Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1170/10.5TJVNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS QUERIDO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PROCEDIMENTO
PROPOSTA RAZOÁVEL
ACORDO EXTRA-JUDICIAL
EXCESSIVA ONEROSIDADE
RESTAURAÇÃO NATURAL
INDEMNIZAÇÃO PECUNIÁRIA
Nº do Documento: RP201302251170/10.5TJVNF.P1
Data do Acordão: 02/25/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: ARTº 562º E 566º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I - O artigo 41.º do DL 291/2007, de 21.08, contém regras de definição da indemnização por perda total apenas aplicáveis no âmbito do procedimento de proposta razoável previsto no Capítulo III do referido diploma legal.
II - Não tendo as partes chegado a acordo extra-judicial no aludido procedimento, recorrendo o autor à via judicial, não se aplicam nesta sede processual os critérios do referido normativo.
III - Da conjugação do artigo 562.º com o n.º 1 do artigo 566.º, ambos do Código Civil, se conclui que se deverá em regra proceder à restauração natural [colocando o lesado na situação anterior à ocorrência do dano], e só excepcionalmente haverá lugar à indemnização pecuniária, que se apresenta como um sucedâneo a que se recorre apenas quando a reparação em forma específica se mostra materialmente impraticável, não cobre todos os danos ou é demasiado onerosa para o devedor.
IV - A prova da excessiva onerosidade traduzida na flagrante desproporção entre o interesse do lesado e o custo da restauração natural recai integralmente sobre obrigado à reparação.
V - Na ponderação da excessiva onerosidade para o devedor, haverá que considerar, não apenas com o valor venal do veículo, mas ainda o valor de uso, podendo verificar-se a circunstância de um veículo com valor venal diminuto ter para o seu proprietário um elevado valor de uso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1170/10.5TJVNF.P1

Sumário do acórdão:
I. O artigo 41.º do DL 291/2007, de 21.08, contém regras de definição da indemnização por perda total apenas aplicáveis no âmbito do procedimento de proposta razoável previsto no Capítulo III do referido diploma legal.
II. Não tendo as partes chegado a acordo extra-judicial no aludido procedimento, recorrendo o autor à via judicial, não se aplicam nesta sede processual os critérios do referido normativo.
III. Da conjugação do artigo 562.º com o n.º 1 do artigo 566.º, ambos do Código Civil, se conclui que se deverá em regra proceder à restauração natural [colocando o lesado na situação anterior à ocorrência do dano], e só excepcionalmente haverá lugar à indemnização pecuniária, que se apresenta como um sucedâneo a que se recorre apenas quando a reparação em forma específica se mostra materialmente impraticável, não cobre todos os danos ou é demasiado onerosa para o devedor.
IV. A prova da excessiva onerosidade traduzida na flagrante desproporção entre o interesse do lesado e o custo da restauração natural recai integralmente sobre obrigado à reparação.
V. Na ponderação da excessiva onerosidade para o devedor, haverá que considerar, não apenas com o valor venal do veículo, mas ainda o valor de uso, podendo verificar-se a circunstância de um veículo com valor venal diminuto ter para o seu proprietário um elevado valor de uso.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
B…, intentou a presente acção declarativa com processo sumário, contra a Companhia de Seguros C…, SA, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe: a quantia de 23.808,84€, acrescida de juros legais a contar da citação a título de indemnização por danos materiais; a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, a título de aluguer de veículos e parqueamento do veículo ..-GG-.., a contar de 5/2/2010, até à reparação do mesmo; a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, a título de despesas com tratamentos médicos ‘e na indemnização pela IPP para o trabalho de que fique a padecer’.
Como fundamento da sua pretensão, alegou em síntese: a ocorrência de um acidente em que foi interveniente; a culpa exclusiva do condutor do veículo segurado na ré; a verificação de danos decorrentes do acidente.
A ré contestou, impugnando parcialmente a matéria alegada pelo autor relativa à dinâmica do acidente, e alegando a concorrência de culpa do condutor do veículo do autor na produção do acidente na proporção de 25%.
