Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5554/11.3TBVNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOANA SALINAS
Descritores: REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
INCOMPETÊNCIA INTERNACIONAL
Nº do Documento: RP20120412554/11.3TBVNG-A.P1
Data do Acordão: 04/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer do pedido de regulação das responsabilidades parentais de menor com residência noutro Estado-Membro da União Europeia, onde já hajam sido reguladas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 5554/11.3TBVNG-A.P1 - Apelação em separado
Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial de Família e Menores de Vila Nova de Gaia
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
B…, intentou acção de regulação das responsabilidades parentais, em 31 de Maio de 2011, no tribunal recorrido, referente à menor C…, de 2 anos de idade, sua filha e do requerido, D….
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Após o que, em acta de conferência de progenitores foi proferida a seguinte decisão:
“Relativamente à suscitada questão de litispendência entre os presentes autos e os que correm termos no tribunal italiano, aguardem os autos que a Digna Magistrada do MºPº se pronuncie.
Com base nas declarações da mãe na presente diligência, ao abrigo do estabelecido no artº 157º da OTM e tendo sempre presente o interesse da menor, decide-se, provisoriamente regular tal exercício, ou seja:
1 – Fixa-se a residência da menor no domicílio da progenitora, junto de quem a mesma se encontra e a quem competirá a decisão relativa aos actos da vida corrente da filha.
2 – Atendendo a que o pai reside em Itália e porque das declarações da mãe resulta que o relacionamento entre ambos se mostra difícil, caberá igualmente à mãe provisoriamente questões de particular importância da vida da menor.
Relativamente às visitas:
1 – Sempre que o pai se deslocar a Portugal poderá visitar a menor em casa da mãe, devendo avisá-la com pelo menos 48 horas de antecedência.
Alimentos e forma de os prestar
O pai contribuirá com a quantia de €220,00 mensais a entregar à progenitora até ao dia 8 de cada mês por meio idóneo (quantia que já vem entregando à mãe”.
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Inconformado com esta sentença, contra ela interpôs este recurso de apelação o requerido D…, pedindo que o tribunal a quo seja declarado internacionalmente incompetente, que a decisão recorrida seja revogada por existência de litispendência, determinando-se a eficácia da decisão judicial italiana em Portugal, e ainda, sem prescindir, que seja considerada nula a decisão recorrida.
Para tanto, o apelante formula as seguintes conclusões:
I. A 1 de Março de 2011, a Recorrida veio instaurar contra o Recorrente um processo de divórcio e regulação do poder paternal em Itália, estando o processo pendente na secção de Família do Tribunal de Udine, sob o n.º 1045/11.
II. Em audiência no dia 24.03.2011 no mesmo Tribunal de Udine, onde ambas as partes compareceram, houve uma regulação provisória das responsabilidades parentais, onde ficou decidido que as responsabilidades parentais iriam ser exercidas conjuntamente, ficou determinado o regime de visitas do Recorrente e se fixou a casa de morada de família na … em … – Udine, Itália.
III. No final do mês de Março a Recorrida veio a Portugal passar as férias da Páscoa com a sua filha menor, estando o regresso de ambas a Itália previsto para o dia 1 de Maio de 2011.
IV. Contudo, a mãe e a menor nunca voltaram para Itália passando a situação a consubstanciar uma transferência ilícita da menor para Portugal.
V. A 31 de Maio 2011, a Recorrida deu início a um novo processo, designadamente os presentes autos, ocultando ao Tribunal Português que já existia semelhante acção judicial a correr em Itália.
VI. Quando são instauradas em tribunais de Estados Membros diferentes acções relativas à responsabilidade parental em relação a uma criança, que tenham o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, o tribunal em que o processo foi instaurado em segundo lugar suspende oficiosamente a instância até que seja estabelecida a competência do tribunal em que o processo foi instaurado em primeiro lugar. (art. 19º, Reg. (CE) n.º 2201/2003 do Conselho de 27 de Novembro).
VII. Contudo, a Mma. Juiz do Tribunal a quo não só não suspendeu oficiosamente a instância, como procedeu à regulação provisória das responsabilidades parentais.
