóvel "Opel …" em segunda mão.
12. Vive com a esposa, doméstica, em casa que lhes pertence.
13. Têm dois filhos já adultos, economicamente autónomos e com os seus próprios agregados familiares.
14. Não consta qualquer condenação dos certificados de registo criminal do arguido.

Factos não provados
a) Quando inquirido no dia 21 de Setembro de 2010 o arguido prestou declarações nos precisos termos que constam do auto de fls. 17 a 22, referido no número 2 dos factos provados.
b) No contexto referido nos números 4 e 5 dos factos provados, o arguido perguntado sobre se, na qualidade de encarregado de infra-estruturas de construção civil da D…, verificou e mediu as obras realizadas pela C… nos exactos termos descritos nos autos de medição por si subscritos, respondeu que sim.
c) O arguido sabia que não verificou os dados constantes nos autos de medição, tendo aceitado os dados que lhe foram entregues pelos encarregados da C… e limitando-se a contabilizar os custos inerentes.
d) O arguido livre, voluntária e conscientemente quis faltar à verdade no que diz respeito às declarações por si prestadas como testemunha em audiência de julgamento.
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Como já foi aflorado, existem duas vias legalmente possíveis para o recorrente impugnar a decisão em matéria de facto: invocando algum ou alguns dos vícios da sentença enunciados no n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal (a designada impugnação de âmbito restrito) ou a existência de erro de julgamento, detectável pela análise da prova produzida e valorada na audiência de 1.ª instância[2].
O recorrente não aponta à sentença nenhum daqueles vícios, mas, actualmente, constitui entendimento pacífico que os aludidos vícios decisórios são de conhecimento oficioso[3].
Ora, da simples leitura do texto da decisão ressalta que a sentença está inquinada pelo vício da contradição insanável da fundamentação previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP.
Os vícios contemplados na citada disposição normativa são de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei, ou, como é afirmação recorrente, são “anomalias decisórias” ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto, apreensíveis pela simples leitura do respectivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela, impeditivos de bem se decidir, tanto ao nível da matéria de facto, como de direito.
Tais vícios (ou, como também são designados, erros-vícios) não se confundem com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.
Aqueles (vícios decisórios) examinam-se, indagam-se, através da análise do texto da sentença; esta (a errada apreciação e valoração das provas), porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, verifica-se em momento anterior à elaboração do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas, do que resulta a formulação de um juízo que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do vício não se estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto (cfr. acórdão do STJ, de 15.09.2010, www.dgsi.pt/jstj; Cons. Fernando Fróis).
Verifica-se o vício da contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto.
Como se esclarece no acórdão do STJ, de 19.11.2008, Proc. n.º 3453/08-3.ª, “a contradição insanável da fundamentação, ou entre esta e a decisão, supõe que no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluem mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão…”.
Consta do elenco de factos provados que, no dia 21 de Setembro de 2010, na fase de inquérito do processo comum n.º 362/08.1 JAAVR, na Directoria do Norte da Polícia Judiciária, o aqui arguido B… foi inquirido como testemunha e aí prestou as declarações exaradas no auto de fls. 17 a 22. Auto que o tribunal deu “por integralmente reproduzido”. Ou seja, o tribunal deu como reproduzidas, na íntegra, as declarações prestadas, na qualidade de testemunha, pelo aqui arguido B….
Daqui decorre que o tribunal deu como provado, não só que o arguido prestou as declarações, mas também que as declarações ali exaradas correspondem ao por ele declarado, assim as dando por reproduzidas, na íntegra.
No entanto, o tribunal também deu como não provado (alínea a)) que, “quando inquirido no dia 21 de Setembro de 2010 o arguido prestou declarações nos precisos termos que constam do auto de fls. 17 a 22”.
Ora, não se entende como é possível dar como provado que o arguido fez as declarações documentadas no auto e dadas como reproduzidas e, simultaneamente, como não provado que o fez nos exactos termos reproduzidos sem se especificar onde estão as inexactidões, subliminarmente, sugeridas.
Há manifesta contradição porquanto, sobre o mesmo ponto, fazem-se afirmações inconciliáveis que se excluem mutuamente.
Os vícios decisórios implicam, ou o reenvio do processo para novo julgamento nos termos do art.º 426.º, n.º 1, ou, sendo possível, serão supridos no próprio tribunal de recurso (art.º 430.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal).
A possibilidade de suprir aqui o vício que afecta a sentença depende do valor probatório que se deva reconhecer ao referido auto e essa valoração leva-nos à apreciação da primeira questão equacionada: se o tribunal cometeu erro de julgamento em matéria de facto, por ter apreciado mal a prova.
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Quando o recorrente pretende impugnar a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de especificar (cfr. n.º 3 do citado art.º 412.º):
● os concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido (obrigação que “só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida”[4]);
● as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ónus que só fica satisfeito “com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida”[5]).