Por despacho de 7.02.2011 (fls. 58) foi fixado o valor da causa e dispensada a realização da audiência preliminar, tendo sido proferido despacho saneador com selecção da matéria de facto assente e da base instrutória da causa, sem reclamações.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento (acta de fls. 128), seguida de prolação da decisão sobre a matéria de facto (acta de fls. 130), sem reclamações.
Foi proferida sentença (fls. 137), com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente por provada e, em consequência:
A. Condena-se a Ré Companhia de Seguros C…, S.A. a pagar ao Autor a quantia de € 18.047,07 (dezoito mil e quarenta e sete euros e sete cêntimos), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal aplicável às obrigações civis, desde a citação até integral pagamento.
B. Condena-se a Ré a pagar ao Autor 80% da quantia que o mesmo tenha de pagar à BMW, a título de parqueamento, pelo tempo que o veículo aí esteve aparcado, relegando-se o apuramento dessa quantia para o que se vier a liquidar.
C. Condena-se a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 800,00 (oitocentos euros), a título de danos não patrimoniais.
D. Absolve-se a Ré do demais peticionado.
E. Custas a cargo da Ré e do Autor, na proporção dos respectivos decaimentos».
Não se conformou a ré e veio interpor recurso de apelação, apresentando alegações (fls. 158) onde formula as seguintes conclusões:
I. O DL 291/2007, de 21 de Agosto, regulador do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel é um diploma legal cuja aplicabilidade se apura em obediência aos mais elementares princípios gerais de Direito, não estando, de forma alguma, fragmentado nos seus vários capítulos, nos quais nada se diz sobre a sua aplicação individual à fase extrajudicial ou judicial.
II. Regulando as relações entre empresas de seguros, tomadores de seguros e beneficiários, TODO o DL 291/2007 tem aplicabilidade directa a TODAS essas relações, encontrem-se estas em fase extrajudicial ou em fase judicial.
III. Como está detalhadamente explicado nas precedentes alegações, o raciocínio do Tribunal a quo levado ao limite poderia conduzir a um resultado dificilmente aceitável: a desaplicação de alguns dos artigos contidos no capítulo III do DL 291/2007, artigos esses que têm o propósito claro de protecção do segurado.
IV. Assim, outra não será a conclusão senão a de que, tendo o sinistro dos autos originado uma situação de “perda total”, a reconstituição natural não é viável, devendo ser concedida indemnização ao lesado, calculando-se esta nos termos do número 3 do artigo 41.º daquele diploma, devendo a Recorrente ser condenada apenas ao pagamento da quantia de € 10.088,00.
V. Apenas com a substituição parcial da sentença recorrida, com a consequente condenação na quantia descrita em IV, se fará a inevitável justiça.
VI. Ao decidir como fez, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 41.º do DL 291/2007, de 21 de Agosto.
Sem prescindir,
VII. Caso se pugne pela inaplicabilidade do Capítulo III, do mesmo diploma, à fase judicial dos litígios, diga-se que sempre se deverá atender aos princípios gerais de Direito ínsitos no Código Civil.
VIII. O princípio da reconstituição in natura não vale quando revista carácter excessivamente oneroso.
IX. O Tribunal a quo não explicou por que razão não acolheu o carácter excessivamente oneroso da reparação do veículo automóvel aqui em causa.
X. Dos factos provados resulta que o valor venal do veículo era, à data do acidente, € 18.500,00 (dezoito mil e quinhentos euros). Ficou pois provado que, por este montante, o Recorrido poderia ter substituído o seu automóvel por outro idêntico.
XI. Mais, ao lesado, aqui Recorrido, foi concedido um enriquecimento absolutamente indevido, no momento em que se lhe atribuiu um valor de reparação de € 18.822,64, para um veículo cujo valor venal está fixado (e aceite) em € 18.500,00, sendo que o valor do salvado foi quantificado, por concordância das partes, em € 5.980,00!
XII. Se o disposto no art. 566.º, n.º 1 do C. C. não pode ser visto como uma forma pela qual o devedor reduz a indemnização devida ao credor, também não pode ser visto como um meio de o credor enriquecer indevidamente à custa do devedor.
XIII. Ao manter a propriedade do salvado, cujo valor se provou ser de € 5.980,00, o lesado/Recorrido enriqueceu-se nesta medida.
