Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2039/14.0JAPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: MEDIDA DE COACÇÃO
PRISÃO PREVENTIVA
INDÍCIOS FORTES
INDÍCIOS SUFICIENTES
Nº do Documento: RP201501142039/14.0japrt-A.P1
Data do Acordão: 01/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: É de considerar que existem indícios fortes tal como indícios suficientes quando estes permitem adquirir a convicção segura, inequívoca de que no momento em que é proferida uma decisão, o facto se verifica e por conseguinte, mantendo-se os elementos de prova já recolhidos nesse momento, levarão, com maior probabilidade, à condenação do que à absolvição do agente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2039/14.0JAPRT-A.P1
Recurso penal (prisão preventiva)
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
No âmbito do processo comum, em fase de inquérito, que, sob o n.º 2039/14.0JAPRT, corre termos pelo DIAP do Ministério Público na Comarca do Porto, em que é co-arguido B…, devidamente identificado nos autos, na sequência da sua detenção e subsequente sujeição a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, por decisão de 18.10.2014 (fls. 79 e segs. dos autos principais, fls. 32 e segs. destes autos), foi este sujeito a medida coactiva de prisão preventiva.
Desse despacho interpôs o arguido B… o presente recurso para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação que condensou nas seguintes “conclusões” (em transcrição integral):
A. O despacho em crise está ferido pelo conjunto dos vícios processuais descritos e explicitados na motivação para a qual remete expressamente nos diversos pontos em detalhe.
B. É antes de mais nulo o despacho por falta de fundamentação legal quanto à apreciação dos factos de natureza objetiva e subjetiva que são claramente insuficientes para justificarem a privação da liberdade nesta fase.
C. Tanto mais que até hoje não se conhece o resultado das perícias laboratoriais destinadas a comprovar o peso do aludido estupefaciente detetado, bem como o seu eventual grau de pureza (percentagem do princípio ativo).
D. Mas também está ferido de ilegalidade por interpretação inconstitucional do conjunto dos factos relatados de natureza objetiva e subjetiva que originaram dois pesos e duas medidas, libertando os dois coarguidos e privando da liberdade o recorrente.
E. O qual é primário, ao contrário dos outros coarguidos, alegadamente já muito conhecidos das autoridades, segundo o despacho.
F. É ainda nulo o despacho por erro de apreciação quanto à matéria relativa aos pressupostos processuais e extra processuais que conduziram à aplicação da medida excepcional da prisão preventiva.
G. Porque deu como verificados os diversos perigos que aventou através de meras presunções e considerações vagas e genéricas.
H. E sobretudo em contradição intrínseca e flagrante quanto ao perigo de fuga, tanto é certo que o mesmo apenas foi verificado em concreto quanto a um dos outros dois coarguidos o qual, no dizer do despacho, foi o único que tentou escapar à detenção.
I. Feriu assim o despacho os arts. 97.º, n.º 5; 163.º; 191.º; 193.º, 200.º, n.º 1, 204.º, n.º 2 do CPP; arts. 8.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 4 in fine; 22.º; 28.º, n.º2, 32.º, n.º2, 204.º e 205.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
J. E por via disso violou os artigos 1.º e 6.º, n.º1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Pretende, assim, que, no provimento do recurso, seja o despacho recorrido declarado “ilegal, inconstitucional e nulo” e substituído por outro que que “ordene a reapreciação da sua situação cautelar, adoptando o tribunal uma medida de coacção actual, adequada e proporcional que acautele a boa administração da Justiça”.
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Admitido o recurso (despacho a fls. 9) e notificado o Ministério Público, veio este apresentar resposta à respectiva motivação, que rematou com o seguinte quadro conclusivo (transcrição):
1. A droga apreendida ao arguido B… foi submetida a teste rápido e revelou tratar-se de cocaína, resultado confirmado pelo Laboratório de Polícia Científica.
2. O teste rápido realizado aquando do primeiro interrogatório judicial do arguido B… era o suficiente e possível, sendo que o seu resultado já foi confirmado pelo exame laboratorial entretanto realizado no decurso deste inquérito.
3. A atividade desenvolvida pelo arguido B… enquadra-se, ao que tudo indica, nos denominados "correios de droga'', isto é, pessoas encarregues de transportar quantidades apreciáveis de droga por conta de outrem a troco de remuneração.
4. A jurisprudência dos nossos Tribunais superiores vem acentuando o facto de não se justificar um tratamento excessivamente benevolente deste tipo de condutas, atendendo ao papel essencial que representa na cadeia da circulação e disseminação da droga.
5. Ao determinar que o arguido B… aguardasse os ulteriores termos do processo em prisão preventiva, o Mmo. Juiz de Instrução Criminal não violou qualquer princípio da igualdade, pois a situação do arguido B… é bem diferente dos outros dois coarguidos, pois era ele que transportava a droga e a quem a mesma foi apreendida. Aliás, ao usar o seu direito ao silêncio, o arguido B… não explicou a quem iria entregar a droga que transportou do Brasil para Portugal, sendo que, aquando da detenção, não a tinha entregue a nenhum dos outros dois co-arguidos.
6. Face a esse silêncio do arguido B… desconhece-se a que atividade o mesmo se dedica no Brasil, qual a sua ligação à organização que o enviou a Portugal para transportar uma grande quantidade de cocaína, bem como qual a motivação para esse transporte, sendo perfeitamente legítimo supor que fosse para obter compensação económica, pelo que se conclui, em concreto, perigo de continuação da atividade criminosa.
7. Face à gravidade do crime fortemente indiciado e cometido pelo arguido B…, à previsível pena em que virá a ser condenado e ao facto de residir no Brasil é muito provável que, caso estivesse em liberdade, regressasse a esse país e não mais viesse a Portugal, pelo que se verifica, também em concreto, o perigo de fuga.
8. Os perigos mencionados no despacho recorrido existem, de facto, não se tratando, como refere o recorrente, de meras presunções e considerações vagas e genéricas, pelo que nos parece inteiramente justa, adequada e proporcional a medida de coação de prisão preventiva que foi aplicada ao arguido B…, não merecendo o despacho recorrido qualquer censura ou reparo”.
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Ordenada a subida dos autos a esta Relação, e já nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do artigo 416.º do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto absteve-se de emitir parecer, uma vez que, se o fizesse, não seria possível respeitar o prazo previsto no artigo 219.º, n.º 1, do Código de Processo Penal[1].
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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II - Fundamentação
Como se sabe, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[2], sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso.
O recorrente afirma que a decisão recorrida está ferida por “um conjunto de vícios processuais” (conclusão A)), mas em concretização desta alegação, apenas, aponta ao despacho o vício da nulidade “por falta de fundamentação legal quanto à apreciação dos factos de natureza objectiva e subjectiva” (conclusão B)) e “ilegalidade por interpretação inconstitucional do conjunto dos factos relatados de natureza objectiva e subjectiva que originaram dois pesos e duas medidas” (conclusão D)).
