Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
482/10.2SJPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: PROVA INDIRECTA
CRIME DE BURLA
ASTUCIA
BURLA INFORMÁTICA
Nº do Documento: RP20160203482/10.2SJPRT.P1
Data do Acordão: 02/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 984, FLS.177-194)
Área Temática: .
Sumário: I - O artº 127º CPP admite a prova indirecta, ao estabelecer que a prova é apreciada segundo a livre convicção e as regra da experiência, pois são estas que permitem extrair dos factos directamente percecionados e conhecidos, chegando por essa via ao conhecimento de outros factos com o necessário grau de certeza.
II - Para a valoração da prova indirecta importa que ocorram uma pluralidade de elementos, que esses elementos sejam concordantes e esses indícios afastem para além de toda a duvida razoável a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso daquele para que apontam aqueles indícios probatórios.
III – Ocorre astucia provocadora do engano, quando o burlão dá a uma falsidade a aparência de verdade.
IV- A idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tendo em conta as características do concreto burlado.
V – A burla informática consiste sempre num comportamento que constitui um erro consciente provocado por intermédio da manipulação de um sistema de dados ou de tratamento informático, ou de equivalente utilização abusiva de dados.
VI- Não se exige um qualquer engano ou artifício por parte do agente mas sim a introdução e utilização abusiva de dados no sistema informático.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 482/10.2SJPRT.P1
1ª secção

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos na Secção Criminal – J5 da Instância Local do Porto, Comarca do Porto com o nº 482/10.2SJPRT, foi submetida a julgamento a arguida B…, tendo a final sido proferida sentença que condenou a arguida, pela prática de um crime de burla qualificada p. e p. nos artºs. 217º nº 1, 218º nº 2 al. a) e 202º al. b), todos do Cód. Penal, na pena de dois anos e três meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo, sob condição de pagar à assistente C… a quantia de € 5.000,00. Mais foi a arguida condenada a pagar à assistente a quantia de € 15.560,00 e ao Banco D…, SA. a quantia de € 9,445,21.
Inconformada com a sentença condenatória, dela veio a arguida interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. A recorrente não se conformou com a douta sentença do Tribunal a quo, que a condenou na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de 2 anos e 3 meses, sob a condição de pagar à assistente/recorrida a quantia de € 5.000,00, tendo sido igualmente condenada no pedido de indemnização civil a pagar à assistente/recorrida a quantia de € 15.560,00 e à parte civil Banco D…, SA. a quantia de € 9.445,21, no tocante aos factos dados como provados;
2. Considera a mesma que o Mmo. Juiz do Tribunal a quo não fez, salvo o devido respeito, uma correta interpretação dos factos e que muitas dúvidas permaneceram no julgamento do respetivo processo;
3. No que toca aos factos 1º a 24º dados como provados na sentença recorrida, a recorrente propõe-se a demonstrar que os mesmos não poderiam ter sido dados como provados nem podia o douto Tribunal a quo ter-se apoiado tanto na credibilidade atribuída à assistente/recorrida, uma vez que a mesma apresentou várias contradições no seu depoimento;
4. Em primeiro lugar, em relação aos factos 2º e 3º dos factos provados a assistente/recorrida mesma afirmou primeiramente que se decidiu a visitar a recorrente em meados do ano de 2006, tendo prontamente corrigido e afirmado precisamente que foi em Outubro de 2008;
5. Ainda, atendendo ao artigo 3º dos factos provados, foi a assistente/recorrida que tomou a iniciativa de visitar a recorrente, não tendo sido esta a iniciar o contacto para efeitos de lhe pedir dinheiro emprestado;
6. Em relação ao artigo 9º dos factos provados, o Tribunal a quo considerou ainda o depoimento da assistente/recorrida no sentido em que esta confirmou que assinou os formulários dos Bancos sem ler os mesmos e na “errónea convicção que respeitavam todos eles a um único contrato de empréstimo e que nele figuraria somente como fiadora”, não se tendo pronunciado todavia no que toca ao facto de a mesma assistente/recorrida ter afirmado que não consegue ler nem escrever sem óculos, mas que conseguiu assinar os referidos formulários sem os óculos, facto que não mereceu credibilidade;
7. Em relação ao ponto 10º dos factos provados não se afigura razoável que o Mmo. Juiz tenha considerado que foi a recorrente a preencher os contratos bancários, fazendo constar dos mesmos os montantes dos empréstimos, pelo simples facto de a assistente/recorrida ter dito que não tinha sido ela a preencher os mesmos e que a letra que deles constava não era sua;
8. O Tribunal retirou essa presunção apesar de a recorrente ter dito, confrontada com os mesmos documentos, que nunca os tinha visto, sem proceder a qualquer prova suplementar, designadamente acareação nos termos do artº 146º do CPP ou também perícia à letra da recorrente, de modo a confrontar esta com a letra aposta nos referidos formulários bancários, nos termos do artº 151º do CPP;
9. Em relação aos pontos 13º, 15º, 17º, 18º e 19º, não se entende que o Tribunal tenha dado como provado que as transferências realizadas através das caixas ATM foram feitas pela ora recorrente, uma vez que a mesma referiu que era o seu marido que movimentava por vezes ambas as contas visto que este se apoderava dos seus documentos bancários, não tendo esta, por outro lado, qualquer hipótese de aceder à conta do marido, concluindo-se desta forma que não é possível precisar quem é que realiza movimentos bancários em caixas de ATM, uma vez que não há qualquer registo dos mesmos;
10. O Tribunal prontificou-se a assumir que tinha sido a recorrente a autora de tais transferências, ignorando o facto de poder ter sido qualquer outra pessoa incluindo o marido da mesma (que a recorrente afirmou que este se levantava com ajuda, nomeadamente dos bombeiros e que saía de casa para ir ao Banco) e inclusivamente a própria assistente/recorrida, já que, alegadamente, se prontificou desde logo a ser fiadora da recorrente;
11. Em relação ao ponto 23º e 24º dos factos provados, não revelou qualquer credibilidade o facto de a assistente/recorrida ter dito que apenas aquando do pedido de uma nova caderneta, em Outubro de 2009 é que a mesma se apercebeu da falta de dinheiro na conta;
12. O Mmo. Juiz não se pronunciou sobre a contradição no depoimento da assistente/recorrida na parte em que a mesma alegou que sobreviveu durante os meses de Março a Outubro de 2009, tendo em conta que se encontrava privada da dita caderneta (único meio através do qual levantava o seu vencimento mensal) com cerca 1.000€ em casa, que lhe deram para as despesas durante esse período, sendo que afirmou ter custos fixos mensais na ordem dos 400€;
13. Igualmente não se pronunciou sobre a parte do depoimento da assistente/recorrida que se revelou totalmente contrário ao anteriormente prestado no DIAP, no que toca ao facto de nunca ter confrontado a arguida com a situação em crise e de ter admitido no mesmo que a mesma lhe teria pago cerca de 2.000€;
14. Ainda em relação ao depoimento da assistente/recorrida, não soube ainda a mesma clarificar em que momento é que deu pela falta do dinheiro na conta: se quando pediu a caderneta em 2008 ou quando recebeu as cartas em 2010, facto que igualmente não foi tido em conta pelo Tribunal;
15. Ainda em relação aos pontos 10º e 23º dos factos provados, veio a testemunha E… dizer que para que o crédito obtido junto do Banco D…, SA (parte civil nos presentes autos) são necessários vários documentos pessoais, designadamente recibo de vencimento e comprovativo de morada – documentos estes em relação aos quais nunca nada foi perguntado, nem à recorrente, nem à recorrida no sentido de se tentar apurar que a última os emprestou à primeira, ou se esta os teve, de alguma forma ou em algum momento na sua posse, sendo tal condição obrigatória e essencial para a celebração do contrato bancário com a parte civil;
16. Os depoimentos da assistente/recorrida revelaram-se inconsistentes e contraditórios, não merecendo, em consequência, o grau de credibilidade e verosimilhança que o Tribunal a quo lhe atribuiu, ao contrário da recorrente que apresentou um depoimento convicto e seguro, não entrando em contradições, pelo que não se concebe que não lhe tenha sido dada a credibilidade merecida;
17. Tendo em conta o supra exposto, não foram os factos corretamente julgados, e nem tão pouco havia provas suficientes e minimamente indubitáveis para se concluir deles haver uma prova suficiente, segura e indubitável para se chegar a uma condenação;
18. Uma melhor análise das provas produzidas em audiência de discussão e julgamento e face ao que ficou assente pelas declarações dos intervenientes e da testemunha temos da versão da assistente/recorrida abissais contradições e manifesta insegurança em todo o seu depoimento;
19. Face ao exposto considera-se que, verificando-se as contradições insanáveis e as dúvidas que com base nas mesmas permaneceram, não possuiu o douto Tribunal a quo elementos de prova bastantes para poder convencer-se de que a ora recorrente praticou os factos pelos quais vinha acusada;
20. Pese embora o princípio da Livre Apreciação da prova e do livre convencimento do Tribunal, no caso concreto que se nos apresenta, o mesmo não tem como ter ficado convencido da conduta da recorrente, pelo menos não com a prova que foi produzida, pelo que deveria ter absolvido a ora recorrente, por falta de provas de que esta realizou o crime pelo qual vinha acusada;
21. No que concerne agora em relação aos pontos 20º e 21º dos factos provados, tem-se que os mesmos entram em contradição insanável com os dois últimos pontos dos factos dados como provados, pelo que não se podem considerar provados;
22. Aliás, em relação aos mesmos, não se concebe onde é que o Mmo. Juiz foi buscar tais valores, uma vez que os mesmos não constam da acusação nem da audiência de discussão e julgamento;
