Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
459/20.0T9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
LEITURA DE DECLARAÇÕES PRESTADAS EM INQUÉRITO
Nº do Documento: RP20230705459/20.0T9PRT.P1
Data do Acordão: 07/05/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELA ASSISTENTE
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: Não se verifica alguma violação do princípio da imediação, e não estamos, por isso, perante prova proibida quando na fundamentação da sentença se afirma que a recusa de leitura de um depoimento prestado pela testemunha em inquérito (independentemente do conteúdo deste), sem que se indique algum motivo razoável e compreensível para tal, gera dúvidas a respeito da veracidade do depoimento prestado por essa testemunha em julgamento; o princípio da imediação impede, neste caso, que se valore o depoimento prestado ao inquérito, mas não impõe que necessariamente se valore o depoimento prestado em julgamento; a recusa de leitura do depoimento prestado em inquérito impede que se valore tal depoimento, mas não impede que, quando não for aduzido algum motivo razoável e compreensível para tal recusa, se suscitem dúvidas sobre a veracidade do depoimento prestado em julgamento.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 459/20.0T9PRT.P1


Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto


I – A assistente e demandante AA veio interpor recurso da douta sentença do Juiz 6 do Juízo Local Criminal do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que absolveu a arguida e demandada BB da prática do crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, por que vinha acusada, assim como do pedido de indemnização civil por ela contra esta formulado e relativa a tal prática.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«I. A sentença recorrida absolveu a Arguida da prática de um crime de injúria, p.p. pelo n.º 1 do artigo 181.º do CP e julgou improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil, formulado pela Recorrente contra aquela.
II. No entanto, a sentença recorrida julgou errada e incorrectamente a matéria de facto dada como não provada, que sustentou esta decisão absolutória.
III. A sentença recorrida incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, porque julgou não provados factos, relativamente aos quais foi feita prova cabal e que, como tal, terão de ser considerados provados.
IV. A sentença recorrida violou frontalmente o princípio da imediação, consagrado no artigo 355.º do CPP, bem como o preceituado nos artigos 125.º, 127.º e no n.º 5 do artigo 356.º, todos do CPP, e ainda o n.º 5 do artigo 32.º da CRP.
V. A sentença recorrida julgou incorrectamente a matéria de facto, ao considerar não provados os concretos pontos de facto que, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 e na alínea a) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP, se passam a concretizar abaixo.
VI. A sentença recorrida julgou incorrectamente a matéria de facto, ao considerar não provado o facto constante aa alínea I) do elenco dos Factos Não Provados constantes da Parte II. da Fundamentação da sentença recorrida, a saber:
VII. “Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no facto provado em 7.º a Arguida injuriou a Assistente, chamando-lhe, em voz alta: ‘vigarista’”.
VIII. A sentença recorrida julgou incorrectamente a matéria de facto, ao considerar não provado o facto constante aa alínea J) do elenco dos Factos Não Provados constantes da Parte II. da Fundamentação da sentença recorrida, a saber:
IX. “A Arguida, ao apelidar a assistente como ‘vigarista, pretendeu diminuí-la, vexá-la e injuriá-la, sabendo perfeitamente que tais considerações são lesivas das suas honra, dignidade e consideração”.
X. A sentença recorrida julgou incorrectamente a matéria de facto, ao considerar não provado parte do facto constante da alínea L) do elenco dos Factos Não Provados constantes da Parte II. da Fundamentação da sentença recorrida, a saber:
XI. “A Arguida agiu por via de acção, livre, deliberada e conscientemente, sabendo do carácter ilícito e punível da sua conduta e que praticava assim o crime de injúria”.
XII. A sentença recorrida julgou incorrectamente a matéria de facto, ao considerar não provado o facto constante aa alínea M) do elenco dos Factos Não Provados constantes da Parte II. da Fundamentação da sentença recorrida, a saber:
XIII. “Em face dos comportamentos supra referidos, a Assistente sentiu-se e sente-se constrangida, intimidada, vexada e diminuída na sua pessoa e consideração”.
XIV. A sentença recorrida julgou incorrectamente a matéria de facto, ao considerar não provado parte do facto constante aa alínea O) do elenco dos Factos Não Provados constantes da Parte II. da Fundamentação da sentença recorrida, a saber:
XV. “O episódio supra referido ocorreu publicamente e foi do conhecimento comum de vizinhos do seu local de residência”.
XVI. A Recorrente impugna especificadamente, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 e na alínea a) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP, os pontos de facto vindos de discriminar, porque a matéria probatória constante dos autos impõe uma decisão em sentido diverso.
XVII. A Recorrente passa a designar, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.º 3 e, bem assim, do n.º 4 do artigo 412.º do CPP as concretas provas que impõem a prolação de uma decisão diversa da recorrida:
XVIII. Prova testemunhal produzida por CC, (2.ª Testemunha indicada na Acusação particular), cujo depoimento é mencionado a fls. 3 da acta da audiência de discussão e de julgamento datada de 28.11.2022, e se encontra devidamente gravado em suporte digital, com a duração de 19m24s.