O sistema português de fiscalização da constitucionalidade permite exercer um controlo de constitucionalidade de natureza estritamente normativa, ou seja, em sede de fiscalização concreta, os recursos interpostos de decisões dos tribunais só podem ter por objecto «interpretações» ou «critérios normativos» identificados com carácter de generalidade e por isso passíveis de aplicação a outras situações independentemente das particularidades do caso concreto.
Está, assim, afastada a hipótese de apreciação da constitucionalidade de decisões.
Por isso, quando o recorrente afirma que a decisão recorrida é ilegal porque nela se faz uma interpretação inconstitucional dos factos não está a suscitar uma questão de (in)constitucionalidade (normativa).
O que parece ter querido dizer é que, na apreciação dos factos considerados indiciados e na interpretação e aplicação da lei a esses factos, o Sr. Juiz não respeitou o princípio da igualdade (decidiu com “dois pesos e duas medidas”), constitucionalmente consagrado.
Estaríamos, então, perante um simples erro de direito, a apreciar quando nos detivermos sobre a adequação e proporcionalidade da medida coactiva aplicada.
Assim, o objecto do recurso em apreciação centra-se nas seguintes questões:
● se o despacho recorrido é nulo por falta de fundamentação;
● se está verificada a condição da aplicação da prisão preventiva prevista no art.º 202.º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Penal, ou seja, se há fortes indícios da prática, pelo recorrente, de um crime de tráfico de estupefacientes, na configuração matricial do art.º 21.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro;
● se ocorre algum dos requisitos gerais enunciados no artigo 204.º do Cód. Proc. Penal.
● se a medida coactiva aplicada é a adequada face às necessidades cautelares que se revelam no caso.
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A) A alegada nulidade da decisão impugnada
Qualquer acto decisório que não seja de mero expediente ou praticado no âmbito de um poder discricionário do juiz tem de ser devidamente fundamentado, com especificação dos motivos de facto e de direito da decisão, exigência que decorre do disposto no art.º 97.º, n.º 5, do Cód. Proc. Penal.
As exigências do cumprimento desse dever e as consequências da falta ou insuficiência da fundamentação não são as mesmas para todos os actos decisórios: existe um regime geral (definido nos artigos 97.º e 118.º a 123.º do Cód. Proc. Penal) e regimes específicos para as sentenças (artigos 374.º e 379.º) e para os despachos que aplicam medidas de coacção (artigo 194.º do mesmo compêndio normativo).
O regime geral das invalidades em processo penal é dominado pelo princípio da legalidade ou tipicidade das nulidades: só se consideram nulos os actos que, sendo praticados com violação ou inobservância da lei, esta expressamente comine essa consequência (artigo 118.º, n.º 1).
Assim acontece com as decisões que aplicam medidas de coacção, pois o n.º 6 do artigo 194.º do Cód. Proc. Penal comina a nulidade para as decisões que não contiverem:
- a descrição (ainda que sintética) dos factos concretamente imputados ao arguido (e só podem fundamentar a aplicação de medida de coacção – com excepção do termo de identidade e residência – aqueles que tiverem sido comunicados durante a audição prevista no n.º 4 do artigo 141.º);
- a enunciação dos elementos de prova que indiciam os factos imputados, excepto se essa revelação for susceptível de causar algum dos perigos a que alude a 2.ª parte da alínea b) do n.º 6 do artigo 194.º;
- a qualificação jurídica dos factos imputados;
- a referência aos concretos factos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida coactiva.
Na esteira da jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr. acórdãos n.ºs 189/99 e 396/2003), embora não seja procedimento que se recomende, tem-se entendido que a fundamentação da decisão que aplica a medida de prisão preventiva pode fazer-se por remissão para a promoção do Ministério Público, desde que esta contenha os elementos exigidos naquele n.º 6.
Constituindo a falta ou insuficiência da fundamentação nulidade sanável, não é pacífico o entendimento quanto à oportunidade da sua arguição e perante quem deve ser arguida: há quem entenda que tem de ser arguida perante o juiz que proferiu a decisão viciada, no próprio acto e até ao seu termo (assim, acórdão desta Relação, de 03.06.2009, proferido no Proc. n.º1324/08.4 PPPRT-A.P1, e Manuel Joaquim Braz em texto publicado na CJ XXXII, Tomo IV, pág. 6) e quem entenda que, também, pode sê-lo em recurso interposto da decisão, “de acordo com o princípio geral do regime de recursos estabelecido no artigo 410.º, n.º 3, e também vertido no regime especial de recurso da sentença no artigo 379.º, n.º 2” (Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, p. 554).
Acolhendo o entendimento mais favorável ao recorrente, vejamos como fundamentou o Sr. Juiz de instrução a sua decisão.
Começou por enunciar os elementos de prova indiciadores dos factos imputados: o relatório de diligência externa, os autos de buscas e apreensões, os testes rápidos, os CRC's dos arguidos e as declarações prestadas pelo arguido C….
Depois, descreveu assim os factos que a prova indiciária permitia imputar aos arguidos:
“No dia 18/10/2014, por volta das 09 horas, o arguido B… aterrou no aeroporto …, Maia, e era proveniente do voo número ……, do …, Brasil, com destino ao Porto, e no interior da sua mala de viagem transportava duas garrafas de um litro cada, e um frasco de 500 ml, todas cheias com líquido que continha cocaína.
O referido arguido havia recebido instruções para fazer entrega das referidas substâncias a dois indivíduos do sexo masculino que o iriam contactar à sua chegada, isto é, aos arguidos C… e D…
Assim, quando o arguido B… saiu, proveniente do seu voo, foi de imediato abordado pelos arguidos C… e D…, com quem trocou algumas palavras e dirigiram-se os três de imediato, para a saída aeroporto, altura em que foram abordados pela P. J.
Os arguidos C… e D…, fizeram-se transportar para o aeroporto …, no veículo automóvel com o número de matrícula ..-..-EB, da marca Ford, modelo …, propriedade de E….
Todos os arguidos conheciam as características estupefacientes do produto apreendido, e não ignoravam que a sua posse, venda, distribuição, cedência e transporte são proibidos.
O arguido B… bem sabia que o produto estupefaciente que transportava se destinava à venda pelos arguidos C… e D….
Todos os arguidos agiram de forma livre e consciente, bem sabendo a sua conduta proibida e punida por lei penal”.
Entendeu, e bem, o Sr. Juiz de instrução que se indiciava, assim, a prática, pelos arguidos, de um crime de tráfico ilícito de estupefacientes previsto e punível pelo artigo 21.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
No que tange aos pressupostos da medida coactiva aplicada ao recorrente, o Sr. Juiz de instrução considerou verificarem-se os perigos de continuação da actividade criminosa e de fuga e justificou assim a sua constatação:
“O crime em apreço é causador de alarme social, a conduta em causa é grave, atenta até a dissimulação utilizada, o que, no mínimo, indicia uma maior organização da actividade em causa e, assim, maiores proveitos, existindo o perigo de continuação da actividade criminosa.
Atento o facto de o arguido B… ter residência no Brasil, existindo assim facilidade de movimentação da sua parte, existe quanto a ele perigo de fuga.