XIV. A sentença em crise permite que o Recorrido veja transformado um bem patrimonial que tinha o valor de € 18.500,00 em € 24.802,64!
XV. Ao decidir como fez, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 566.º e 473.º do Código Civil.
XVI. Salvo o devido respeito, a única decisão adequada ao caso concreto seria a de condenar a Recorrente ao pagamento da quantia de € 10.088,00, e nunca de € 15.057,79.
O autor não apresentou resposta às alegações de recurso.

II. Do mérito do recurso
1. Definição do objecto do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigos 684.º, n.º 3 e 685.º-A n.ºs 1 e 3 do CPC), salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 660º, nº 2, in fine), consubstancia-se nas seguintes questões: i) saber se são aplicáveis à definição da indemnização devida pela reparação do veículo, os critérios enunciados no artigo 41.º do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21.08; ii) apreciação do quantitativo fixado a título de reparação; iii) apreciação da pretensão de dedução do valor dos ‘salvados’, formulada pela recorrente.

2. Fundamentos de facto
É a seguinte a factualidade relevante provada nos autos e não impugnada:
1. Cerca das 22.00h, do dia 5 de Fevereiro de 2010, na E.N., …, KM 20,730, freguesia …, concelho de Vila Nova de Famalicão, ocorreu um acidente de viação, em que foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-GG-.., conduzido por D… e o veículo de matrícula ..-..-TV, propriedade de E… e conduzido por F….
2. O veículo de matrícula ..-..-TV, circulava numa via que desemboca na estrada nacional n.º …, do lado esquerdo, atento o sentido de marcha do veículo de matrícula ..-GG-.. e pretendia passar a circular na estrada nacional n.º …, no sentido Famalicão-Póvoa do Varzim.
3. O condutor do veículo de matrícula ..-..-TV, em vez de parar o veículo que conduzia, em obediência ao sinal de STOP, que existia na estrada por onde circulava, antes de entrar na estrada nacional n.º … (estrada com dois sentidos de tráfego, Famalicão-Póvoa de Varzim e vice-versa) e ceder a passagem aos veículos que nela circulavam, designadamente, ao veículo de matrícula ..-GG-.., desrespeitou o sinal de STOP, pois, não parou.
4. A colisão deu-se na faixa de rodagem direita, atento o sentido Famalicão-Póvoa de Varzim.
5. O veículo de matrícula ..-GG-.. acabou imobilizado na faixa de rodagem esquerda, atento o sentido Famalicão-Póvoa de Varzim e o veículo de matrícula ..-..-TV, na faixa de rodagem direita atento o mesmo sentido, com a frente voltada no sentido Póvoa de Varzim-Famalicão.
6. A demandada Companhia de Seguros C…, S.A., assumiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de matrícula ..-..-TV, em virtude do contrato de seguro titulado pela apólice ………., válido e eficaz à data do acidente.
7. O local onde ocorreu o acidente configura um entroncamento à esquerda, atento o sentido do GG, isto é, o sentido de trânsito Vila Nova de Famalicão/Póvoa de Varzim.
8. Nos 50 metros anteriores ao entroncamento apresentam-se aos condutores que circulem como circulava o GG, isto é, no sentido Vila Nova de Famalicão/Póvoa de Varzim, vários sinais de perigo, alertando para a proximidade com o referido entroncamento.
9. Existe um sinal de proibição de exceder 50 km/h.
10. Existe um sinal de perigo de aproximação de passadeira para peões.
11. Existe um sinal de perigo de aproximação a uma escola.
12. Existe um sinal de perigo para a aproximação de via sem prioridade.
13. Atento o sentido Vila Nova de Famalicão/Póvoa de Varzim a visibilidade no local de sinistro é boa.
14. O veículo TV seguia na Rua … em direcção ao entroncamento com a E.N. ….
15. Pretendendo virar à esquerda nesse entroncamento e passar a circular na EN … no sentido Vila Nova de Famalicão/Póvoa de Varzim.
16. No local do embate não existe qualquer marca de travagem do GG porque o seu condutor não travou antes de embater no TV.
17. Em 11-03-2010, a demandada colocou à disposição do demandante a quantia que julga idónea para indemnizar os prejuízos da demandante.