XIX. Mais concretamente nas declarações constantes do 8.º ficheiro áudio, de 28.11.2022, ao qual foi atribuída a referência 20221128115634_16151094_2871499, com 2.947 KB, concretamente desde o minuto 01min.49’ até 03min.37, que se passa a transcrever:
XX. Mandatária da Recorrente - “Bom dia, Senhora Dra. CC, desculpe. A Senhora Dra. sabe o que nós estamos aqui a discutir, hoje, no seio deste processo? Um episódio que ocorreu no dia 27 de Julho de 2019, entre Senhora Dona BB e a Senhora Dona AA? Se tem presente de ter havido alguma altercação no prédio?”|| Testemunha – “É assim. Eu estou na minha casa.”|| Mandatária da Recorrente – “Nesse dia? Certo?”|| Testemunha – “Nesse dia, certo.”||(…)Mandatária da Recorrente – “Diga-me uma coisa, a Senhora alguma vez ouviu a expressão ‘sua vigarista, abra a porta?’”||Testemunha – “Ouvi nessas ocasiões em que a Dona BB – foi mais do que uma – foi lá, dizer, saí daí! Está aí dentro, sua vigarista!”||Mandatária da Recorrente – “Ouviu isso?”||Testemunha – “Ouvi, claro.”.
XXI. E ainda, mais concretamente nas declarações constantes do 8.º ficheiro áudio, de 28.11.2022, ao qual foi atribuída a referência 20221128115634_16151094_2871499, com 2.947 KB, concretamente desde o minuto desde o minuto 04.06’ até 04min.45’.
XXII. E ainda, mais concretamente nas declarações constantes do 8.º ficheiro áudio, de 28.11.2022, ao qual foi atribuída a referência 20221128115634_16151094_2871499, com 2.947 KB, concretamente desde o minuto desde o minuto 06min16’ até 07min.00’, que se passa a transcrever:
XXIII. Mandatária da Recorrente – “Outra questão que lhe queria colocar – embora já o tenha dito de alguma forma, mas gostava que esclarecesse – é se esse tipo de interpelações, que são recorrentes, e relativamente ao dia a que aqui nos reportamos, este dia 27 de Julho, em que a senhora falou inclusivamente no discurso directo, se eram agressivas, se eram num tom agressivo?”|| Testemunha – “Alto.”|| Mandatária da Recorrente – “Pois, alto já percebi que sim, para a senhora ter ouvido. Isso já percebi.”|| Testemunha – “Não dava para…”|| Mandatária da Recorrente – “É que foi aqui dito, pela senhora Dona BB, que a expressão vigarista nem sequer consta do seu vocabulário. A senhora tem a certeza que ouviu isso?”|| Testemunha – “Ouvi. É uma vigarista. É uma vigarista.”
XXIV. E ainda, mais concretamente nas declarações constantes do 8.º ficheiro áudio, de 28.11.2022, ao qual foi atribuída a referência 20221128115634_16151094_2871499, com 2.947 KB, concretamente desde o minuto desde o minuto 08min.06’ até 09min.30’, que se passa a transcrever:
XXV. Mandatária da Recorrente – “Ó, Senhora Dra., e depois esteve com a Dona AA, depois desse episódio? Sabe dizer-me como é que ela ficou, animicamente?” || Testemunha – “Alterada. (…) Sei que a vi, mais tarde, e perguntei se estava tudo bem.” || Que ela se nota que está alterada, um bocado, nota”|| Mandatária da Recorrente – “E sentiu se a Dona AA teve vergonha? Ou se ficou vexada com a circunstância?” || Testemunha – “Se o prédio ouve, e não sou só eu. É evidente que alguém, que chama às outras pessoas algo, as pessoas ficam envergonhadas.” || Mandatária da Recorrente – “As senhoras já são vizinhas há muitos anos?”|| Testemunha – “Já.” || Mandatária da Recorrente – “E qual é a percepção que tem da Dona AA?” || Testemunha – “Olhe, naquilo que a mim me diz respeito, acho que é uma pessoa muito discreta, cumpridora, e que evita ao máximo – quer dizer, nem é evitar ao máximo – é, não há confusão entre ela e os restantes vizinhos – nem comigo, nem com os restantes vizinhos.”