Tendo em conta os princípios da suficiência, proporcionalidade e adequação que deve presidir à aplicação das medidas de coacção, concordo na íntegra, com a promoção da Digna Magistrada do Ministério Público”.
Como, facilmente, se constata, a decisão que aplicou ao arguido/recorrente a medida de prisão preventiva está devidamente fundamentada e o que acontece é que o recorrente discorda da fundamentação, por entender que o teste efectuado não permitia verificar a presença de cloridrato no produto apreendido.
A manifestação de discordância do recorrente em relação aos fundamentos da decisão, sendo legítima, não tem o condão de fazer desaparecer a fundamentação nela explanada, sendo, pois, manifestamente infundada a arguição de nulidade.

B) A (in)existência de fortes indícios da prática, pelo arguido/recorrente, de um crime de tráfico de estupefacientes
Como se aludiu, o recorrente não aceita que esteja verificado o pressuposto específico de aplicação da prisão preventiva que se traduz em haver fortes indícios da prática de um crime doloso punível com prisão de máximo superior a 5 anos, no caso, a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, tipificado no art.º 21.º, n.º 1, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
Alega mesmo que os autos, apenas, indiciam que ele estava na posse de uma mala contendo uma embalagem fechada que, por seu turno, continha duas garrafas de “cachaça” e um frasco contendo desinfectante oral, já que no “teste rápido” efectuado foi utilizado o reagente “Scott”, que indica a presença de alcalóides, mas não é capaz de indicar a existência de cocaína.
Importa, pois, focar a nossa atenção nesse ponto, começando por tentar definir o que sejam “indícios” e “indícios fortes”.
Não é unívoco o conceito de indício.
O Professor Germano Marques da Silva fala em “indícios de prova” (Sobre a Liberdade no Processo Penal ou do Culto da Liberdade”, da obra “Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias”, Coimbra Editora, 1365 e segs.) e em “factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema de prova”, usando-se também para “designar não só o facto indiciante, mas também o facto indiciado” (Curso de Processo Penal, II, Verbo, 1993, p.82).
Para Jorge Noronha e Silveira (“O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Pena Português”, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 160), o termo indícios refere-se ao “conjunto das provas já recolhidas no processo”.
Objecta Paulo Saragoça da Matta (“A Livre Apreciação da prova”, Jornadas citadas, 221 e segs.) que prova em sentido próprio apenas se pode considerar existir após a sujeição da mesma ao contraditório pleno, só possível na audiência. Antes disso, os elementos de prova têm, apenas, um valor indiciário, indiciam os facta probanda.
Por isso considera que indício é um facto que, “embora não demonstrando a existência histórica do factum probandum, demonstra outros factos, os quais, de acordo com as regras da lógica e da experiência, permitem tirar determinadas ilações quanto ao facto que se visa demonstrar” (Loc. Cit., 227).
Já para Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, 332) “indício”, (“suspeita”, “receio”) “são razões que sustentam e revelam uma convicção sobre a probabilidade, mesmo mínima, de verificação de um facto”, razões essas que, ligando a circunstância indiciadora e o facto a provar, são constituídas “por uma inferência lógica baseada numa máxima de experiência ou numa lei científica”.
Indício é, seguramente, “uma circunstância que tem conexão verosímil com o facto incerto de que se pretende a prova”, mas é, também, tudo aquilo que, sem fornecer uma prova imediata, torna possível chegar ao facto cuja existência se indaga, ao facto que é objecto de prova. É precisamente essa possibilidade que, por indução ou inferência, permite concluir positivamente quanto à questão de saber se o facto existe.
Indícios são, pois, sinais, vestígios, suspeitas, indicações e presunções, bastantes e suficientemente relevantes, de modo a convencerem que existe crime e que determinada pessoa foi o seu agente.
Quando é que pode afirmar-se a existência de fortes indícios da prática do crime?
A questão tem sido discutida numa base comparativa: o que se procura saber é se o conceito normativo “fortes indícios” tem um conteúdo mais ou menos exigente que o conceito de “indícios suficientes” usado nos artigos 283.º e 308.º do Cód. Proc. Penal como condição para deduzir acusação e para proferir despacho de pronúncia contra um arguido.
Quer na doutrina, quer na jurisprudência a questão não tem obtido uma resposta uniforme.
Numa primeira fase, tendia a predominar na jurisprudência o entendimento de que “os «fortes indícios» da prática de crime, necessários para que possa ser decretada a prisão preventiva, se bem que não equivalham a um mero fumo ou suspeita da ocorrência de crime e da sua imputação ao arguido, não carecem de atingir o grau de probabilidade dos «indícios suficientes», pois se assim fosse o prosseguimento do inquérito seria pouco menos que inútil visto estes servirem de suporte à acusação. Bastará delinear-se com alguma clareza os contornos e circunstâncias essenciais do crime e a sua ligação ao arguido” (Ac. do TRP de 30.04.1997, www.dgsi.pt/jtrp; Des. Marques Salgueiro).
No entanto, da mesma Relação é o acórdão de 12.11.1999 em que se considerou que “ao referir-se, no artigo 202.º do Código de Processo Penal, à existência de "fortes indícios" e não apenas de "indícios suficientes", o legislador quis ser mais exigente (com vista à aplicação da medida de prisão preventiva), tornando necessário que, face aos elementos de prova disponíveis, seja possível formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição do arguido”, entendimento este também expresso no acórdão da Relação de Lisboa de 08.10.2003 em que se pode ler que “a expressão “fortes indícios” representa uma exigência acrescida de probabilidade de condenação relativamente ao conceito de “indícios suficientes” (arestos disponíveis em www.dgsi.pt, em que foram relatores, respectivamente, os Desembargadores Clemente Lima e Carlos Almeida).
Entre estas duas posições “extremas” situa-se aquela que cremos ser a que tem tido melhor acolhimento e que considera terem as expressões “fortes indícios” e “indícios suficientes” um conteúdo similar (assim, os acórdãos do TRP de 06.01.1993, de 20.04.205 e de 26.09.2007, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Na doutrina, perfilham este entendimento, entre outros, Jorge Noronha e Silveira[3] [“ambas (as expressões) pressupõem uma convicção, face aos elementos de prova disponíveis, da probabilidade da futura condenação do arguido”] e Manuel Simas Santos e outros[4] [“fortes indícios da prática de um crime (…) significa que a base factual que suporta essa aplicação (da medida de prisão preventiva) deve ser de tal modo consistente que permita seriamente inferir que o arguido virá a ser condenado pelo crime que lhe é imputado”], mas já o Professor G. Marques da Silva[5] fala em “juízo de extrema e convincente probabilidade de responsabilidade do arguido” e, em contraponto, Maria João Antunes[6], embora defendendo que o pressuposto específico da prisão preventiva traduzido na existência de fortes indícios da prática de crime doloso “dependerá sempre de um juízo positivo no sentido de que, em face dos indícios já existentes, é de considerar altamente provável a dedução da acusação ou que esta seja mais provável que o arquivamento do inquérito”, também entende que, uma vez que quando se aplica uma medida de coacção podem ainda não ser mobilizáveis os mesmos elementos probatórios ou de esclarecimento, “…o que seria insuficiente para a acusação ou para a pronúncia pode ser bastante para dar como verificado o pressuposto “fortes indícios da prática de crime doloso”, tanto mais quanto, tratando-se da fase de inquérito, a medida de coacção pode ser decidida num momento processual ainda de aquisição da prova”.