18. Os serviços de peritagem da Ré apuraram que o valor estimado para a reparação do GG seria de € 18.822,24 (dezoito mil oitocentos e vinte e dois euros e vinte e quatro cêntimos).
19. Sendo o valor do salvado de €5.890,00 (cinco mil oitocentos e noventa euros).
20. E o valor venal do GG de € 18.500,00.
21. O acidente referido em A), ocorreu na ….
22. O veículo de matrícula ..-GG-.. é propriedade do autor.
23. O veículo ..-GG-.. circulava pela metade direita da faixa de rodagem, na E.N. …, na …, …, Famalicão, no sentido Famalicão-Póvoa de Varzim.
24. O veículo ..-..-TV entrou na estrada nacional …, por onde circulava e se aproximava o veículo de matrícula ..-GG-...
25. Cortando-lhe a linha de marcha, barrando-lhe totalmente a passagem.
26. O condutor do veículo de matrícula ..-GG-.., guinou o volante para a sua esquerda, para evitar a colisão.
27. O condutor do GG não conseguiu evitar a colisão, acabando por embater com a frente do lado direito do veículo GG, na traseira lado esquerdo do direito do veículo de matrícula ..-..-TV.
28. Em consequência do embate, o veículo de matrícula ..-GG-.. ficou bastante danificado e impossibilitado de circular.
29. A sua reparação demanda os serviços de chapeiro, mecânica e pintura, bem como, a aplicação de várias peças novas, descriminados no orçamento anexo e custa a quantia de € 18.822,24.
30. O veículo encontra-se por reparar e esteve algum tempo, não concretamente apurado, no parqueamento da BMW, em Braga.
31. A ré não deu autorização para a sua reparação.
32. O Autor alugou outros veículos, tendo despendido a quantia de € 2.740,00, desde 13-02-2010 a 25-03-2010.
33. O Autor será obrigado a pagar à BMW, uma quantia diária, a título de parqueamento, pelo tempo que o veículo aí esteve aparcado.
34. O demandante em exames de diagnóstico gastou a quantia de € 40,00.
35. Em medicamentos gastou a quantia de € 6,60.
36. O Autor trabalhava por conta própria.
37. E esteve impedido de o fazer entre 05-02-2010 e 16-03-2010.
38. O demandante seguia no banco da frente ao lado do condutor, como passageiro.
39. Em consequência do acidente o demandante sofreu traumatismo lombar.
40. Lesões que o obrigaram a recorrer a tratamento sintomático com alívio parcial, designadamente fisioterapia.
41. O demandante sofreu dores físicas na altura do acidente e durante o tratamento que se quantificam e grau 1, numa escala de 1 a 7.
42. O TV já se encontrava praticamente todo dentro da faixa de rodagem da direita da EN …, atento o sentido Vila Nova de Famalicão/Póvoa de Varzim, mas enviesado (oblíquo), quando foi violentamente embatido pelo GG.
43. O GG aproximava-se a uma velocidade superior a 50 km/h.

II. Fundamentos de direito
1. Síntese do objecto do recurso
A recorrente circunscreve o objecto do recurso à indemnização por ‘perda total’ do veículo conduzido pelo autor.
Previamente à abordagem das questões jurídicas suscitadas, haverá que fazer uma breve síntese do objecto do recurso, destacando da sentença, nomeadamente do elenco factual enunciado, o que assume efectiva relevância para a apreciação da única questão que nos ocupará.
Na sentença recorrida, a M.ª Juíza considerou provada a seguinte factualidade relevante nesta matéria:
1) Os serviços de peritagem da Ré apuraram que o valor estimado para a reparação do GG seria de € 18.822,24 (dezoito mil oitocentos e vinte e dois euros e vinte e quatro cêntimos) [facto 18];
2) Sendo o valor do salvado de € 5.890,00 (cinco mil oitocentos e noventa euros) [facto 19];
3) E o valor venal do GG de € 18.500,00 [facto 20];
4) Em consequência do embate, o veículo de matrícula ..-GG-.. ficou bastante danificado e impossibilitado de circular [facto 28];
5) A sua reparação demanda os serviços de chapeiro, mecânica e pintura, bem como, a aplicação de várias peças novas, descriminados no orçamento anexo e custa a quantia de € 18.822,24 [facto 29];
6) O veículo encontra-se por reparar [facto 30].
