Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
738/23.4T8FLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA FONSECA
Descritores: COMPRA E VENDA
VENDA DE COISA GENÉRICA
DENÚNCIA DE DEFEITO
CADUCIDADE DA AÇÃO
ACÓRDÃO DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: RP20240304738/23.4T8FLG.P1
Data do Acordão: 03/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: 1
Sumário: I - A uma maior distância dos eventos, com a deterioração e perecibilidade inerente à esmagadora maioria dos produtos no comércio, o apuramento dos factos tornar-se-á mais difícil, vindo o desenlace das ações a depender das regras de distribuição do ónus probatório.
II - O prazo de seis meses para a propositura da ação relaciona-se com a celeridade inerente ao comércio jurídico e com as vantagens probatórias da brevidade na propositura da ação, prevenindo desenlaces meramente formais.
III - Com base no direito ao acesso à tutela jurisdicional efetiva, admitir-se durante vinte anos a discussão sobre os defeitos de coisa objeto de contrato de compra e venda teria um custo jurídico e social excessivo para o sistema judicial.
IV - A interpretação dada ao disposto no art.º 917.º do Código Civil, acompanhando o Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2023, não viola o direito constitucionalmente consagrado à tutela judicial efetiva, nem o direito à igualdade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 738/23.4T8FLG.P1




Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I - Relatório

“A..., Lda.” intentou ação de processo comum contra “B..., S.A.”.
Alega:
- ter comprado à R. 2.632,25 pés de crute azul destinado à produção de calçado que vendeu a terceiros;
- que o produto tinha um componente tóxico superior ao legalmente permitido, pelo que todo o calçado produzido e vendido foi devolvido.
Pede a condenação da R. a pagar-lhe € 23 844, 21 correspondentes aos prejuízos que terá com a devolução.
A R. contestou, invocando, entre o mais, a caducidade do direito da A., por ter instaurado a presente ação depois de decorrido o prazo previsto pelo art.º 917.º do Código Civil.
A A. respondeu, sustentando não ser aplicável à situação dos autos o prazo de caducidade de seis meses a contar da denúncia do defeito, mas sim o prazo de prescrição de vinte anos.
Em sede de despacho saneador foi proferida decisão que julgou procedente a exceção de caducidade, absolvendo a R. do pedido.
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Inconformada, a A. interpôs o presente recurso.

Formulou as seguintes conclusões.
I – Vem o presente recurso de apelação interposto do saneador-sentença proferido a 20 de outubro de 2023, pela Meritíssima Juíza do Juízo Local Cível de Gondomar – Juiz 1, do Tribunal Judicial do Porto, que julga a presente a exceção perentória de caducidade do direito invocado pela Autora A... Lda., nos autos e, em consequência, absolve a Ré B... SA dos pedidos contra si formulados.
II – A Autora A..., Lda. instaurou a presente ação de processo comum contra B..., S.A. alegou em síntese que comprou à Ré 2.632,25 pés de crute azul destinado à produção de calçado que vendeu a terceiros e que veio a verificar que tal, depois de reclamação dos referidos terceiros e de testes laboratoriais realizados, que produto vendido pela Ré à Autora tinha um componente tóxico superior ao legalmente permitido, pelo que todo o calçado que a Autora produziu e vendeu foi devolvido.
III – Entendeu o Tribunal a quo na decisão que proferiu acompanhar a Jurisprudência Uniformizada, nomeadamente o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2023, de 2/08/2023, entendendo que tal acórdão, “veio por termos a muitos anos de querela jurídica sobre esta questão e, nessa medida, considera que aos presentes autos é aplicável o prazo de caducidade previsto pelo artigo 917.º do Código Civil pelo que, alegando a autora que denunciou o defeito à ré em 24/03/2021 e que emitiu a fatura respeitante aos prejuízos por si sofridos em virtude dos defeitos alegados em 9/08/2021 e, bem assim, que os presentes autos foram instaurados em 9/06/2023, que o direito invocado pela autora estava já caducado na data da instauração da ação.”