Bem vistas a coisas, estes autores acabam por convergir no entendimento de que com a expressão “fortes indícios da prática de crime” exige-se que os indícios sejam sólidos, consistentes, inequívocos, mas o conceito não é, essencialmente, diferente nem mais exigente do que o de “indícios suficientes”, antes sendo idêntico o respectivo conteúdo.
As divergências situam-se, sobretudo, ao nível da definição legal da suficiência de indícios, pois esta não nos elucida sobre o significado da expressão “possibilidade razoável” de condenação e é neste ponto que divergem aqueles que têm estudado[7] o tema e também a jurisprudência.
Uma primeira posição (minoritária e que podemos considerar já ultrapassada) defende que a suficiência de indícios basta-se com a mera possibilidade (ainda que diminuta) de futura condenação em julgamento.
Uma posição intermédia (denominada teoria da probabilidade dominante, que, reconhecidamente, é a que tem apoio na letra da lei) considera que para acusar ou pronunciar alguém é necessário que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a sua futura condenação do que a sua absolvição.
Neste sentido, pode ver-se (em www.dgsi.pt/jstj) o acórdão do STJ de 08.10.2008 (Relator: Cons. Soreto de Barros) em que se afirma que «possibilidade razoável» é a que se baseia num juízo de probabilidade, “uma probabilidade mais positiva do que negativa, de que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha”.
Por último, a posição que parece recolher os favores da maioria da doutrina advoga ser necessário que dos indícios resulte uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento.
Fala-se, a este propósito, em “possibilidade particularmente qualificada” ou de “probabilidade elevada” de condenação[8].
Importa, no entanto, realçar que autores há que não autonomizam esta posição da anterior e tanto falam em “alta probabilidade” como em “probabilidade mais forte” de futura condenação do que de absolvição do acusado.
Assim acontece com o Professor Figueiredo Dias (“Direito Processual Penal”, I, 1984, 133) que se pronuncia nos seguintes termos: “os indíci0s só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição”[9].
Assim também o acórdão do STJ de 18.0.2005, www.dgsi.pt/jstj (Relator: Cons. Pereira Madeira), onde pode ler-se que “aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais razoável, mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é (mais) provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
O Professor Castanheira Neves (“Sumários de Processo Criminal”, lições policopiadas, 1968, 38-39) vai, ainda, mais longe, defendendo que “na suficiência de indícios está contida a mesma exigência de “verdade” requerida pelo julgamento final” ou “um tão alto grau de probabilidade que faça desaparecer a dúvida (ou logre impor uma convicção)”[10].
Pela nossa parte, sufragamos a tese de que indícios fortes, tal e qual como os indícios suficientes, são os que permitem adquirir a convicção segura, inequívoca de que no momento em que é proferida uma decisão (seja uma decisão interlocutória como é a aplicação de uma medida de coacção, seja a decisão de deduzir acusação, seja ainda quando é proferido despacho de pronúncia) o facto se verifica e, por conseguinte, mantendo-se os elementos de prova já recolhidos nesse momento, levarão, com maior probabilidade, à condenação do que à absolvição do agente.
Assim é pela fundamental razão de que a aplicação de medidas de coacção como a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação “implicam uma limitação de tal maneira intensa da liberdade que constituem, no plano fáctico uma antecipação dos efeitos negativos da condenação pelos factos” (Paulo Pinto de Albuquerque, Ob. Cit., 331).
Descendo ao concreto, importa recordar que está, claramente, indiciado que, nas circunstâncias de tempo e modo supra descritas, vindo do …, Brasil (país onde habitualmente reside), chegou o arguido/recorrente ao aeroporto do Porto e transportava consigo uma mala de viagem. Esperavam-no os arguidos C… e D… que logo o abordaram e os três encaminharam-se para a saída do aeroporto. Porém, também o aguardavam inspectores da PJ que ali haviam montado um esquema de vigilância e que, de imediato, abordaram e detiveram os três arguidos.
Está bem de ver que, tendo sido uma operação planeada, isso só pode querer dizer que a PJ tinha conhecimento de que o arguido/recorrente estava para chegar ao Porto em voo proveniente do Rio de Janeiro e que transportava droga.
A revista e a apreensão efectuadas permitiram constatar que, no interior da mala de viagem do arguido/recorrente, era transportada uma embalagem que continha duas garrafas com a capacidade de um litro cada uma e um frasco com a capacidade de meio litro. As garrafas e o frasco continham, não “cachaça” e desinfectante oral, como alega o recorrente, mas um produto líquido que o “teste rápido” a que foi submetido na altura revelou conter cocaína.
Não ignoramos, nem se pretende ocultar, que o referido teste, pela sua própria natureza, não é rigoroso. No entanto, ao contrário do que pretende fazer crer o recorrente, é suficientemente fiável (nem se compreenderia que uma polícia de investigação criminal, como é a PJ, fizesse uso de um teste em cujo resultado não poderia confiar), pois que, na esmagadora maioria dos casos, o resultado obtido é posteriormente confirmado pelo exame toxicológico efectuado em laboratório oficial.
Assim aconteceu neste caso, pois que, como revela o relatório de que está uma reprodução a fls. 42 destes autos, o exame de toxicologia efectuado no LPC da Polícia Judiciária revelou a presença de cocaína (cloridrato) no produto apreendido.
Mas o recorrente sustenta que não existem indícios (ou melhor, diz que “os indícios factuais de natureza subjectiva …são nulos ou claramente inexistentes”) de que fosse do seu conhecimento que transportava produto estupefaciente e argumenta que “a forma como o aludido estupefaciente cuja presença foi indiciada, vinha escamoteado e embalado, demonstra ser possível que o agente do transporte pudesse desconhecer a sua existência”.
Com todo o respeito devido, o que se afigura lógico e razoável é o oposto do que afirma o recorrente, é a conclusão de que este não podia deixar de ter perfeita consciência das características do produto que transportava na sua mala de viagem.
A forma como a cocaína vinha dissimulada revela já alguma sofisticação e, como bem se refere no despacho recorrido, o seu transporte foi, necessariamente, preparado e cuidadosamente planeado (o “valor de mercado” da cocaína apreendida é suficientemente elevado para que os vendedores e os destinatários da droga tivessem adoptado especiais cuidados para que a operação fosse bem sucedida) e isso só é possível no âmbito de uma organização que se dedica à actividade criminosa de tráfico de estupefacientes.
Ora, é bem sabido que os grandes traficantes, os membros dessas organizações criminosas procuram resguardar-se, não correr grandes riscos, designadamente o de serem presos, e por isso (e porque têm os meios necessários) recorrem a terceiros, que aliciam com tentadoras compensações económicas e financeiras, para efectuar o transporte da droga.
