Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4375/18.7T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: LIGA PORTUGUESA DE FUTEBOL
PODER REGULAMENTAR
ORGANIZAÇÃO
PODER DE DIRECÇÃO
PODER DISCIPLINAR
TRIBUNAL ARBITRAL DO DESPORTO
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RP201902214375/18.7T8PRT.P1
Data do Acordão: 02/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: ACÇÃO COMUM
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º164, FLS.233-243)
Área Temática: .
Sumário: I - O TAD tem competência jurisdicional exclusiva em matéria de litígios emergentes de actos da LPFP no exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina, mas apenas em via de recurso das decisões finais da LPFP, não dispensando a necessidade de fazer uso dos meios internos de impugnação, recurso ou sancionamento dos actos.
II - Os poderes de regulamentação, organização e direcção e disciplina da LPFP são os relativos às competições de natureza profissional que lhe estão confiadas por delegação da Federação Portuguesa de Futebol, que contendem com a elaboração do regulamento das competições, com a sua organização, com a direcção de todos os actos necessários para o desenvolvimento da competição e com o exercício do poder disciplinar destinado a fazer respeitar e cumprir os regulamentos aprovados.
III - Sendo a causa de pedir da acção constituída pela exoneração de um cargo funcional na organização interna da LPFP, cuja validade e eficácia o autor não contesta e de que não recorreu, mas ao qual atribui a consequência de gerar um direito de indemnização por ausência de justa causa, a acção não é da competência exclusiva do TAD mas sim dos tribunais judiciais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2019:4375.18.7T8PRT.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
B…, casado, contribuinte fiscal n.º ………, pessoa colectiva n.º ………., residente em Valongo, instaurou acção judicial contra a LIGA PORTUGUESA DE FUTEBOL PROFISSIONAL, associação de direito privado sem fins lucrativos, com sede no Porto, pedindo que a ré seja condenada a pagar ao autor a importância de 337.914,90 €, acrescida de juros de mora à taxa legal contados desde a citação.
Alegou para o efeito que desempenhou as funções de Director Executivo da ré desde 14 de Novembro de 2014, com a remuneração mensal equivalente a 15 salários mínimos nacionais, a que acresciam subsídios de férias e de Natal, de igual montante, viatura automóvel e telemóvel; no dia 22 de Julho de 2016, o Presidente da ré lavrou no livro dos termos de posse despacho assinalando ter sido deliberada pela Direcção a exoneração do aqui autor; este não deu causa à sua exoneração, a qual foi decidida sem fundamentação, pelo que a exoneração do autor sem justa causa lhe confere o direito à indemnização equivalente às remunerações vincendas até ao final do período do mandato para que foram eleitos os órgãos da ré.
A ré contestou a acção, começando por arguir a excepção da incompetência absoluta do tribunal por preterição de tribunal arbitral argumentando que será o Tribunal Arbitral do Desporto o competente para julgar a acção, competência que, se assim não se entender, caberia aos juízos de trabalho do Tribunal Judicial da Comarca do Porto. Impugnando, defendeu que o autor apenas foi Director executivo a partir de 11 de Setembro de 2015, que a Direcção da ré tinha o poder de o exonerar livremente a todo tempo, que nos termos dos Estatutos as suas funções cessaram com a sua exoneração, que a nomeação da Direcção Executiva é feita para a época desportiva subsequente, que o autor foi previamente informado com uma antecedência de 6 meses que não seria reconduzido para a época seguinte, que o autor não alegou factos destinados a demonstrar os prejuízos que invoca,
Findos os articulados foi proferida a seguinte decisão:
«I. O autor instaurou a acção que correu termos no processo com o n.º 2347/17.8T8PRT, invocando a mesma causa de pedir e formulando o mesmo pedido, relativamente à causa de pedir e ao pedido apresentados na demanda vertente. As partes são as mesmas. Ocorre uma absoluta coincidência entre causas, designadamente, para efeitos de litispendência (se ambas as causas estiverem pendentes) ou de caso julgado (máxime, se a lide anterior terminou por julgamento do mérito do pedido) – art. 581.º do CPC.
A referida acção tramitada sob n.º 2347/17.8T8PRT terminou por decisão de absolvição da instância, por ser este tribunal absolutamente incompetente - Juízo Central Cível da Comarca do Porto -, por preterição do tribunal arbitral (art. 96.º, al. b), do CPC). Até aqui, não há controvérsia relevante entre as partes.
II. Reza o art. 100.º do CPC que “A decisão sobre incompetência absoluta do tribunal, embora transite em julgado, não tem valor algum fora do processo em que foi proferida, salvo o disposto no artigo seguinte”. É desta norma que nos ocuparemos.
Explicava Alberto dos Reis que, “quando se julga procedente a excepção de incompetência, o julgamento tem naturalmente um duplo aspecto: negativo e positivo. Ao mesmo tempo que se nega a competência do tribunal perante o qual a acção foi proposta, afirma-se a competência dum outro tribunal” – cf. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 1.º, Coimbra, Coimbra Editora, 1960, p. 323. Diferentemente do que ocorre no julgamento de incompetência relativa – onde os dois aspectos estão presentes, na decisão (afirmativa) proferida sobre a incompetência absoluta só vale o aspecto negativo: o tribunal tido por competente não está vinculado pela decisão anterior, podendo declarar-se incompetente.