IV – A Recorrente discorda com a posição adotada pelo douto Tribunal “a quo” de Gondomar, ao considerar caducado o direito da Autora à data da instauração da ação, isto é, em 09.06.2023, aplicando o prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do Código Civil, e acompanhando o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 7/2023 de 02/8/2023.
V – Ora, com o devido respeito pelo douto Tribunal Recorrido, entende a Recorrente, que a interpretação do artigo 917.º do Código Civil no sentido de que o prazo para intentar ação de indemnização, é de apenas de 6 meses, viola o princípio constitucional do direito de acesso aos tribunais, previsto no artigo 20.º da CRP, bem como o princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da CRP.
VI – A decisão recorrida, viola o disposto no artigo 204.º da CRP, uma vez que esta norma é tão abrangente, que nem é necessário que os Tribunais apliquem normas que infrinjam a Constituição, basta apenas e tão só, que violem “os princípios nela consignados. Na verdade, a decisão recorrida viola os princípios consignados na CRP, nomeadamente consignados nos artigos 13.º (princípio da igualdade) e 20.º (acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva);
VII) O artigo 13.º da CRP dispõe: “… 1 - Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. …”; enquanto o artigo 20.º da CRP dispõe designadamente: “1 - A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (…)
VIII – O Tribunal com a decisão recorrida não assegurou a defesa dos direitos do Recorrente, ao aplicar o acórdão uniformizador, não aplica as normas legais aplicáveis ao caso em concreto.
IX – A Meritíssima Juiz limitou-se apenas e tão só, a emitir uma Sentença “economicista”, isto é, aplicando uma decisão de um tribunal superior, é sabido que um Acórdão para Uniformização de Jurisprudência não tem força vinculativa geral e que se trata de um procedimento destinado especificamente a solucionar conflitos surgidos na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça fornecendo orientação especialmente persuasora para a decisão futura de casos semelhantes.
X – Entende a Recorrente que a aplicação de tal acórdão cuja publicação ocorreu já após a entrada da sua ação judicial, viola os direitos da Autora, nomeadamente, o princípio da igualdade, direito constitucionalmente estabelecido, da mesma forma restringe a Autora no direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, previstos no artigo 13.º e 20.º da CRP.
XI – Não pode a Autora ser prejudicada pela aplicação de um prazo único de seis meses para estabelecido no artigo 917.º do CC de seis meses, pelo facto de que o legislador não esclareceu, nem estabeleceu qualquer outro prazo para a Autora exercer o seu direito de indemnização, da mesma forma não procedeu à alteração da lei.
XII – Tanto é que, existem várias divergências na aplicação da lei, e da mesma forma não existe consenso entre os Juízes Desembargadores, e os Juízes Conselheiros, quanto a esta matéria causando no cidadão apreensão, e inquietação no acesso à justiça respeita, ao saber que pode ser denegado o seu direito.
XIII – A aplicação do regime dos artigos 916.º e 917.º do Código Civil à compra e venda de coisas genéricas, restringe o direito de acesso à justiça dos compradores contra o afirmado expressamente pelo legislador no artigo 918.º do Código Civil, que remete para as regras relativas ao não cumprimento das obrigações.
Senão vejamos,
XIV – A Autora pretende ver reconhecido o seu direito a ser ressarcida pelos prejuízos que sofreu com a devolução dos sapatos por si produzidos para o seu cliente francês, sendo que tais prejuízos só ocorreram por conta da pele “croute azul”, que lhe foi vendida pela Ré, e que continha uma substância proibida pelo Regulamento n.º 1907/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho de 18 de dezembro de 2006.
XV– O prazo do artigo 917.º do Código Civil nem sequer se mostra aplicável, tendo em conta o objeto do contrato e os pedidos formulados pela Autora-Recorrente.