No caso, os elementos disponíveis apontam nesse sentido, no sentido de que o papel do arguido/recorrente era, precisamente, o de “correio da droga”, o de fazer chegar a cocaína aos seus destinatários, que eram, ou os co-arguidos C… e D…, ou alguém a quem estes têm ligação.
Para tanto, teve de ser contactado pelo(s) dono(s) da droga e acertar com ele(s) a compensação que iria receber. Por isso, quando recebeu a “encomenda” que acondicionou na sua mala de viagem para transportar para Portugal, o arguido/recorrente não podia ignorar o seu conteúdo. Só alguém muito ingénuo, néscio mesmo (coisa que o recorrente, que tem formação superior e experiência de vida, certamente não é) poderia acreditar que vinha, propositadamente, do … ao Porto para entregar duas garrafas de “cachaça” e um frasco de desinfectante oral.
Temos, pois, uma clara situação de flagrante delito de tráfico de estupefacientes.
Um indício será tanto mais seguro quanto menos ilações alternativas permita.
Tendo decidido fazer uso do seu direito ao silêncio e, por conseguinte, não falar sobre os factos que lhe foram imputados, o arguido/recorrente não forneceu qualquer outra justificação credível para a sua deslocação a Portugal que não fosse essa, a de transportar e fazer a entrega da droga.
Não se trata – note-se bem – de censurar o arguido por ter exercido o direito de não prestar quaisquer declarações sobre os factos que lhe são imputados[11], o direito à não auto-incriminação (nemo tenetur se ipsum accusare).
O que se pretende realçar é que, se fosse outra a finalidade da viagem (para gozo de férias, para visitar familiares, para tratar de negócios, etc.), dificilmente se compreenderia que o recorrente, em vez de fornecer essa explicação, se tivesse remetido ao silêncio quando sujeito a interrogatório judicial.
É uma questão de puro bom senso.
O arguido/recorrente foi informado dos factos que lhe eram imputados e dos elementos de prova que os indiciavam e foram respeitadas todas as demais garantias de defesa. Teve a oportunidade de apresentar a sua versão e assim refutar ou enfraquecer a consistência dos indícios existentes. O primeiro interrogatório judicial tem, também, essa finalidade: é o primeiro momento em que um arguido pode defender-se, dar a sua versão dos acontecimentos, contraditar os indícios existentes ou, pelo menos, enfraquecê-los.
O recorrente desperdiçou essa oportunidade e assim deixou incólumes os (não apenas fortes, mas fortíssimos) indícios da prática de um crime de tráfico de estupefacientes.
Está, assim, verificado este pressuposto específico da prisão preventiva.

C) Os pericula libertatis
Além da ocorrência de um dos requisitos específicos previstos no artigo 202.º do Cód. Proc. Penal, a aplicação da prisão preventiva depende da verificação, em alternativa, de qualquer dos requisitos gerais (os chamados pericula libertatis) enunciados nas três alíneas do artigo 204.º do mesmo compêndio normativo: perigo de fuga; perigo de perturbação do inquérito ou da instrução do processo; perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou perigo de continuação da actividade criminosa, devido à natureza e às circunstâncias do crime ou à personalidade do arguido.
Qualquer destas condições deve configurar-se como um perigo real e não meramente hipotético ou virtual e resultar de todos os elementos factuais disponíveis no processo, analisados e ponderados de acordo com as regras da experiência comum, ou seja, nas palavras de Germano Marques da Silva (“Sobre a Liberdade no Processo Penal ou do Culto da Liberdade Como Componente Essencial da Prática Democrática”, estudo integrado na obra “Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias”, Coimbra Editora, 2003, p. 1378), o despacho de aplicação da prisão preventiva não pode “…basear-se sobre o perigo para a aquisição, conservação ou veracidade de provas de modo genérico … Não pode reportar-se a um genérico perigo de fuga do arguido, mas deve referir-se a um concreto perigo de fuga ou à fuga, como de modo análogo não pode referir um perigo abstracto de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa, devendo ser especificados os factos em que assenta o juízo de perigosidade”.
Como já tivemos oportunidade de salientar, na decisão recorrida considerou-se que se verificam no caso os perigos de continuação da actividade criminosa e de fuga.
O recorrente sustenta que não se verifica nenhum destes perigos e que a decisão em crise se baseia em “meras presunções e considerações vagas e genéricas” (conclusão G)).
Vejamos se assim é ou se estão devidamente concretizados esses perigos.
O perigo de continuação da actividade criminosa.
No despacho recorrido aponta-se como razão da verificação deste perigo o carácter organizado da actividade criminosa em causa (revelado, desde logo, na forma como vinha dissimulada a droga), sinal de que são elevados os proveitos proporcionados por tal actividade.
A prisão preventiva é, unanimemente, referida como uma providência cautelar[12], que se justifica pela necessidade de garantir determinados fins[13].
Um desses fins ou funções é prevenir o perigo de continuação da actividade criminosa, mas, como faz notar o Professor Germano Marques da Silva (“Sobre a Liberdade…”, Ob. Cit, 1365 e segs.), “a aplicação da prisão preventiva não pode servir para acautelar a prática de qualquer crime pelo arguido, mas tão só a continuação da actividade criminosa pela qual o arguido está indiciado”[14], sob pena de se estar a assacar à prisão preventiva a função de prevenção geral de intimidação, de medida de segurança alheia ao processo em que é aplicada.
Além disso, há que ter presente que não é um juízo de certeza que se impõe, mas antes um juízo meramente (mas também fortemente) indiciário, quanto a essa continuação criminosa.
Como se salientou no acórdão da Relação de Lisboa de 25.10.2011, proferido no processo n.º 219/11.9 JELSB-B.L1-5, citado na resposta do Ministério Público[15], o desejo de obtenção de proventos económicos, a ambição de enriquecer, a ganância do dinheiro fácil é a motivação de qualquer traficante de droga.
Mesmo naquelas situações em que alguém (cada vez mais, pessoas que sempre tiveram uma conduta irrepreensível), que passa por dificuldades económicas, é aliciado para, em troca de uma boa compensação remuneratória, efectuar um transporte de droga e aceita fazê-lo, prometendo a si próprio que será “uma vez sem exemplo”, se for bem sucedido, acaba por voltar a fazer o mesmo.
É isso que nos revela a experiência acumulada. Que também nos diz que, quando há uma detenção, mesmo que seja de um simples colaborador (como será o caso do recorrente), a “organização”, a troco do seu silêncio, financia a defesa do detido.
Por tudo isso se diz, com propriedade, que não é difícil entrar nos meandros do tráfico de drogas. Difícil mesmo, é sair de lá.
Daí que seja grande a taxa de reincidência no crime de tráfico de estupefacientes (dado que pode ser comprovado).
Neste caso, sabe-se que o arguido é arquitecto, de 38 anos de idade e com residência habitual em …, Brasil, mas desconhece-se se, nesse país, exercia actividade profissional correspondente à sua formação, se exercia alguma actividade profissional e, na afirmativa, qual.