Destas considerações pode retirar-se que o sentido a atribuir à norma enunciada no art. 100.º do CPC, interpretada restritivamente, é apenas o de que a decisão proferida não tem força vinculativa para o tribunal designado competente; e não que a decisão é desprovida de qualquer efeito externo, relativamente à ulterior instauração da mesma acção num novo processo.
No entanto, Alberto dos Reis dava mais um passo e defendia que, mesmo no aspecto negativo, a decisão “não tem valor fora do processo em que foi proferida. O próprio tribunal que num processo se julgou incompetente, não está inibido de noutro processo se considerar competente para a mesma acção”. E explicava: “o princípio que está na base desta doutrina é o de que cada tribunal tem o poder de conhecer da sua própria competência” − idem, ibidem, p. 324.
III. Esta interpretação da norma é (compreensivelmente) nitidamente historicista, sendo desenvolvida num contexto processual civil marcadamente autoritário. Tal posição é hoje dificilmente sustentável.
Por um lado, não deve prevalecer nesta discussão o perfil do juiz (concreto), autocrático e ferozmente individualista, mas sim a ideia de um tribunal que apenas existe para servir os cidadãos, garantindo o acesso ao Direito – desenvolvendo a sua função para os cidadãos. Não tem hoje sentido, a pretexto de se tutelar o poder do juiz conhecer a sua própria competência, desconsiderar a pronúncia do mesmo tribunal sobre a sua incompetência. Na verdade, tendo o tribunal emitido pronúncia sobre a questão, não há qualquer valor digno de tutela legal que justifique o reconhecimento de uma prerrogativa do juiz – do mesmo juiz ou de outro juiz do mesmo tribunal – de se desdizer, afirmando a competência do tribunal.
Prevalecente será, sim, a proibição de adopção de comportamentos contraditórios por parte do tribunal.
Por outro lado, estando o Processo Civil ao serviço das partes (hoc sensu), não pode deixar de se considerar ser um verdadeiro abuso do processo a repetição da mesma acção com as mesmas patologias adjectivas, a coberto da putativa inexistência de efeito extraprocessual das decisões que, nas causas anteriores, julgaram verificadas tais patologias processuais. A lei não se deve preocupar aqui mais com o poder autocrático do juiz (preocupação legítima noutros domínios, mas aqui perfeitamente deslocada), do que com o direito da contraparte a um processo equitativo – melhor, a um sistema processual civil equitativo (coerente e consequente com as decisões proferidas sobre questões concretas).
Recusar plena relevância negativa à decisão de incompetência absoluta – ou seja, recusar uma eficácia extraprocessual cingida ao órgão que se julgou incompetente – conduz a resultados absurdos, proporcionando ao autor, não o acesso ao Direito, mas sim um acesso ad libitum aos tribunais, uma e outra vez, arrastando a contraparte, processo após processo, para a (tentada) discussão da mesma acção.
IV. Refere a propósito Teixeira de Sousa que “a inaceitabilidade da atribuição de caso julgado material às decisões de forma não impede (…) a admissão de uma eficácia extraprocessual do caso julgado formal” – cfr. Miguel Teixeira de Sousa, «O objecto da sentença e o caso julgado material (o estudo sobre a funcionalidade processual)», BMJ, n.º 325, Abril, 1983, p. 157. No entanto, a eficácia extraprocessual do caso julgado formal restringe-se “aos processos subsequentes em que se aprecia a existência de uma mesma condição processual numa mesma individualização” – idem, ibidem, p. 158.
Adverte, ainda, o eminente processualista que, “ainda que com este restrito âmbito, a eficácia extraprocessual do caso julgado formal não significa a existência de uma excepção de caso julgado formal, pois aquela relevância externa não é um impedimento do órgão decisório à apreciação de determinado objecto pela sua vinculação à não contradição e à não repetição de uma decisão anterior sobre esse objecto, mas a vinculação do órgão decisório à identidade de julgamento de certo objecto pelo seu impedimento à contradição e à não repetição de uma decisão anterior sobre esse objecto: o que releva no processo subsequente não é a impossibilidade de apreciar determinado objecto, mas a sujeição a julgar identicamente certo objecto” – idem, ibidem, p. 159; sublinhado nosso.
Afigura-se-nos que podemos concluir, sem desvirtuar o pensamento de Teixeira de Sousa, que o autor acaba por reconhecer a existência de autoridade de caso julgado, também no que ao caso julgado formal diz respeito – veja-se, sobre a autoridade de caso julgado e a excepção de caso julgado, idem, ibidem, p. 200 e segs..
V. Caminho diferente foi percorrido pelo Supremo Tribunal de Justiça, mas tentando chegar ao mesmo resultado. No seu Ac. de 15-11-1995 (004314), o nosso mais alto tribunal identificou um momento de pronúncia material na decisão de incompetência absoluta, reconhecendo-lhe força de caso julgado material – pelo menos em ordem a vincular o mesmo tribunal.
Note-se que, a possibilidade de repetição da mesma exacta instância − ou seja, integrada pelo mesmo tribunal −, para além de absurda e incompreensível – salvo para os processualistas… −, é verdadeiramente insólita em, casos como o vertente, nos quais a qualificação da incompetência como absoluta ou relativa depende apenas de uma mera opção conjuntural do legislador. Sendo a incompetência apelidada de relativa, o mencionado aspecto negativo da decisão é total (art. 105.º, n.º 2, do CPC); sendo apelidada de absoluta, a decisão de incompetência nenhum âmbito extraprocessual teria.