Entendemos que tal disposição apenas se aplica à ação de anulação por simples erro, sendo que a Autora não pediu tal anulação, mas unicamente uma indemnização pelos prejuízos decorrentes da venda de um produto, in casu, dos sapatos produzidos pela Autora, utilizando um produto defeituoso vendido pela Ré.
XVI – A questão que se coloca é a venda de coisas genéricas (uma quantidade de2.632,25 pés de crute azul destinado à produção de calçado) e não coisas certas e determinadas. Ora, quando a venda respeite a coisa indeterminada, o artigo 918.º do Código Civil manda aplicar “as regras relativas ao não cumprimento das obrigações” — afastando a incidência do regime específico dos artigos 916.º e 917.º, incluindo a caducidade pelo decurso do prazo de 6 meses sobre a denúncia.
XVII – Este entendimento é perfilhado pela nossa melhor Doutrina e por uma parte substancial da Jurisprudência.
XVIII – A verdade é que aquele prazo de 6 meses não deve aplicar à situação dos presentes autos, como explica Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, Vol. XI, 2018, pp. 273 ss.), sublinhando a diferença de situações entre a anulação por erro e a indemnização por defeitos, e afastando a aplicabilidade nestes casos dos artigos 916.º e 917.º do Código Civil: “Regressando à lei: a letra é demasiado clara, para abrir brechas. Desde o anteprojeto inicial de Galvão Telles, de 1949, ficou claro que estava em causa, apenas, a ação de anulação por erro. Não é expectável que o legislador, logo na sequência dos artigos 914.º e 915.º, se tenha esquecido das demais pretensões em jogo.
Quanto ao espírito: o prazo é demasiado curto para ser objeto de interpretação extensivo e, muito menos, de aplicação analógica.”
XIX – Estamos perante duas sociedades comerciais (Autora e Ré) e perante um contrato de fornecimento de bens com natureza comercial, em resultado do disposto nos artigos 1.º, 2.º e 230.º do Código Comercial, ao qual se deverão aplicar as regras da compra e venda, por força da dupla remissão resultante do disposto nos artigos 3.º do Código Comercial e 939.º do Código Civil.
XX – Autora e Ré mantinham uma relação comercial, e para tanto celebraram um contrato de compra e venda subjetivamente comercial, dado que ambos os contraentes são comerciantes, nos termos do disposto no artigo 13.º n.º 2 do Código Comercial, o objeto da prestação é o produto que a Autora adquiriu à Ré e o incorporou no fabrico dos seus sapatos, que posteriormente foram comercializados a terceiros seus clientes, nos termos do disposto do 463.º n.º 1 do CCom.
XXI – Dispõe o artigo 918.º do C. Civil, no capítulo das regras especiais previstas para regerem os contratos de compra e venda, as quais, são aplicáveis, por força do disposto no art. 939.º do C. Civil, o seguinte: Se a coisa, depois de vendida e antes de entregue, se deteriorar, adquirindo vícios ou perdendo qualidades, ou a venda respeitar a coisa futura ou a coisa indeterminada de certo género, são aplicáveis as regras relativas ao não cumprimento das obrigações.
XXII – Tratando-se de um contrato, é possível extrair-se este meio de tutela das regras gerais ligadas ao incumprimento ou cumprimento defeituoso das obrigações em geral, para além daquele, mais específico, que se encontra nos artigos 913.º e seguintes do CC, o qual não consideramos ser de aplicar, quer pela natureza contratual acima explanada, quer pela natureza dos danos exigidos.
XXIII – Reitera-se que, no que concerne ao direito à indemnização do chamado interesse contratual positivo, ou seja, à indemnização pelos danos sofridos em consequência do cumprimento defeituoso do mencionado contrato de compra e venda, vale o prazo de prescrição a que alude o citado art. 309.º do CC.