Além disso, o recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua perspectiva, essas provas impõem decisão diversa da recorrida, constituindo essa explicitação, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque (Loc. Cit.), “o cerne do dever de especificação”, com o que se visa impor-lhe “que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado”.
É com base na citada norma que se tem defendido, sem discrepâncias, que o recurso em matéria de facto não implica uma reapreciação, pelo tribunal de recurso, da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida (ao contrário do que parece ser entendimento do recorrente quando pretende que o Tribunal da Relação “realize um reexame do manancial fáctico produzido”, com o que, certamente, quis dizer manancial de provas).
Duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso, asserção que é consensual, mas também é frequentemente ignorada por quem recorre.
O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para tanto, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre este ponto, cfr. os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, e de 3 de Julho de 2008, Processo 08P1312, disponíveis em www.dgsi.pt).
O ónus de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida exige do recorrente que, por referência ao consignado na acta, indique concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (sendo que, pelo acórdão de fixação de jurisprudência n.º 3/2012, de 08.03.2012, DR, I, n.º 77, de 18.04.2012, o STJ manifestou o entendimento de que, para o efeito, basta “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações”), pois são essas que devem ser ouvidas, lidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 6 do artigo 412.º do Cód. Proc. Penal).
O recorrente considera incorrectamente julgados os factos vertidos nas quatro alíneas do elenco de factos tidos por não provados.
Quanto às concretas provas que imporiam decisão diversa da recorrida, o recorrente indica[6], basicamente, as mesmas em que se baseou o tribunal para dar como não provados os referidos factos: as declarações do arguido (quer as prestadas, nessa qualidade, na audiência deste processo, quer as prestadas como testemunha no âmbito do processo comum n.º 362/08.1 JAAVR, documentadas no auto de fls. 17 a 22 e a fls. 184-253, que transcreve na parte considerada relevante), a que acrescenta os depoimentos das testemunhas E… e F…, que o tribunal menosprezou.
Podem, pois, considerar-se cumpridos os referidos ónus de especificação.
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O primeiro aspecto do juízo sobre a valoração da prova é o da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação, intervindo aqui elementos não racionalmente explicáveis (a convicção que, através da imediação, o tribunal forma sobre a prova directa produzida na sua presença depende de uma série de circunstâncias de percepção, experiência e até de intuição que não são, ou dificilmente são, exprimíveis na fundamentação).
Depois, intervêm “as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio, que há-de fundar-se nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência” (G. Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, 186).
Uma das exigências legais da fundamentação é, como aflorada ficou, a indicação dos meios de prova, das razões de ciência das testemunhas e declarantes e dos motivos que permitem, ou não, conferir credibilidade a cada um deles.
Segundo Perfecto Andrès Ibañez (“Jueces e Ponderatión Argumentativa”, 2006, pág. 32, citado por Mouraz Lopes in “A fundamentação da Sentença no Sistema Penal Português – Legitimar, Diferenciar, Simplificar”, Almedina, 2011, p. 232), “este tipo de exame requer, primeiro, a identificação das correspondentes fontes de prova (a pessoa, o documento, o objecto da perícia) e a sua localização original no cenário dos factos ou o tipo de relação mantida com estes. Terá de valorar-se também a aptidão do meio probatório proposto para obter a informação útil da fonte de onde provém, levando em consideração as circunstâncias, o estado de conservação em função do decurso do tempo e de outros factores. Produzido o exame deverá concretizar-se a utilidade em elementos de prova susceptíveis de valoração”.
Na valoração individual da prova examina-se a fiabilidade de cada uma das provas em concreto. A articulação das provas entre si e a sua avaliação conjunta permitem o conhecimento global dos factos que, por sua vez, se irá reflectir no resultado da totalidade da prova atendível.
Ao juiz é conferida liberdade na escolha e na valoração das provas[7], mas esta liberdade é controlada ou controlável, é uma discricionariedade vinculada, que assenta num modelo racionalizado e a garantia de racionalidade concretiza-se na fundamentação da decisão de facto que cumpre precisamente a “função de controlo daquela discricionariedade, obrigando o juiz a justificar as suas próprias escolhas”.
É imperioso que o tribunal de recurso faça um exercício crítico sobre a convicção adquirida em 1.ª instância relativamente aos factos impugnados, pois o tribunal de recurso pode (deve) censurar a violação de todo o conjunto de princípios que estão subtraídos à livre apreciação da prova: as regras de experiência comum e os princípios “in dubio pro reo” e da presunção de inocência.
Sobretudo quando a prova seja, exclusiva ou essencialmente, pessoal (aqui se incluindo a prova por declarações dos arguidos, dos assistentes ou dos demandantes civis, a prova testemunhal, os esclarecimentos dos peritos, etc.), ao tribunal de recurso cabe aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração.
Analisemos, então, o processo de formação da convicção do tribunal recorrido.