VI. Afigura-se que a interpretação da norma no sentido de caucionar novas demandas por parte do autor vencido (na questão da competência do tribunal), obrigando a contraparte a defender-se em casa caso, não é conforme à Constituição (art. 20.º da CRP). O demandado também tem direito a um processo equitativo − incluindo, no caso, a que se recusa à contraparte o direito de repetir causas −, também gozando de garantia de acesso ao Direito – compreendendo esta o direito a ver a questão definitivamente decidida (não ficando permanentemente sujeito à eventual prolação de uma decisão contraditória) e a beneficiar da prévia pronúncia final favorável de um tribunal (sobre a mesma exacta acção), notando-se que, como parte vencedora, não pode lançar mão do mecanismo previsto no art. 101.º do CPC.
Não vale aqui dizer que este efeito (repetição de causas) não ocorre, a pretexto de o demandante ser dissuadido pelo pagamento da taxa de justiça. É que, por um lado, não é esta a função das custas judiciais (dificultar o acesso aos tribunais); por outro lado, bem pode o demandante litigar com o benefício de apoio judiciário ou gozar de isenção subjetiva do pagamento de taxa de justiça.
Também não tem cabimento invocar o instituto da litigância de má-fé. Tal invocação implica o reconhecimento da ilegalidade e censurabilidade da conduta do demandante. Ora, se o legislador (logo, o julgador) entende que a repetição de causas é ilegítima, não tem sentido afirmar que a admite – para só a punir reactivamente a jusante (não a evitando a montante).
VII. Sopesados todos os argumentos esgrimidos, devemos concluir, considerando os termos do enunciado do art. 100.º do CPC, que não é possível reconhecer à decisão proferida no processo anterior uma força de caso julgado que permita, nesta acção, afirmar a ocorrência de uma excepção de caso julgado (res judicata) – embora o caso (isto é, a competência do tribunal) tenha sido efectivamente julgado. No entanto, não podemos deixar de acompanhar Teixeira de Sousa na afirmação de um comprometimento positivo do tribunal – do mesmo tribunal, sublinhe-se (Juízo Central Cível do Porto) – relativamente ao sentido da decisão anterior por si proferida.
Não se diga que, com um mero jogo semântico, reconhece-se a existência de uma excepção de caso julgado onde ela não pode ser afirmada. É que esta excepção impede o conhecimento da acção no segundo processo, impondo-se este impedimento a qualquer instância hierárquica (e a diferentes tribunais da mesma instância). Já no caso vertente, é de admitir que o comprometimento com a proibição de decisões contraditórias só se imponha ao tribunal (instância hierárquica) que proferiu a primeira decisão. A ser aceite, este entendimento leva a que o tribunal superior possa reconhecer a existência do impedimento e, ainda assim, reapreciar a questão de fundo sobre a competência do tribunal, eventualmente ordenando ao tribunal a quo que julgue a causa, − ainda que reconheça, repete-se, que este não podia tomar (assumir) tal decisão contrária à sua decisão anterior.
VIII. Aqui chegados, resta-nos reafirmar os pressupostos da decisão anterior e concluir no mesmo sentido. O art. 4.º da Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, é inequívoco quando estatui ser o Tribunal Arbitral do Desporto competente para conhecer dos litígios emergentes dos actos e omissões das federações e outras entidades desportivas e ligas profissionais, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina. No caso vertente, a exoneração do autor das funções enquanto director executivo do Departamento Administrativo/Financeiro da ré resultou de deliberação da Direcção da Liga Portuguesa de Futebol Profissional. Ou seja, o acto em questão foi assumido pelo órgão colegial de administração e gestão da ré (arts. 18.º, n.º 1, al. c), e 48.º, n.º 1, dos respectivos estatutos), no âmbito dos fins e das atribuições da ré. O litígio existente entre as partes está abrangido pelo art. 4.º mencionado, razão pela qual não há que ponderar se estão reunidas as condições para a arbitragem voluntária.
Pelo exposto, julga-se este Juízo Central Cível incompetente (por preterição de tribunal arbitral) para conhecer do presente litígio, e, consequentemente, absolve-se a ré da instância.»
Do assim decidido, o autor interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1.ª – O presente recurso incide sobre a douta sentença de fls. (referência 39708050) que declarou incompetente em razão da matéria o tribunal judicial da comarca do porto – juízo central cível do porto, por pretensa preterição de tribunal arbitral,
2.ª – Considerando competente o tribunal arbitral do desporto (TAD);
3.ª – Ora, ao invés, e salvo o devido respeito, o tribunal a quo é o materialmente competente para conhecer do litígio tal como foi configurado nos presentes autos pelo recorrente;
4.ª – Tal litígio reporta-se a um contrato de prestação de serviços, na modalidade de mandato oneroso,
5.ª – Submetido ao direito privado e à legislação civil, estando o dissenso das partes na resolução do mesmo pela recorrida, antes do seu termo e sem justa causa,
6.ª – Recorrida que se vem negando a pagar ao recorrente a indemnização que ao recorrente seria devida por tal violação contratual;
7.ª – O recorrente, a convite do presidente da recorrida, passou a prestar os seus serviços no âmbito da sua actividade de economista, tendo tomado posse em 11 de Setembro de 2015, ficando a seu cargo a tutela do departamento administrativo e financeiro da mesma recorrida;
8.ª – O prazo de tal prestação de serviços era de 4 anos, correspondente ao prazo do mandato do presidente da recorrida;
9.ª – Tal prestação de serviço era remunerada com uma importância mensal equivalente a 15 salários mínimos, durante 14 meses por ano;
10.ª – Em 22 de Julho de 2016, porém, sem justa causa, sob proposta do presidente da recorrida, foi o recorrente exonerado do cargo, recusando-se a recorrida a indemnizar o recorrente por tal violação do contrato, apesar de reconhecer que o recorrente;
11.ª – Isto, apesar de reconhecer que “… na direcção todos fomos unânimes no reconhecimento da tua dedicação e profissionalismo, os valores que tentei na última época incutir na liga eram já os teus valores assumidos quando cá cheguei, rigor, talento, profissionalismo e agregação.”