VIII. A Mma. Juiz do Tribunal a quo faz tábua rasa da regulação provisória já previamente feita por um Tribunal Italiano, apesar de a mesma regulação provisória estar junta aos autos.
IX. A Mma. Juiz regulou as responsabilidades parentais provisoriamente, de um modo ainda mais restritivo e penoso para o pai, e apesar de tal regulação provisória entrar em conflito com a regulação provisória italiana, que é anterior, e sem que o processo italiano tenha sido suspenso.
X. Existem neste momento, duas regulações proferidas por dois Tribunais, com diferentes contornos, pairando o caos jurídico sobre as relações familiares.
XI. O Tribunal a quo veio beneficiar a mãe que subtraiu a criança sem autorização judicial, e ceifando totalmente a presença do pai da vida da menor.
XII. A menor tem 2 anos de idade e o afastamento ilícito de que está a ser vítima está a afastá-la do pai, o único progenitor que obedece à lei e que inclusivamente continua a prestar alimentos à mãe e à menor, nos termos da regulação provisória italiana.
XIII. A Mma. Juiz violou as regras de competência internacional, designadamente o Reg. (CE) n.º 2201/2003 que abrange todas as decisões em matéria de responsabilidade parental.
XIV. Em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, os tribunais do Estado-Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro e o pai dê o consentimento à deslocação ou à retenção, ou a criança ter estado a residir nesse outro Estado-Membro durante, pelo menos, um ano após a data em que o pai tenha tomado conhecimento paradeiro da criança, em cúmulo com outros critérios constantes do art. 10 do Regulamento.
XV. Não tendo ocorrido nenhuma dessas situações, o Tribunal italiano é o competente para conhecer a matéria.
XVI. Pelo que o Tribunal a quo deveria ter suspendido oficiosamente a instância nos termos do art. 19º n.º 2 do Regulamento.
XVII. O Tribunal poderia em caso de urgência, e de acordo com o art. 20º do Regulamento, tomar as medidas provisórias ou cautelares relativas às pessoas ou bens presentes nesse Estado-Membro, e previstas na sua legislação, mesmo que, por força do presente regulamento, um tribunal de outro Estado-Membro seja competente para conhecer do mérito.
XVIII. Contudo, o Tribunal não fundamentou a sua decisão provisória em tal norma, nem o poderia fazer porque não existe nenhuma situação de urgência nem nenhum contorno excepcional em que a Mma. Juiz se pudesse basear para aplicar tal norma, que é de excepção.
XIX. O artigo 20º do Regulamento, mas já no n.º 2, decreta que as medidas tomadas por força do n.º 1 deixam de ter efeito quando o tribunal do Estado-Membro competente quanto ao mérito ao abrigo do presente regulamento tiver tomado as medidas que considerar adequadas.
XX. A regulação provisória portuguesa nunca deveria ter existido, sendo plenamente ineficaz.
XXI. Não existe, assim, qualquer fundamentação legal para a actuação do Tribunal a quo, que desconsiderou as cortes italianas.
XXII. SEM PRESCINDIR, o Ac. da Relação do Porto de 24-11-2009 dispõe que uma decisão provisória proferida no âmbito de providência tutelar cível de regulação do poder paternal deve ser fundamentada, e que a não fundamentação dessas decisões implica a sua nulidade (Proc. N.º 1981/08.1TMPRT-A).
XXIII. A regulação provisória não foi fundamentada.
XXIV. O que se obteve com a regulação provisória proferida pelo Tribunal a quo foi uma regulação perfeitamente inadequada ao caso concreto já que foi a mãe que transferiu ilicitamente a criança da sua residência habitual, e não o oposto.
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Nas suas contra-alegações a apelada B…, pugna pela rejeição do recurso por não ter sido proferida decisão quanto à questão da litispendência e pela confirmação da decisão recorrida.