De todo o modo, não será abusivo pensar que ao seu envolvimento no tráfico de droga não serão alheias dificuldades económicas com que se defrontaria.
Não se enxerga outra motivação, que não a obtenção de proventos económicos, de alguém com formação académica superior (e de quem, por isso, se poderia esperar que as contra-motivações éticas se sobrepusessem à motivação pelo crime) que se envolve numa actividade criminosa como é o tráfico de estupefacientes.
Estas são razões bastantes para se poder afirmar que a natureza e as circunstâncias do crime fazem com que não seja de desprezar o perigo de continuação da actividade criminosa, estando o arguido em liberdade.

O perigo de fuga
A justificação da aplicação de uma medida de coacção quando se verificou a fuga (que implica o perigo de a mesma se repetir) ou se verifica o perigo de fuga não oferece dificuldade, já que, como se referiu em nota (14) de pé de página, entre as finalidades das medidas de coacção conta-se a de assegurar a sujeição do arguido ao procedimento e ao cumprimento das eventuais reacções criminais que lhe venham a ser impostas.
A doutrina, a propósito deste perigo, tem chamado a atenção para dois aspectos particularmente relevantes:
- há que ter presente que “a lei não presume o perigo de fuga, exige que esse perigo seja concreto, o que significa que não basta a mera probabilidade de fuga deduzida de abstractas e genéricas presunções, v.g., da gravidade do crime, mas que se deve fundamentar sobre elementos de facto que indiciem concretamente aquele perigo, nomeadamente porque revelam preparação para a fuga” (Germano Marques da Silva, “Curso de Processo penal”, Vol. II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, pág. 356)[16];
- a jurisprudência, por influência de legislação pretérita, nomeadamente do artigo 209.º do Código de Processo Penal na sua redacção primitiva, tem sido pouco exigente na fundamentação fáctica do perigo de fuga, geralmente deduzido da gravidade do(s) crime(s) e das sanções penais que, previsivelmente, venham a ser aplicadas ao agente[17].
É com base num “juízo global de todas as circunstâncias do caso” (Cons. Maia Costa, Op. Cit., 879-880) que se pode fundamentar uma conclusão sobre a verificação de perigo de fuga e como elementos indiciadores desse perigo podemos recensear os seguintes:
- verificação de uma fuga anterior;
- ter estado em situação de contumácia (no próprio processo em que se coloca a questão do perigo de fuga ou noutro)
- gravidade da pena que poderá vir a ser cominada, face à gravidade do(s) crime(s) imputado(s);
- personalidade do arguido revelada nos factos indiciariamente praticados;
- atitude do arguido perante os factos praticados e suas consequências;
- situação financeira, familiar, profissional e social do arguido;
- incerteza relativamente ao modo de vida e paradeiro do arguido (ou se estava ocasionalmente no país no momento da detenção);
- ligações em países estrangeiros;
- haver sinais de que o arguido prepara a sua fuga (p. ex., ter passagem de avião para viajar para o estrangeiro daí a dias).
A gravidade do crime que se indicia ter o arguido/recorrente cometido está bem patente na pena que lhe corresponde (4 a 12 anos de prisão).
A pena de prisão efectiva deve ser a regra para os crimes que se posicionam no segmento da criminalidade mais gravosa, especialmente os crimes contra as pessoas e, em geral, os que integram a designada “criminalidade violenta” e “criminalidade altamente organizada”, na qual se inclui o tráfico de estupefacientes, que mais consequências nefastas têm para a paz social, como, de resto, se reconhece na exposição de motivos do Dec. Lei n.º 48/95, de 15 de Março.
Como observa A. Lourenço Martins (“Medida da Pena – Finalidades – Escolha, Abordagem Crítica de Doutrina e de Jurisprudência”, Coimbra Editora, 1.ª edição, 259) na análise que faz da jurisprudência do STJ, a finalidade da prevenção geral é invocada para, não só apoiar a severidade das penas por crimes de tráfico de estupefacientes, mas também para fundamentar a denegação da suspensão da execução da pena.
As fortes exigências preventivas, sobretudo as de prevenção geral, que o crime de tráfico de estupefacientes suscita não ficam, adequada e suficientemente, satisfeitas com a simples ameaça da pena e isso justifica que, normalmente, as penas de prisão sejam efectivas.
No caso particular em que o tráfico se traduz, apenas, no transporte do produto pelos ditos “correios de droga”, nem por isso são menores as necessidades de prevenção[18], pois “o transporte intercontinental de estupefacientes, pela difusão rápida e eficiente das drogas junto dos mercados que abastecem os consumidores, constitui uma conduta especialmente danosa, cuja perseguição se mostra essencial para dificultar (tendencialmente cortar) a circulação das drogas e o abastecimento daqueles mercados” (acórdão do STJ, de 09.12.2010).
Apesar de, muitas das vezes, estarmos perante indivíduos recrutados nos estratos sociais mais baixos da população e com dificuldades económicas (e que não integram a organização que, normalmente, está por detrás da operação de importação e transporte da droga) e que se prestaram, ocasionalmente, a transportar o produto estupefaciente, não pode ignorar-se que se assiste a um crescimento imparável destes casos, como é assinalado na seguinte passagem do texto do acórdão do STJ, de 29.09.2011 (disponível em www.dgsi.pt; Cons. Souto Moura):
“O nosso país vem sendo, de há anos a esta parte, uma importante placa giratória de entrada na Europa de cocaína oriunda da América do Sul, situação a que importa pôr cobro.
A respeito do crime de tráfico de estupefacientes, do art. 21º do D.L. 15/93 de 22 de Janeiro, protagonizado pelos chamados “correios de droga”, analisámos com o apoio da Assessoria deste Supremo Tribunal, 221 acórdãos aqui lavrados, na sua esmagadora maioria, entre 2000 e 2010. Daqueles 221 processos, 202 respeitavam a “correios” que tinham sido condenados por tráfico de cocaína, o que corresponde a 90% dos casos.
Em 176 processos (dos 221), a droga era oriunda do Brasil (98) ou Venezuela (78), o que significa que 79% do total dos casos, respeitavam a cocaína vinda da América do Sul”.
Tudo isto para concluir que, a provarem-se os factos indiciados, não poderá deixar de ser aplicada ao arguido/recorrente uma pena de prisão efectiva.
Ora, perante essa perspectiva, é natural que o arguido, estando em liberdade, seja tentado a furtar-se à acção da justiça. E tem para onde fugir, pois que, como já se assinalou, a sua residência habitual é no Brasil.
Ponderando este conjunto de circunstâncias, chega-se, sem esforço, a um juízo positivo sobre a existência de perigo de fuga e não seria a obrigação de permanência na habitação, mesmo que fiscalizada por meios de vigilância electrónica, que iria dissuadir o arguido de fugir ou diluir esse perigo.
Temos para nós que essa medida, se limita consideravelmente a liberdade ambulatória do arguido, está longe de impedir a fuga.