Face à prova produzida em sede de alegação de culpa, considerou a M.ª Juíza: «Deste modo, porque o acidente emerge de um facto ilícito imputável ao condutor do veículo seguro na ré, recai sobre a mesma a obrigação de ressarcir os danos causados ao demandante, na mesma proporção da responsabilidade fixada ao condutor do veículo seguro, que corresponde, portanto, a 80%».
E concluiu: «Pelo exposto, entende o Tribunal que deve a ré ser condenada a proceder à reparação e pagar o respectivo valor, na proporção de 80% acima fixada, o que corresponde a €15.057,79, assim se respeitando o princípio da reparação natural».
Ou seja, foi a ré condenada a pagar o valor correspondente a 80% (proporção da culpa do seu segurado) do custo da reparação - € 18.822,24 [€ 18.822,24 x 80% = € 15.057,79].
2. A inaplicabilidade dos critérios enunciados no artigo 41.º do DL 291/2007, de 21.08
Insurge-se a recorrente [conclusões I a VI] contra o facto de o Tribunal não ter seguido o critério de reparação enunciado no artigo 41.º do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21.08[1].
Com o devido respeito, não lhe assiste razão.
A Directiva 2000/26/CE[2] do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de Maio de 2000 relativa à aproximação das legislações dos Estados-Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis, no n.º 6 do seu artigo 4.º obrigou à previsão na lei nacional de um “Procedimento de oferta razoável”[3].
A referida Directiva foi transposta para o ordenamento jurídico interno através do Decreto-Lei n.º 72-A/2003 de 14 de Abril, que alterou o Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro (que previa o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), e o Decreto-Lei n.º 94-B/98, de 17 de Abril, passando a constar do artigo 44.º do referido DL 525/85 a imposição às seguradoras do dever de apresentação de uma “Proposta razoável”, constituindo este conceito a epígrafe da citada disposição legal[4].
O Decreto-Lei n.º 522/85 veio a ser revogado pelo Decreto-lei n.º 291/2007, de 21.08 [artigo 94.º, n.º 1, a)], mantendo-se a mesma exigência legal, agora sediada no artigo 38.º do DL 291/2007, de apresentação por parte da seguradora de uma “Proposta razoável”, no caso de a responsabilidade não ser contestada e de o dano sofrido ser quantificável no todo ou em parte.
Fora entretanto publicada a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio[5], parcialmente vertida no nosso ordenamento jurídico pelo Decreto-Lei nº 83/2006, de 3 de Maio, que introduziu várias alterações ao Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro, aditando-lhe, nomeadamente, o artigo 20.º-I, onde se passaram a definir as condições em que se deveria entender “que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, na qual a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo”.
Finalmente, o Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto [que revogou o DL 83/2006 – art. 94.º, n.º 1, d)], transpôs parcialmente para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, passando a prever no seu artigo 41.º as situações de perda total, e a definir (de forma diferente relativamente ao que ocorria no art.º 21.º-A do DL 522/85), as circunstâncias em que a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo.
No entanto, o artigo 41.º do DL 291/2007, tal como ocorria com o artigo 21.º-I do DL 522/85, resulta da transposição das aludidas directivas comunitárias, na parte referente à instituição de um “Procedimento de oferta razoável”, actualmente regulado no Capítulo III do citado DL 291/2007, com o objecto definido de forma transparente e unívoca no seu artigo 31.º, nestes termos: «O presente capítulo fixa as regras e os procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel».
Em suma, o artigo 41.º do DL 291/2007, invocado pela recorrente, contém regras de definição da indemnização por perda total, apenas aplicáveis no âmbito do “Procedimento de oferta razoável” previsto no Capítulo III do referido diploma legal.
In casu no âmbito de tal procedimento (extra-judicial) as partes não chegaram a acordo, tendo o autor recorrido à via judicial[7], pelo que, ressalvando sempre o devido respeito, não vislumbramos qualquer suporte jurídico para a pretensão recursória da recorrente, no sentido de nesta sede processual se aplicarem os critérios da referida norma.