Uma grande parte (cremos não exagerar se apontarmos para dois terços) da motivação probatória da decisão de facto assenta no que disse o arguido, ao qual o tribunal, embora não o refira expressamente, atribuiu crédito quase irrestrito, nessas declarações alicerçando o seu juízo probatório.
Uma tal opção só se compreenderá se a coerência e consistência do relato feito pelo declarante, a segurança com que depõe, a ausência de contrastes com outros meios de prova forem tais que não seja possível formular reservas sobre a sua credibilidade.
Como, impressivamente, se refere no acórdão da Relação de Guimarães, de 22.09.2008 (Proc. n.º 272/08-2.ª; Des. Ricardo Silva), disponível em www.dgsi.pt, “Para que, num caso concreto, o testemunho de alguém se possa sobrepor aos demais, por forma a que os factos se provem apenas com base nele e em detrimento dos que o contraditem, já que nada na lei o impede, forçoso se torna que esse depoimento se revista de uma força convictória irresistível, ou por uma patente superioridade moral, ou por uma clareza na descrição dos factos, coerência interna e plausibilidade – adequação dos factos relatados a uma realidade que se desenvolve sem discrepâncias da que a nossa experiência comum os faz idealizar”.
Terá sido essa força de convicção que revelaram as declarações do arguido, primeiro, como testemunha e depois, no âmbito deste processo, naquela qualidade?
A Sra. Juiz do tribunal a quo parece ter entendido que sim, começando por sublinhar a sua “atitude espontânea e sincera, declarando e respondendo de acordo com as suas convicções acerca do que será a realidade” e desenvolvendo depois uma argumentação tendente a justificar as afirmações contraditórias ou incongruentes do arguido, ora invocando as suas limitações intelectuais (que lhe dificultariam a correcta compreensão das perguntas que lhe eram formuladas), ora referindo o nervosismo e a perturbação que notou quando procedeu à audição do depoimento gravado prestado em 23.02.2012 (numa das sessões da audiência do processo n.º 362/08.1 JAAVR), ora zurzindo o funcionário de polícia criminal que teria elaborado um auto que não reflectiria o que foi declarado pelo arguido.
Compreende-se que, estando em causa a falsidade de testemunho, se tenha dado especial relevo às declarações do arguido. O que já não se entende e não merece concordância é que se lhe tenha dado crédito ao ponto de sobrepor essas declarações ao conteúdo de um documento cuja valoração está subtraída à livre apreciação do julgador, constituindo mesmo uma das poucas excepções ao princípio da livre apreciação da prova.
Na verdade, é inquestionável que um auto destinado a documentar as declarações prestadas no âmbito de um processo criminal elaborado por um funcionário de polícia criminal nos termos estabelecidos nos artigos 99.º e 100.º do Cód. Proc. Penal constitui um documento autêntico (cfr. artigo 363.º, n.º 2, do Código Civil).
À semelhança do que dispõe o artigo 371.º, n.º 1, do Código Civil, o artigo 169.º do Cód. Proc. Penal estabelece que são considerados provados os factos materiais constantes de um documento autêntico, como é o auto elaborado nos mencionados termos. Só assim não será se, fundadamente, forem postas em causa a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo.
No caso em apreço, em face do auto de que está uma certidão a fls. 17-22, o tribunal teria de considerar provado que o arguido, então na qualidade de testemunha, prestou as declarações que dele constam. Aliás, foi isso mesmo que ficou consignado no n.º 2 do elenco de factos provados.
Porém, contraditoriamente, o tribunal também considerou não provado que o arguido prestou essas declarações nos exactos termos, dados como reproduzidos, que constam daquele auto.
Para assim decidir, a Sra. Juiz do tribunal a quo considerou credíveis as declarações do arguido quando afirmou que, não só não leu o auto de inquirição (“contrariamente à fórmula tabelar que consta de tal auto não terá sido efectivamente por si «lido, achado conforme e ratificado» antes da assinatura”), como não correspondem ao que declarou algumas das afirmações que lhe são atribuídas, justificando assim o seu juízo:
“Relembra-se que são critérios de normalidade e experiência comum que norteiam a análise das provas produzidas (não sendo obviamente excepção o conteúdo o auto referente à inquirição realizada em 21.09.2010) e tais critérios levam a ter como verosímil que na redução a escrito das declarações então prestadas pelo ora arguido possam ter ocorrido desconformidades entre o que foi escrito e aquilo que o ora arguido disse ou quis significar.
Não se questiona o propósito de rigor com que foi elaborado tal auto, aliás exaustivo (como logo se percebe do confronto do conteúdo de tal auto com a transcrição em discurso oral da inquirição em 23.02.2012, versando os mesmos assuntos), do mesmo modo que não se questiona a falibilidade possível de qualquer (qualquer) inquiridor na tarefa, quantas vezes bem difícil, de compreensão e síntese (síntese, com inevitável selecção, escolha) de depoimentos, que não é (não pode ser) imune ao subjectivo conhecimento e convicção do autor de tal súmula, às inevitáveis conclusões que formula perante uma ou outra afirmação do inquirido e no contexto de uma investigação que lhe propicia outras fontes de informação para além da testemunha.