XXVI. E ainda, mais concretamente nas declarações constantes do 8.º ficheiro áudio, de 28.11.2022, ao qual foi atribuída a referência 20221128115634_16151094_2871499, com 2.947 KB, concretamente desde o minuto 15min.10’ até 16min.05’desde, que se passa a transcrever:
XXVII. Mandatária da Arguida – “A Senhora tem a certeza do que ouviu sobre o que a Senhora BB disse no corredor?” || Testemunha – “A Dona BB, já lhe disse, que foi mais do que uma vez …” || Mma. Juiz – “Pronto, mas aquilo que nós queremos saber é daquele dia. Das outras vezes, é uma referência com que o Tribunal fica relativamente à situação global do relacionamento destas duas senhoras, mas nós precisamos de saber só daquele dia. Portanto, daquilo que se recorda daquele dia.” || Testemunha – “Pronto, daquilo que me recordo foi isso que eu estive a dizer.”|| Mandatária da Arguida – “E o que é que disse?” || Testemunha –“Abra a porta. Sei que está em casa. Sua vigarista, abra a porta. Ouço barulho. Coisas assim…Vou chamar a polícia.” || (…) Mma. Juiz – “Nesse dia, a senhora tem a certeza que isso foi dito?” || Testemunha – “Tenho.”
XXVIII. E ainda, mais concretamente nas declarações constantes do 8.º ficheiro áudio, de 28.11.2022, ao qual foi atribuída a referência 20221128115634_16151094_2871499, com 2.947 KB, concretamente desde o minuto 18min.32’ até 18min.44’.
XXIX. E ainda, mais concretamente nas declarações constantes do 11.º ficheiro áudio, de 28.11.2022, ao qual foi atribuída a referência 20221128121847_16151094_2871499, com 164 KB, mais concretamente desde o minuto 00min.38min’ até 01min.01’, e, bem assim, nas declarações constantes do 12.º ficheiro audio, de 28.11.2022, ao qual foi atribuída a referência n.º 20221128121950_16151094_2871499, com 426 KB, mais concretamente, o minuto 0min.00’até 2min.08’, que se passam a transcrever:
XXX. Mma. Juiz – “Dona CC, aquilo que a senhora… a senhora… às vezes as pessoas convencem-se de alguma coisa, porque ouviram falar, entretanto, antes de virem depor, ouviram falar sobre a situação ou falaram com as pessoas sobre a situação … aquilo que eu quero que a Senhora faça um apelo à memória – aquilo que a Senhora sabe – e distinga, aquilo que a senhora sabe do que aquilo que a senhora sabe porque ouviu a Senhora Dona AA contar-lhe ou dizer-lhe, percebe? São situações distintas. (…) Portanto, quero que a Senhora faça uma busca à sua memória e distinga aquilo que realmente ouviu (…) E por isso eu pergunto-lhe, a Senhora quer manter o que disse ou quer, enfim, esclarecer-me alguma coisa relativamente ao que” || Testemunha – “Não, quero manter. Se eu falhei, foi na fase de inquérito. Porque eventualmente fui lá numa pressa.” || (…) Mma. Juiz – “A questão é: o que é que aconteceu no dia 27 de julho de 2019?” || Testemunha – “Eu sei que nesse dia foi problemático porque não foi uma questão de pouco tempo. Foi muito tempo. A Dona AA estar à porta e eu já tinha ouvido – a Dona AA, não, a Dona BB – e eu já tinha ouvido a Dona BB enquanto estava dentro do apartamento, só que, não saí. Mantive-me dentro do apartamento, a fazer as minhas coisas, mas ouvia-se porque a Dona BB falava muito alto. E quando ela me toca à campainha, eu só sei que é a Dona BB, na realidade, quando me confronto com ela.”
XXXI. Da prova testemunhal vinda de referir torna necessário e racionalmente obrigatório que os factos dados como não provado nas alíneas I), J), L), M) e O) do elenco dos Factos Não Provados constantes da Parte II. da Fundamentação da sentença recorrida, sejam retirados desse elenco e sejam, antes, aditados ao elenco dos Factos Provados da sentença recorrida.
XXXII. O Tribunal recorrido sustentou a sua decisão relativa à matéria de facto alegando confusões de datas da parte da ofendida. No entanto, a Testemunha CC não apresentou confusão alguma e foi categórica ao localizar geográfica e temporalmente os factos em apreço nos autos [cf. transcrições acima, mormente as que constam dos pontos XIX, XX, XXVI, XXVII, XXIX E XXX destas conclusões].
XXXIII. O Tribunal recorrido descredibilizou o depoimento da Testemunha CC retirando uma consequência prejudicial para a Recorrente de um direito que esta legitimamente exerceu, nos termos do n.º 5 do artigo 356.º do CPP.
XXXIV. Em sede de audiência de discussão e julgamento a Testemunha CC afirmou, de forma categórica e inequívoca – e por mais do que uma vez – que a Arguida apelidara a Recorrente de “vigarista” nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação, conforme acima se viu nas transcrições levadas a efeito.
XXXV. Sendo que o Tribunal recorrido entendeu por bem não valorar tais declarações porquanto, por um lado, o Ministério Público e a Defesa requereram que fosse extraída certidão contra esta Testemunha por falsas declarações; por outro lado, porque a Recorrente se opôs – legitimamente, insiste-se – à leitura dessas declarações prestadas em sede de inquérito.