De resto, são bem conhecidas fugas para o Brasil de indivíduos que até estavam a cumprir pena de prisão e que não passavam despercebidos, como passaria o arguido/recorrente.
Por isso que é praticamente consensual a ideia de que aquela medida coactiva não acautela suficientemente esse perigo.
*
Alega o recorrente que, «por uma questão de “justiça relativa” é incompreensível que, tendo os dois co-arguidos sido deixados em liberdade com apresentações diárias, o mesmo não tendo sucedido com o recorrente” e por isso pugna pela substituição da medida que lhe foi aplicada “por outra julgada mais proporcional e adequada”.
Qualquer pessoa, seja ou não arguida num processo penal, tem o direito à liberdade física. Assim o proclama a Constituição da República no seu artigo 27.º, n.º 1 e ao estabelecer no n.º 2 do mesmo artigo que “ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”.
Reconhece-se, assim, a liberdade individual como um dos valores fundamentais relativos à pessoa humana e que numa sociedade moderna é o elemento sobre o qual se deve estruturar todo o sistema de direito, maxime o direito penal e processual penal, cujo objectivo primordial não pode deixar de ser a defesa da dignidade da pessoa.
Mas, função do direito penal e processual penal é, também, o controlo preventivo directo da actividade criminosa[19], pois só assim se salvaguarda a liberdade e as regras de convivência em sociedade.
Daí as restrições à liberdade individual, também constitucionalmente permitidas. Restrições que, revelando-se essenciais à própria sobrevivência do Estado de Direito Democrático, não podem deixar de ter carácter excepcional: só as previstas nos n.ºs 2 e 3 do citado art.º 27.º da Constituição são legítimas, estando vedado ao legislador ordinário criar outras, e por isso se fala em “tipicidade constitucional das medidas privativas da liberdade” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 2007, p. 479).
Entre as restrições ali previstas, avulta a prisão preventiva, cuja natureza excepcional é logo assinalada no n.º 2 do art.º 28.º da Constituição e, a nível infra-constitucional, no art.º 193.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal.
Mas a aplicação da prisão preventiva choca, pelo menos, aparentemente, com um outro princípio, também ele fundamental num Estado de Direito democrático: o da presunção de inocência do arguido.
Desse princípio basilar emanam, além de outros, o princípio da necessidade (particularmente significativo no que toca à prisão preventiva e também explicitado no artigo 191.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, nos termos do qual só exigências processuais de natureza cautelar podem limitar, total ou parcialmente, a liberdade das pessoas, com reforço no artigo 204.º que concretiza as circunstâncias que podem justificar a imposição das medidas de coacção), o princípio da adequação (consagrado no art.º 193.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e que, tal como o princípio da proporcionalidade, condiciona não só a escolha da medida, mas também a sua execução e que impõe que a medida ou medidas a aplicar sejam adequadas às exigências cautelares que intercedem no caso e que os índices teleológicos do art.º 204.º revelam) e o princípio da proporcionalidade (proporcionalidade que deve ser concretamente aferida em função da gravidade do crime cuja prática está indiciada e das sanções hipoteticamente aplicáveis – art.º 193.º, n.º 1).
Como já se ponderou, a provarem-se, em audiência, os factos que agora estão fortemente indiciados, dada a quantidade (mais de quatro quilos) de cocaína transportada pelo arguido/recorrente, o mais certo é que lhe venha a ser cominada pena de prisão efectiva e por isso não existe desproporcionalidade na medida coactiva aplicada.
A adequação exige que a medida coactiva escolhida e aplicada reúna, não só as características da idoneidade e aptidão para satisfazer as exigências cautelares, mas também que perdure pelo tempo estritamente necessário para garantir essas finalidades.
A prisão preventiva é, irrecusavelmente, a medida coactiva mais eficaz, aquela que, em princípio, satisfaz plenamente as exigências cautelares de qualquer processo.
No entanto, é, simultaneamente, a mais gravosa e por isso só deve ser aplicada e mantida desde que outras, menos penosas, se mostrem inadequadas ou insuficientes.
Será esse o caso dos autos? Não violará o princípio da igualdade de tratamento a aplicação ao arguido da medida coactiva mais gravosa, quando aos demais arguidos foi aplicada uma medida não detentiva?
Como bem se faz notar no acórdão da Relação de Lisboa de 13.10.2009 (processo n.º 117/08.3 HLSB-A.L2), pertinentemente citado pelo Ministério Público na sua resposta à motivação do recurso, o que a lei proíbe são distinções discriminatórias, tratamento desigual sem fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional.
Ora, os elementos disponíveis à data dos interrogatórios judiciais e da aplicação aos arguidos das medidas coactivas não permitiam, ainda, uma ideia segura sobre o papel dos arguidos C… e D… na operação de importação dos cerca de quatro quilos de cocaína que o arguido/recorrente transportou do Brasil para Portugal.
Não existem dúvidas sobre a sua participação nos factos, mas não se sabe qual o seu grau de participação e o recorrente, que podia ter esclarecido esse ponto, recusou-se a falar.
Se eram os destinatários da droga, então impor-se-á uma reponderação do seu estatuto de liberdade. Mas pode muito suceder que fossem meros cúmplices, que o seu papel fosse, por exemplo, o de prestar ajuda material aos verdadeiros traficantes.
Por isso, a decisão de aplicar medidas coactivas distintas é materialmente fundada, pois são diversas as situações que lhe subjazem, e não viola quaisquer normas constitucionais ou da CEDH.
Em suma, a prisão preventiva aplicada ao arguido/recorrente revela-se (continua a mostrar-se) necessária, adequada e proporcional face às exigências cautelares do caso e por isso deve manter-se.

IIIDecisão
Por tudo o exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao presente recurso e confirmar a decisão recorrida, devendo o arguido B… manter-se em prisão preventiva.
Por ter decaído, pagará o recorrente as custas do processo, fixando-se em cinco UC´s a taxa de justiça (artigos 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, e 8.º, n.º9 do Regulamento das Custas Processuais, sem prejuízo do disposto na alínea j) do artigo 4.º do mesmo Regulamento).
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 14-01-2015
Neto de Moura
Vítor Morgado
__________
[1] Estabelecendo o preceito legal citado que o recurso interposto de decisão que aplicar, substituir ou mantiver medidas de coacção é julgado no praz máximo de 30 dias a contar da data do recebimento dos autos no tribunal de recurso, a seguir-se a sua tramitação normal (não abdicando o Ministério Público no Tribunal da Relação da faculdade de emitir parecer), é, efectivamente, impossível respeitar tal prazo, como aqui, facilmente, se pode verificar: os autos do recurso foram recebidos neste tribunal no dia 31.12.2014 e logo no dia 02.01.2015 foi aberta vista. Se o Ex.mo PGA tivesse emitido parecer e se, logo no primeiro dia útil seguinte, tivesse sido expedida carta para notificação ao ilustre mandatário do arguido/recorrente nos termos e para o efeito do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, o prazo de resposta a que este tem direito terminaria no dia 19.01.2015. Não ocorrendo nenhuma das situações em que é possível o julgamento por decisão sumária do relator, este dispõe de 15 dias (a contar da data em que o processo lhe é concluso) para elaborar projecto de acórdão (artigo 417.º, n.º 9, do Cód. Proc. Penal). Se o relator esgotar esse prazo, é patente que o prazo de 30 dias para o julgamento do recurso não pode ser cumprido.
