Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
837/15.6GBAGD-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LUÍSA ARANTES
Descritores: REQUISITOS DA SENTENÇA
OBJECTOS APREENDIDOS
DECLARAÇÃO DE PERDIMENTO
DESPACHO AVULSO POSTERIOR
Nº do Documento: RP20170913837/15.6GBAGD-B.P1
Data do Acordão: 09/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º47, FLS.15-17)
Área Temática: .
Sumário: I - Não obstante ser a sentença o momento correcto para dar destino aos objectos apreendidos, será ainda possível, posteriormente, declarar o seu perdimento a favor do Estado no caso de bem ou objecto, que pela sua própria natureza, seja de detecção proibida por particulares.
II - Já não assim, no caso de transitada a sentença onde nada se decidiu em relação aos bens ou objectos apreendidos, de detenção lícita por particulares, devendo, neste caso, ser ordenada a sua entrega a quem de direito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º837/15.6GBAGD-B.P1
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
No processo abreviado n.º837/15.6GBAGD da Comarca de Aveiro, Instância Local de Águeda, Secção Criminal, J1, por sentença proferida e depositada em 16/3/2016, transitada em julgado em 26/4/2016, o arguido B… foi condenado pela prática de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art.256.º, n.º1, alínea a) e 3 do C.Penal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de €6,00.
Após o trânsito desta decisão, por despacho, proferido em 10/11/2016, foi declarado perdido a favor do Estado o veículo de matrícula ..-..-IM, apreendido nos autos.
Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação, as seguintes conclusões (transcrição):
I - Por despacho de 10 de novembro de 2016, notificado ao arguido em 02 de janeiro de 2017, foi declarado perdido a favor do Estado o veículo de matrícula ..-..- IM, utilizado pelo então arguido, que foi condenado na pena de 200 dias de multa à razão diária de seis euros, pela prática de um crime de falsificação de documento.
II - A douta sentença foi proferida nos presentes autos em 16 de março de 2016, sendo que há muito que transitou em julgado e foi completamente omissa quando ao destino do veículo.
III - Ora, nos termo do disposto no artigo 374.º n.º3, alínea c) do Código de Processo Penal, o dispositivo da sentença deve conter, necessariamente, a indicação do destino a dar a coisas ou objetos relacionados com o crime.
IV - Para além disso, o nº2 do artigo 186º do Código Processo Penal estipula, de modo claro e inequívoco, que logo que transitar em julgado a sentença, os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado.
V - Ora não tendo o bem ou objeto em causa, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, ou seja, sendo lícita a sua detenção, então a sentença é o momento próprio para ser declarado o seu perdimento a favor do Estado.
VI - Ora transitada a sentença e nela não se decidindo o perdimento a favor do Estado de objectos apreendidos, de detenção licita por particulares, deve ser dado cumprimento ao disposto no artigo 186º, nº2 do CPP, não sendo possível determinar o perdimento desses objetos por despacho posterior.
VII - Foram assim violados os artigos186º, nº2 e 374º, nº3.
O Ministério Públio junto da 1ªinstância respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência (fls.10 a 18 do presente apenso).
Remetidos os presentes autos de apenso ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º, n.º2, do C.P.Penal, o Sr.Procurador-geral Adjunto emitiu parecer em que, louvando-se na argumentação expendida na resposta ao recurso, se pronunciou pela improcedência do recurso (fls.66 e 67).
Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2, do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
«Promoveu o Ministério Público a perda a favor do Estado do veículo apreendido nos autos.
Consta dos autos que o arguido terá comprado tal veículo, ao qual pertence a matrícula ..-...-IM, tendo-o utilizado com outra matrícula, praticando, assim, o crime de falsificação de documento por que foi condenado.
Foi o arguido notificado para se pronunciar acerca da posição assumida pelo Ministério Público (cfr. fls. 139/140/144) e, bem assim, o último titular inscrito no registo automóvel (cfr. fls. 156/163/165), nada tendo sido oposto.
Cumpre apreciar e decidir.
Considerando a posição assumida pelo Ministério e face ao disposto no artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal e atendendo a que o veículo em causa foi utilizado na prática de crime, determina-se a sua perda a favor do Estado, tendo conta que, aliás, nada foi oposto.
Notifique e, oportunamente (após trânsito), diligencie-se nos termos constantes na parte final da douta promoção de fls. 123.»
Apreciação
O âmbito do recurso está delimitado pelo teor das conclusões, extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo da apreciação pelo tribunal ad quem das questões de conhecimento oficioso.