Nota-se que discurso usado na súmula da inquirição ocorrida em 21.09.2010 manifestamente não é o do arguido (da audição do arguido na audiência no presente processo, como da leitura da transcrição das suas respostas na audiência em 23.02.2012, resulta que conceitos como "objecto do contrato", "avalizar a realização do trabalho", ou frequentes formulações dedutivas (usualmente antecedidas de palavras de ligação a afirmações anteriores como "assim", "portanto", "deste modo", "pelo atrás exposto" - fls. 18, fls. 20) não são usuais nem expectáveis a quem se expressa pela forma verbal simples que pode constatar-se ser a do arguido).
Nem teria de o ser, como não teria de constar do auto descrição pormenorizada de todas as precisas questões e respostas, eventuais hesitações ou indícios de incompletude destas, exactas palavras usadas, etc.: repete-se, trata-se de uma súmula, redigida pelo inquiridor.
Não obstante, da leitura integral do auto de fls. 17 a 22 resulta explícito o "percurso" da inquirição, exaustivamente descrito pelo inquiridor e que não se limitou às formulações conclusivas que foram transcritas na acusação deduzida no presente processo (referidas nos factos provados, sob o número 3, relevando especialmente o que consta do último parágrafo desse número 3: "os autos de medição eram-lhe entregues pelo encarregado da C…, que lhe transmitia as horas, quer da máquina, quer da mão-de-obra, bem como os materiais utilizados na obra, no que confiava, limitando-se a contabilizar os custos e a devolver de seguida ao empreiteiro que, por sua vez, os fazia chegar à D… e que, por tal motivo, não podia confirmar que os valores transmitidos pelo encarregado da C… correspondessem efectivamente aos meios e horas empregues em obra").
Tais conclusões não são conciliáveis com outras afirmações que constam da parte inicial do próprio auto de fls. 17 a 22 e que são consentâneas com o que o ora arguido afirmou na audiência realizada no presente processo e quando inquirido como testemunha em 23.02.2012.
Com efeito, o ora arguido em 21.09.2010 referira também (fls. 18 e 19) que não permanecia a tempo inteiro num dos locais, dividindo-se em visitas pontuais às frentes de trabalho que estavam em curso, no decurso dos trabalhos deslocando-se aos locais dos mesmos algumas vezes na medida das suas possibilidades, não podendo acompanhar em permanência as obras que tinha em curso (fls. 19, último parágrafo, e fls. 20) e no final dos trabalhos indo sempre ao local; seguindo instruções, fiscalizava e contabilizava os meios empregues que posteriormente seriam "transformados em horas de máquina"; "depois de realizado o trabalho elaborava (o ora arguido) um documento [mais à frente no auto de inquirição referido como "rascunho"] com todo o tipo de trabalho, nomeadamente os meios empregues, máquinas, mão-de-obra e materiais utilizados e com base nestes elementos fazia as contas aos trabalhos"; "os valores utilizados para contabilização eram os mesmos que constavam de avença contrato de avença que a D… tinha com outro empreiteiro (...) e, caso houvesse algum trabalho que não constasse dessa avença, era utilizado o valor da última empreitada onde esse tipo de trabalho tivesse sido debitado"; "Depois de ter os preços unitários elaborava as contas que entregava ao encarregado da C…. Posteriormente era-lhe então, por este último, entregue o auto de medição onde o valor total que lhe tinha fornecido se encontrava transformado em horas. Foi deste modo que foram elaborados os autos de medição onde se encontra a rubrica “B…”, refere que foram todos por si assinados em conformidade com o que acaba de referir. Depois deste procedimento, os autos eram devolvidos ao empreiteiro que posteriormente os apresentaria à D…, acompanhados da respectiva factura para pagamento”.
Não nos merece objecção a afirmação de que é verosímil a declaração do arguido de que não leu o auto da sua inquirição, pois é a experiência que nos revela que, por razões várias, o inquirido, frequentemente, não lê, ou não lê tudo e com a devida atenção, o que é consignado no auto pelo inquiridor.
Por outro lado, não estando o inquiridor obrigado a reproduzir ipsis verbis o que diz o inquirido, mas sim a velar por que a súmula corresponda ao essencial das declarações, é natural que ocorram discrepâncias, inexactidões ou pequenas divergências entre o que foi declarado e o que ficou exarado no auto.
Mas, note-se bem, só assim será em relação a questões de pormenor, não em relação ao essencial da declaração.