XXXVI. O Tribunal recorrido – pese embora não tenha ouvido as declarações que foram prestadas em sede de inquérito, e, em bom rigor, não saiba sequer o que ali foi exactamente dito – não deixou de as valorar, em prejuízo da Recorrente.
XXXVII. A valoração de tais declarações na sentença recorrida constitui prova proibida, nos termos e para os efeitos do preceituado no n.º 2 do artigo 355.º do CPP e importa, de per si, a nulidade da mesma.
XXXVIII. A interpretação das normas do princípio da imediação, cuja sede se encontra consagrada no artigo 355.º do CPP, levada a cabo pelo Tribunal recorrido, é inconstitucional, porquanto não acautela as mais elementares garantias do processo-penal e da própria sentença.
XXXIX. Aplicando-se o direito aos factos provados, a decisão recorrida terá necessariamente de ser alterada e substituída por outra, nos termos da qual se determine a condenação da Arguida e Demandada BB na prática de um crime de injúria, p.p. pelo n.º 1 do artigo 181.º do CP e, bem assim, se julgue procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido a fls. dos autos e, consequentemente, se condene a Demandada no mesmo.
XL. A expressão “vigarista”, proferida pela Arguida e Demandada – por si só e também no concreto contexto em que o foi – é passível de afectar a honra e consideração alheia, ou seja, a honra e a consideração, do modo como a generalidade das pessoas de bem de um certo país, e num determinado contexto sócio-cultural as perspectivam.
XLI. A expressão em causa ofendeu a Recorrente, causando-lhe vexame e vergonha, tal como ofenderia qualquer pessoa de bem, colocada no concreto lugar da Recorrente.
XLII. É que, ao usar-se tal expressão quer-se significar vulgarmente uma pessoa que visa enganar outros por meios ardiloso e de má-fé.
XLIII. A Arguida e Demandada não ignorou tal significância, desde logo, por se encontrar a residir em Portugal há 29 anos (cf. facto 17.º do elenco dos factos provados da sentença recorrida) e a trabalhar em Portugal há 16 anos (cf. facto 16.º do elenco dos factos provados da sentença recorrida).
XLIV. No caso dos autos encontram-se preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito criminal de injuria, p.p. no n.º 1 do artigo 181.º do CP
XLV. Em consequência, e porque tais factos e consequentes danos foram provados, o pedido de indemnização civil terá ser julgado procedente, por provado, sendo a Demandada condenada no mesmo.»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando também pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se a prova produzida impõe decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida, devendo a arguida e demandada ser condenada pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, por que vinha acusada, assim como no pedido de indemnização civil contra ela formulado e relativo a tal prática.

III – Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:

«(…)
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) FACTOS PROVADOS
Da prova produzida em audiência, resultaram provados os seguintes factos, com interesse para a decisão da causa, depurados dos factos conclusivos, de Direito, repetidos, que apenas negam a factualidade da acusação e que estão em desacordo com os factos provados:
Da acusação particular:
1.º No dia 27.07.2019, a Arguida dirigiu-se à residência da Assistente com o objectivo de a confrontar.
2.º Para o efeito, uma vez que a Assistente não se encontrava em casa, a Arguida deixou um bilhete por baixo da porta da sua habitação,
3.º O qual dava nota de a intenção da Arguida falar com a Assistente com urgência.
4.º Acto contínuo, a Arguida dirigiu-se ao local de trabalho da Assistente, sita na Rua ..., ..., no Porto, e começou a bater, de forma insistente, na porta do prédio onde se encontra o estabelecimento
5.º A Arguida dirigiu-se novamente à residência da Assistente.
6.º Nas circunstâncias de tempo e lugar acima descritas a Assistente contactou a Polícia de Segurança Pública.
7.º Antes da chegada da PSP à residência da Assistente, a Arguida conseguiu entrar no prédio, dirigiu-se à habitação da Assistente, começou a bater insistentemente na porta de entrada e vociferou de forma agressiva, nomeadamente, as seguintes expressões:
- “Abra já a porta!”;
- “Saia da minha casa!”;
- “Quero entrar na minha casa, se não abrir vai ter problemas!”
Da contestação:
8.º A arguida é proprietária do imóvel onde vive a ofendida, conforme contrato de arrendamento, cujo teor se dá por integralmente reproduzido por razões de economia processual.
9.º Desde o início do contrato de arrendamento, em 2014 que a ofendida tem reclamado anomalias no locado.
10.º No dia 25 de Julho de 2019, a arguida recebeu uma chamada telefónica do Sr. DD, vizinho do rés- do- chão, e proprietário da churrasqueira A..., a informar que estava a cair água do tecto, no restaurante, vindo do apartamento de cima, propriedade da arguida e onde reside a ofendida.
11.º A arguida e o Sr. DD tentaram entrar em contacto com a ofendida, mas a arguida não atendeu a chamada nem respondeu a mensagens.