12.ª – Por isso é que o TAD sempre seria materialmente incompetente para dirimir tal litígio, uma vez que a sua competência se limita a conhecer de litígios que envolvam o exercício de poderes de natureza pública, em especial litígios que decorram da prática ou omissão de actos de autoridade que, com a constituição do TAD se subtraíram às regras do contencioso administrativo e à competência administrativa, onde até aí se encontravam;
13.ª – Na verdade, isso resulta claro até do artigo 8.º da lei do TAD que, no n.º 1, estabelece expressamente que quando há recurso das decisões arbitrais tal recurso é para o tribunal central administrativo,
14.ª – O que é, também, revelador da natureza pública dos poderes exercidos pelas entidades desportivas que podem determinar a submissão necessária do litígio aquele tribunal arbitral do desporto;
15.ª – Sendo assim, o artigo 4.º da lei do TAD, em que se fundou a decisão recorrida, só prevê que têm de lhe ser submetidas, necessariamente, para conhecimento, os conflitos que decorrem dos actos e omissões que resultam do exercício dos poderes públicos das federações desportivas, das ligas profissionais e de outras entidades desportivas;
16.ª – Ao invés, não tem o TAD competência para dirimir conflitos de direito privado, como é o caso sujeito, pois tal não integra a referida norma do artigo 4.º;
17.ª – Sabendo-se que para se aferir da competência do tribunal em razão da matéria há que ter em conta o pedido e a causa de pedir em que aquele se funda, atendendo à relação material tal como ela é apresentada pelo autor,
18.ª – Há que concluir que o ajuizado conflito se reporta a um contrato de prestação de serviços, na modalidade de mandato oneroso, como se disse, já submetido ao direito privado,
19.ª – Não se tratando, portanto, de qualquer litígio que tenha emergido ou esteja relacionado com a prática do desporto,
20.ª – Nem resultando, outrossim, de um ato ou omissão praticado no âmbito do exercício de quaisquer poderes de regulamentação, organização e disciplina de qualquer das partes;
21.ª – Vale isto por dizer que não sendo o TAD o tribunal competente para conhecer deste litígio o é o tribunal judicial comum, o tribunal a quo, dado que, como é sabido, os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual, conforme previsto no artigo 40.º, da lei n.º 63/2013, de 26 de agosto e artigo 64.º, do código de processo civil,
22.ª – Normas que atribuem aos tribunais judiciais competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, tudo isto de acordo, aliás, com o comando constitucional do artigo 211.º, 1, da CRP, que determina: “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.”;
23.ª – Decidindo diversamente, a decisão recorrida violou, nomeadamente, o disposto nos artigos 1.º e 4.º, da Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, 40.º, da Lei n.º 63/2013, de 26 de agosto, 64.º, do Código de Processo Civil, e 211.º, 1, da CRP.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se a competência para julgar a pretensão do autor é o Tribunal Arbitral do Desporto, tendo assim havido preterição do tribunal arbitral na instauração da acção nos tribunais judiciais.
III. Os factos:
Os factos que interessam para a decisão a proferir são os que constam do relatório que antecede.
IV. O mérito do recurso:
A] da questão prévia:
Conforme se anota na decisão recorrida, antes desta já o autor havia instaurado também nos tribunais judiciais uma acção igual à presente, na qual foi julgada verificada a incompetência absoluta do tribunal por preterição de tribunal arbitral. O autor não interpôs recurso dessa decisão pelo que a mesma transitou em julgado, mas, não obstante isso, instaurou depois esta segunda acção novamente nos tribunais judiciais.
Nos termos do artigo 100.º do Código de Processo Civil, a decisão sobre incompetência absoluta do tribunal, embora transite em julgado, não tem valor algum fora do processo em que foi proferida, salvo se, em via de recurso, a Relação decidir que o tribunal é incompetente, em razão da matéria ou da hierarquia, para conhecer da causa, houver recurso do Acórdão da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça decidir qual é o tribunal competente, caso em que no tribunal que for declarado competente não pode voltar a suscitar-se a questão da competência.
Não importa sindicar aqui a leitura restritiva do artigo 100.º efectuada pelo Mmo. Juiz a quo, no sentido de considerar que apesar da sua redacção o tribunal que se declarou incompetente para a primeira acção está vinculado por essa decisão e não pode decidir diferentemente.
Seja assim ou não, sempre restaria incólume a possibilidade de a Relação se pronunciar, em via de recurso, sobre a incompetência absoluta, apesar de a decisão da primeira acção não ter sido objecto de recurso, porquanto resulta claro do artigo 100.º do Código de Processo Civil que não possuindo a decisão valor algum fora do processo em que foi proferida, a mesma não pode ser oposta a um tribunal de recurso que não foi chamado a intervir na primeira acção.