O ponto essencial sobre que versou a inquirição da então testemunha B… era a existência ou não de fiscalização e medição dos trabalhos realizados pela empresa denominada C… para a D… no âmbito da execução de um contrato para remoção de terras e detritos sólidos (e não se era correcto o procedimento de transformar tudo, designadamente a mão-de-obra e materiais aplicados nas obras, em “horas de máquina” ou se os valores facturados e cobrados à D… correspondiam à contabilização feita pelo arguido com base no que lhe era transmitido pelos responsáveis da C… como sendo os trabalhos executados), pois eram os autos de medição dos trabalhos que depois iriam servir de suporte à emissão da correspondente factura.
E, como bem refere o recorrente, essa não era uma questão que pudesse suscitar dúvidas, que fosse susceptível de gerar confusão na cabeça do arguido (pessoa com muitos anos de experiência no exercício da função de encarregado de obras ao serviço da D…), de tal modo que o levasse a dizer algo que não correspondia à realidade.
Ora, o que, sobre esse ponto essencial, ficou a constar do auto em causa foi que o arguido afirmou, perante o inspector da PJ que o inquiriu, o seguinte:
“(…) que os autos de medição lhe eram entregues pelo encarregado da C…, que lhe transmitia as horas, quer da máquina, quer da mão-de-obra, bem como os materiais utilizados na obra, no que confiava, limitando-se a contabilizar os custos e a devolver de seguida ao empreiteiro que, por sua vez, os fazia chegar à D…; que, por tal motivo, não podia confirmar que os valores transmitidos pelo encarregado da C… correspondessem efectivamente aos meios e horas empregues em obra” (auto de inquirição de fls. 17-22)
O problema surgiu quando, em audiência realizada no âmbito desse processo (n.º 362/08.1 JAAVR), o arguido, depondo como testemunha, declarou, sobre a mesma questão, algo que é o oposto do que havia afirmado em sede de inquérito: que tudo verificou e mediu, que as obras realizadas pela C… para a D… foram por si fiscalizadas, apesar das limitações decorrentes de não poder estar fisicamente em todas as obras; que o conteúdo dos autos de medição (por si assinados) corresponde à verdade porque ele próprio mediu os trabalhos (pergunta: “O senhor assinou os autos de medição que vinham da empresa. Verificou-os todos?”. Reposta da testemunha, aqui arguido: “Claro! Se estão assinados por mim, fui eu que vi, que depois verifiquei o auto se estava ou não com o auto provisório que se tinha acordado”. Pergunta: e quem lhe deu os dados todos?”. Resposta: Fui eu que os medi”. Pergunta: E nunca sucedeu o senhor não ir lá e aceitar os dados que lhe eram fornecidos pela empresa?” Resposta: “Não, não! Não senhor, isso está fora de questão! Isso nem sequer aceito uma dúvida dessas, senhor doutor”).
O que se diz na decisão em crise para justificar a conclusão de que o arguido não faltou à verdade nem quis mentir em nenhuma das referidas ocasiões é que “os critérios de normalidade e experiência comum que norteiam a análise das provas produzidas” levam a ter como verosímil que o que consta daquele auto está desconforme com o que foi declarado pelo arguido, assim dando inteiro crédito ao por este afirmado na audiência do presente processo.
Ou seja, ainda que procurando “dourar a pílula” (“não se questiona o propósito de rigor com que foi elaborado tal auto…”), o que se diz é que o funcionário de polícia criminal cometeu uma falsidade intelectual, pois é essa modalidade de falsificação que se pratica quando se integra num documento uma declaração que não corresponde à que foi efectivamente prestada.
E tudo isto – sublinhe-se – sem que se tenha ouvido o suposto falsificador que, certamente, teria algo a dizer sobre tal imputação.
Com o devido respeito, não se vislumbra que obscuro propósito poderia servir o inspector da PJ que inquiriu o arguido ao consignar no auto de inquirição uma declaração que este não fez, sendo certo que, como já se salientou, tal declaração versa sobre um ponto essencial do depoimento e não havia possibilidade de confusão por parte de qualquer dos intervenientes (inquiridor ou inquirido).
Concluimos, pois, que não há razões válidas e minimamente convincentes para pôr em causa a veracidade do conteúdo daquele documento autêntico e que o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância não se revelam consonantes com juízos de racionalidade, de lógica e de experiência.
Impõe-se, assim, a eliminação do que consta da alínea a) do elenco de factos não provados e a alteração do segmento inicial do n.º 3 do elenco de factos provados.