23. No que toca ao preenchimento dos requisitos do crime de burla, em relação ao requisito do “erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou”, consagrado no artº 217º nº 1 do CP, entende-se que o mesmo requisito não está preenchido, uma vez que o erro tinha que ser idóneo para produzir a prática de um ato de auto-lesão, e esta, por sua vez, tem que ser idónea para provocar a própria lesão;
24. O Professor Beleza dos Santos que considera que para que se verifique existência de manobras fraudulentas, não basta uma simples mentira, mas sim uma mentira qualificada, engenhosa, sagaz, astuta e que se repartem os riscos pela mentira, pois se tratasse de uma mentira qualificada, não seria tutelado o sujeito lesado (este devia-se ter protegido e precavido contra a mentira, não se deixando enganar);
25. Ora, face ao caso sub iudice, temos que o mínimo exigível à ofendida teria sido ter o cuidado de ler os contratos que estava a assinar, pois se o tivesse feito facilmente teria percebido que não se tratava apenas de um único Banco, nem de apenas um único contrato bancário e muito menos na qualidade de fiadora;
26. Questiona-se a brutal humildade, caridade e real submissão de uma pessoa que não é iletrada, que trabalha numa empresa pública há mais de 20 anos, e que se mostra de mente sã, deixando-se à mercê de outrem que considerava como amiga e de confiança;
27. Segundo o critério do Homem médio, qualquer cidadão minimamente diligente procuraria ler o que está a assinar, especialmente quando se trata de assumir garantias pessoais, tais como a fiança;
28. Não o tendo feito revelou indiferença ou mesmo desprezo pela obrigação que assumia e em relação às consequências que tal atitude lhe poderia trazer no futuro, pelo que não pode vir agora exigir que tal conduta venha a ser agora tutelada pelo direito;
29. Pelo exposto resulta que não está preenchido o elemento objetivo do crime de burla que exige a existência de erro ou engano sobre factos que o burlão astuciosamente provocou;
30. Ademais, não se tendo dado como provado que a recorrente tenha realizado 47 levantamentos, num total de 12.060€ (cfr. ponto terceiro dos factos não provados da sentença), nem que subtraiu o valor de 28.060€ da conta da assistente/recorrida (cfr. ponto quarto e último dos factos não provados da sentença), nunca se poderia condenar a recorrente nos termos da al. a) do nº 2 do artº 218º e do 202º al. b) do CP, por não se verificar requisito do “valor consideravelmente elevado”;
31. O Mmo. Juiz do douto Tribunal a quo deu como provada a especial fragilidade e vulnerabilidade da assistente/recorrida, pela análise do seu depoimento, considerando que a mesma assistente/recorrida é dotada de uma personalidade fraca e facilmente manipulável;
32. Salvo o devido respeito, o Mmo. Juiz não é psicólogo nem médico, pelo que não pode basear tais afirmações no depoimento prestado pela ora assistente/recorrida e muito menos tirar, desse breve contacto que teve em sede de audiência de discussão e julgamento com a mesma, a conclusão de que esta era facilmente manipulável, porquanto não possui os conhecimentos técnicos necessários para avaliar o estado psíquico de uma pessoa, os quais se adquirem com formação própria na área da psicologia ou psiquiatria;
33. É entendimento da recorrente, pela relação de amizade que teve com a assistente/recorrida, e por a conhecer bem, tendo em conta o contacto diário que teve com ela ao longo dos anos, dentro e fora do local de trabalho, que a mesma adota a postura de humilde e ingénua para com isso lograr convencer toda a gente (incluindo o Tribunal) de que foi burlada, pelo que estava a fingir durante todo o seu depoimento, uma vez que só tal atitude justificaria a falta de zelo e diligência que alegadamente terá tido para se deixar enganar de tal forma pela recorrente;
34. Ora, apesar de vigorar no nosso Ordenamento Jurídico o Princípio da Livre Apreciação da Prova, consagrado no artº 127º do CPP, temos assente que o Mmo. Juiz podia ter-se convencido da veracidade do depoimento da assistente/recorrida, mas nunca poderia fundamentar tal convencimento numa condição psíquica da mesma, tal qual é a personalidade fraca e manipulável;
35. Deveria o Mmo. Juiz ter requisitado perícia sobre a personalidade, nos termos do artº 151º do CPP, para que um profissional com aptidão para o efeito pudesse efetivamente dar parecer sobre a personalidade da assistente/recorrida, e se a mesma era merecedora ou não de credibilidade;
36. Ademais, em relação a isto importa igualmente referir que não se deu como provado na douta sentença proferida nos presentes autos que a assistente/recorrida sofresse qualquer depressão ou doença psíquica equivalente, no momento da alegada prática dos factos por parte da assistente/recorrida (1º ponto dos factos não provados);
37. No que toca ao pedido de indemnização cível por parte da assistente/recorrida não se podendo dar como provado que a recorrente tenha praticado o facto pelo qual vem acusada, não poderá à mesma ser exigível a condenação no pagamento de qualquer quantia a título de danos provocados à ora assistente/recorrida, por não se verificar o nexo causal entre facto e dano, plasmado no artº 483º do Código Civil;
38. Em relação ao pedido de indemnização cível por parte do Banco D…, SA, nunca poderia a testemunha depor sobre factos dos quais não teve conhecimento direto, nos termos do artº 128º nº 1 do CPP, porquanto só começou a laborar na D… em Setembro de 2009, tendo sido o contrato de financiamento celebrado alegadamente pela recorrente a 10-12-2008;
39. Se assim não se entender, tendo em conta o entendimento da recorrente de que não se poderia ter dado como provado que foi esta a preencher o contrato de crédito com o Banco D…, SA, não poderia a mesma ser condenada no pedido de indemnização cível, uma vez que a testemunha E… referiu que o contrato foi celebrado por correio, sendo que quem atendia as chamadas seria uma amiga que se manteve no anonimato, não existindo consequentemente nexo causal entre facto e dano, plasmado no artº 483º do Código Civil;
40. Ao agir como agiu o Tribunal a quo violou o disposto nas seguintes normas: artº 217º nº 1, artº 202º al. b) e 218º nº 2 al. a) do CP; artº 127º e 151º do CPP e 32º nº 2 CRP.
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Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, de forma pormenorizada, refutando cada um dos fundamentos do recurso.
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Também a assistente C… respondeu às motivações, concluindo pela improcedência do recurso.
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Neste Tribunal da Relação do Porto a Srª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer concordante com a resposta do Mº Pº na 1ª instância.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.
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Notificada nos termos dos despachos proferidos a fls. 486 e 491, para os efeitos do disposto no artº 358º nº 3 do C.P.P., perante a eventualidade de o tribunal proceder à alteração da qualificação jurídica de parte dos factos imputados à arguida, veio esta a fls. 498 e ss. pronunciar-se no sentido da não verificação, quer de um crime de furto qualificado, quer de um crime de burla informática, pugnando pela sua absolvição.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença sob recurso considerou provados os seguintes factos: [transcrição]
1) A arguida é colega de trabalho da ofendida C… na empresa F… há já alguns anos, sendo que a partir de determinado momento estabeleceu-se uma relação de amizade, ou pelo menos de muita proximidade, entre ambas;
2) Em data não determinada, mas situada no ano de 2008, a arguida, aproveitando-se da grande confiança que a ofendida depositava em si, decidiu usufruir de vantagens patrimoniais à custa da ofendida, através da apropriação do dinheiro que a mesma detinha na sua conta bancária e da obtenção de empréstimos bancários em nome da ofendida;
3) Movida daquele propósito e no âmbito do estratagema ardiloso que então planeou, em Outubro do citado ano de 2008 a arguida contactou a ofendida C… e pediu-lhe que aceitasse ser sua fiadora num contrato de empréstimo que pretendia efetuar junto de uma empresa financeira, alegando que necessitava urgentemente de uma pequena quantia monetária para custear uma obra de instalação elétrica em sua casa, onde vivia com o marido doente, sendo que não dispunha de meios económicos imediatos para tal;
4) Devido à já referida confiança que depositava na arguida, a ofendida concordou ser sua fiadora em tal contrato;
5) Ainda no mesmo mês de Outubro, a arguida pediu à ofendida que lhe cedesse temporariamente os seus documentos pessoais para possibilitar o preenchimento do contrato de mútuo no local destinado ao fiador e juntar ainda cópia dos mesmos ao contrato;
6) De igual modo, solicitou a arguida à C… a cedência temporária da Caderneta que esta possuía associada à sua conta bancária aberta na G… (doravante G…), agência de …, no Porto, com o NIB …………….., bem como a informação acerca do código secreto para a utilização da Caderneta, alegando que esta também era necessária para a concretização do empréstimo;
7) Acedendo aos pedidos da arguida, que julgava agir de boa fé, a C… entregou-lhe então o seu Bilhete de Identidade, o cartão de contribuinte e ainda a Caderneta G…, e forneceu-lhe o código associado a esta;
8) Ainda naquele período de tempo, a arguida solicitou às entidades financeiras H…, I… e D… os impressos necessários para realização de contratos de crédito ao consumo;
9) Apresentou então a arguida tais impressos à ofendida C… e pediu-lhe que neles assinasse o seu nome, indicando-lhe em cada um dos documentos o local destinado ao titular do contrato e beneficiário do empréstimo, ao que esta também acedeu, assinando os vários impressos na errónea convicção que respeitavam todos eles a um único contrato de empréstimo e que nele figuraria somente como fiadora;
10) A arguida preencheu então os contratos já devidamente assinados pela ofendida, fazendo constar dos mesmos os montantes dos empréstimos e ainda o número da conta bancária desta, e remeteu-os depois para as respetivas entidades financeiras, para aprovação;