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Nas suas contra-alegações o MºPº sustenta a confirmação da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões:
1 - A questão suscitada pelo recorrente, C…, de que seja determinada a suspensão da instância, alegando que se encontra pendente na secção de família do Tribunal de Udine, Itália, sob o nº 1045/11, um processo de divórcio e de regulação do poder paternal, no âmbito do qual foi proferida decisão provisória quanto a tais matérias, deixou de ter relevo, uma vez que a Mm". Juíza "a quo" já proferiu despacho deferindo tal pretensão.
2 - A decisão provisória proferida nestes autos a fls. 95 e 96, a 4 de Outubro de 2011, ao abrigo do artigo 157° da O.T.M., fixando, para além do mais, a residência da menor no domicílio da progenitora, não enferma de qualquer nulidade, uma vez que se alicerça nos factos alegados pela progenitora da menor, sendo proferida em defesa dos superiores interesses da mesma.
3 - Não dispondo o tribunal de outros meios de prova para fundamentar tal decisão, entendemos que a mesma é plenamente válida.
4 - A decisão em análise deverá ser considerada válida até o tribunal italiano se pronunciar nos termos dos artigos supra citados, tanto mais, que a tal acresce o facto do progenitor não ter requerido a executoriedade de tal decisão nos termos do regulamento, não se colocando qualquer questão de ilicitude na deslocação e permanência da menor em Portugal.
5 - Assim, deverá funcionar o critério da proximidade, interpretado de acordo com o artigo 8° nº 12 do Regulamento, determinando-se o prosseguimento da presente acção, pois a tramitação da acção exclusivamente em Itália, corre sérios riscos de não acautelar, da mesma
forma que será feito nestes autos, o supremo interesse da menor.
6 - Os tribunais portugueses devem ser declarados competentes para apreciação do objecto do processo, atento o facto da decisão proferida pelo tribunal de Udine apenas declarar que a menor é colocada junto da mãe, que à data residia em Itália, nada esclarecendo quanto à proibição da mesma alterar a sua residência, como veio a fazer, regressando a Portugal.
7 - Promover o seu regresso a Itália constituiria um acto impensável e altamente lesivo dos seus interesses, tanto mais, que, atento o princípio de livre circulação de pessoas e bens dentro da Comunidade Económica Europeia, seria ilegal coagir a mãe deslocar-se, contra a sua vontade, para Itália.
8 - Ainda que assim se não entenda, todas e quaisquer decisões tomadas nos presentes autos devem subordinar-se - conforme cristalinamente tem acontecido - ao interesse superior da menor C….
9 - É inquestionável que a questão objecto do presente litígio tem pontos de conexão entre duas ordens jurídicas de países diferentes - a portuguesa e a italiana, tendo os magistrados judiciais de ambos fixado a residência da menor junto da mãe, estabelecendo a magistrada italiana um regime de visitas assaz restrito e pouco habitual, atentas as condições de vida do pai, que ora se arroga a reivindicar a entrega da filha, alegando que foi raptada pela mãe!
10 - Assim, e "in casu" não é aplicável o artigo 16° da Convenção da Haia, devendo considerar-se que a menor tem residência habitual em Portugal, não existindo qualquer incompatibilidade entre a ordem pública portuguesa e as normas da convenção, sendo neste tribunal que a defesa dos interesses da menor será realizada com maior justiça.
11 - Pelo exposto, deverá ser proferida decisão reconhecendo a competência do direito português para a regular, a título provisório, as responsabilidades parentais quanto à menor.
12 - Estando pendente acção de regulação conjuntamente com a acção de divórcio (nos termos do artigo 16° do Regulamento), e uma vez que o tribunal deu cumprimento ao disposto no artigo 15°, n° 1 do Regulamento para efeitos de regulação, deverá ser aguardada a decisão a proferir quanto a tal pedido.
12 - No caso em apreço, a prossecução do interesse da menor está estreitamente conexionada com a garantia das condições materiais, sociais, psicológicas e morais da mesma, que lhe possibilitem o desenvolvimento saudável, equilibrado e estável, estando a progenitora melhor posicionada para as garantir.