O tribunal deu como não provado que, na audiência de julgamento do processo comum n.º 362/08.1 JAAVR, quando aí prestou depoimento e quando perguntado sobre se, na qualidade de encarregado de infra-estruturas de construção civil da D…, verificou e mediu as obras realizadas pela C… nos exactos termos descritos nos autos de medição por si subscritos, o arguido respondeu que sim (alínea b) do elenco de factos não provados) e justificou assim a decisão:
“Apesar de tal perturbação, da leitura da transcrição do depoimento do arguido em 23.02.2012 resulta que, também quando prestou tal depoimento (como nas declarações que enquanto arguido prestou na audiência realizada no presente processo), o arguido quando se referiu à exactidão dos autos de medição por si subscritos pretendia referir-se aos valores, aos preços a cobrar pelo empreiteiro à D…, que constavam de tais autos, sendo também o arguido expresso quanto a haver elementos em tais autos (designadamente o descrito nos autos finais) que não foram por si verificados e medidos (pois poderiam até não ter existido), não podendo concluir-se que, como vinha alegado na acusação, o arguido “perguntado sobre se, na qualidade de encarregado de infra-estruturas de construção civil da D…, verificou e mediu as obras realizadas pela C… nos exactos termos descritos nos autos de medição por si subscritos, respondeu que sim”.
No entanto, mesmo a leitura mais benigna das transcritas declarações do arguido no depoimento prestado naquela audiência não pode ignorar que ele afirmou, expressa e claramente, que os autos de medição definitivos reflectiam o resultado da verificação e das medições dos trabalhos realizados pela C…, medições por ele efectuadas.
É verdade que o arguido também disse que o que consta desses autos correspondia aos valores, aos preços por ele contabilizados (fazendo um rascunho que entregava aos encarregados da C...) e que foram os cobrados à D…, que por isso não teria sido prejudicada.
Porém, uma afirmação não exclui a outra.
No n.º 5 do elenco de factos provados consta que o arguido, na referida audiência de julgamento, prestou as declarações transcritas a fls. 183 a 254, declarações essas, também, dadas como integralmente reproduzidas.
Ora, a transcrição dessas declarações, especialmente as de páginas 20 e 21 (fls. 203 e 204 destes autos) não permite qualquer dúvida sobre o sentido das afirmações do aqui arguido: as perguntas e respostas que atrás transcrevemos são bem eloquentes.
São, pois, as declarações do arguido a impor decisão diversa da recorrida.
Ainda como facto não provado, enunciado na alínea c) do respectivo elenco, temos o seguinte:
“O arguido sabia que não verificou os dados constantes nos autos de medição, tendo aceitado os dados que lhe foram entregues pelos encarregados da C… e limitando-se a contabilizar os custos inerentes”.
Já tivemos oportunidade de verificar que foi isso mesmo que o arguido declarou quando, no dia 21.09.2010, foi inquirido por um inspector da PJ, referindo que eram os encarregados da C… que lhe transmitiam os dados sobre mão-de-obra, materiais aplicados e horas de utilização de máquinas e, como confiava neles, limitava-se a contabilizar os valores com base nos preços habitualmente praticados e aceites pela D….
Nas declarações prestadas na audiência aqui realizada, o arguido admitiu que, em parte, assim acontecia.
Do conjunto das suas declarações o que resulta é que havia várias obras (mais de uma dezena) a decorrer em simultâneo numa área geográfica relativamente extensa (de … a … e, ainda, todas as vias estreitas) e era humanamente impossível uma presença assídua em cada uma delas para fiscalizar os trabalhos. Por isso, umas vezes, servia-se das informações que lhe eram fornecidas pelo seu colaborador (G…), outras vezes, tinha de confiar no empreiteiro.
Essas declarações foram parcialmente corroboradas pelos depoimentos das testemunhas G… e H…, sendo que o primeiro não tem qualquer interesse no desfecho deste processo, como, aparentemente, tem o segundo.
É, ainda, o que decorre dos depoimentos das testemunhas E… e F…, incumbidos pela direcção da empresa (D…) de averiguar se foram executados os trabalhos pelos quais foi paga uma quantia a rondar um milhão de euros.
Por isso é parcialmente verdade o que consta da referida alínea c) e, portanto, também quanto a este ponto se impõe a alteração da decisão recorrida.
Por tudo o que ficou exposto, também se impõe decisão diversa da recorrida no que tange aos factos subjectivos que materializam o dolo do arguido.
Em suma, as provas disponíveis, avaliadas em conjunto e conjugadamente, impõem, sem dúvida, decisão diversa da recorrida.
Assim, altera-se a decisão recorrida em matéria de facto nos seguintes termos:
Elimina-se todo o elenco de factos não provados.
O n.º 3 do elenco de factos provados passará a ter a seguinte formulação:
3 - Designadamente, afirmou, então, o arguido que:
- desconhecia o objecto do contrato de recolha de terras e detritos que esteve na origem dos serviços prestados pela sociedade "C…, S.A." e dos autos de medição que subscreveu;
- não teve qualquer poder de decisão quanto à realização desses trabalhos, tendo tais decisões sido tomadas pelo Eng.º H…, agindo sempre segundo a indicação deste, que avalizava a realização dos trabalhos e o informava para contactar e indicar aos encarregados da "C…, S.A." os trabalhos a efectuar;
- não lhe era possível acompanhar a realização da obra e
- os autos de medição eram-lhe entregues pelo encarregado da C…, que lhe transmitia as horas, quer da máquina, quer da mão-de-obra, bem como os materiais utilizados na obra, no que confiava, limitando-se a contabilizar os custos e a devolver de seguida ao empreiteiro que, por sua vez, os fazia chegar à D… e que, por tal motivo, não podia confirmar que os valores transmitidos pelo encarregado da C… correspondessem efectivamente aos meios e horas empregues em obra.