A tão decantada “morosidade da justiça” (estribilho repetido até à exaustão) acaba por levar o legislador a consagrar soluções legais como esta, sem medir as consequências. Importa, no entanto, sublinhar que o prazo previsto no artigo 219.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal é um prazo meramente ordenador, já que não se prevê qualquer consequência processual, designadamente no que respeita ao estatuto coactivo do arguido, para a sua inobservância (assim, Cons. Maia Costa no comentário ao referido preceito legal, in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, e acórdão da Relação de Coimbra, de 14.05.2014, disponível em www.dgsi.pt).
[2] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[3] Estudo citado, 174.
[4] “Noções de Processo Penal”, 2010, Rei dos Livros, p. 294.
[5] “Sobre a liberdade no processo penal ou do culto da liberdade como componente essencial da prática democrática”, estudo integrado na obra “Liber Discipulorum para Figueiredo Dias”, Coimbra Editora, 1378.
[6] “O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coacção”, estudo publicado na mesma obra citada na nota anterior, 1251-1252.
[7] Cfr. Jorge Noronha e Silveira, estudo citado, de que vamos continuar a servir-nos.
[8] Assim, Jorge Gaspar (“Titularidade da Investigação Criminal e Posição Jurídica do Arguido”, Revista do Ministério Público, n.º 88, 101 e segs.), Carlos Adérito Teixeira (“Indícios Suficientes”: Parâmetros de racionalidade e “instância de legitimação”, Revista do CEJ, n.º 1, 160) e Paulo Dá Mesquita “(“Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária”, 2003, 90 e segs.).
[9] Como já vimos, é esta, também, a posição de Maria João Antunes, Loc. Cit.
[10] Posição perfilhada por Jorge Noronha e Silveira, estudo citado, 171, pois considera que entre juízo de probabilidade (próprio da fase de instrução) e juízo de certeza (da fase de julgamento) não existe uma diferença essencial.
Na mesma linha, parece estar António Cluny que afirma: “A decisão de acusar deve basear-se já num juízo muito próximo do que preside à decisão do juiz: Por um lado, porque ela se constitui como um pré-juízo fundado na mesma teleologia; por outro, porque a metodologia que preside à investigação incorpora valores e alguns métodos em tudo semelhantes aos usados pelo juiz com vista à decisão” (Pensar o Ministério Público Hoje”, 1997, 49).
[11] Ninguém põe em causa que ao tribunal está vedado extrair consequências negativas para o arguido do facto de este exercer o seu direito ao silêncio. Porém, o seu silêncio não pode impedir que se façam as inferências que as regras da experiência permitam ou imponham.
[12] Os meios cautelares são instrumentos processuais sem os quais o processo penal correria o risco de se “auto-inutilizar”, pois que estaria na livre disposição do arguido fugir, destruir ou adulterar provas ou prosseguir a actividade criminosa (cfr., a este propósito, Pedro Jorge Teixeira de Sá, “Fortes indícios de ilegalidade da prisão preventiva”, estudo publicado in “Scientia Iuridica”, T. XLVIII, n.ºs 280-282, p. 393 e segs.).
[13] A prisão preventiva (tal como com as outras medidas de coacção) tem finalidades intra-processuais (como sejam as dirigidas a garantir a possibilidade de recolha pronta, completa e correcta da prova e a execução de uma eventual decisão condenatória, podendo falar-se aqui num interesse, constitucionalmente protegido, na boa administração da justiça) e extra-processuais (em que o objecto de protecção é a comunidade e o próprio arguido, prevenindo-se a perturbação da ordem a tranquilidade públicas e a continuação da actividade criminosa).
[14] Perspectiva radical (que seria, também, a da escola clássica italiana) tem Eduardo Maia Costa (“A presunção de inocência do arguido na fase de inquérito”, in Revista do Ministério Público, n.º 92, 65 e segs.), para quem a prisão preventiva só se justifica nos casos de perigo de fuga ou de perturbação da instrução pelo arguido. As finalidades extra-processuais, concretamente, as de prevenir os perigos de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas e de continuação da actividade criminosa (tout court) seriam ilegítimas, pois estar-se-á a utilizar a prisão preventiva como medida de segurança, mais do que antecipação da pena, o que violaria diversos princípios constitucionais, nomeadamente o da presunção de inocência.
Apesar do seu carácter excepcional e subsidiário, a utilização da prisão preventiva – escreve o autor – “banalizou-se, tornou-se a medida de coacção normal em certo tipo de crimes, nomeadamente no tráfico de estupefacientes, precisamente com a mais que duvidosa (constitucionalmente duvidosa) invocação do perigo de continuação criminosa e/ou de perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas” (Loc. Cit., 77).
Bem diferente é o entendimento que tem sido perfilhado pelo Tribunal Constitucional, como se pode constatar, por ex., no acórdão de 20.11.1996 (DR, II, de 06.02.1997), onde se pode ler: “…o entendimento a dar ao princípio da presunção de inocência do arguido não pode ir tão longe que dele se faça resultar a ilegitimidade da utilização dos meios de coacção ou cautelares, como a prisão preventiva, incidentes sobre a sua pessoa. Com efeito, se é certo que a prisão preventiva leva à privação da liberdade do arguido, privação esta tanto mais delicada porquanto ocorre, em geral, num momento em que o indivíduo não foi sentenciado criminalmente, embora exista um juízo de fortes suspeitas de culpa, que se concretiza, em regra, no despacho de pronúncia, não pode deixar de se considerar aquela privação da liberdade como justificada para salvaguarda da própria sociedade e dos valores essenciais por que se rege”.
[15] Também relatado pelo aqui relator.
[16] Neste sentido, citando as palavras deste autor, o acórdão da Relação de Évora, de 14.07.2009, disponível em www.dgsi.pt
[17] Estão nesta linha, os acórdãos da Relação de Guimarães, de 29.05.2006 (em que se considerou haver perigo de fuga porque o comportamento do arguido apontava no sentido de que ele não se viria a conformar com a reacção penal que poderia ser-lhe aplicada) e desta Relação do Porto, de 11.10.2000 (em que se afirma que “a perspectiva de pesada condenação, sendo o arguido um jovem de 23 anos, justifica o receio de fuga”).
[18] Como se diz no acórdão da Relação de Lisboa de 03.04.2008 (www.dgsi.pt), “a actuação do arguido como “correio de droga”, transportando uma quantidade muito significativa de droga induz um acréscimo de razões de prevenção geral de intimidação”, razão por que a pena de prisão efectiva “mostra-se indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização das expectativas comunitárias”.
[19] Função que, no entanto, só será legítima se não se recorrer a medidas que sejam verdadeiras medidas de segurança pré-condenatórias.