11) Desconhecendo todo o estratagema elaborado pela arguida e por se encontrarem plenamente convencidos que era a ofendida C… quem, conscientemente e de livre vontade, celebrava os contratos de mútuo, os responsáveis das empresas financeiras aprovaram os empréstimos e transferiram para a conta bancária da ofendida os valores neles solicitados;
12) Assim, no dia 06/11/2008 e no âmbito do Contrato de Crédito nº ………….., a empresa H… transferiu para a identificada conta da ofendida C… a quantia de € 4.000,00;
13) Ainda neste dia e no seguimento do seu descrito plano, a arguida deslocou-se à uma caixa Multibanco (ATM) sita na cidade do Porto e, utilizando a Caderneta da conta da ofendida e após digitar o respetivo código secreto, transferiu esta quantia para a conta bancária que a mesma também possuía na G…, esta com o nº ………….;
14) No dia 21/11/2008 e no âmbito do Contrato de Crédito nº ……../…….., a empresa I… transferiu para a identificada conta da ofendida C… a quantia de € 2.500,00;
15) No dia 27/11/2008, a arguida deslocou-se a uma caixa ATM sita na cidade do Porto e, utilizando novamente a Caderneta da conta da ofendida e do modo descrito, transferiu esta quantia para a conta bancária igualmente aberta na G…, esta em nome do seu marido, J…, falecido a 28/03/2010, com o nº …………., a qual a arguida também podia movimentar;
16) No dia 16/12/2008 e no âmbito do Contrato nº ……….., o Banco D… transferiu para a identificada conta da ofendida C… a quantia de € 7.500,00;
17) No dia seguinte, a arguida deslocou-se a uma caixa ATM sita na cidade do Porto e, utilizando novamente a Caderneta da conta da ofendida e do modo descrito, transferiu esta quantia para a identificada conta bancária do seu falecido marido;
18) No dia 06/03/2009, a arguida deslocou-se a uma caixa ATM sita na cidade do Porto e, utilizando novamente a Caderneta da conta da ofendida e do modo descrito, transferiu a quantia de € 1.000,00 para a identificada conta bancária do seu falecido marido;
19) No dia 27/03/2009, a arguida deslocou-se a uma caixa ATM sita na cidade do Porto e, utilizando a Caderneta da conta da ofendida e do modo descrito, transferiu novamente a quantia de € 1.000,00, agora para a sua referida conta bancária;
20) E, no período de tempo compreendido entre Outubro de 2008 e 20/10/2009, em caixas ATM sitas na cidade do Porto, utilizando sempre a Caderneta da conta da ofendida e digitando o respetivo código de utilização, a arguida efetuou com a mesma 46 levantamentos de quantias da mesma conta, totalizando € 11.560,00, provenientes designadamente dos vencimentos da ofendida;
21) Da forma descrita, através dos sucessivos movimentos (transferências bancárias e levantamentos) que realizou, a arguida subtraiu da conta bancária da ofendida C… o valor global de € 27.560,00 (vinte e sete mil e quinhentos e sessenta euros), de que se apoderou e gastou em proveito próprio;
22) Na sequência dos incumprimentos pela ofendida das prestações dos referidos contratos de mútuo, as respetivas financeiras intentaram ações executivas contra a mesma, que determinaram penhoras no seu vencimento, que ainda se mantêm;
23) Através de engano intencional e ardilosamente provocado, a arguida logrou convencer a ofendida C… a assinar o seu nome em contratos de empréstimo junto de empresas financeiras, para desta forma obter financiamentos a transferir para a conta da ofendida, bem como a entregar-lhe a Caderneta da sua conta e a fornecer-lhe o respetivo código secreto de utilização, para assim se locupletar indevidamente à custa do património da ofendida;
24) Atuou a arguida de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
25) Em 10.12.2008 foi celebrado com a instituição bancária “Banco D…, SA” o contrato de crédito nº ………..;
26) Por força do referido contrato e nos termos acordados, o banco disponibilizou a quantia de € 7.500,00 a favor da respetiva titular do contrato, a ora aqui Ofendida C…;
27) O valor do crédito assim concedido deveria ter sido reembolsado ao “Banco D…, SA“, acrescido dos juros contratualmente previstos, em prestações mensais e sucessivas, perfazendo o montante total de € 13.150,20 conforme consta do contrato de crédito junto aos autos;
28) Os valores em causa não foram integralmente reembolsados, pelo que foi gerada a dívida correspondente ao montante resultante do incumprimento desse contrato, o qual veio a ser objeto de resolução por incumprimento promovida pelo “Banco D…, SA“ em 29.01.2010 nos termos da comunicação emitida para o efeito;
29) Em face da resolução foi preenchida a livrança, que havia sido entregue a título de caução e como garantia do cumprimento do contrato, pelo valor em dívida no montante de € 10.043, 55 e com vencimento em 11.02.2010;
30) A quantia em dívida, decorrente da resolução por incumprimento do contrato, e assim titulada pela livrança supra referida, não foi paga, pelo que a livrança foi dada à execução em 12.05.2010, que corre termos sob o nº 3351/10.2YYPRT da 1ª Secção do 2º Juízo de Execução do Porto, peticionando a quantia de € 10.146, 57;
31) É Executada no referido processo a aqui Ofendida C…, sendo que até ao momento a quantia exequenda peticionada não se mostra integralmente paga;
32) No âmbito daquela execução está em curso a penhora sobre o vencimento da ali Executada e ora aqui Ofendida C…, ao abrigo da qual a Exequente e aqui lesada, “Banco D…, SA“, recebeu já a quantia de € 1.878,10;
33) Contabilizando os juros de mora devidos à taxa legal sobre a totalidade do valor da dívida, titulada pela livrança supra referida, e desde a data do vencimento da mesma, verifica-se que a dívida total ascenderia, em 6.3.2013, a € 11.323, 31;
34) Por incumprimento pela ofendida, C…, dos ditos contratos de mútuo, as respetivas financeiras intentaram ações executivas contra a mesma, que levaram a penhoras no seu vencimento, situação que se mantém, de montantes ainda indeterminados, mas cujo total nunca será inferior a 1.000,00 €;
35) A ofendida, C…, com a situação descrita, tem o seu nome inscrito no Banco de Portugal pelo aludido incumprimento generalizado e tem vindo a ser incomodada sistematicamente pelos credores aqui referidos, para que liquide os débitos em questão;
36) A arguida é viúva e tem um filho de 25 anos de idade, o qual está desempregado e está a cargo da arguida;
37) A arguida é funcionária pública, desempenha as funções de assistente operacional e aufere o salário líquido de € 600,00, por mês, e
38) Não tem antecedentes criminais.
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Foram considerados não provados os seguintes factos: [transcrição]
- que a arguida aproveitou-se da circunstância da ofendida atravessar um período de grande fragilidade física e psicológica, fruto de uma cirurgia a que foi sujeita e de uma depressão de que então padecia;
- que a arguida deslocou-se às entidades financeiras H…, I… e D…;
- que, no período de tempo compreendido entre os dias 19/09/2008 e 20/10/2009, em caixas ATM sitas na cidade do Porto, utilizando sempre a Caderneta da conta da ofendida e digitando o respetivo código de utilização, a arguida efetuou com a mesma 47 levantamentos de quantias da mesma conta, totalizando € 12.060,00, provenientes designadamente dos vencimentos da ofendida, e
- que, da forma descrita, a arguida subtraiu da conta bancária da ofendida C… o valor global de € 28.060,00 (vinte e oito mil e sessenta euros).
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A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: [transcrição]
O Tribunal, atendendo igualmente às regras da experiência, alicerçou a sua convicção, ao fixar a fatualidade provada, nos seguintes meios de prova:
- no que toca aos factos 1º) a 35º), atendeu-se, desde logo, à análise critica das declarações prestadas, em audiência de julgamento, pela arguida, a qual confirmou que, efetivamente, é colega de trabalho da ofendida C… na empresa F… há já alguns anos, sendo que a partir de determinado momento estabeleceu-se uma relação de amizade, ou pelo menos de muita proximidade, entre ambas.
Porém, de forma não convincente para este Tribunal, negou os restantes factos que lhe são imputados na acusação pública dos autos e referiu que, entre 2001 e 2004, numa altura em que o seu marido estava doente, pediu emprestada à assistente a quantia de € 2.500,00, facto que a assistente, em audiência de julgamento, desmentiu de forma convicta e perentória.
Finalmente, a arguida confirmou que o seu marido faleceu em 28.3.2010, sendo que, em vida, o mesmo teve dois AVC, sendo que na segunda vez, ocorrida em 2001, o seu marido ficou imobilizado e não se conseguia levantar.
Além disso, atendeu-se às declarações prestadas, em tal audiência, pela assistente, C…, a qual confirmou a referida factualidade dada como assente, designadamente confirmou que a arguida é sua colega de trabalho, há cerca de 27 anos, sendo que, a certa altura, tornaram-se amigas e o marido da arguida adoeceu.
Mais confirmou que, em Outubro de 2008, a arguida falou consigo e pediu-lhe um favor para que aceitasse ser sua fiadora num contrato de empréstimo que pretendia efetuar, alegando que necessitava urgentemente de uma pequena quantia monetária para custear uma obra de instalação elétrica em sua casa, tendo a declarante aceite.
A referida assistente confirmou, também, que, passado algum tempo, a arguida pediu-lhe os seus documentos pessoais (bilhete de identidade e cartão de contribuinte) e pediu-lhe, também, a caderneta que a assistente possuía associada à sua conta bancária aberta na G…, agência de …, no Porto, bem como o código secreto para a utilização da caderneta, alegando que eram necessários por causa do empréstimo, tendo a declarante, na sua boa fé, cedido os mesmos.
A declarante confirmou, igualmente, que, posteriormente, a arguida veio ter consigo e entregou-lhe uns impressos para assinar, tendo a assistente assinado os mesmos, confiando que era só como fiadora e para o empréstimo que a arguida tinha referido.
Confrontada com os documentos de fls. 38 a 42, 92 e 100/101, a assistente referiu que só assinou tais documentos, tendo-o feito de boa-fé e sem ler os mesmos.