Adita-se ao elenco de factos provados os seguintes:
6.A - No contexto referido nos números 4 e 5 dos factos provados, o arguido perguntado sobre se, na qualidade de encarregado de infra-estruturas de construção civil da D…, verificou e mediu os trabalhos executados pela C… a que se referem os autos de medição por si assinados, respondeu afirmativamente.
6.B - O arguido sabia que não verificou os dados constantes de todos os autos de medição, aceitando que, relativamente a parte deles, os dados que neles foram inscritos fossem os fornecidos pelos encarregados da C… e limitando-se ele a contabilizar e a controlar os valores apurados com base nesses dados.
7.A - O arguido agiu sempre com liberdade de determinação, quis prestar as declarações a que aludem os n.ºs 4, 5, 6 e 6.A, apesar de bem saber que não correspondiam inteiramente à verdade, assim faltando conscientemente à verdade em audiência de julgamento, estando consciente de que tal conduta não lhe era permitida.
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Na valoração jurídico-penal dos factos provados, discorreu-se assim na sentença:
“Nos termos do artigo 360°, n.01, do Código Penal, "Quem, como testemunha (...) perante tribunal (...) prestar depoimento falso, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias".
Prevê o n.º 3 do citado artigo 360° a agravação da pena (prisão até cinco anos ou multa até 600 dias) se o facto for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe.
Visa a incriminação da falsidade de depoimento a tutela da boa realização da Justiça, potencialmente comprometida pela falsidade das declarações daqueles que com a mesma são chamados a colaborar (designadamente como testemunhas) e que, por via dessa falsidade, prejudicam ou mesmo inviabilizam o objectivo de descoberta da verdade sem a qual não é possível alcançar aquele superior objectivo de realização da Justiça, tal como não raro induzem ou contribuem para inútil mobilização de meios.
Não se demonstrou que no depoimento prestado na sessão de audiência realizada em 23.02.2012 o ora arguido tenha afirmado factos não correspondentes à realidade que vinham alegados na acusação, sendo que a demonstração de tal falsidade seria indispensável para concluir pela prática pelo arguido do crime de falsidade de testemunho (cfr., a propósito, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29.06.2009, no processo n.º 840/08.2T ABRG.G1, que pode ler-se em www.dgsi.jtrg).
Além disso, não se demonstraram também factos que permitissem concluir que o arguido tenha representado poder estar a prestar declarações desconformes com a realidade ou que o tenha pretendido ou sequer admitido e aceitado fazê-lo, do que dependeria a possibilidade de afirmação de actuação dolosa relativamente a hipotética eventual falsidade objectiva de declarações por si prestadas e, por consequência (artigos 13° e 14º do Código Penal), de afirmação de responsabilidade criminal.”
Perante a alteração da matéria de facto provada, impõe-se, naturalmente, uma diferente subsunção jurídico-penal.
Estamos diante de um crime específico próprio, pois que agente do crime não pode ser qualquer pessoa. Só determinadas pessoas especialmente caracterizadas, com determinada qualidade, podem ser seus agentes: precisamente, as pessoas que depõem como testemunhas, declarantes ou peritos ou intervêm como técnicos, tradutores ou intérpretes perante o tribunal ou funcionário competente.
Noutra perspectiva, o crime de “falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução” é um tipo formal, já que se esgota numa acção do agente, sem necessidade de produção de um resultado no sentido de efeito exterior espaço-temporalmente separável.
Tipicamente relevante é a declaração falsa prestada em qualquer fase do processo no âmbito do qual é feita.
Sobre a testemunha recaem, entre outros, os deveres de responder com verdade às perguntas que lhe forem formuladas e, quando ouvida por autoridade judiciária (juiz ou Ministério Público), a prestar juramento em que jura, por sua honra, “dizer toda a verdade e só a verdade” (cfr. artigos 132.º e 91.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal). Daí a afirmação de que está sujeita a um “dever processual de verdade e completude”[8].
Para o preenchimento do tipo objectivo, não é necessário que todo o depoimento seja falso, bastando que o seja alguma ou algumas declarações prestadas no seu decurso, mas a declaração há-de referir-se ao objecto da produção de prova[9].
Decisivo para a tipicidade da declaração falsa é que ela seja feita perante “tribunal ou funcionário competente”, conceitos que devem ser entendidos em sentido amplo.
O crime aqui em causa é necessariamente doloso, mas o tipo subjectivo basta-se com o dolo genérico em qualquer das suas modalidades.