XXIV – O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, no processo n.º 998/08.0TVPRT.P1, de 16/12/2009, decidiu que estando em causa um pedido de indemnização pelo interesse contratual positivo, nos termos do artigo 798.º e 799.º do CC, o prazo geral de prescrição é de 20 anos, nos termos do artigo 309.º do CC, não se encontrando, assim, sujeita a qualquer prazo de caducidade.
XXV – Tem sido sustentado por alguma doutrina e jurisprudência, que neste preceito se excluiu a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas constante dos artigo 913.º e seg. do C. Civil, quando se tenha acordado na venda de coisa genérica, aplicando-se o regime geral do incumprimento das obrigações, o qual não prevê qualquer prazo de caducidade para o exercício dos direitos que a lei atribui perante uma situação de inadimplemento, não estando, pois, o direito à indemnização pelos prejuízos provocados pelo vício da coisa vendida sujeito ao prazo de exercício previsto no artigo 917.º do C. Civil.
XXVI – Os prazos de caducidade previstos nos artigos 916.º e 917.º do Código Civil não são aplicáveis aos casos de compra e venda de coisas genéricas, em virtude de o artigo 918.º do Código Civil remeter para as regras relativas ao não cumprimento das obrigações.
XXVII – A Autora nos presentes autos não peticionou o valor pago pela aquisição do “Crute lacado azul”, nem a anulação do contrato, ou mesmo a redução do preço, esses sim sujeito às regras previstas no artigo 916.º e 917.º do CCiv, mas apenas e tão só, os prejuízos resultantes do uso do produto fornecido pela Ré, e desconforme com as regras comunitárias, que levaram à devolução pelo cliente da Autora de todos os sapatos por si produzidos, e no caso deve aplicar-se, o prazo geral da prescrição do direito previsto no art. 309.º do Código Civil.
XXVIII – Na doutrina, Calvão da Silva defende que o prazo aplicável é o do artigo 309.º do Código Civil, embora vinque que “a boa-fé condenará uma desrazoável e injustificada propositura serôdia das correspondentes ações. Assim, pela boa-fé, superar-se-á a exagerada diferença de regime no tocante aos prazos na venda de coisa específica e na venda de coisa genérica – os prazos estatuídos nos artigos 916.º, n.º 2 e 917.º são excessivamente curtos, ao passo que o prazo ordinário da prescrição é muito longo” (Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, p. 85).
XXIX – Ora, os prejuízos foram apurados pela Autora em 09 de agosto de 2021, data em que emitiu a sua fatura em nome da Ré, tendo apenas decorrido até à data da propositura da ação, cerca de 1 ano e 10 meses.
XXX – Na jurisprudência, entre outros, pronunciaram-se no sentido da não aplicação do artigo 917.º do Código Civil aos casos de compra e venda de coisa genérica defeituosa o Acórdão de 22 de maio de 2003, proferido na revista identificada com o n.º 03B1433, de que foi relator o Juiz Conselheiro Araújo de Barros, onde se pode ler: “(..) nos caso de cumprimento imperfeito contemplados no art. 918.º e em que não há lugar à clássica garantia edilícia as correspondentes ações de direito comum (aqui, obviamente incluída a ação em que é peticionada indemnização por danos) não estão sujeitas aos prazos curtos de denúncia e de caducidade estatuídos nos artigos 916.º e 917.º", pese embora se dever entender que “a boa fé impõe ao comprador que acione o vendedor sem delongas desmesuradas e injustificadas no circunstancialismo concreto do caso, sob pena de incorrer em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium (artigo 334.º)”, até porque se trata, antes de mais, de uma ação correspondente ao exercício de um direito de crédito (indemnização pelos prejuízos resultantes do cumprimento defeituoso), que, na falta de disposição especial, deve estar sujeita ao prazo geral constante do artigo 309.º do Código Civil (de prescrição que não de caducidade).