Nessa medida, o mais que cabe dizer é que nada obsta à apreciação do recurso.

B] da incompetência absoluta do tribunal por preterição do tribunal arbitral:
Nos termos da alínea a) do artigo 96.º do Código de Processo Civil, a preterição de tribunal arbitral determina a incompetência absoluta do tribunal.
Decorre dos artigos 97.º e 578.º do mesmo diploma que a incompetência absoluta que decorrer de preterição de tribunal arbitral necessário deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa; ao invés na preterição de tribunal arbitral voluntário a excepção tem de ser arguida pela parte interessada, não podendo ser conhecida oficiosamente.
Por fim, decorre do artigo 99.º que a verificação da incompetência absoluta implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar.
No caso, o que se discute é se a presente acção se encontra abrangida pelo âmbito da competência necessária do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), que foi criado e a respectiva Lei (Estatutos) aprovada pela Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 33/2014, de 16 de Junho.
O TAD foi criado com «competência específica para administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto» (cf. artigo 1.º). O TAD é assim uma entidade jurisdicional independente com competência específica para administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto.
A Lei do Tribunal Arbitral do Desporto estabelece que os litígios relacionados com a prática desportiva ou com o ordenamento jurídico desportivo poderiam ser decidido através de arbitragem voluntária ou arbitragem necessária.
Por via de convenção de arbitragem ou de cláusula estatutária de federação desportiva ou de outro organismo desportivo, podem ser submetidos a arbitragem voluntária os conflitos decorrentes, directa ou indirectamente, da prática desportiva, incluindo os contratos de trabalho desportivo, desde que, segundo a Lei da Arbitragem Voluntária aprovada pela Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro, os mesmos sejam susceptíveis de decisão arbitral (cf. arts. 6.º e 7.º). O processo arbitral voluntário regula-se pelo termos ajustados pelas partes e pelas regras da Lei da Arbitragem Voluntária.
Na arbitragem necessária, as partes estão legalmente obrigadas a resolver, pelo menos, em primeira instância, os seus litígios por via arbitral em detrimento da competência que se não fosse isso caberia aos tribunais judiciais. Na arbitragem necessária, ao contrário do que sucede na arbitragem voluntária, as partes não dispõem de poder para decidir qual a matéria que submetem à apreciação e decisão do tribunal, sobre as regras processuais ou o direito aplicável.
Os artigos 4.º e 5.º da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto na redacção da Lei nº 33/2014, de 16 de Junho, dispõem o seguinte:
«Artigo 4º (Arbitragem necessária)
1 - Compete ao TAD conhecer dos litígios emergentes dos actos e omissões das federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina.
2 - Salvo disposição em contrário e sem prejuízo do disposto no número seguinte, a competência definida no número anterior abrange as modalidades de garantia contenciosa previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos que forem aplicáveis.
3 - O acesso ao TAD só é admissível em via de recurso de:
a) Deliberações do órgão de disciplina ou decisões do órgão de justiça das federações desportivas, neste último caso quando proferidas em recurso de deliberações de outro órgão federativo que não o órgão de disciplina;
b) Decisões finais de órgãos de ligas profissionais e de outras entidades desportivas.
4 - Com excepção dos processos disciplinares a que se refere o artigo 59.º da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, compete ainda ao TAD conhecer dos litígios referidos no n.º 1 sempre que a decisão do órgão de disciplina ou de justiça das federações desportivas ou a decisão final de liga profissional ou de outra entidade desportiva não seja proferida no prazo de 45 dias ou, com fundamento na complexidade da causa, no prazo de 75 dias, contados a partir da autuação do respectivo processo.
5 - Nos casos previstos no número anterior, o prazo para a apresentação pela parte interessada do requerimento de avocação de competência junto do TAD é de 10 dias, contados a partir do final do prazo referido no número anterior, devendo este requerimento obedecer à forma prevista para o requerimento inicial.
6 - É excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim susceptível designadamente do recurso referido no n.º 3, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.»
Artigo 5.º (Arbitragem necessária em matéria de dopagem)
Compete ao TAD conhecer dos recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem, nos termos da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, que aprova a lei antidopagem no desporto.»
Resulta destas normas que são decididos através da arbitragem necessária, detendo o TAD nessa matéria competência jurisdicional exclusiva, as questões relativas a litígios emergentes dos actos e omissões das federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina[1] (cf. artigos 4.º e 5.º).
As situações de arbitragem necessária no TAD estão pois taxativamente definidas nestas normas da lei. Estão excluídas da arbitragem necessária as questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.
No âmbito da sua jurisdição arbitral necessária, é atribuída ao TAD competência para conhecer dos litígios emergentes dos actos e omissões das federações e outras entidades desportivas e ligas profissionais, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina (n.º 1 do artigo 4.º da Lei do TAD) e para conhecer dos recursos das deliberações tomadas por órgãos disciplinares das federações desportivas ou pela Autoridade Antidopagem de Portugal em matéria de violação das normas antidopagem, nos termos da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, que aprova a lei antidopagem no desporto (artigo 5.º da Lei do TAD).