O elemento cognitivo ou intelectual do dolo consiste na consciência da falsidade da declaração, ou de parte dela, ou então no silenciamento de algo que devia ser manifestado.
O elemento volitivo consiste na vontade, livremente determinada, de fazer uma declaração cujo conteúdo o agente sabe ser objectivamente falso ou quando, representando a possibilidade de estar a declarar algo que não é verdadeiro, conforma-se com tal resultado.
O arguido, na sessão da audiência de julgamento do processo comum n.º 362/08.1 JAAVR realizada em 23.02.2012 no Juízo de Instância Criminal de Ovar da então Comarca do Baixo Vouga, prestando depoimento como testemunha, respondeu afirmativamente à pergunta sobre se, na qualidade de encarregado de infra-estruturas de construção civil da D…, verificou e mediu os trabalhos executados pela C… a que se referem os autos de medição por si assinados.
Porém, tal afirmação não correspondia inteiramente à verdade, pois que, como já havia afirmado em fase de inquérito, o arguido sabia que não verificou os dados constantes de todos esses autos nem procedeu a qualquer medição dos trabalhos.
Pode, então, dizer-se que o por ele declarado contradiz a realidade ou verdade histórica e, portanto, há falsidade daquela declaração e está verificado “o elemento típico central” do crime de falsidade de testemunho.
Aliás, como faz notar a Ex.ma PGA no seu douto parecer, existe uma forte corrente jurisprudencial que defende que o crime se consuma quando uma testemunha, no mesmo processo e em fases distintas, produz depoimentos contraditórios sobre a mesma realidade, sendo irrelevante saber qual deles é falso.
Por outro lado, mostra-se preenchido o tipo subjectivo porquanto o arguido quis prestar aquelas declarações sabendo que não correspondiam inteiramente à verdade.
Por último, tendo havido ajuramentação e tendo o arguido sido advertido pelo juiz presidente das consequências penais da prestação de declarações falsas, está verificada a circunstância agravante do n.º 3 do artigo 360.º do Código Penal.
*
Apurada a culpa do arguido, haverá que proceder à determinação da pena.
Porém, essa operação há-de ser concretizada na primeira instância.
Apesar das opiniões em contrário, temos adoptado o entendimento de que, em caso de procedência de recurso de sentença absolutória que tenha como consequência a condenação do arguido, o direito a duplo grau de jurisdição só é respeitado se a determinação da pena ficar a cargo do tribunal de primeira instância, pois, se for o tribunal de recurso a fazê-lo, os sujeitos processuais ficam impossibilitados de impugnar a decisão e, portanto, de discutir a(s) pena(s).
Processualmente, não há qualquer obstáculo a que assim se decida, pois é autónoma a parte da sentença que se referir à “questão da culpabilidade” relativamente àquela que se referir à questão da determinação da sanção (artigo 403.º, n.º 2, al. d), do Cód. Proc. Penal).

IIIDispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, consequentemente,
A) alterar a decisão sobre matéria de facto da sentença recorrida, nos exactos termos que ficaram exarados supra;
B) declarar o arguido B… autor material de um crime de falsidade de testemunho previsto e punível pelo artigo 360.º, n.os 1 e 3, do Código Penal;
C) determinar a remessa dos autos à primeira instância para que aí se proceda à determinação da (medida) da pena.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 11-02-2015
Neto de Moura
Maria Luísa Arantes
___________
[1] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[2] Como se pode ler no acórdão do STJ de 27.05.2010 (www.dgsi.pt/jstj), “a partir da reforma de 1998 passou assim a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do artigo 410º, nº 2, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão e uma outra, mais ampla e abrangente, porque não confinada ao texto da decisão, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades.
[3] Cfr. acórdão do Pleno das Secções Criminais do STJ, de 19.10.1995 (DR, I-A, de 28.12.1995).
[4] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2.ª edição actualizada, 1131.
[5] Idem
[6] O recorrente menciona também a contestação apresentada pelo arguido, mas esta peça processual não pode ser considerada um meio de prova. Se na contestação se diz, por exemplo, que o arguido confessa os factos que lhe são imputados na acusação, tal não pode considerar-se uma confissão válida e relevante, pois as declarações do arguido constituem um acto pessoal que não pode, em caso algum, ser praticado por um procurador (cfr. artigos 138.º, n.º 1, e 140.º, n.º 2, do Cód. P roc. Penal).
[7] Por isso escrevemos no acórdão desta Relação de 01.10.2014 (processo n.º 9051/09.9 TDPRT.P2), citado pelo arguido na sua resposta, que “o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração”, podendo dar crédito às declarações do arguido em detrimento do ofendido ou dos depoimentos de uma ou várias testemunhas.
[8] A. Medina de Seiça em comentário ao artigo 360.º do Código Penal in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra Editora, 2001.
[9] Mas não tem de respeitar a elementos essenciais do facto sobre que incide o depoimento.