XXXI – Ainda no mesmo sentido da aplicação do prazo de prescrição constante do artigo 309.º do Código Civil e de não aplicabilidade dos prazos de caducidade previstos nos artigos 916.º e 917.º do Código Civil aos casos de compra e venda de coisas genéricas, se pronunciou o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de maio de 2020 proferido na revista 2142/15.9T8CTB.C1.S2, de que foi relator o Juiz Conselheiro António Magalhães.
XXXII – A Meritíssima Juiz do Tribunal a quo violou designadamente o seguinte: Os artigos 13.º, 20.º, 202.º, e 204.º da Constituição da República Portuguesa, e ainda o disposto nos artigos 309.º, 798.º, 799.º, e 918.º todos do Código Civil.
XXXIII – Face ao exposto, entende a Recorrente que a decisão ora in crise deverá ser revogada e substituída por outra que não considere o direito da Autora caducado prosseguindo a ação os seus termos até final.
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A R. contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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II - A questão a dirimir consiste em determinar se a decisão que absolveu a R. do pedido por força da verificação da exceção de caducidade deve ser revogada por ter acompanhado o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2023, publicado no DR. 1.ª série, n.º 149, de 02.08.2023, o que contenderá com normas da Constituição da República Portuguesa, ou se, ao invés, deve ser mantida.
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III - Fundamentação de facto

Os factos a tomar em consideração para os estritos efeitos do conhecimento da exceção de caducidade, que se retiraram do processo, são os que se seguem.
1 - A A. vendeu 2.632,25 pés de crute azul destinado à produção de calçado que vendeu a terceiros.
2 - A A. alega que o produto tinha um componente tóxico superior ao legalmente permitido, pelo que todo o calçado produzido e vendido foi devolvido.
3 - A A. denunciou o invocado defeito à R. em 24/03/2021 e emitiu a fatura respeitante aos prejuízos por si alegadamente sofridos em virtude dos defeitos em 9/08/2021.
4 - A presente ação foi instaurada em 9/06/2023.
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IV - Subsunção jurídica

No caso dos autos, a A. adquiriu à R. 2.632,25 pés de crute azul destinado à produção de calçado. Estamos perante um contrato de compra e venda que tem por objeto coisas concretamente indeterminadas de certo género (2.632,25 pés de crute azul), invocando a A. que o produto tinha um componente tóxico superior ao legalmente permitido. Em consequência, todo o calçado produzido e vendido terá sido devolvido.
Na compra e venda, podem distinguir-se, quanto ao seu objeto, as obrigações específicas e as genéricas. Refere Antunes Varela (in Das Obrigações em Geral, 10.ª ed, p. 919) que é específica a obrigação cujo objeto mediato é individual ou concretamente fixado, e genérica aquela cujo objeto está apenas determinado pelo seu género (mediante a indicação das notas ou características que a distinguem) e pela sua quantidade.
Em regra, a obrigação é genérica quando a coisa, objeto da prestação, se encontra determinada apenas quanto ao género e quantidade (cf. Pedro Romano Martinez, in Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, 2001, p. 201).
As partes aceitam que está em causa a venda de coisa genérica.
Na sentença recorrida entendeu-se que se aplica à venda de coisa genérica o disposto nos arts. 916.º e 917.º do Código Civil.
O regime da venda de coisas defeituosas, no que ao caso dos autos pode interessar, consta dos arts. 913.º a 918.º do C.C..
Mais precisamente, prevê o art.º 916.º do C.C., sob a epígrafe denúncia do defeito:
1. O comprador deve denunciar ao vendedor o vício ou a falta de qualidade da coisa, exceto se este houver usado de dolo;
2. A denúncia será feita até trinta dias depois de conhecido o defeito e dentro dos seis meses após a entrega da coisa.
O art.º 917.º do mesmo Código, sob a epígrafe caducidade da ação, dispõe que a ação de anulação por simples erro caduca, findo qualquer dos prazos fixados no artigo anterior sem o comprador ter feito a denúncia, ou decorridos sobre esta seis meses, sem prejuízo, neste último caso, do disposto no artigo 287.º.