A assistente referiu, também, que, em Janeiro de 2009, a arguida lhe devolveu a caderneta mas que, em Março de 2009, voltou a pedi-la pela segunda vez, alegando que o banco tinha pedido, tendo a declarante cedido, novamente, tal caderneta. Porém, desde Março de 2009 até Outubro de 2009, pediu várias vezes à arguida a sua caderneta mas esta não lhe devolveu a mesma, razão pela qual, em Outubro de 2009, pediu uma nova caderneta ao Banco, sendo que foi, nessa altura, que se apercebeu da falta de dinheiro na sua conta.
A assistente mencionou, ainda, que, a determinada altura, começou a receber cartas dos bancos, tendo verificado que alguma coisa não batia certo. E soube que houve movimentos na sua conta sem a sua autorização, tendo sido daí retirado dinheiro, sendo que, na altura, a declarante desconfiou da arguida, dado que ela teve a sua caderneta e sabia o código.
Finalmente, a assistente confirmou que, após ter recebido a nova caderneta, a arguida não lhe devolveu a antiga caderneta nem lhe deu qualquer explicação.
A referida assistente, em audiência de julgamento, revelou ser uma pessoa com personalidade frágil e facilmente manipulável, razão pela qual terá confiado na arguida.
As declarações da referida ofendida, em julgamento, diferentemente do que aconteceu com as declarações da arguida, apreciadas pelo Tribunal à luz dos princípios da imediação e da oralidade, revelaram-se genuínas e verdadeiras, razão pela qual mereceram a credibilidade deste Tribunal.
Por outro lado, atendeu-se, ainda, ao depoimento prestado, em audiência de julgamento, pela testemunha, E…, consultora da demandante, “Banco D…, SA”, na área do contencioso, desde Setembro de 2009.
Tal testemunha confirmou, na globalidade, a factualidade a que se alude nos factos 25º) a 33º), tendo designadamente confirmado que, no caso a que se alude nos autos, foi celebrado com a instituição bancária “Banco D…, SA“ um contrato de crédito, sendo que, no caso como o dos autos, o contrato é enviado pelo correio para ser assinado e depois ser devolvido.
Tal testemunha referiu que, em finais de Outubro de 2008, houve um contacto, informático ou por telefone, para um financiamento, tendo sido pedida a necessária documentação, sendo que, no início de Dezembro de 2008, o crédito foi aprovado.
Tal testemunha esclareceu que, para o crédito seja aprovado, são necessários documentos pessoais, designadamente o bilhete de identidade e o número de contribuinte e, ainda, caderneta e extratos.
No caso em apreço, tal depoente esclareceu que o valor do empréstimo foi de € 7.500,00, sendo que o valor total do reembolso de € 13.150,20.
A referida testemunha esclareceu que, apenas as prestações de Janeiro, Fevereiro e Março de 2009, foram pagas, o que não aconteceu com as restantes, razão pela qual o contrato, em Janeiro de 2010, foi resolvido.
Tal testemunha também esclareceu que, dado tal incumprimento, houve tentativas de contactos com a assistente, mas nunca conseguiram falar com ela, sendo que, nos contactos estabelecidos, atendia uma amiga dizendo que a assistente estava internada e que dava o recado. Porém, em 7.2.2011, conseguiram contactar com o chefe da assistente, o qual disse que a assistente foi vítima de abuso por uma amiga num contrato e que já havia queixa no DIAP.
Finalmente, tal testemunha confirmou que, na execução e no âmbito da penhora, foram recebidos alguns valores.
A referida testemunha prestou depoimento de forma objetiva, clara e precisa, razão pela qual mereceu a credibilidade deste Tribunal.
Finalmente, atendeu-se ao teor dos documentos de fls. 9 a 14, 37 a 42, 56/57, 60, 90 a 92, 99 a 101, 117/118, 159 a 171, 176 a 180, 187 a 189, 241/242, 243, 244 a 247 e o teor do extrato da conta bancária da assistente dos anos de 2003/2004, junto na audiência de julgamento.
- No que toca aos factos 36º) a 38º), atinentes à situação pessoal e profissional da arguida e aos seus antecedentes criminais, atendeu-se, desde logo, às declarações prestadas, em audiência de julgamento, pela arguida, a qual confirmou tal factualidade e, ainda, ao teor do documento de fls. 329 (CRC).
No que toca aos factos não provados, atendeu-se a que não foi feita prova segura e convincente dos mesmos de forma a merecer a credibilidade deste Tribunal.
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
Das conclusões de recurso é possível extrair a ilação de que a recorrente delimita o respetivo objeto à apreciação das seguintes questões:
- insuficiência da matéria de facto provada e da motivação da mesma (artº 410º nº 2 al. a) do C.P.P.);
- violação do princípio in dubio pro reo;
- contradição insanável da fundamentação (artº 410º nº 2 al. b) do C.P.P.);
- preenchimento dos requisitos do crime de burla;
- especial fragilidade/vulnerabilidade da assistente;
- pedidos de indemnização cível;
- preenchimento dos requisitos do crime de burla informática.
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A) Da insuficiência da matéria de facto provada e da motivação da mesma:
Alega a recorrente que de uma melhor análise das provas produzidas em audiência conclui-se pela insuficiência da matéria de facto provada, nos termos do artº 410º nº 2 al. a) do C.P.P.
Em matéria de vícios previstos no artº 410º nº 2 do CPP e alegados, cumprirá desde já dizer que, apesar de tudo o que tem sido dito e redito pacificamente na jurisprudência e na doutrina, continua a ignorar-se o melhor desses ensinamentos e a trazer aos recursos sempre o mesmo tipo de argumentação quanto à tipificação desses vícios. Confunde-se o da al. a) (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) com problemas de insuficiência de prova; confunde-se o da al. b)-(contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão) com o da errada convicção do tribunal ou com a insuficiente convicção ou mesmo com a insuficiente fundamentação; e o da al. c) - (erro notório da apreciação da prova) com o problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas que, a existir, constituiria já um verdadeiro erro de julgamento.
E, como se tal não bastasse, só raramente se não faz tábua rasa da invocação de vícios fora do quadro resultante do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência.
Posto isto, caberá relembrar sumariamente que, sobre a inserção deste tema, no âmbito do que se vem aceitando de modo que julgamos pacífico, algumas notas breves poderão aduzir-se:
Estes vícios, como da própria lei decorre, devem resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum sem recurso a outros elementos de apreciação exteriores. O fundamento do recurso pode ser um “error in procedendo ou um error in judicando“.
Ora, analisando os fundamentos constantes das motivações a este respeito, essencialmente a partir do ponto 4 a 45, é manifesta a confusão que a recorrente estabelece entre os vícios do artº 410º nº 2 do C.P.P. e a impugnação da decisão sobre a matéria de facto a que aludem os artºs. 412º nºs 3, 4 e 6 e 431º do mesmo diploma.
A recorrente não aduz qualquer argumento válido que possa sustentar o vício de que invoca padecer a decisão recorrida.
Limita-se, isso sim, a referir contradições e ambiguidades da prova pessoal produzida em audiência (entre as declarações da recorrente/arguida e as declarações da assistente e entre estas e o depoimento da testemunha E…) que, em sua opinião, são suficientes para concluir que a recorrente não teve qualquer intervenção em todos os actos que lhe são imputados e que, por esse motivo, o tribunal decidiu erradamente e violou o princípio in dubio pro reo.
Como dissemos, tais questões poderão enquadrar-se na reapreciação da matéria de facto que compete a este tribunal de recurso em conformidade com o disposto no artº 428º do C.P.P., mas não integram qualquer dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do C.P.P.

No que respeita à impugnação da matéria de facto provada, nos termos do artigo 412º nº 3 do Código de Processo Penal, há que considerar o seguinte:
Como se refere nos doutos acórdãos do S.T.J de 15.12.2005 e de 09.03.2006[3] e é jurisprudência uniforme, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».
A gravação das provas funciona como uma “válvula de escape” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações-limite de erros de julgamento sobre matéria de facto[4].
E, como se refere no acórdão desta Relação do Porto de 26 de Novembro de 2008[5] «não podemos esquecer a perceção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido diretamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância». A credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores», fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reações, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam»[6].
Deste modo, o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.
Quando, no artigo 412º, nº 3, b), do C.P.P., se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.
À luz destes pressupostos, não cabe agora pôr em causa o juízo do Tribunal a quo sobre a credibilidade das declarações da assistente C… em contraposição com as declarações da arguida B…, na medida em que tal credibilidade (ou falta dela) possa assentar na imediação de que nesta sede estamos privados.
Por outro lado, alega a recorrente que a prova produzida não é suficiente para se concluir ter sido ela própria a preencher os formulários dos contratos bancários ou a efetuar os movimentos bancários através de caixas ATM, podendo ter sido qualquer outra pessoa, nomeadamente o seu falecido marido ou mesmo a própria assistente.
Parte a recorrente do pressuposto de que a inexistência de prova direta de um facto implica a falta de prova desse e dos restantes factos conexos que lhe são imputados.
Se assim fora a prova dos factos de cariz subjetivo, do domínio íntimo de quem age, apenas poderiam resultar de confissão, logo se revelando o absurdo dessa conclusão que conduziria à impunidade.
Diga-se que a prova indireta ou indiciária que contém momentos de presunção ou inferência pode igualmente justificar certeza bastante à convicção positiva do Tribunal desde que indique com base nas regras da experiência que o facto em causa corresponde à realidade.
A prova indireta (ou indiciária) não será um “minus” relativamente à prova direta, pois se até é certo que na prova indireta intervém a inteligência e a lógica do julgador que associa o facto indício a uma regra da experiência e vai permitir alcançar a convicção sobre o facto a provar, na prova direta poderá intervir um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será muito mais perigoso de determinar, como é o caso da credibilidade do testemunho.