3. Reparação in natura e irrelevância do valor dos “salvados”
Alega a recorrente nas conclusões VII a XVI, que ao recorrido, foi concedido ‘um enriquecimento absolutamente indevido’, no momento em que se lhe atribuiu um valor de reparação de € 18.822,64, para um veículo cujo valor venal está fixado (e aceite) em € 18.500,00, sendo que o valor do salvado foi quantificado, por concordância das partes, em € 5.980,00, e que ao manter a propriedade do salvado, cujo valor se provou ser de € 5.980,00, o recorrido enriqueceu-se nesta medida.
Com o devido respeito, uma vez mais não lhe assiste razão.
Afastada que está a aplicação em sede judicial, dos critérios de definição do valor indemnizatório previstos no artigo 41.º do DL 291/2007, de 21.08, há que recorrer à regra geral enunciada nos artigos 562.º e 566.º do Código Civil, que consagram no nosso ordenamento jurídico o primado da reparação natural.
Nos termos da primeira disposição legal citada, “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, dispondo o n.º 1 do artigo 566.º que “A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor”.
Da conjugação dos normativos transcritos, se conclui que se deverá em regra proceder à restauração natural [colocando o lesado na situação anterior à ocorrência do dano], e só excepcionalmente haverá lugar à indemnização pecuniária, que se apresenta como um sucedâneo a que se recorre apenas quando a reparação em forma específica se mostra materialmente impraticável, não cobre todos os danos ou é demasiado gravosa para o devedor[8].
A prova da excessiva onerosidade traduzida na ‘flagrante desproporção entre o interesse do lesado e o custo da restauração natural’[9] recai integralmente sobre o lesante (in casu a seguradora recorrente), conforme entendimento pacífico da jurisprudência[10].
A recorrente não demonstrou a ‘excessiva onerosidade’, não resultando tal circunstância da matéria provada, considerando o entendimento jurisprudencial que se subscreve, de que na ponderação da excessiva onerosidade para o devedor não podem deixar de ser considerados factores subjectivos, respeitantes não só à pessoa deste, e à repercussão do custo da reparação natural no seu património, mas também às condições do lesado, e ao seu justificado interesse específico na reparação do objecto danificado, antes que no percebimento do seu valor em dinheiro[11].
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5.07.2007[12], “um veículo já com muito uso pode ter um valor comercial pouco significativo, mas, ainda assim, pode satisfazer as necessidades do dono, enquanto a quantia, muitas vezes irrisória, equivalente ao seu valor de mercado, pode não conduzir à satisfação dessas mesmas necessidades, por não lhe permitir a aquisição de uma viatura da mesma marca, com as mesmas características e com o mesmo uso”.
Pelas razões apontadas, se tem concluído na jurisprudência que “a excessiva onerosidade da reparação prevista no art. 566°/1 teria de ser confrontada, não apenas com o valor venal (comercial, de venda) do veículo, mas ainda com o valor do veículo para o seu proprietário (valor de uso, nos termos do qual a um valor venal diminuto pode corresponder uma grande utilidade para o utilizador)”[13].
Tal entendimento tem encontrado apoio, claramente maioritário[14] na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como se ilustra com o acórdão de 5.07.2007 (já citado), e com os acórdãos de 12.01.2006[15], e de 4.12.2007[16]
Como se refere no acórdão de 4.12.2007, o valor patrimonial, que deverá considerar-se, consiste no valor que o veículo “representa efectivamente – tal como estava antes do sinistro – dentro do património do autor (e não o valor que ele obteria se naquele mesmo estado o vendesse)”.
Na situação sub judice, provou-se que
1) Os serviços de peritagem da Ré apuraram que o valor estimado para a reparação do GG seria de € 18.822,24 (dezoito mil oitocentos e vinte e dois euros e vinte e quatro cêntimos) [facto 18];
2) E o valor venal do GG de € 18.500,00 [facto 20];
Não há nos autos factualidade apurada relativamente ao específico valor de uso do veículo, de acordo com o critério enunciado na jurisprudência que referenciámos, mas o valor da reparação quase coincide com o valor de mercado (ou valor venal), verificando-se apenas uma diferença de € 322,24.