No caso, a norma que está em causa é aquela que atribui ao TAD competência jurisdicional exclusiva para «os diferendos resultantes dos actos e omissões das Federações Desportivas, das Ligas Profissionais e de outras entidades desportivas no que respeita ao exercício dos respectivos poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina». Porém, resulta claro dos autos que não foi suscitada previamente a intervenção de qualquer órgão da Liga nem a acção corresponde a um recurso das decisões dos órgãos jurisdicionais das federações desportivas ou das decisões finais de outras entidades desportivas e ligas profissionais. O autor, com efeito, não recorre da decisão de o exonerar, pretende sim que sejam reconhecidas consequências dessa exoneração, atenta a circunstância de a mesma não ter sido fundamentada em justa causa.
A determinação do que é exercício dos poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina da Liga Portuguesa de Futebol Profissional obriga a uma aproximação ao ordenamento jurídico em vigor.
A Lei n.º 5/2007 – Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto –, alterada precisamente pela Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, que criou o Tribunal Arbitral do Desporto, actualmente em vigor, pretendeu, segundo se afirma na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 80/X que esteve na origem daquela Lei, traduzir «uma preocupação acrescida do Estado na separação entre desporto profissional e não-profissional, nomeadamente no que concerne às ligas profissionais e às suas relações com as federações desportivas em que se inserem. A este respeito cumpre assinalar os seguintes aspectos: – a consagração de um novo conceito de liga profissional, esclarecendo-se que esta terá obrigatoriamente que assumir a forma de associação sem fins lucrativos e que passa a poder englobar, não apenas os clubes e sociedades desportivas participantes das competições profissionais, mas também outros agentes desportivos; – o estabelecimento, na linha do que constitui a matriz específica do modelo europeu de desporto, de que os quadros competitivos geridos pelas ligas profissionais constituem o nível mais elevado das competições desportivas desenvolvidas no âmbito da respectiva federação desportiva, pressupondo assim a existência de esquemas de permeabilidade entre as competições profissionais e as outras e inviabilizando a ideia das ligas fechadas; – o esclarecimento de que as ligas estão integradas nas respectivas federações e que exercem, por delegação destas, as competências para regular as competições de natureza profissional; – a clarificação das relações entre as ligas e as respectivas federações desportivas, em particular no que concerne à disciplina e à arbitragem, prevendo-se, no que a esta concerne, que a mesma seja estruturada por forma a que as entidades que designam os árbitros para as competições sejam necessariamente diferentes das entidades que avaliam a prestação dos mesmos; – a definição ainda de que as relações entre as ligas profissionais e as federações respectivas são estabelecidas contratualmente, designadamente no que concerne ao número de clubes que participam na competição profissional, ao regime de acesso entre as competições profissionais e não profissionais, à organização da actividade das selecções nacionais e ao apoio à actividade desportiva não profissional, prevendo-se uma forma de superação dos conflitos que daqui eventualmente surjam através de intervenção do Conselho Nacional do Desporto e do recurso à arbitragem».
Nessa conformidade, os artigos 14.º e 15.º da Lei n.º 5/2007 definem o conceito de federação desportiva do seguinte modo:
«Artigo 14.º (Conceito de federação desportiva)
As federações desportivas são, para efeitos da presente lei, pessoas colectivas constituídas sob a forma de associação sem fins lucrativos que, englobando clubes ou sociedades desportivas, associações de âmbito territorial, ligas profissionais, se as houver, praticantes, técnicos, juízes e árbitros, e demais entidades que promovam, pratiquem ou contribuam para o desenvolvimento da respectiva modalidade, preencham, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) Se proponham, nos termos dos respectivos estatutos, prosseguir, entre outros, os seguintes objectivos gerais: i) Promover, regulamentar e dirigir, a nível nacional, a prática de uma modalidade desportiva ou de um conjunto de modalidades afins ou associadas; ii) Representar perante a Administração Pública os interesses dos seus filiados; iii) Representar a sua modalidade desportiva, ou conjunto de modalidades afins ou associadas, junto das organizações desportivas internacionais, bem como assegurar a participação competitiva das selecções nacionais; b) Obtenham o estatuto de pessoa colectiva de utilidade pública desportiva.»
Artigo 15.º (Tipos de federações desportivas)
1 – As federações desportivas são unidesportivas ou multidesportivas.
2 – São federações unidesportivas as que englobam pessoas ou entidades dedicadas à prática da mesma modalidade desportiva, incluindo as suas várias disciplinas, ou a um conjunto de modalidades afins ou associadas.
3 – São federações multidesportivas as que se dedicam, cumulativamente, ao desenvolvimento da prática de diferentes modalidades desportivas, em áreas específicas de organização social, designadamente no âmbito do desporto para cidadãos portadores de deficiência e do desporto no quadro do sistema educativo.»
Sobre o estatuto de utilidade pública desportiva estabelece o artigo 19.º:
«Artigo 19.º (Estatuto de utilidade pública desportiva)
1 – O estatuto de utilidade pública desportiva confere a uma federação desportiva a competência para o exercício, em exclusivo, por modalidade ou conjunto de modalidades, de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública, bem como a titularidade dos direitos e poderes especialmente previstos na lei.
2 – Têm natureza pública os poderes das federações desportivas exercidos no âmbito da regulamentação e disciplina da respectiva modalidade que, para tanto, lhe sejam conferidos por lei.
3 – A federação desportiva à qual é conferido o estatuto mencionado no n.º 1 fica obrigada, nomeadamente, a cumprir os objectivos de desenvolvimento e generalização da prática desportiva, a garantir a representatividade e o funcionamento democrático internos, em especial através da limitação de mandatos, bem como a transparência e regularidade da sua gestão, nos termos da lei.»