Prevê ainda o art.º 918.º do mesmo Código, sob a epígrafe defeito superveniente, que se a coisa, depois de vendida e antes de entregue, se deteriorar, adquirindo vícios ou perdendo qualidades, ou a venda respeitar a coisa futura ou a coisa indeterminada de certo género, são aplicáveis as regras relativas ao não cumprimento das obrigações.
A sentença recorrida considerou aplicável ao caso o prazo de caducidade previsto no art.º 917.º do Código Civil, acompanhando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2023, publicado no DR. 1.ª série, n.º 149, de 02.08.2023, que uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:
«A ação de indemnização fundada na venda de coisa indeterminada de certo género defeituosa está submetida ao prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do Código Civil, a tanto não se opondo o disposto no artigo 918.º do mesmo Código».
A apelante defende a revogação da sentença recorrida, não por considerar que a jurisprudência firmada através do acórdão uniformizador não tem aplicação à situação versada nos autos, mas por discordância relativamente ao teor do mesmo, no sentido de que a sua aplicação contende com normas da Constituição da República Portuguesa. Sustenta a apelante a inconstitucionalidade do art.º 917.º do Código Civil na interpretação segundo a qual o prazo para intentar ação de indemnização é de apenas de seis meses. Como se disse, tal prazo seria de tal forma limitativo que violaria o princípio constitucional do direito de acesso aos tribunais, previsto no art.º 20.º da C.R.P., bem como o princípio da igualdade, previsto no art.º 13.º da mesma Lei Fundamental.
Frisa derradeiramente a apelante que os acórdãos para uniformização de jurisprudência não têm força vinculativa geral.
Em suma, o tribunal não poderia ter aplicado o disposto no art.º 917.º do C.C. por, nos termos do art.º 204.º da C.R.P., lhe estar vedado aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.
Vejamos o que de mais relevante se expendeu a propósito da divisão da doutrina e da jurisprudência entre a tese da A. e aquela pela qual a sentença optou, socorrendo-nos, para tanto, do que no ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 30-05-2023 (proc. 3807/17.6T8VFR.P1.S1, Manuel Aguiar Pereira , disponível em www.dgsi.pt) se enunciou quanto à divergência:
Na doutrina, por exemplo, Calvão da Silva defende que o prazo aplicável é o do artigo 309.º do Código Civil, embora vinque que “a boa-fé condenará uma desrazoável e injustificada propositura serôdia das correspondentes ações. Assim, pela boa-fé, superar-se-á a exagerada diferença de regime no tocante aos prazos na venda de coisa específica e na venda de coisa genérica - os prazos estatuídos nos artigos 916.º, nº. 2 e 917.º são excessivamente curtos, ao passo que o prazo ordinário da prescrição é muito longo”(Compra e Venda de Coisas Defeituosas, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, p. 85) E na jurisprudência, entre outros, pronunciaram-se no sentido da não aplicação do artigo 917.º do Código Civil aos casos de compra e vende de coisa genérica defeituosa o Acórdão de 22 de maio de 2003 proferido na revista identificada com o n.º 03B1433, de que foi relator o Juiz Conselheiro Araújo de Barros, publicado em www.dgsi.pt e onde se pode ler: “(..) nos casos de cumprimento imperfeito contemplados no art. 918º e em que não há lugar à clássica garantia edilícia as correspondentes ações de direito comum (aqui, obviamente incluída a ação em que é peticionada indemnização por danos) não estão sujeitas aos prazos curtos de denúncia e de caducidade estatuídos nos artigos 916.º e 917.º", pese embora se dever entender que “a boa fé impõe ao comprador que acione o vendedor sem delongas desmesuradas e injustificadas no circunstancialismo concreto do caso, sob pena de incorrer em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium (artigo 334.º)”, até porque se trata, antes de mais, de uma ação correspondente ao exercício de um direito de crédito (indemnização pelos prejuízos resultantes do cumprimento defeituoso), que, na falta de disposição especial, deve estar sujeita ao prazo geral constante do artigo 309.o do Código Civil (de prescrição que não de caducidade).