12.º Dado se tratar de um assunto urgente, deslocou-se ao imóvel para falar com a ofendida sobre o sinistro, tocou à campainha mas apesar de ouvir música no locado, a ofendida não abriu a porta.
13.º Devido a situação de urgência, a arguida contactou a polícia, para intermediar a comunicação com a ofendida, mas foi referido que nada podiam fazer por se tratar de matéria civil.
14.º A arguida é senhoria da ofendida e é constantemente contactada pelo vizinho dos rés- do- chão a informar de sinistros de água, que a obriga a comunicar com a arrendatária e ofendida para a resolução imediata dos sinistros inclusive fornecer acesso dos peritos do seguro do imóvel para averiguação dos mesmos.
Das condições sócio-económicas da arguida:
15.º A arguida é solteira e vive sozinha em casa própria,
16.º Exerce a actividade profissional de Técnica de confecção com trabalho independente sendo funcionaria há 16 anos de uma empresa luso-suíça.
17.º Reside há 29 anos em Portugal.
18.º Tem um filho que vive em Munique em autonomia de vida.
19.º Aufere mensalmente um salário de €2.200.
20.º Despende mensalmente com as despesas da habitação – seguros, IMI, água, luz e internet – cerca de € 700 a € 800 mensais.
21.º Paga um Seguro particular de pensão de velhice e de saúde – 150€
22.º Medicamentos/saúde por mês gasta 50-80€/mês.
23.º Tem 12.º ano e curso técnico profissional como engenharia confecção.
Dos antecedentes criminais da arguida:
24.º Nada consta do certificado de registo criminal da arguida.
*
B) FACTOS NÃO PROVADOS
Da audiência de julgamento resultaram como não provados os seguintes factos, com relevo para a decisão da causa - depurados dos factos conclusivos, de Direito, repetidos, que apenas negam a factualidade da acusação e que estão em desacordo com os factos provados:
Da acusação particular:
A) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no facto provado em 4.º, a arguida apresentou-se como amiga da Assistente e começou a fazer perguntas de teor pessoal e privado sobre esta.
B) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no facto provado em 5.º a arguida tenha fixado o seu olhar para o interior da habitação da ofendida.
C) Provocando, com isso, constrangimentos à Assistente, a qual se sentiu intimidada e incomodada com o sucedido.
D) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no facto provado em 6.º a ofendida pretendia que a Arguida parasse de a importunar.
E) Continuou a tentar introduzir-se na habitação da Assistente, felizmente, sem sucesso.
F) Com a chegada dos Agentes da Polícia de Segurança Pública, apesar de ter sido convidada a ausentar-se do prédio, a Arguida não se coibiu de realizar comentários indecorosos sobre a Assistente.
G) Revelando e divulgando vários aspectos da vida privada da Assistente, com um intuito claramente difamatório.
H) De facto, a Arguida continuou a tecer comentários sobre a Assistente, como é o caso de:
- “Põe a roupa a secar nas portas”;
- “Tem muitos Advogados”, entre outros.
I) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas no facto provado em 7.º a Arguida injuriou a Assistente, chamando-lhe, em alta voz, “vigarista”.
J) A Arguida, ao apelidar a Assistente como “vigarista”, pretendeu diminuí-la, vexá-la e injuriá-la, sabendo perfeitamente que tais considerações são lesivas e ofensivas das suas honra, dignidade e consideração.
K) Por sua vez, ao tecer os comentários referidos junto dos Agentes da Polícia de Segurança Pública, a Arguida pretendeu diminuir e vexar a Assistente junto de terceiros, sabendo perfeitamente que tais considerações são lesivas e ofensivas da sua honra, dignidade e consideração.
L) A Arguida agiu por via de acção, livre, deliberada e conscientemente, sabendo do carácter ilícito e punível da sua conduta e que praticava assim os crimes de injúria e difamação.
Do pedido de indemnização civil:
M) Em face dos comportamentos supra referidos, a Assistente sentiu-se e sente-se constrangida, intimidada, vexada e diminuída na sua pessoa e consideração.
N) A Assistente vive atemorizada por não saber que comportamentos terá de suportar por parte da Arguida, a qual pode perpetuar os seus intentos criminosos.
O) O episódio supra referido ocorreu publicamente e foi conhecimento comum tanto de vizinhos do seu local de residência e de trabalho, bem como de amigos e pessoas próximas da Assistente.
Da contestação:
P) No entanto tem impedido a arguida de visitar o imóvel.
Q) A única vez que a arguida teve acesso ao imóvel, foi a acompanhar uma vistoria realizada em 27 de Janeiro de 2015.
R) Desde essa data que a arguida não tem acesso ao imóvel.
*
C) MOTIVAÇÃO
O Tribunal fundou a sua convicção no conjunto da prova produzida, analisada na audiência de discussão e julgamento e valorada à luz das regras da experiência comum e da normalidade social, designadamente:
A arguida esteve presente na audiência de julgamento e quis prestar declarações.