No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas, a questão suscitada traduz-se em saber se, após a prolação da sentença, transitada em julgado, pode, em despacho autónomo, ser decidido do destino dos bens, nomeadamente, declarando a sua perda a favor do Estado.
O art.374.º do C.P.Penal estabelece os requisitos da sentença, constando da al.c) do seu n.º3 que a parte dispositiva da sentença contém a indicação do destino a dar a coisa ou objetos relacionados com o crime.
Este dispositivo está em consonância com o art.186.º, n.º2, do C.P.Penal que dispõe “Logo que transitar em julgado a sentença, os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado”
O n.º 5 do mesmo artigo estabelece uma exceção a este princípio: os casos em que tiver sido decretado o arresto preventivo dos bens, nos termos do art. 228.º do mesmo diploma legal.
Da conjugação destes preceitos resulta que o momento adequado para apreciar os pressupostos que podem conduzir à perda dos bens apreendidos é o da prolação da sentença. O que se compreende, pois é nessa altura que, após a produção da prova, se fixam os factos, se procede ao seu enquadramento jurídico, decidindo-se a causa submetida a julgamento e as consequências que daí possam advir. Uma delas poderá ser a perda dos instrumentos ou direitos relacionados com a prática de um crime.
A norma do art.186.º, n.º2, do C.P.Penal indica não só que, havendo sentença, é nela que a decisão da perda de bens é proferida, mas também as consequências do não perdimento dos bens: a restituição dos objetos apreendidos a quem de direito.
Não tendo sido declarado na sentença o perdimento a favor do Estado de determinado bem apreendido nos autos, será possível fazê-lo em momento posterior, em despacho autónomo? Como se refere no Ac.R.Évora de 16/4/2013, relatado pelo Desembargador Sénio Alves, in www.dgsi.pt, «Há que distinguir: Se o bem ou objecto em causa é, por sua própria natureza, algo cuja detenção é proibida por particulares, o seu perdimento a favor do Estado deve ser declarado em despacho autónomo, mesmo após o trânsito em julgado da sentença onde, com desrespeito pelo estatuído no artº 374º, nº 3, al. c), se omitiu o destino a dar-lhe. Com efeito, carece de qualquer razoabilidade permitir, por exemplo, que ao abrigo do disposto no artº 186º, nº 2 do CPP seja devolvido ao arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, a droga que lhe foi apreendida, se o tribunal omitiu na decisão final o destino a dar-lhe.
Se, porém, o objecto tem, em si, natureza lícita (rectius, se em abstracto a sua detenção por particulares é permitida por lei), então a sentença é o único momento em que pode ser declarado o seu perdimento a favor do Estado, verificados os pressupostos de que depende essa decisão.»
Revertendo ao caso presente, a sentença não se pronunciou sobre o destino a dar ao veículo apreendido.
Sendo a sentença omissa quanto ao destino a dar ao bem apreendido no processo, não pode tal omissão ser colmatada por despacho ulterior em que se aplica ex novo o art.109.º do C.Penal, uma vez que isso traduziria uma modificação essencial da sentença, já transitada, com a consequente violação de caso julgado. Proferida a sentença, esgotou-se o poder jurisdicional do tribunal, o qual não pode alterar aquela na sua essência, tomando novas decisões como é o caso de perdimento de bens por se concluir, no despacho ulterior, pelo preenchimento do disposto no art.109.º do C.P.Penal.
Neste sentido se têm pronunciado vários acórdãos dos Tribunais da Relação – Ac.T.R.Porto de 30/6/2004, 17/5/2006, 9/7/2008, 20/1/2014 e 8/3/2017, Ac.R.Évora de 16/4/2013 e 12/4/2016, Ac.R.Guimarães de 28/9/2009, 17/1/2011 e 21/10/2013, todos disponíveis em www.dgsi.pt – embora haja vozes discordantes – v., entre outros, Ac.R.Porto de 11/1/2012, in www.dgsi.pt, com argumentação que, salvo o devido respeito, não merece o nosso acolhimento.
Pelo exposto, o recurso procede e em consequência é revogado o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que dê cumprimento ao disposto no art. 186.º, n.º 2, do C.P.Penal.
III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ªsecção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso procedente e consequentemente, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que dê cumprimento ao disposto no art. 186.º, n.º 2, do C.P.Penal.
Sem custas.
(texto elaborado pela relatora e revisto pro ambos os signatários)

Porto, 13/9/2017
Maria Luísa Arantes
Luís Coimbra