Ainda no mesmo sentido da aplicação do prazo de prescrição constante do artigo 309.o do Código Civil e de não aplicabilidade dos prazos de caducidade previstos nos artigos 916.º e 917.º do Código Civil aos casos de compra e venda de coisas genéricas, se pronunciou o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 5 de maio de 2020 proferido na revista 2142/15.9T8CTB.C1.S2, de que foi relator o Juiz Conselheiro António Magalhães, igualmente consultável em www.dgsi.pt.
15) Divergindo na solução da questão que ora nos ocupa, salienta-se o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 16 de março de 2011 proferido na revista 558/03.2TVPRT.P1.S1 de que foi relator o Juiz Conselheiro João Bernardo (consultável em www.dgsi.pt) de cujo sumário se pode ler:
“1. No caso de cumprimento defeituoso, há que distinguir o prazo da reclamação dos defeitos, do prazo para ser intentada ação judicial respetiva.
2. O artigo 918.º do Código Civil não deve ser interpretado no sentido de conduzir a um regime diferente, quanto ao prazo de caducidade, consoante se trate de obrigações específicas ou de obrigações genéricas. 3. O artigo 917.º do mesmo código deve ser interpretado em ordem a abranger todas as ações emergentes de cumprimento defeituoso.”
Especial destaque merece ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de julho de 2021 proferido na revista 3655/06.9TVLSB.L2.S1 e de que foi relator o Juiz Conselheiro Fernando Batista, (consultável em www.dgsi.pt) no qual se considerou que “o prazo de caducidade do direito de ação previsto no artigo 917.º do Código de Civil deve abranger todas as ações emergentes de cumprimento defeituoso, sendo, como tal, aplicável não unicamente à ação de anulação, ali referida, mas a todas as pretensões e ações decorrentes da compra e venda de coisa defeituosa - seja genérica ou específica a obrigação subjacente.”
16) Na revista acabada de citar foi interposto Recurso de Uniformização de Jurisprudência – o qual esteve na origem da suspensão da instância decretada nestes autos – que viria a culminar com a adoção em 20 de abril de 2023 pelo Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça do segmento uniformizador sobre esta matéria nos termos seguintes:
“A ação de indemnização fundada na venda de coisa indeterminada de certo género defeituosa está submetida ao prazo de caducidade previsto no artigo 917.º do Código Civil, a tanto não se opondo o disposto no artigo 918.º do mesmo Código”.
Atente-se em que muito embora os acórdãos de Uniformização de Jurisprudência não sejam vinculativos para os tribunais, apenas razões supervenientes e excecionais deverão poder merecer decisão diversa da jurisprudência uniformizada. Tais acórdãos não vinculam os tribunais judiciais - ao contrário do que acontecia com os assentos previamente à revogação do art.º 2.º do Código Civil pelo art.º 4.º/2 do decreto-lei 359-A/95 de 12/12 -. Sem embargo, à sua introdução preside fundamento relevante. Pretende-se implantar um sistema de uniformização jurisprudencial assente na “autoridade qualificada” e “força indicativa” desses acórdãos, que se devem impor por si, pelos seus fundamentos, de molde a que consigam a adesão de todos os intervenientes judiciários, dando-se uma resposta às necessárias exigências de segurança e certeza da jurisprudência, o que contribuirá para uma maior credibilidade da Justiça. (cf. J.O. Cardona Ferreira, in Guia de Recursos em Processo Civil, 3ª ed., Coimbra Editora, 2005, pp. 105/107).
A recusa da aplicação da doutrina uniformizada deverá, assim, surgir apenas em casos específicos, em que surjam circunstâncias supervenientes e capazes de imporem uma nova interpretação, justificando a sua revisibilidade.