Colocou-se no local no dia e hora dos factos e explicou as razões pelas quais naquele dia teve necessidade de contactar a ofendida, mas negou que naquele dia tenha apelidado a ofendida de vigarista e que tenha falado sobre a vida pessoal daquela a quem quer que seja.
A assistente AA prestou declarações e descreveu os factos numa diferente versão.
Acontece, porém, que os depoimentos prestados em julgamento não foram de molde a confirmar, com a certeza e segurança necessárias, os factos da acusação, pelas razões que a seguir se sintetizam.
Desde logo, a confusão das datas pela ofendida (note-se que a ofendida insistiu que os factos ocorreram em Fevereiro de 2018, quando dos autos, designadamente, do auto de notícia que consta do apenso e das declarações da arguido, tais factos teriam ocorrido em 27 de Julho de 2019) e a menção que a ofendida fez de que houve outras ocorrências.
Por outro lado, a arguida disse que “Neste dia” não lhe chamou “vigarista”, o que poderia ser interpretado como não tendo chamado naquele dia, mas admitindo a possibilidade de o ter feito em dia diferente (poderá ser erro no uso das palavras, uma vez que apesar de falar bem português, não domina completamente a língua portuguesa, donde ter solicitado a intervenção de Intérprete).
Acresce que a arguida justificou de forma sólida o percurso que fez naquele dia (que coincidiu com os relatos das restantes testemunhas e que fazem sentido à luz das regras da experiência comum e do normal acontecer), tendo apenas negado que tenha proferido tal expressão e que tenha falado com terceiros sobre a vida pessoal da ofendida.
Ora, as testemunhas EE e o agente da PSP FF que estiveram no local, asseveraram que a arguida não falou sobre a vida pessoal da ofendida, nem a testemunha CC fez qualquer menção a isso.
A única testemunha presencial da parte da acusação que refere que a arguida apelidou a ofendida de vigarista foi CC, vizinha da ofendida, que apesar de ter afirmado que chamou “vigarista” neste dia, a pedido do Ministério Público e da defesa, foi extraída certidão contra esta testemunha por falsas declarações, sendo certo que a assistente opôs-se à leitura de tais declarações prestadas em inquérito, o que nos permite questionar sobre a veracidade deste depoimento nessa parte.
Note-se que no que respeita à data, a ofendida disse que isto aconteceu na única vez que esteve lá a polícia (sendo que neste dia 27/07/2019 esteve lá a polícia, porém, a testemunha CC disse que por causa das desavenças entre arguida e ofendida viu lá a polícia pelo menos 2 vezes, sendo certo que a ofendida mencionou outra discussão com a arguida (apesar de ter dito que apenas chamou a polícia uma vez).
Por outro lado, a ofendida mostrou grande animosidade relativamente à arguida e esta manteve sempre uma postura semelhante, mas mais contida, pelo que é de concluir que estão realmente desavindas entre si, o que é compatível com outras ocorrências.
Ora, perante as confusões de datas e de circunstâncias demonstradas pela ofendida, o sentimento de animosidade pela mesma manifestado e o facto de ter sido posta em causa a credibilidade da única testemunha presencial, não nos permitiu concluir que a arguida naquele dia, naquela hora e circunstâncias de lugar apelidou a ofendida de “vigarista”.
Ainda, nenhuma prova foi feita quando à divulgação a terceiros de factos desonrosos da vida pessoal da ofendida, pois nenhuma testemunha o afirmou, sendo que o agente da PSP negou mesmo tal possibilidade, sendo certo que esta testemunha nenhum interesse manifestou ter sobre a presente causa.
O que para nós não ficou absolutamente seguro, pela fragilidade dos depoimentos acima mencionados e pela inexistência de outras testemunhas presenciais, foi que, naquele concreto dia, a arguida tenha apelidado a ofendida de “vigarista” e que tenha feito referências sobre a vida pessoal da ofendida ao EE, à vizinha CC ou aos agentes da polícia, ou a qualquer outra pessoa.
Na verdade, admitimos que em algum momento o insulto de vigarista possa alguma vez ter sido dirigido à ofendida pela arguida, contudo, o que não logramos apurar foi que o mesmo foi propalado naquele dia, àquela hora e naquelas circunstâncias de tempo e lugar, admitidos pela arguida, ou se, eventualmente, terão sido dirigidos à ofendida noutro dia e noutras circunstâncias.
Inexistem outros elementos de prova que pudessem ajudar a dissipar as dúvidas com que o tribunal ficou, razão pela qual, por se manter a incerteza e as dúvidas acima mencionadas, impõe-se tomar uma decisão em favor da arguida.
Para que haja uma condenação é imprescindível que o tribunal não fique com dúvidas e que perante a prova produzida possa afirmar com a segurança e a certeza jurídica necessárias que os factos ocorreram que que foram cometidos pela arguida. Ora, tal não foi o caso, como acima já deixamos expresso.