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Colhidos os visto legais cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
Conforme resulta do disposto nos artºs 684º nº 3 e 685º-A nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o âmbito de intervenção deste tribunal de recurso é delimitado em função do teor das conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a revogação ou anulação da decisão recorrida), só sendo lícito ao tribunal de recurso apreciar essas questões, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente por imperativo do artº 660º ex vi do artº 713º nº 2, do citado Código.
Estamos a mencionar o Código de Processo Civil na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, aqui aplicável face ao disposto nos respectivos artºs 11º nº 1 e 12º, porque a acção foi instaurada após 1 de Janeiro de 2008.
Assim a questão a decidir emerge centrada no alegado incumprimento do Regulamento do Conselho da Europa, (CE) nº 2201/2003, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental.
Subsidiariamente coloca-se também a questão da invocada nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação.
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III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Dos autos resultam provados os seguintes factos relevantes para esta decisão:
1) A menor C…, nasceu a 28 de Janeiro de 2009, em Udine, Itália, e é filha de D… e de B…, o primeiro de nacionalidade italiana e a segunda portuguesa, beneficiando a menor de dupla nacionalidade.
2) Os progenitores contraíram matrimónio em Portugal, a 18 de Outubro de 2003.
3) Os progenitores e a filha menor de ambos, residiam em Itália.
4) A 1 de Março de 2011, a apelada instaurou contra o apelante um processo de divórcio e regulação do poder paternal em Itália, processo que corre termos com o nº 1045/11, na secção de Família do Tribunal de Udine.
5) Em audiência no dia 24.03.2011 no mesmo Tribunal de Udine, onde ambas as partes compareceram, houve uma regulação provisória das responsabilidades parentais, onde ficou decidido o seguinte:
a) Autorizar os cônjuges a viverem separados;
b) As responsabilidades parentais iriam ser exercidas conjuntamente, vivendo a menor C… com mãe;
c) Foram fixadas visitas do pai, podendo este visitá-la das 16 horas às 20 de segunda-feira e, alternadamente, ao sábado e ao domingo na casa da mãe ou juntamente com pessoa de confiança da mãe, como na casa dos tios paternos ou junto dos pais com presença de tio - tia;
d) Ficou vedado ao pai ir buscar a menor ao infantário, ou trazê-la no automóvel guiado por ele;
e) O pai ficou obrigado a pagar à mãe como contributo ao mantimento da menor o valor de €200,00, a pagar até ao dia 5 de cada mês e a actualizar anualmente nos termos do índice ISTAT, bem como a pagar a 100% as despesas da mensalidade do infantário/escola e 50% das despesas médicas;
f) A casa de morada de família de na … em … – Udine, Itália, foi entregue à mãe;
g) Ficou fixado que, caso durante as férias de Páscoa ou de Verão a mãe conduzisse a filha ao estrangeiro o pai teria o direito a recuperar as visitas perdidas, passando com a menor também as manhãs dos dias livres de sábado e de domingo, das 9 às 14 horas.
6) Nessa mesma audiência, ficou desde logo marcada a sessão seguinte no mesmo Tribunal para o dia 16.05.2011 às 10h00, à qual a apelada faltou.
7) Em data não apurada anterior a 31 de Maio de 2011 a mãe deslocou-se com a menor para Portugal e passou a residir em Portugal, na …, nº .., Ap. .., …./… Vila Nova de Gaia;
8) A apelada não voltou com a menor para Itália.
9) A apelada intentou esta acção de regulação das responsabilidades parentais, em 31 de Maio de 2011, sem informar o Tribunal Português que já existia a aludida acção judicial a correr em Itália.
10) À data em que o tribunal recorrido proferiu a decisão aqui em causa, em 4 de Outubro de 2011, já tinha sido dado conhecimento nos autos, e junta a documentação respectiva, da existência e do estado do aludido processo que corre termos com o nº 1045/11, na secção de Família do Tribunal de Udine, e também que ali tinha sido proferida decisão provisória sobre a regulação das responsabilidades parentais.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Quanto ao alegado incumprimento do Regulamento do Conselho da Europa, (CE) nº 2201/2003, de 27 de Novembro de 2003
A questão a decidir reside na apreciação da competência internacional do tribunal recorrido para conhecer do litígio.