A recusa de aplicação só se justificaria ante casos excecionais que imponham uma reponderação do argumentário hermenêutico em que se estriba e porventura a revisão dessa doutrina (in ac. da Relação de Lisboa de 27-11-2012, proc. 20992-A/1998.L1-7, Tomé Gomes).
Na situação vertente, não se entrevê qualquer fundamento para pôr em crise o entendimento perfilhado pelo AUJ aplicado na sentença recorrida. Ao invés, bem se compreende que terá que ser encarado como excessivo, contrário às normas do comércio jurídico e, dependendo das circunstâncias do caso, até mesmo como abusivo, que se pudesse vir a propor ação de indemnização na decorrência de compra e venda de coisas defeituosas dentro de um prazo de vinte anos (art.º 309.º do C.C.). Acaso se seguisse a tese da apelante, seria forçoso chegar-se a essa conclusão.
É a própria A. que alega ter denunciado o defeito à R. em 24-3-2021 e ter emitido a fatura respeitante aos prejuízos por si sofridos em virtude dos defeitos alegados em 9-8-2021. A presente ação foi proposta em 9-6-2023, ou seja, volvidos que eram quase dois anos sobre a data da denúncia. O direito de ação mostrava-se, assim, já caducado.
Vejamos, então, se, como pretende a apelante, a interpretação normativa firmada no aludido acórdão uniformizador viola os arts. 13.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa, de molde a devermos concluir ao seu arrepio.
O art.º 13.º da CRP consagra o princípio da igualdade.
Dispõe no seu n.º 1 que todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
E o n.º 2 que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
Não se vislumbra em que medida a interpretação de norma no sentido da verificação de um prazo de caducidade da ação da proposta pela A., ademais, uma pessoa coletiva, e sendo o prazo de caducidade o mesmo para qualquer pessoa jurídica, seja suscetível de colidir com o aludido princípio.
Também em contrário do propugnado pela recorrente, não se entrevê como a posição assumida no dito aresto uniformizador viole o art.º 20.º da Constituição.
Dispõe o art.º 20º da Constituição da República Portuguesa:
1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2. Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.
3. A lei define e assegura a adequada proteção do segredo de justiça.
4. Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.
5. Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.
Admitir-se, com base no acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, uma discussão durante vinte anos de matérias atinentes aos defeitos de coisa objeto de negócio de compra e venda, teria um custo jurídico e social excessivo para o sistema judicial. O prazo de seis meses para a propositura da ação relaciona-se precisamente com a celeridade inerente ao comércio jurídico e com as manifestas vantagens probatórias da brevidade na propositura da ação.
Não é difícil de alcançar que, a uma maior distância dos eventos e com a deterioração e perecibilidade inerente à esmagadora maioria dos produtos no comércio, o apuramento dos factos se tornará mais difícil, vindo o desenlace das ações a depender das regras de distribuição do ónus probatório. Um curto prazo probatório visa precisamente evitar desenlaces meramente formais.
Em consequência, a interpretação dada pela decisão recorrida ao instituto da caducidade e aos seus efeitos preclusivos da figura sobre o conhecimento do mérito, em consonância com a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, não viola os direitos à tutela judicial efetiva e à defesa.
Com o que se vem de expender, já se vê que não é entendimento deste tribunal que a aplicação de um prazo de caducidade de seis meses para a propositura da ação de indemnização viole a Lei Fundamental na sua vertente de garante do princípio da igualdade e da tutela jurisdicional.
Não se entrevê, por conseguinte, fundamento para furtar a situação dos autos ao regime do assinalado AUJ 1/2014, mais se concluindo inexistir violação de normas constitucionais.
A sentença deve, pois, ser confirmada
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V - Dispositivo
Nos termos sobreditos, acorda-se em julgar o recurso totalmente improcedente, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.
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Custas pela apelante, por ter decaído na sua pretensão (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).
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Porto 4-3-2024.
Teresa Fonseca
Fernanda Almeida
Manuel Domingos Fernandes