No que concerne às ligas profissionais, o artigo 22.º estabelece o seguinte::
«Artigo 22.º (Ligas profissionais):
1 – As federações unidesportivas em que se disputem competições desportivas de natureza profissional, como tal definidas na lei, integram uma liga profissional, sob a forma de associação sem fins lucrativos, com personalidade jurídica e autonomia administrativa, técnica e financeira.
2 – As ligas profissionais exercem, por delegação das respectivas federações, as competências relativas às competições de natureza profissional, nomeadamente: a) Organizar e regulamentar as competições de natureza profissional, respeitando as regras técnicas definidas pelos competentes órgãos federativos nacionais e internacionais; b) Exercer, relativamente aos seus associados, as funções de controlo e supervisão que sejam estabelecidas na lei ou nos respectivos estatutos e regulamentos; c) Definir os pressupostos desportivos, financeiros e de organização de acesso às competições profissionais, bem como fiscalizar a sua execução pelas entidades nelas participantes.
3 – As ligas profissionais são integradas, obrigatoriamente, pelos clubes e sociedades desportivas que disputem as competições profissionais.
4 – As ligas profissionais podem ainda, nos termos da lei e dos respectivos estatutos, integrar representantes de outros agentes desportivos.»
Sobre a regulamentação das competições desportivas profissionais, o artigo 24.º estabelece o seguinte:
«1 – Compete à liga profissional elaborar e aprovar o respectivo regulamento de competição.
2 – A liga profissional elabora e aprova, igualmente, os respectivos regulamentos de arbitragem e disciplina, que submete a ratificação pela assembleia geral da federação no seio da qual se insere, nos termos da lei.»
O regime jurídico estabelecido pela Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro, e nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 198.º da Constituição, foi desenvolvido pelo Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de Dezembro (alterado pela Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro, e pelo Decreto-Lei n.º 93/2014, de 23 de Junho) que estabelece o regime jurídico das federações desportivas e as condições de atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva.
Nos termos dos artigos 10.º e 14.º deste diploma «o estatuto de utilidade pública desportiva confere à federação desportiva competência exclusiva para o exercício de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública, por modalidade ou conjunto de modalidades».
O n.º 2 do artigo 26.º, sob a epígrafe “tipos de associações”, estabelece que as «federações unidesportivas em que se disputem competições desportivas de natureza profissional integram uma liga profissional, de âmbito nacional, sob a forma de associação sem fins lucrativos, com personalidade jurídica e autonomia administrativa, técnica e financeira».
E nos termos do artigo 27.º a liga profissional exerce, por delegação da respectiva federação, competências relativas às competições de natureza profissional (cf. n.º 1) e cabe-lhe exercer, relativamente às competições de carácter profissional, as competências da federação em matéria de organização, direcção, disciplina e arbitragem, nos termos da lei (cf. n.º 4).
Com as alterações ao regime jurídico das federações desportivas introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 93/2014, de 23 de Junho, o artigo 27.º passou a ter a seguinte redacção:
«Artigo 27.º (Liga profissional)
1 – A liga profissional exerce, por delegação da respectiva federação, as competências relativas às competições de natureza profissional, nomeadamente:
a) Organizar e regulamentar as competições de natureza profissional, respeitando as regras técnicas definidas pelos competentes órgãos federativos nacionais e internacionais;
b) Exercer as competências em matéria de organização, direcção, disciplina e arbitragem, nos termos da lei;
c) Exercer relativamente aos seus associados as funções de controlo e supervisão que sejam estabelecidas na lei ou nos estatutos e regulamentos;
d) Definir os pressupostos desportivos, financeiros e de organização de acesso às competições profissionais, bem como fiscalizar a sua execução pelas entidades nelas participantes. (…)»
Do conjunto destas normas legais resulta assim que as federações desportivas são associações de direito privado sem fins lucrativos, a que, através da atribuição do estatuto de utilidade pública desportiva, são conferidos poderes de natureza pública (cf. artigos 14.º e 19.º da Lei n.º 5/2007, de 16 de Janeiro, e artigos 10.º e 14.º do Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de Dezembro);
Por sua vez, as ligas profissionais são também associações de direito privado sem fins lucrativos, que exercem, por delegação da respectiva federação, poderes de natureza pública conferidos à federação pela concessão do estatuto de utilidade pública desportiva, ao nível das competições de natureza profissional (cf. artigos 22.º da Lei n.º 5/2007 e 27.º do Decreto-Lei n.º 248-B/2008, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 93/2014, de 23 de Junho). Nesse sentido o Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da Republica de 24-11-2016, in Diário da República de 24-11-2016.
Perante este quadro legal, Artur Flamínio da Silva e Daniela Mirante, in O Regime Jurídico do Tribunal Arbitral do Desporto – Anotado e Comentado, Lisboa, 2016, pág. 34, afirmam a este propósito que “No fundo, todos os conflitos desportivos de Direito Administrativo encontram-se submetidos à arbitragem necessária do TAD. São, portanto, compreendidos aqueles conflitos que derivam de «poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina» da competição desportiva. Incluem-se aqui, por exemplo, conflitos que derivem de uma sanção disciplinar ou de uma norma de um regulamento (administrativo) de uma federação desportiva» (os sublinhados são nossos).