Como resulta do artº 101º do Código de Processo Civil (CPC), a infracção das regras de competência internacional, determina a incompetência absoluta do tribunal, incompetência que poderá ser arguida pelas partes ou do conhecimento oficioso do tribunal.
Estabelece o artº 65º nº 1 do mesmo Código, as circunstâncias em que os tribunais portugueses têm competência internacional para conhecer do pleito.
No que releva para este caso concreto é que esta norma dá prevalência, em termos de competência internacional dos tribunais portugueses, ao que se estabelece em tratados, convenções, regulamentos comunitários e leis especiais.
Deste modo, estes instrumentos normativos prevalecem sobre o que está estabelecido pelas normas de direito interno em termos de competência internacional.
A questão de competência surge porque no pleito se desenham elementos em conexão com outra ordem jurídica, para além da portuguesa, no caso concreto, a italiana.
Trata-se pois de determinar se a questão submetida ao tribunal recorrido deve ser resolvida pelos tribunais portugueses ou se pelos tribunais italianos.
Itália e Portugal, são ambos Estados membros da União Europeia.
E no espaço da União Europeia existem diplomas comunitários que estabelecem regras para a competência internacional dos tribunais dos Estados Membros, designadamente em sede de regulação do poder paternal.
E, como já explicitámos, as normas desses diplomas comunitários prevalecem em relação às normas de direito interno.
No caso em apreço temos uma regulação das responsabilidades parentais interposta no Tribunal Judicial de Família e Menores de Vila Nova de Gaia, mas que já anteriormente tinha sido interposta e regulada, ainda que provisoriamente, no Tribunal de Itália, na secção de Família do Tribunal de Udine.
A decisão recorrida foi proferida sem qualquer menção ao Regulamento (CE) 2201/2003, de 27/11.
Todavia, nos termos do artº 8º do Regulamento (CE) 2201/2003, de 27/11, os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado, à data em que o processo seja instaurado no tribunal.
À luz desse sistema, está vedado condicionar a atribuição da competência à emissão de um juízo sobre a natureza dos órgãos jurisdicionais do Estado, aos quais, de acordo com o seu direito interno, caberia dirimir a causa.
O Regulamento (CE) nº 2201/2003 do Conselho de 27 de Novembro, que entrou em vigor no dia 1 de Agosto de 1994, excepto os artºs 67º e 70º aplicáveis a partir de 1 de Março de 2005, vigorava na data em que foi instaurada a presente acção de regulação do exercício do poder paternal.
Acrescenta o artº 3º nº 1 que os tribunais do Estado-Membro no qual, por força do artº 2º, for exercida a competência para decidir de um pedido de divórcio, de separação de pessoas e bens ou anulação do casamento, são competentes para qualquer questão relativa ao poder paternal de filhos comuns, desde que o filho tenha a sua residência nesse Estado-Membro.
Sobre o conceito de residência habitual, refere-se no guia prático para aplicação do Regulamento nº 2201/2003 elaborado pelos serviços da Comissão Europeia, que esse conceito “cada vez mais utilizado em instrumentos internacionais, não é definido pelo Regulamento, mas deve ser determinado pelo juiz em cada caso com base nos elementos de facto. O significado da expressão deve ser interpretado em conformidade com os objectivos e as finalidades do Regulamento. Deve-se sublinhar que não se trata de um conceito de residência habitual com base na legislação nacional, mas de uma noção “autónoma” de legislação comunitária. Se uma criança se deslocar de um Estado-Membro para outro, a aquisição da residência habitual no novo Estado-Membro deveria, em princípio coincidir com a “perda” da residência habitual no anterior Estado-Membro. A determinação caso a caso pelo juiz implica que enquanto o adjectivo “habitual” tende a indicar uma certa duração, não se pode excluir que uma criança possa adquirir a residência habitual num Estado-Membro no próprio dia da sua chegada, dependendo de elementos de facto do caso concreto”.