Acresce que a nossa lei adjetiva penal não estabelece requisitos especiais sobre a apreciação da prova indiciária, pelo que o fundamento da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, sendo embora pessoal, deve ser sempre motivada e objetivável, nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.
Quando a base do juízo de facto é indireta, impõe-se um particular rigor na análise dos elementos que sustentam tal juízo, a fim de evitar erros.
Importa constatar, em primeiro lugar, uma pluralidade de elementos; em segundo lugar, importa que tais elementos sejam concordantes; em terceiro lugar, importa que, tendo em conta uma observação de acordo com as regras da experiência, tais indícios afastem, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso daquele para que apontam aqueles indícios probatórios[7].
Se atentarmos no disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal concluiremos sem esforço que admite a chamada prova indireta ou por presunção quando preceitua que a prova é apreciada segundo a livre convicção do julgador e as regras da experiência. E são precisamente as regras da experiência que permitem extrair ilações dos factos diretamente percecionados e conhecidos, chegando por essa via ao conhecimento de outros factos com o necessário grau de certeza.
Com efeito, não é decisivo para se concluir pela realidade da acusação movida a um qualquer arguido, que haja provas diretas e cabais do seu envolvimento nos factos, maxime que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticar os factos, ou que o arguido os assuma expressamente. Condição necessária, mas também suficiente é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa dentro do que é lógico e normal, de que as coisas sucederam como a acusação as define.
Como se lê no Acórdão do STJ de 12.9.2007[8] “Vejamos que o indício apresenta-se de grande importância no processo penal, já que nem sempre se tem à disposição provas diretas que autorizem a considerar existente a conduta perseguida e então, ante a realidade do facto criminoso, é necessário fazer uso dos indícios, como o esforço lógico-jurídico inteletual necessário antes que se gere a impunidade.” “E sobre a prova indiciária (…) entende-se, ainda, que aquela é suficiente para determinar a participação no facto punível se (requisito de ordem formal) da sentença constarem os factos-base e se mostrarem provados, os quais vão servir de base à dedução ou inferência, se se explicitar o raciocínio através do qual se chegou à verificação do facto punível e da sua participação no facto de que é acusado, essa explicitação é imperativa para se controlar a racionalidade da inferência em sede de recurso. Requisito de ordem material é estarem os indícios completamente provados por prova direta, os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e sendo vários devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência. O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, respeitando a lógica da experiência da vida; dos factos base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, direto, segundo as regras da experiência.”
Ora, tendo-se considerado provado, com base nas declarações da assistente C… – a quem o tribunal atribuiu credibilidade, não obstante as aparentes contradições – que esta assinou os vários impressos que lhe foram apresentados pela arguida na errónea convicção que respeitavam todos eles a um único contrato de empréstimo e que neles figurava somente como fiadora (facto 9 da MFP[9]), mostra-se irrelevante que, como declarou a própria assistente, não consiga ler nem escrever sem óculos. Como é do conhecimento generalizado, é muito comum as pessoas necessitarem de óculos para ler ou escrever, mas conseguirem apor a sua assinatura num determinado documento sem terem os óculos postos, dada a frequência com que estão habituadas a fazer a assinatura, pelo que não nos merece qualquer reparo o facto provado 9. Tanto mais que, do exame macroscópico de fls. 39 a 42, 92, 100 vº e 101, logo emerge que a assistente – utilizando um impressivo dizer popular – “pintou” o seu nome próprio nas linhas assinaladas com cruz.
No que respeita à autoria do preenchimento dos contratos, bem como à realização das transferências através das caixas ATM, nenhum reparo nos merece a decisão de facto provada. Com efeito, ainda que não tenha sido feita prova direta desses factos, como atrás dissemos, nada impede que o tribunal valorize a prova indiciária, devidamente conjugada com as regras da experiência comum para concluir da forma como fez.
Com efeito, tendo sido a arguida a solicitar à assistente todos os documentos necessários para a realização dos contratos de mútuo, tais como bilhete de identidade, cartão de contribuinte, caderneta da G… e o código associado a essa conta, tendo igualmente induzido a assistente a assinar os impressos de pedido de financiamento junto das instituições financeiras, podemos concluir, sem margem para dúvidas que foi a arguida ou alguém a seu mando (o que no presente caso é irrelevante, atentas as hipóteses típicas do artº 26º do Cód. Penal, pois não está em causa a autoria material de um crime de falsificação de documento, em que importaria determinar o autor da criação do papel com seus dizeres) que, utilizando os elementos de identificação da assistente nos referidos impressos, os preencheu e apresentou naquelas entidades.
E quanto às transferências das quantias mutuadas da conta da assistente para a conta da arguida ou do marido desta, realizadas através de caixas ATM, sabendo-se que o marido da arguida se encontrava acamado (mesmo admitindo que se levantava com o auxílio dos bombeiros, certamente não seria para que o levassem 2 + 46 vezes junto de caixas ATM para realizar operações bancárias – desconhecendo-se o estado de saúde mental do mesmo, já que tinha sido vítima de dois AVC’s), dizem as regras da experiência que, atento esse estado de saúde e o facto de a arguida ter autorização expressa para movimentar a conta do marido, não teria este necessidade de efetuar essas operações, quando a arguida, sua mulher o podia fazer, sem aquela onerosidade.
Por outro lado, o marido da arguida era apenas titular da conta bancária beneficiária das transferências referidas nos pontos 15, 17 e 18 da MFP, nenhuma prova tendo sido feita no sentido de que aquele sabia o código PIN da conta da assistente e tinha acesso à caderneta desta conta, elementos imprescindíveis para efetuar aquelas transferências e de que apenas a arguida dispunha.
Conclui-se, por isso, que só a arguida e ninguém mais, poderia ter efetuado as transferências referidas nos pontos 15, 17 e 18 da MFP, como aliás havia feito com as transferências referidas nos pontos 13 e 19 e como foi também ela própria que efetuou os 46 levantamentos referidos no ponto 20 da MFP.
É certo que as máquinas ATM não demonstram quem foi a pessoa que nelas efetuou os movimentos referidos naqueles pontos da MFP. Contudo, parece-nos meridianamente claro que a inferência no sentido de que a arguida/recorrente conhecia a forma de efetivar aquelas transferências e levantamentos, dispunha dos meios necessários para o efeito e que atuou com tal conhecimento, visando obter um benefício económico com o consequente prejuízo da ofendida, se impõe porque obedece ao rigor necessário e a uma lógica que se encontra firmemente sustentada nas regras da experiência, as quais não fundamentam a existência de um terceiro interessado na realização das (2 + 46) operações, das quais a final só a arguida foi beneficiária.
No que respeita aos factos 23 e 24 da MFP, a impugnação da recorrente baseia-se apenas nas “contradições e inconsistências” das declarações da assistente. Contudo, como atrás dissemos, tais contradições e inconsistências não foram valorizadas negativamente pelo tribunal recorrido, o qual atribuiu credibilidade às declarações da assistente. Ora, foi o tribunal recorrido que beneficiou da imediação e da oralidade, de que nesta sede de recurso estamos privados, pelo que improcede a impugnação com esse fundamento.
Conclui-se assim que a matéria de facto provada não merece censura, improcedendo o recurso nessa parte.
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B) Da violação do princípio in dubio pro reo:
Sustenta a recorrente que o tribunal a quo violou o disposto na norma 32º nº 2 da CRP, pois não só não ficou cabalmente provado que a recorrente praticou o crime em que foi condenada, como foi criada uma dúvida razoável quanto aos factos que lhe são imputados e quanto à sua culpa.
Vejamos:
O princípio in dubio pro reo estabelece, como é sabido, que, verificando-se uma dúvida razoável quanto aos factos, após a produção da prova, o tribunal terá de decidir a favor do arguido. Nas palavras de Figueiredo Dias, “um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo.
É certo que, conforme ensina a doutrina e vem afirmado pelo Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, I, pág. 215), “relativamente ao facto sujeito a julgamento, o princípio [in dubio pro reo] aplica-se sem qualquer limitação, e portanto não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude, de exclusão da culpa e de exclusão da pena bem como às circunstâncias atenuantes, sejam elas «modificativas» ou simplesmente «gerais». Em todos estes casos a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido”.
Contudo, não basta para tanto dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou que derivem da sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos. Como se disse, o princípio in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Daqui não resulta, porém, que, tendo sido apresentadas em audiência versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser necessariamente beneficiado por aplicação daquele princípio. Com efeito, o princípio in dubio pro reo pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador; por isso, a sua violação só pode ser afirmada se, por forma evidente, resultar do texto da decisão que o tribunal, perante a dúvida, optou por decidir contra o arguido.
Ora, do texto da decisão recorrida não resulta que o tribunal tenha tido qualquer dúvida sobre a factualidade que considerou provada.
Como refere ROXIN[10] “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”.
É que a dúvida obstrutiva do julgamento «provado» em processo penal de facto jurígena de responsabilidade criminal, em postergação dos princípios in dúbio pro reo derivado da «presunção de inocência» do art 32º da CRP, é apenas «… a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido»[11].
Improcede assim mais este fundamento do recurso.
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C) Da contradição insanável da fundamentação:
Alega a recorrente que os factos provados constantes dos pontos 20º e 21º da MFP estão em contradição com os dois últimos pontos dos factos não provados, sendo certo que os primeiros não constam da acusação nem “da audiência de discussão e julgamento”.