Neste contexto, não tendo a seguradora/recorrente feito prova da excessiva onerosidade da reparação natural, não existe qualquer razão que legitime o afastamento da regra do primado dessa forma de reparação, decorrente da conjugação dos artigos 562.º e 566.º/1 do Código Civil.
Em conclusão, em obediência às citadas disposições legais, a recorrente deverá ressarcir o recorrido, reparando o veículo [o que in casu consistirá no pagamento dessa reparação, de acordo com o valor definido pela própria seguradora].
Aqui chegados, levanta-se a questão do valor dos salvados.
Refere a recorrente a este propósito, que tal valor deverá ser deduzido ao montante que terá de pagar.
Com o devido respeito, esta argumentação afigura-se-nos um absurdo jurídico, na medida em que não conseguimos vislumbrar qualquer lógica subjacente.
Vejamos porquê.
O valor em que a ora recorrente foi condenada não corresponde à indemnização sucedânea pecuniária prevista no n.º 1 do artigo 566.º apenas para as situações em que a “reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor”.
Antes corresponde à reparação ou reconstituição natural.
Simplesmente, como a seguradora não pode reparar por si o veículo sinistrado (por não ter meios para o efeito), terá que o fazer com recurso aos serviços de terceiro (oficina), pagando os custos da reparação.
Ora, face às regras da mais elementar lógica, que sentido faria, perante a natureza da prestação em que a seguradora foi condenada, deduzir o valor dos salvados?
Tal dedução só poderia ocorrer na condenação em indemnização sucedânea pecuniária, caso se chegasse à conclusão da inviabilidade de reparação do veículo [por materialmente impraticável, por não cobrir todos os danos ou por excessiva onerosidade] e se atribuísse ao lesado um valor com o qual este teria que adquirir no mercado um veículo equivalente.
Apenas nessa eventualidade teria que ser atribuído ao lesado o valor do veículo sinistrado, perfilando-se duas possibilidades: ou a seguradora pagava integralmente o valor, ficando com os salvados; ou deduzia o valor dos salvados na hipótese de ficarem na propriedade do lesado.
Na situação sub judice, como já se afirmou, a recorrente não logrou demonstrar a excessiva onerosidade da reparação in natura, equacionada nos termos que ficaram definidos, encontrando-se vinculada a esta forma de reparação, não havendo lugar à dedução do valor dos salvados.
Por outro lado, contrariamente ao que a recorrente alega, não se verifica qualquer enriquecimento do lesado, na medida em que, de acordo com as normas jurídicas enunciadas (art. 562.º e 566.º do CC), o que a sentença determinou foi a reconstituição da situação que existiria caso não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Face ao exposto, revela-se manifestamente improcedente o recurso, devendo, em consequência, manter-se a sentença recorrida.

III. Dispositivo
Com fundamento no exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, ao qual negam provimento, mantendo em consequência a douta sentença recorrida.
Custas do recurso pela apelante.
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O presente acórdão compõe-se de dezasseis páginas e foi elaborado em processador de texto pelo relator, primeiro signatário.
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Porto, 25 de Fevereiro de 2013
Carlos Manuel Marques Querido
José Fonte Ramos
Ana Paula Pereira de Amorim
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[1] Na sentença recorrida, a M.ª Juíza afasta a aplicação do citado normativo com os seguintes fundamentos: «Cumpre, todavia, notar, que o art. 41º do DL n.º 291/2007 se insere no capítulo III do diploma, “Da regularização dos sinistros”, capítulo esse que fixa as regras e os procedimentos a observar pelas empresas de seguros com vista a garantir, de forma pronta e diligente, a assunção da sua responsabilidade e o pagamento das indemnizações devidas em caso de sinistro no âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel.” É, portanto, nesse âmbito, da regularização dos sinistros, numa fase extrajudicial, que tem aplicação o preceito em causa. O que significa que o mesmo em nada belisca com o disposto no art. 566º, nº 1, do Código Civil, que impõe, em primeira linha a obrigação do lesante na reparação natural do dano».
[2] Quarta directiva sobre o seguro automóvel - altera as Directivas 73/239/CEE e 88/357/CEE do Conselho.