Atendendo a esta orientação, a nosso ver, no caso dos autos, não podemos deixar de considerar que a menor tem e tinha, à data da instauração da presente acção, a residência habitual em Itália, e que a sua estadia em Portugal é precária, eventualmente e tão só para permitir à apelada o recurso ao presente pleito, eventualmente por convencimento de que logrará obter mais benefícios do que os que lhe serão concedidos pelo tribunal italiano.
Mas note-se que nesse tribunal, ainda que, a título provisório, foi-lhe imediatamente fixada residência, foi-lhe atribuída a casa de morada de família e foram previstas, como legítimas as suas eventuais deslocações a Portugal, com a filha, para férias.
Logo, não temos dúvidas em concluir que a residência habitual da menor, plenamente aceite pela apelada, é em Itália.
Face às normas atrás citadas e porque os pais e a menor tinham então residência habitual em Itália, os tribunais desse país tinham competência para decidir, como fizeram, a regulação do poder paternal da menor.
Até aqui, não se levanta qualquer questão.
O problema surge posteriormente, quando a mãe da menor, sem o consentimento do progenitor e sem o consentimento do tribunal italiano, traz a filha menor para Portugal, contra a vontade do pai, não mais regressa a Itália com a menor, e ainda volta a intentar nova acção de regulação das responsabilidades parentais omitindo a pendência do aludido processo nº 1045/11, na secção de Família do Tribunal de Udine.
Ora, não há qualquer dúvida que a menor, filha da requerente e do requerido, ora apelante, residia, à data da instauração da presente acção, em Itália, onde igualmente corre processo judicial, com vista à regulação das responsabilidades parentais e onde, como já se concluiu, tem a sua residência permanente.
Por outro lado, é evidente a inexistência de acordo, entre os respectivos progenitores, relativamente à determinação do tribunal para o efeito competente.
O que, desde logo afasta a aplicação do artº 12º do Regulamento, na parte em que prevê a extensão de competência aos tribunais do Estado-membro competentes para decidir da responsabilidade parental conexa com o pedido de divórcio.
Também é inaplicável à hipótese em apreciação a previsão contida no respectivo artº 15º, na medida em que ali se pressupõe que deva, previamente, o tribunal considerar-se competente, para conhecimento da questão suscitada, por se encontrar mais bem colocado para conhecer do processo ou de alguns dos seus aspectos específicos, e se tal servir o superior interesse da criança.
Porém, o tribunal recorrido nada disse sobre esta matéria nem invocou a sua competência nesta sede.
O Regulamento tem aplicação, para o que aqui importa, a matérias cíveis relativas ao divórcio, à separação e à anulação do casamento e ainda à atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental {artº 1º nº 1 al. a) e b)}, sendo que esta responsabilidade parental diz respeito, para além de outras, ao direito de guarda e ao direito de visita [artº 1º nº 2 al. a)].
Também o artº 11º, estabelece as condições de regresso, baseada na Convenção de Haia, sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 26 de Outubro de 1980, aprovada pelo Decreto nº 22/83, de 11 de Maio de uma criança “que tenha sido ilicitamente deslocada ou retida num Estado-Membro que não o da sua residência habitual imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas”.
O Regulamento 2201/2003 estabelece as condições para a decisão de retenção de menores a que alude o artº 13º da Convenção. Designadamente no seu artº 11º nº 4 estabelece que o tribunal não pode recusar o regresso da criança ao abrigo da alínea b) do artº 13º da Convenção de Haia, se se provar que foram tomadas medidas adequadas para garantir a sua protecção após o regresso. Além disso, o tribunal não pode recusar o regresso da criança se a pessoa que o requereu não tiver tido oportunidade de ser ouvida.
Assim, salvo o devido respeito, de harmonia com o sistema convencionado, o que está de todo vedado, contrariamente ao que parecem pretender a apelada e o MºPº, é condicionar a atribuição da competência à emissão de um juízo sobre a natureza dos órgãos jurisdicionais do Estado, aos quais, de acordo com o seu direito interno, caberia dirimir a causa.