Saliente-se antes de mais que, como acima referimos, em qualquer das hipóteses a que alude o artº 410º nº 2 do C.P.P., o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[12], tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Ora, o tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, a este respeito invocados pela recorrente:
20. “E, no período de tempo compreendido entre Outubro de 2008 e 20/10/2009, em caixas ATM sitas na cidade do Porto, utilizando sempre a Caderneta da conta da ofendida e digitando o respetivo código de utilização, a arguida efetuou com a mesma 46 levantamentos de quantias da mesma conta, totalizando € 11.560,00, provenientes designadamente dos vencimentos da ofendida”
E
21. Da forma descrita, através dos sucessivos movimentos (transferências bancárias e levantamentos) que realizou, a arguida subtraiu da conta bancária da ofendida C… o valor global de € 27.560,00 (vinte e sete mil e quinhentos e sessenta euros), de que se apoderou e gastou em proveito próprio.
Por outro lado, foram considerados não provados os seguintes factos:
a) que, no período de tempo compreendido entre os dias 19/09/2008 e 20/10/2009, em caixas ATM sitas na cidade do Porto, utilizando sempre a Caderneta da conta da ofendida e digitando o respetivo código de utilização, a arguida efetuou com a mesma 47 levantamentos de quantias da mesma conta, totalizando € 12.060,00, provenientes designadamente dos vencimentos da ofendida, e
b) que, da forma descrita, a arguida subtraiu da conta bancária da ofendida C… o valor global de € 28.060,00 (vinte e oito mil e sessenta euros).
Da simples leitura da matéria de facto supra descrita resulta que a sentença recorrida não padece do vício apontado pela recorrente.
Com efeito, não se verifica qualquer sobreposição entre os factos provados e não provados. Enquanto no ponto 20 da MFP se alude a “46 levantamentos” e à quantia de “€ 11.560,00”, na alínea a) supra transcrita, o tribunal considerou não provado que a arguida tenha efetuado “47 levantamentos” totalizando a quantia de “€ 12.060,00”.
Por outro lado, enquanto no ponto 21 da MFP se alude à quantia “global de € 27.560,00” que a arguida subtraiu da conta bancária da ofendida, na al. b) supra o tribunal considerou não provado que a arguida tenha subtraído daquela conta a quantia “global de € 28.060,00”.
Os factos não provados a) e b), tal como se mostram descritos na matéria de facto não provada coincidem com a descrição factual constante da acusação, enquanto que os pontos 20 e 21 da MFP resultaram da discussão da causa, sendo certo que, em conformidade com o disposto no artº 368º nº 2 do C.P.P., o tribunal deve tomar posição sobre os factos alegados pela acusação e pela defesa, bem como os que resultaram da discussão da causa, relevantes para a decisão.
Improcede, assim, mais este fundamento do recurso.
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D) Da qualificação jurídica dos factos imputados à arguida:
1. Do crime de burla qualificada:
Na ótica da recorrente não se mostram preenchidos os elementos típicos do crime de burla por que foi condenada, pois que o mínimo exigível à ofendida teria sido ter o cuidado de ler os contratos que estava a assinar, pois se o tivesse feito facilmente teria percebido que não se tratava apenas de um único Banco, nem de apenas um único contrato bancário e muito menos na qualidade de fiadora. Não o tendo feito, revelou desprezo pela obrigação que assumia e em relação às consequências que tal atitude lhe poderia trazer no futuro, pelo que tal conduta não pode ser tutelada pelo direito.
Vejamos:
De acordo com o artº 217º do Cód. Penal, comete o crime de burla “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial”.
A burla é um crime de execução vinculada (a lesão do bem jurídico tem que ocorrer como consequência dos comportamentos típicos definidos pelo legislador), traduzindo-se estes na utilização de um meio enganoso tendente a induzir a pessoa em erro, que, por seu turno, a leva a praticar atos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.
Na burla o engano deve ser a causa da situação de erro em que se encontra a vítima e, por sua vez, esse estado de erro é a causa da prática pelo burlado dos atos de que decorrem prejuízos patrimoniais.
É necessário que o erro ou engano tenham sido provocados astuciosamente, isto é, que a conduta do agente comporte a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade, que envolve a escolha dos meios idóneos para conseguir obter tal erro ou engano, sendo assim na adequação de meios que radica a astúcia, o que implica, a adequação do comportamento do agente à criação do erro ou engano.
O crime de burla é apelidado de "crime de participação da vítima", uma vez que a saída de valores ou de coisas da esfera fáctica do sujeito passivo, reporta-se tanto à conduta do agente, como à ação do próprio burlado, vindo como necessário que se verifique um duplo nexo causal, e portanto:
- O engano deve ser a causa da situação de erro em que se encontra a vítima - os meios enganosos devem ser adequados à produção do erro;
- O estado de erro é a causa da prática pelo burlado dos atos de que decorrem prejuízos patrimoniais - a prática de atos patrimonialmente prejudiciais deve ser adequada à situação de erro em que a vítima se encontra; estes nexos de causalidade aferem-se nos termos da teoria da causalidade adequada (art. 10º nº1), isto é, tendo em conta as circunstâncias concretas, aí incluídas as características do burlado.
É elemento do crime o prejuízo patrimonial, já que é o requisito para a consumação.
O crime de burla é um crime material ou de resultado e um crime de dano, pelo que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efetivo no património do sujeito passivo ou de terceiro.
Existirá um dano patrimonial sempre que se verifique uma diminuição do valor económico do património da vítima, em relação à posição em que estaria se o agente não tivesse realizado a sua conduta (critério objetivo-individual).
A burla é um crime que exige o dolo (art. 13º), em qualquer das suas modalidades (art. 14º). É, pois, um delito de intenção - exige-se a intenção do agente de conseguir, através da conduta, um enriquecimento (vantagem, lucro, proveito) ilegítimo próprio ou alheio, não obstante a sua consumação não exigir a concretização desse enriquecimento, verificando-se logo que ocorra o prejuízo patrimonial da vítima (crime de resultado parcial ou cortado).
Como referem M. Miguez Garcia e J.M.Castela Rio[13] “os tribunais configuram o comportamento do sujeito ativo a partir de manobras, que podem ser as mais variadas, desde a simples mentira, uma afirmação verbal explícita, que as circunstâncias envolventes são de molde a tornar credível, até ás maquinações complexas e multiformes, aos mais elaborados artifícios, levando a vítima a uma falsa representação da realidade.” […] “O engano também se consegue com formas de atuação rudimentares, desde que bastem para viciar a vontade da vítima”[14]. E acrescentam, citando Fernanda Palma e Rui Pereira, 1994, pág. 328, “as manobras fraudulentas têm de ser idóneas (adequadas) para em geral levar outrem ao engano, tendo em conta as características particulares da vítima – inexperiência, debilidade mental, a própria relação de confiança com o agente”[15].
No caso em apreço, depois de conseguir - devido à forte relação de confiança que a assistente em si depositava - a anuência da assistente em ser sua fiadora num contrato de empréstimo que pretendia efetuar junto de uma empresa financeira, alegando que necessitava urgentemente de uma pequena quantia monetária para custear uma obra de instalação elétrica em sua casa, onde vivia com o marido doente, sendo que não dispunha de meios económicos imediatos para tal, a arguida solicitou às entidades financeiras H…, I… e D… os impressos necessários para realização de contratos de crédito ao consumo e apresentou tais impressos à assistente C…, pedindo-lhe que neles assinasse o seu nome, indicando-lhe em cada um dos documentos o local destinado ao titular do contrato e beneficiário do empréstimo, ao que esta também acedeu, assinando os vários impressos na errónea convicção que respeitavam todos eles a um único contrato de empréstimo e que nele figuraria somente como fiadora.
A pedido da arguida, a assistente entregou-lhe o seu bilhete de identidade, o cartão de contribuinte, a caderneta associada à sua conta bancária aberta na G… (doravante G…), bem como a informação acerca do código secreto para a utilização da Caderneta, em virtude de a arguida ter alegado que tais documentos eram necessários para a concretização do empréstimo.
Foi na posse destes documentos que a arguida conseguiu efetuar a transferência, fazendo-as suas, das quantias que, por efeito dos contratos de mútuo celebrados, foram sendo creditadas na conta bancária da assistente.
Ou seja, convencendo erroneamente a assistente de que assinava os documentos necessários para a obtenção de um único crédito ao consumo e que nesse contrato de mútuo figuraria apenas como fiadora e nunca como principal pagadora, e aproveitando-se da boa fé da assistente e da confiança que esta depositava na arguida, conseguiu a arguida obter um enriquecimento ilegítimo à custa daquela. Com efeito, embora a disposição patrimonial de que a arguida veio a beneficiar, tenha sido feita diretamente pelas instituições financeiras acima identificadas, o certo é que foi a assistente que, por efeito da celebração dos referidos contratos, se constituiu responsável pelo cumprimento das obrigações deles decorrentes, designadamente da obrigação de pagamento das quantias mutuadas e respetivos juros.
E nisso se caracteriza o erro ou engano astuciosamente provocado pela arguida na pessoa da assistente, determinante da disposição patrimonial das instituições financeiras em causa e indiretamente da disposição patrimonial da assistente, de que a arguida foi afinal a única beneficiada.
E não se diga, como pretende a recorrente, que o direito da assistente não deve ser tutelado, não só pela qualificação da mentira em causa, mas também pela atitude de indiferença ou mesmo desprezo revelada pela assistente perante a obrigação que assumia e em relação às consequências que tal atitude lhe poderia trazer no futuro. Alega ainda que, mesmo que a confiança na arguida fosse ainda maior, isso não eximia a assistente dos mínimos cuidados que qualquer cidadão deve ter.
É verdade que, como alega a recorrente, o crime de burla exige que – para além dos demais requisitos -, através de astúcia, o agente provoque um erro ou engano na vítima e que esta, devido a esse erro, pratique atos determinantes de prejuízo patrimonial próprio ou alheio.
Não basta um simples engano. O engano deve ser astucioso, o que significa que o mesmo deve ser induzido através de uma encenação que leve a vítima a acreditar no agente.
É usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou o burlão refira factos falsos ou altere ou dissimule factos verdadeiros, e atuando com destreza pretende enganar e surpreender a boa fé do burlado de forma a convencê-lo a praticar atos em prejuízo do seu património ou de terceiro. Esses atos, além de astuciosos, devem ser aptos a enganar, não sendo, no entanto, inevitável que se trate de processos rebuscados ou engenhosos, podendo o burlão, “numa economia de esforço”, limitar-se ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima concreta.
Aliás, a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características do concreto burlado.
Como se escreve no Ac. do STJ de 04.10.2007[16], citando Nelson Hungria (Comentários ao Código Penal, VII, 168) «com os seus variadíssimos processos, a fraude é bem o atestado do poder de inventiva e perspicácia do homo sapiens. Tem espécies e subespécies, padrões clássicos e expedientes de acaso. Há a fraude reconhecível a olho nu como infração penal e a parva calliditas, que se abriga à sombra de uma proclamada naturalis licentia decipiendi. Há a fraude corriqueira dos clientes habituais da prisão e a fraude subtil daquela “criminosos astutos e afortunados” de que nos conta FERRIANI. Há as trapaças minúsculas do comércio a varejo e as burlas maiúsculas dos jogos de Bolsa. Há a fraude grosseira, de empulhar pascácios, e a fraude de alta escola, de embair os mais argutos.»
No caso em apreço, servindo-se da boa fé, da confiança (cega, até), da amizade e da excessiva credulidade da assistente, a arguida não precisou efetivamente de utilizar processos rebuscados ou engenhosos para defraudar-lhe o património. Bastou que, sabendo aquela da doença do marido da arguida, abusando esta dos sentimentos de misericórdia da vítima e das características atrás descritas, a convencesse da premente necessidade de um empréstimo bancário e, a partir desse momento, bastou-lhe, agir com sagacidade, num processo de “economia de esforço", levar a assistente a assinar onde não devia (no local reservado ao mutuário e não ao fiador e em mais do que um contrato) e a entregar-lhe todos os documentos que as entidades bancárias exigiram à arguida, bem como outros (caderneta e código PIN) que se mostravam imprescindíveis para a concretização dos seus propósitos.
Conseguiu assim a arguida levar a assistente, ainda que indiretamente, a provocar a si própria um prejuízo patrimonial, decorrente das obrigações que acabou por assumir na qualidade de mutuária nos contratos celebrados com as instituições financeiras, no valor global de € 14.000,00, acrescido dos respetivos juros.
O prejuízo patrimonial provocado determinou ainda o consequente enriquecimento da arguida no montante de € 14.000,00 (€ 4.000,00 mutuados pela H…; € 2.500,00 mutuados pela I… e € 7.500,00 mutuados pelo D…), quantia esta que, parcelarmente, a arguida foi transferindo da conta bancária da “mutuária” para a sua conta bancária e do seu marido, que a arguida tinha autorização para movimentar.
Com efeito, não se pode esquecer que, no crime de burla, a matéria punível não é a fraude em si mesma, o engano ou o induzir em erro, mas a locupletação ilícita ou a injusta lesão patrimonial, sendo o engano somente um momento percurso do crime. Esta conceção, hoje adquirida pelo direito penal, traduz-se, aliás, na inserção sistemática do respetivo tipo entre os crimes contra o património[17].
Mostram-se assim preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de burla qualificada p. e p. nos artºs 217º e 218º nº 1 do Cód. Penal, pelo que improcede mais este fundamento do recurso.
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2. Quanto ao crime de burla informática – cfr. despacho de fls. 491:
Analisámos, até aqui, o comportamento da arguida no que se refere à celebração dos contratos de mútuo e ao “injusto” locupletamento da quantia global de € 14.000,00 que foi sendo creditada (em parcelas de € 4.000,00, € 2.500,00 e € 7.500,00) na conta bancária da assistente e posteriormente transferida para a posse da arguida.
Importa, porém, ter presente que, para além dessas quantias, utilizando a caderneta da conta bancária da assistente na G… e fazendo uso do Código PIN que esta lhe fornecera, a arguida efetuou levantamentos em máquinas ATM da conta bancária daquela no valor global de € 13.560,00, que fez seus.
Pese embora a discordância manifestada pela recorrente na sequência da notificação efetuada ao abrigo do disposto nos artºs. 424º nº 3 e 358º nº 3, ambos do C.P.P., entendemos que tais factos integram todos os elementos objetivos e subjetivos da autoria material por parte da arguida de um crime de burla informática p. e p. no artº 221º nºs 1 e 5 al. a) do Cód. Penal.
Dispõe este preceito que “1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorreta de programa informático, utilização incorreta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Se o prejuízo for de valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias – nº 5 al. a) do artº 221º.
Embora se configure como um crime contra o património, no plano da tipicidade, como se vê da descrição especificada e concretizada no tipo do art. 221.º do CodPenal, trata-se de um crime de execução vinculada, no sentido de que a lesão do património se produz através da intromissão nos sistemas e da utilização em certos termos de meios informáticos. E é um crime de resultado, exigindo-se que seja produzido um prejuízo patrimonial de alguém, sendo que dos vários modos vinculados de execução típica, importa, no caso, considerar a «utilização de dados sem autorização», com a intenção do obter um enriquecimento ilegítimo.
A burla informática, por isso, na construção típica e na correspondente execução vinculada, há-de consistir sempre em um comportamento que constitua um artifício, engano ou erro consciente, não por modo de afetação direta em relação a uma pessoa como na burla tipo, mas por intermediação da manipulação de um sistema de dados ou de tratamento informático, ou de equivalente utilização abusiva de dados. Por isso que, como diz o Ac. do STJ de 10.01.2001[18], «No crime de burla informática, p.p. pelo artigo 221, do Código Penal, o bem jurídico protegido é não só o património - mas concretamente, a integridade patrimonial - como, ainda, a fiabilidade dos dados e a sua proteção»[19].
Para o preenchimento da previsão típica não se exige “qualquer engano ou artifício por parte do agente”, mas sim a introdução e utilização abusiva de dados no sistema informático (no caso presente as caixas ATM). Como refere P. Pinto de Albuquerque[20] «o prejuízo patrimonial é consequência adequada da conduta do agente, sem a mediação do ofendido ou da pessoa enganada, no que se afasta da estrutura tradicional do crime de burla».
No caso em apreço, estão em causa várias utilizações de uma caderneta com a introdução do respetivo código PIN (nisso se assemelhando a um vulgar cartão de débito Multibanco), tendo a arguida procedido a várias operações de levantamento. É certo que, quer a caderneta, quer o código PIN associado, lhe foram cedidos pela própria assistente, titular da conta onde foram feitos os levantamentos. Contudo, a mera entrega de tais elementos à arguida não traduz qualquer autorização para utilização da caderneta e do código tal como foi feita pela arguida, na medida em que a assistente só lhe fez aquela entrega por se ter convencido de que tais elementos eram imprescindíveis para que a arguida conseguisse obter o crédito bancário de que, alegadamente, carecia.
Os levantamentos em caixas ATM efetuados pela arguida da conta bancária da assistente, no valor global de € 13.560,00, constituem apropriação de coisa móvel alheia (dinheiro) através da introdução e utilização no sistema informático das ATM’s de dados sem autorização (concretamente, introdução da caderneta e digitação do código de acesso), com intenção de obter enriquecimento ilegítimo, causando à assistente prejuízo patrimonial elevado, conduta essa que integra indubitavelmente uma das modalidades da ação típica do crime de burla informática.
De realçar ainda que, apesar de existir uma pluralidade de resoluções que integram o crime de burla informática, correspondente ao número de operações de levantamento realizadas, é de admitir a existência de uma homogeneidade de ação, bem como o facto de a posse do cartão de crédito proporcionar a prática do ilícito, circunstâncias estas que configuram a prática do crime sob a forma continuada.
Conclui-se, assim, que a conduta da arguida integra a prática, em concurso real, de um crime de burla qualificada p. e p. nos artºs 217º e 218º nº 1 e um crime de burla informática p. e p. no artº 221º nº 1 e 5 al. a), todos do Cód. Penal.
O enquadramento jurídico assim efetuado implica uma alteração da qualificação jurídico-penal constante da acusação pública e da sentença recorrida.
O Código de Processo Penal na redação que lhe foi introduzida pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, ao ser aditado ao artigo 358º o atual n.º 3, pondo termo a posições doutrinais e jurisprudenciais divergentes assumidas desde o início da sua vigência, consagrou a solução da livre qualificação jurídica dos factos pelo tribunal do julgamento, com reserva da obrigatoriedade de prévia comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica e da concessão, a requerimento daquele, do tempo necessário à preparação da defesa, ressalvando os casos em que a alteração decorra de alegação feita pela defesa. E com a publicação da Lei n.º 48/07, de 29 de Agosto, através de aditamento ao artigo 424º (n.º 3), alargou a possibilidade de a alteração da qualificação jurídica poder ser feita no tribunal de recurso (bem como de a alteração poder incidir sobre os factos descritos na decisão em recurso, desde que não substancial), alteração que, obviamente, no caso de ser desconhecida do arguido, terá de lhe ser comunicada para que o mesmo, querendo, possa sobre ela se pronunciar.
Este alargamento, aliás, já era jurisprudencialmente admitido, uma vez que o Supremo Tribunal de Justiça através do acórdão n.º 4/95 fixou jurisprudência no sentido de que o tribunal superior pode em recurso alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efetuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição de reformatio in pejus.
Deste modo, salvaguardado o princípio da proibição de reformatio in pejus, princípio estabelecido no artigo 409º do C.P.P., segundo o qual interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes, nada obsta à requalificação jurídica dos factos agora operada, alterando-se a qualificação jurídica efetuada pelo tribunal recorrido, nos termos supra referidos.