Por tais razões demos como não provados os factos A) a L) dos factos não provados.
No que respeita aos factos do pedido de indemnização civil, temos que concluir que os danos a existirem não decorreram directa e causalmente dos factos desta acusação. Isto porque se não se provou que tenham ocorrido, sempre se dirá que não se provaram os correspondentes danos, donde a inserção dos factos M) a O) na factualidade não provada.
No que respeita aos factos da contestação o tribunal deu como provados tais factos pela conjugação dos depoimentos da arguida e da ofendida, bem como das testemunhas CC e GG, devidamente concatenados com os documentos dos autos, designadamente, o contrato de arrendamento, os documentos de participação ao seguro de inundação do restaurante que se situa por baixo da residência da ofendida (e que sustentam em parte a versão da arguida e a sua intenção, quando se referiu à necessidade de contactar a ofendida por causa das inundações no restaurante, e no sentido de que tais sinistros ocorreram).
Quanto aos factos da contestação que julgamos não provados, assim foram considerados por não terem sido produzidos quaisquer meios de prova sobre tais circunstâncias.
Para a prova das circunstâncias atinentes às condições sócio-económicas da arguida, o tribunal levou em boa conta o que resultou das declarações da arguida que, nessa parte, foram credíveis e não foram contrariadas por qualquer outro meio de prova.
Por último, os antecedentes criminais da arguida, assentam no seu certificado de registo criminal actualizado junto aos autos.
(…)»

IV 1. – Cumpre decidir.
Vem a assistente e recorrente alegar que a prova produzida impõe decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida, devendo a arguida e demandada ser condenada pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, por que vinha acusada, assim como no pedido de indemnização civil contra ela formulado e relativo a tal prática. Invoca o teor do depoimento da testemunha CC na parte que transcreve. Alega que tal depoimento não deverá ser descredibilizado, como faz a sentença recorrida, pois nele não se verifica qualquer confusão de datas e porque não é motivo para tal (também ao contrário do que se consta da sentença recorrida) a circunstância de ela, assistente, ter feito uso do direito de não consentir na leitura do depoimento que essa testemunha havia prestado em inquérito, direito que lhe é conferido pelo artigo 356.º, n.º 5, do Código de Processo Penal. Alega que a sentença recorrida não deixou de valorar esse depoimento prestado em inquérito (apesar de não o conhecer), contra o disposto no artigo 355.º, n.º 2, desse Código, o que constitui prova proibida. Alega que, desse modo, a sentença recorrida seguiu uma interpretação desse artigo 355.º (e do princípio da imediação nele consignado) contrária ao disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição.
Vejamos.
Estamos perante a impugnação da decisão sobre a prova, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal. A respeito desta impugnação da decisão sobre a prova, há que considerar o seguinte.
Como se refere nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de dezembro de 2005 e de 9 de março de 2006 (procs. nº 2951/05 e 461/06, respetivamente, ambos relatados por Simas Santos e acessíveis in www.dgsi.pt), e é jurisprudência uniforme, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».
A gravação das provas funciona como uma “válvula de escape” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações-limite de erros de julgamento sobre matéria de facto (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2003, proc. nº 024324, relatado por. Afonso Correia, também acessível in www.dgsi.pt).
E, como se refere no acórdão da Relação do Porto de 26 de novembro de 2008 (relatado por Maria do Carmo Silva Dias e publicado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 139º, nº 3960, pg.s. 176 e segs.), «não podemos esquecer a percepção e convicção criada pelo julgador na 1.ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas. O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é “colhido directamente e ao vivo”, como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª. Instância». A credibilidade das provas e a convicção criada pelo julgador da primeira instância «têm de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores» (assim, o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2003), fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento. Neste, «para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam» (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de julho de 2003, proc. nº 3100/02, relatado por Leal Henriques, acessível in www.dgsi.pt).
Deste modo, o recurso da decisão em matéria de facto da primeira instância não serve para suprir ou substituir o juízo que o tribunal da primeira instância formula, apoiado na imediação, sobre a maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. O que a imediação dá, nunca poderá ser suprimido pelo tribunal da segunda instância. Este não é chamado a fazer um novo julgamento, mas a remediar erros que não têm a ver com o juízo de maior ou menor credibilidade ou fiabilidade das testemunhas. Esses erros ocorrerão quando, por exemplo, o tribunal pura e simplesmente ignora determinado meio de prova (não apenas quando não o valoriza por falta de credibilidade), ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludem aos mesmos, ou afirmam o contrário.
Quando, no artigo 412.º, n.º 3, b), do Código de Processo Penal se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.
A esta luz, há que analisar a decisão sobre prova em apreço.
Tal decisão assenta fundamentalmente nos juízos de credibilidade (ou falta dela) dos depoimentos da ofendida, da arguida e da testemunha CC. Esses juízos dependem de fatores dependentes da imediação, de que nesta sede estamos privados. Não nos cabe, por isso, pôr em causa tais juízos nesta sede.