[3] Refere-se o seguinte objectivo na Directiva em apreço: «por forma a garantir que, num prazo de três meses a contar da data em que a pessoa lesada tenha apresentado o seu pedido de indemnização directamente à empresa de seguros da pessoa que causou o sinistro ou ao seu representante para sinistros:
a) A empresa de seguros da pessoa que causou o sinistro ou o seu representante para sinistros apresentem uma proposta de indemnização fundamentada, no caso de a responsabilidade não ser contestada e o dano sofrido estar quantificado; ou b) A empresa de seguros a quem tiver sido dirigido o pedido de indemnização ou o seu representante para sinistros dêem uma resposta fundamentada quanto aos pontos invocados no pedido, no caso de a responsabilidade ter sido rejeitada ou não ter sido claramente determinada ou os danos sofridos não estarem totalmente quantificados».
[4] Traduzindo-se num sistema de apressamento da regularização dos sinistros, como refere Arnaldo Filipe da Costa Oliveira (in Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Almedina, 2008, página 18).
[5] Quinta directiva sobre o seguro automóvel - alterou as Directivas n.ºs 72/166/CEE, do Conselho, de 24 de Abril; 84/5/CEE, do Conselho, de 30 de Dezembro de 1983; 88/357/CEE, do Conselho, de 22 de Junho; 90/232/CEE, do Conselho, de 14 de Maio; e 2000/26/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Maio, todas relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis.
[6] Neste sentido, vide o acórdão da Relação de Coimbra de 9.01.2012, relatado pelo também ora relator, no Processo n.º 153/11.2TJCBR.C1, bem como o acórdão da mesma Relação, de 15.11.2011, proferido no Processo n.º 91/09.9TBALB.C1, e os acórdãos desta Relação, de 4.07.2011, proferido no 1937/06.9TBPFR.P1, e de 14.06.2010, proferido no Processo n.º 2247/08.2TBMTS.P1, todos acessíveis em http://www.dgsi.pt (site onde estão disponíveis todos os arestos doravante citados).
[7] Provou-se (facto 17), que: “Em 11-03-2010, a demandada colocou à disposição do demandante a quantia que julga idónea para indemnizar os prejuízos da demandante”.
[8] Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 12.ª edição, 2011, página 771.
[9] Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, 12.ª edição, 2011, página 772.
[10] Neste sentido, vide o já citado acórdão da Relação de Coimbra de 9.01.2012, relatado pelo ora relator no Processo n.º 153/11.2TJCBR.C1, bem como: o acórdão da Relação de Lisboa, proferido em 16.07.2009, no Processo n.º1781/06.3TBALQ.L1-8; o acórdão desta Relação, de 4.07.2011, proferido no Processo n.º 1937/06.9TBPFR.P1, sumariado nestes termos: “Ao lesado cabe provar o valor do dano, por tal facto ser constitutivo do direito que se arroga (artigo 342.°, nº 1 do Código Civil), competindo ao lesante (seguradora), provar que o mesmo é excessivamente oneroso, dado o carácter exceptivo desse facto (artigo 342.°, nº 2 do mesmo Código), sendo que esse ónus não se satisfaz apenas por mera comparação dos dois valores (o da reparação e o venal)”; e o acórdão desta Relação, de 29.05.2012, proferido no Processo n.º 6029/10.3TBMTS.P1, parcialmente sumariado nestes termos: “Ao autor cabe a prova do valor da reparação (artigo 342.°, n.° l, CC); à ré cabe a prova da excessiva onerosidade da reparação, já que a reparação por equivalente é uma excepção à regra da reconstituição natural (artigo 342.°, n.° 2, CC)”.
[11] Vide, neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5.07.2007, proferido no Processo n.º 07B1849.
[12] Já anteriormente citado, proferido no Processo n.º 07B1849.
[13] Arnaldo Filipe da Costa Oliveira (in Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Almedina, 2008, página 69).
[14 Em sentido contrário encontrámos apenas um acórdão do STJ, de 20 de Maio de 1995, CJSTJ, T2, pág. 97.
[15[Proferido no processo n.º 05B4176.
[16] Proferido no processo n.º 06B4219.