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E) Da especial fragilidade/vulnerabilidade da assistente:
Alega a recorrente que o Sr. Juiz a quo considerou provada a “especial fragilidade e vulnerabilidade da assistente” apenas pela análise do seu depoimento, o que não podia ter feito por não ser nem psicólogo nem médico, nem possuir os conhecimentos técnicos necessários para avaliar o estado psíquico de uma pessoa, devendo ter requisitado perícia sobre a personalidade nos termos do artº 151º do C.P.Penal.
Não se percebe onde encontra a recorrente, entre os factos provados, que o tribunal tenha dado como provada “a especial fragilidade/vulnerabilidade da assistente”.
A única referência que encontramos na decisão recorrida é na motivação de facto. Efetivamente, na fundamentação de facto da decisão recorrida consta: “A referida assistente, em audiência de julgamento, revelou ser uma pessoa com personalidade frágil e facilmente manipulável, razão pela qual terá confiado na arguida”.
Trata-se, obviamente, não de um juízo pericial, mas sim da revelação da convicção do julgador e do juízo de credibilidade que a assistente lhe mereceu.
Não está vedada ao julgador a pronúncia sobre a personalidade dos intervenientes processuais, principalmente quando tem de atribuir maior ou menor credibilidade àqueles que, perante si, prestam declarações ou depoimento. Aliás, é precisamente o que impõem os princípios da imediação e da oralidade, conjugados com o dever de fundamentação da decisão de facto, nomeadamente do exame crítico das provas produzidas em audiência, que decorre do disposto no artº 374º nº 2 do C.P.P.
Improcede, assim, mais este fundamento do recurso.
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F) Dos pedidos de indemnização cível:
Depois de dar como reproduzida a impugnação da matéria de facto quanto à prática dos factos que lhe são imputados, a recorrente conclui que não existe nexo causal entre o facto e o dano, pelo que não é exigível a condenação no pagamento de quaisquer quantias, quer a título de indemnização pelos danos sofridos pela assistente, quer a decorrente da celebração do empréstimo, por não se ter demonstrado que foi a recorrente que celebrou o contrato em causa.
Nos termos do artº 403º nº 3 do C.P.P. a procedência do recurso na parte criminal impõe que se retirem as necessárias consequências relativamente a toda a decisão recorrida.
Considerando, porém, que o recurso foi julgado improcedente na parte criminal, confirmando-se consequentemente a sentença recorrida nessa parte, inexiste fundamento para a alteração do decidido quanto aos pedidos cíveis formulados.
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G) Da determinação da medida concreta da pena:
O crime de burla qualificada p. e p. nos artºs. 217º nº 1 e 218º nº 1 do Cód. Penal, por referência ao disposto no artº 202º al. a) do mesmo diploma, é punido com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
Por sua vez, ao crime de burla informática p. e p. no artº 221º nºs. 1 e 5 al. a) do Cód. Penal, corresponde idêntica punição.
Como é sabido, culpa e prevenção constituem o binómio que o julgador terá de utilizar na determinação da medida da pena, a qual visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artigos 71º, n.º 1 e 40º, n.º 1, do Código Penal.
A culpa como expressão da responsabilidade individual do agente pelo facto e como realidade da consciência social e moral, fundada na existência de liberdade de decisão do ser humano e na vinculação da pessoa aos valores juridicamente protegidos (dever de observância da norma jurídica), é o fundamento ético da pena e, como tal, seu limite inultrapassável – artigo 40º, n.º 2, do Código Penal[21].
Dentro deste limite a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, pelo que dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.
É este o critério da lei fundamental – artigo 18º, n.º 2 – e foi assumido pelo legislador penal de 1995[22], ao eleger como finalidades da punição a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, e ao impor como limite da pena a culpa.
Na determinação da medida concreta da pena a aplicar à arguida por cada um dos apontados crimes, há que atender ao grau de ilicitude do facto, ao prejuízo elevado provocado à assistente, ao elevado grau de violação dos deveres impostos à arguida (que abusou da confiança que a assistente nela depositava), à intensidade do dolo direto, ao modo de execução dos crimes, reiterando a arguida a sua conduta ao longo de diversos meses, ao sentimento de grande deslealdade e desrespeito manifestados pela arguida para com uma amiga que, desde logo, se prontificou a ajudá-la, bem como à total ausência de arrependimento por parte da arguida, que nem sequer assumiu a prática dos factos.
Não podemos esquecer, por outro lado, as condições pessoais da arguida (é viúva, tem um filho de 25 anos de idade a seu cargo, é funcionária pública auferindo o salário líquido mensal de € 600,00), bem como a ausência de antecedentes criminais.
Tudo visto e ponderado, entendemos que a pena de 21 (vinte e um) meses de prisão por cada um dos crimes praticados, satisfaz as exigências de prevenção geral e especial.
Nos termos do artº 77º nº 1 do CPenal, a medida da pena conjunta é fixada em função dos critérios gerais da culpa e das exigências de prevenção estabelecidos nos arts. 40º, nº 1 e 71º, nº 1, do CPenal, a que acresce a necessidade de consideração do critério especial da 2ª parte do referido preceito. Ou seja, na medida da pena do concurso são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Como ensina Figueiredo Dias[23], no que vem sendo seguido, sem divergências, pela jurisprudência, o conjunto dos factos praticados indica-nos a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique; por sua vez, na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, só no primeiro caso se justificando atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. Relevo especial na operação terá ainda o juízo sobre o efeito previsível da pena no comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).
Nestes termos, há que considerar que o conjunto dos factos praticados surgiram na sequência uns dos outros, e propiciados pela circunstância de a arguida ter na sua posse os elementos necessários para o efeito (caderneta da G… e código PIN de acesso), não traduzem uma tendência criminosa.
Por outro lado, na ausência de um complexo de circunstâncias de cariz atenuativo, não se descortina motivo para a adoção de um critério mais favorável em sede de determinação da pena única de prisão que o critério comummente seguido pela jurisprudência da soma da pena parcelar mais grave com um terço da(s) restante(s), ou seja, in casu, 2 anos e 3 meses de prisão (e não 2 anos e 4 meses de prisão, atenta a proibição da reformatio in pejus – artº 409º do C.P.P.).
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em:
A) Alterar o enquadramento jurídico-penal dos factos provados, revogando parcialmente a sentença recorrida, em consequência do que condenam a arguida B…:
- pela prática de um crime de burla qualificada p. e p. nos artºs. 217º e 218º nº 1 do Cód. Penal na pena de 21 (vinte e um) meses de prisão;
- pela prática de um crime de burla informática p. e p. no artº 221º nºs 1 e 5 al. a) do Cód. Penal, na pena de 21 (vinte e um) meses de prisão;
- efetuado o cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, condenam a arguida na pena única de dois anos e três meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sob condição de pagar à assistente C…, nesse período de tempo, a quantia de € 5.000,00.
B) Confirmar, no mais, a sentença recorrida.
C) Negar provimento ao recurso interposto pela arguida.
D) Condenar a arguida/recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 5 UC’s – artº 8º nº 9 do RCP e tabela III anexa.
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Porto, 03 de Fevereiro de 2016
(Elaborado pela relatora e revisto pelos signatários)
Eduarda Lobo
Castela Rio
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Proferidos nos Procs. nº 2951/05 e 461/06, respetivamente, ambos relatados por Simas Santos e disponíveis in www.dgsi.pt
[4] Neste sentido, v. acórdão do S.T.J. de 21.01.2003, Proc. nº 02ª4324, rel. Afonso Correia, também disponível in www.dgsi.pt
[5] Relatado por Maria do Carmo Silva Dias e publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, nº 3960, pgs. 176 e segs.
[6] Neste sentido, v. acórdão do S.T.J. de 09.07.2003, Proc. nº 3100/02, rel. Leal Henriques, disponível in www.dgsi.pt).
[7] Sobre a prova indiciária em processo penal veja-se com interesse, La Mínima Actividad Probatória en el Proceso Penal, J. M. Bosch Editor, 1997, M. Miranda Estrampes, páginas 231 a 249.
[8] Proferido no Proc. nº 07P4588, Cons. Armindo Monteiro, disponível em www.dgsi.pt
[9] Leia-se Matéria de Facto Provada.
[10] In “Derecho Procesal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111
[11] ASTJ de 11.4.2011 de Souto de Moura com Isabel Pais Martins e Carmona da Mota no Processo 117/ 08.3PEFUN.L1.S1.
[12] Cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 3ª ed., 334 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., pág. 81.
[13] In Código Penal, Parte Geral e Especial, 2ª ed., pág. 961.
[14] Ibidem, pág. 963.
[15] Ibidem, pág. 966.
[16] Proferido no Processo nº 07P2599, Cons. Simas Santos, disponível em www.dgsi.pt.
[17] Cfr. Ac. do STJ de 04.10.2007, acima citado.
[18] Proferido no Proc. nº 00P3101, Cons. Leal Henriques, disponível em www.dgsi.pt.
[19] No mesmo sentido, José de faria Costa e Helena Moniz, Algumas Reflexões sobre a criminalidade informática em Portugal, in BFDUC, Vol. LXXIII, 1997, págs. 323-324 e A.M.Almeida Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 328 e ss.
[20] In Comentário do Código Penal, 2010, pág. 689.
[21] A pena da culpa, ou seja, a pena adequada à culpabilidade do agente, deve corresponder à sanção que o agente do crime merece, isto é, deve corresponder à gravidade do crime. Só assim se consegue a finalidade político-social de restabelecimento da paz jurídica perturbada pelo crime e o fortalecimento da consciência jurídica da comunidade – Cf. Claus Roxin, Culpabilidad Y Prevención En Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde – 1981), 96/98.
[22] V. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 3º Tema – Fundamento Sentido e Finalidade da Pena Criminal (2001), 104/111. Na esteira desta doutrina, entre muitos outros, o Ac. do STJ de 21.10.2004, na CJ (STJ), XII, III, 192.
[23] In “As Consequências Jurídicas do Crime”, (1993), pág. 291.