A confusão de datas que transparece do depoimento da ofendida e que contribui, de acordo com a fundamentação da sentença recorrida para gerar a dúvida sobre se a suposta injúria terá ocorrida na ocasião em apreço ou noutra, já não se verifica no depoimento da testemunha CC.
É no teor deste depoimento que assentam, essencialmente, as alegações da recorrente. Insurge-se esta contra a descredibilização desse depoimento na fundamentação da sentença recorrida, a qual para tal invocou a circunstância de ela ter recusado a leitura do depoimento que essa testemunha havia prestado em inquérito (recusa que impediu a leitura desse outro depoimento, como dispõe o artigo 356.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, mas não impediu o Ministério Público e a defesa de solicitarem a extração de certidões para eventual procedimento criminal por falsas declarações). Considera a recorrente, por um lado, que desse modo foi indevidamente retirada uma consequência negativa de uma atitude que mais não representa do que o legítimo exercício de um direito e, por outro lado, que foi desse modo violado o princípio da imediação (consignado no artigo 355.º do Código de Processo Penal), pois não deixou de ser (indiretamente) valorado esse depoimento prestado em inquérito (sem que se verificasse alguma das exceções à vigência de tal princípio previstas no artigo 356.º do mesmo Código), o que representa uma proibição de prova. Considera ainda a recorrente que desse modo se violou o disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição.
A este respeito, há que considerar o seguinte.
Em bom rigor, não pode dizer-se que tenha sido valorado o depoimento dessa testemunha prestado em inquérito, pois da fundamentação da sentença não consta qualquer referência ao teor desse outro depoimento, nem se afirma, pois, que desse outro depoimento constariam declarações contrárias às que foram prestadas em audiência. Não se verifica, assim, alguma violação do princípio da imediação, e não estamos, por isso, perante prova proibida. O que se afirma na fundamentação da sentença é, antes, que a recusa de leitura desse outro depoimento (independentemente do conteúdo deste), sem que se indique algum motivo razoável e compreensível para tal, gera dúvidas a respeito da veracidade do depoimento prestado em julgamento. O princípio da imediação impede, neste caso, que se valore o depoimento prestado ao inquérito, mas não impõe que necessariamente se valore o depoimento prestado em julgamento (como pretende a recorrente). A recusa de leitura do depoimento prestado em inquérito impede que se valore tal depoimento, mas não impede que, quando não for aduzido algum motivo razoável e compreensível para tal recusa, se suscitem dúvidas sobre a veracidade do depoimento prestado em julgamento.
Diz, a este respeito, a assistente e recorrente que ao recusar a leitura desse depoimento prestado em inquérito mais não fez do que exercer um direito legítimo e este facto não pode ser valorado negativamente. Mas há que salientar que essa recusa não é, de algum modo, equiparável à de um arguido, que, também no exercício de um direito, não presta declarações ou recusa a leitura de declarações não prestadas em julgamento (recusas que, essas sim, não podem ser valoradas negativamente, nem prejudicar o arguido). São situações substancialmente diferentes. As declarações de um arguido são, primordialmente, um meio de defesa, não um meio de prova. As declarações de uma testemunha são um meio de prova, ela está obrigada a depor (salvo contadas exceções) e a depor com verdade, o que obviamente não sucede com o arguido.
Por outro lado, também são diferentes as consequências de uma dúvida eventualmente suscitada por uma qualquer postura do arguido numa sua estratégia de defesa (essa dúvida nunca poderá prejudicá-lo, pois ele beneficia do princípio in dubio pro reo) e as consequências de uma dúvida suscitada por uma postura relativa ao depoimento de uma testemunha (essa dúvida pode validamente afetar a procedência da acusação, pois é sobre esta que recai o ónus de prova). E é esta segunda situação que se verifica no caso em apreço.
Por isso, não se nos afigura ilegítima a desvalorização do depoimento da testemunha em apreço por ter sido recusada a leitura de um seu depoimento prestado em inquérito (o que já não seria legítimo se se tratasse de uma recusa do arguido de prestar declarações ou de autorizar a leitura de declarações por ela anteriormente prestadas).
Não se vislumbra que estejamos perante alguma violação da estrutura acusatória do processo ou do princípio do contraditório consignados no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição (nem, verdadeiramente, consta da motivação do recurso a indicação da razão dessa violação).
A sentença recorrida não é, pois, merecedora de reparo.
Assim, deverá ser negado provimento ao recurso.

A assistente deverá ser condenada em taxa de justiça (artigo 515.º, n.º 1, b), do Código de Processo Penal e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais).


V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo a douta sentença recorrida.

Condenam a assistente e recorrente em três (3) U.C.s de taxa de justiça.

Notifique
Porto, 5 de julho de 2023
(processado em computador e revisto pelo signatário)

Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo
Castela Rio