Aliás, como dispõe o artº 17º do Regulamento, sobre a verificação da competência, “O tribunal de um Estado-Membro no qual tenha sido instaurado um processo para o qual não tenha competência nos termos do presente regulamento e para o qual o tribunal de outro Estado-Membro seja competente, por força do presente regulamento, declara-se oficiosamente incompetente”.
Convém também ter presente que, como se estipula no artº 16º da Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de 26 de Outubro de 1980, aprovada pelo Decreto nº 22/83, de 11 de Maio, “depois de terem sido informados da transferência ilícita ou da retenção de uma criança no contexto do art. 3º, as autoridades judiciais ou administrativas do Estado Contratante para onde a criança tenha sido levada ou onde esteja retida não poderão tomar decisões sobre o fundo da custódia sem que seja provada não estarem reunidas as condições previstas na presente Convenção para o regresso da criança …”. (sublinhado nosso)
Por sua vez, estabelecem os artºs 12º e 13º da Convenção, como princípio geral e nas condições aí definidas, o regresso imediato ao local de onde foi retirada, apenas não sendo a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido obrigada a ordenar o regresso da criança se a pessoa, instituição ou organismo que se opuser ao seu regresso provar que existe risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer modo, a ficar numa situação intolerável.
Só então, nessa eventualidade de, ao abrigo do disposto no artº 16º da Convenção de Haia, a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido ter tomado a decisão de não fazer regressar a criança ao seu local de origem, poderia assumir, de imediato, o poder de tomar decisões sobre o fundo do direito de custódia.
Isto porque, esta convenção visa, sem que se possa discutir do fundo da questão, promover o regresso imediato dos menores dos lugares de onde foram retirados ilicitamente.
Pelo que, forçoso se torna concluir, no sentido da incompetência dos tribunais portugueses, concretamente do tribunal recorrido, para conhecer desta matéria.
Por sua vez ao apelante competirá, se assim o entender, accionar os mecanismos previstos no artº 11º do Regulamento para obter o regresso a Itália da sua filha menor.
Finalmente cumpre esclarecer que, não tendo o tribunal recorrido feito uso do disposto no artº 15º do Regulamento para estabelecimento da sua própria competência, a questão dos autos nada tem a ver com um caso de litispendência (artº 19º do Regulamento), mas antes, com um caso de incompetência absoluta.
E fica prejudicada a questão da nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação.
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Em cumprimento do disposto no artº 713º nº 7 do Código de Processo Civil, elabora-se o seguinte sumário:
1º - Residindo a menor com a mãe em Itália, onde também vive o pai, e estando pendente em tribunal italiano a acção de regulação das responsabilidades parentais e do divórcio, tendo já havido uma regulação provisória, é o tribunal português incompetente internacionalmente para conhecer de novo pedido de regulação das responsabilidades parentais.
2º - A questão de competência internacional deve ser resolvida à luz do 8º do Regulamento (CE) 2201/2003, de 27/11 e também da Convenção de Haia sobre o Rapto Internacional de Crianças, já que o artº 8º nº 1 do Regulamento estabelece que os tribunais de um Estado-Membro da União Europeia são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro, à data em que o processo seja instaurado no tribunal.
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V – DECISÃO
Nestes termos acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em julgar procedente este recurso de apelação revogando-se a decisão recorrida, que vai substituída pela seguinte decisão:
“Ao abrigo das disposições conjugadas dos artºs 8º nº 1 e 17º do Regulamento (CE) 2201/2003, de 27/11, e dos artºs 101º e 65º nº 1, do CPC, declara-se incompetente em razão da nacionalidade o tribunal português para conhecer deste pedido de regulação das responsabilidades parentais.
Custas pela requerente.”
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Custas deste recurso a cargo da apelada.
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Porto, 12 de Abril de 2012
(acórdão elaborado em computador, deixando em branco as folhas no verso, e revisto pela 1ª signatária - artigo 138º nº 5, do C.P.C.)
Joana Salinas Calado do Carmo Vaz
Pedro André Maciel Lima da Costa
Filipe Manuel Nunes Caroço