Para Pedro Melo, in O tribunal arbitral do desporto: subsídios para a compreensão da sua acção[2], a «intervenção do TAD só poderá ter lugar, em via de recurso, de: (i) deliberações do órgão de disciplina (Conselhos de Disciplina), ou de decisões do órgão de justiça das Federações Desportivas (Conselhos de Justiça), mas, neste último caso, somente quando forem proferidas em recurso de deliberações de outro órgão federativo que não seja o órgão de disciplina; (ii) decisões finais de órgãos de Ligas Profissionais e de outras entidades desportivas. Isto significa que o acesso ao TAD, na vertente da arbitragem necessária, pressupõe que se esgotem os meios internos de impugnação graciosa das decisões dos órgãos federativos (por exemplo, da Direcção de uma Federação Desportiva) para os Conselhos de Justiça. Só assim não será, nos casos de decisões dos próprios Conselhos de Justiça, julgando em primeira instância determinada matéria e, outrossim, nos casos de decisões dos Conselhos de Disciplina das quais, como já se frisou acima, há agora a possibilidade de recurso directo para o TAD. Observe-se, no entanto, que se mantém a regra tradicional de que as “questões estritamente desportivas” (na nova formulação legal, as denominadas «questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da própria competição desportiva») devem ser decididas no seio das Federações Desportivas».
No Acórdão da Relação de Lisboa de 15-03-2018, proc. 23267/17.0T8LSB.L1-6, in www.dgsi.pt, perante um conflito em que um órgão de comunicação social requereu ao tribunal judicial que lhe seja garantido o acesso às instalações de um clube desportivo para efectuar o seu trabalho de comunicação social, afirmou-se o seguinte: «Destinando-se o TAD a administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto, o litígio em causa, não releva nem do ordenamento desportivo, nem está relacionado com a prática do desporto. Está pelo contrário relacionado com o direito de imprensa e de livre acesso de jornalistas a práticas desportivas e outras com ela relacionadas, como sejam entrevistas de treinadores, de jogadores, treinos para competições desportivas e outras, sem que se vislumbre qualquer norma ou regulamento desportivo que tutele ou limite esse acesso e que permita submeter esta questão, em via de recurso ao TAD. Mais, conforme resulta à saciedade do disposto no artº 4 nº3, o acesso ao TAD só é admissível em via de recurso das decisões dos órgãos jurisdicionais das federações desportivas ou das decisões finais de outras entidades desportivas referidas no n.º 1, ou seja quando estas tenham tomado estas decisões, no exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina. Não se vê que dos factos elencados pelas requerentes, resulte que tenha existido decisão final (comunicada esta às requerentes) tomada pelas requeridas e inserida no exercício de poderes de regulamentação, organização e disciplina, em conexão com actividade desportiva, que tenha de ser submetida em via de recurso ao TAD. Não se vislumbra sequer, nem foi invocada qualquer disposição regulamentar, norma de natureza técnica ou de carácter disciplinar, ou outra que permita ao tribunal recorrido afirmar que este litígio só pode e deve, ser submetido ao TAD.» (o sublinhado é nosso).
Também no Acórdão desta Relação de 27-06-2018, proc. n.º 64161/17.9YIPRT.P1, relatado pela aqui 1.ª Adjunta, se entendeu que «o art.º 4.º da Lei do TAD vem então dispor sobre as matérias que necessariamente têm de ser submetidas a este tribunal, prevendo que lhe compete conhecer dos conflitos que decorrem dos actos e omissões das Federações Desportivas, das Ligas Profissionais e de outras entidades desportivas no que respeita ao exercício dos respectivos poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina, ou seja, dos actos e omissões que resultam do exercício dos seus poderes públicos. Estes actos ou omissões que esta norma prevê que sejam submetidos obrigatoriamente ao TAD são aqueles que resultam do exercício por aquelas entidades dos seus poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina, sendo estes que relevam do ordenamento jurídico desportivo, ou relacionados com a prática do desporto submetida a tal regulamentação, conforme prevê o art.º 1.º da Lei 74/2013 que define o objecto do TAD.» (o sublinhado é nosso).
Como vimos, a competência para conhecer dos litígios emergentes dos actos e omissões das federações e outras entidades desportivas e ligas profissionais, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina abrange, salvo disposição em contrário, as modalidades de garantia contenciosa previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos que forem aplicáveis (n.º 2 do artigo 4.º da Lei do TAD) mas o acesso ao TAD só é admissível em via de recurso das decisões dos órgãos jurisdicionais das federações desportivas ou das decisões finais de outras entidades desportivas e ligas profissionais, não dispensando a necessidade de fazer uso dos meios internos de impugnação, recurso ou sancionamento dos actos ou omissões previstos nos termos da lei ou de norma estatutária ou regulamentar (n.º 3 do artigo 4.º da Lei do TAD).
A obrigatoriedade de acesso ao TAD em via de recurso cessa sempre que a decisão do órgão jurisdicional federativo ou a decisão final de outra entidade desportiva ou liga profissional não haja sido proferida no prazo de 30 dias úteis, sobre a autuação do correspondente processo, caso em que o prazo para a apresentação do requerimento inicial junto do TAD é de 10 dias, contados a partir do final daquele prazo (n.º 4 do artigo 4.º da Lei do TAD).
Sendo assim quer-nos parecer que a presente acção não está compreendida no âmbito da competência necessária do Tribunal Arbitral do Desporto.
Os poderes de regulamentação, organização e direcção e disciplina da Liga Portuguesa de Futebol Profissional são os poderes relativos às competições de natureza profissional que lhe estão confiadas por delegação da Federação Portuguesa de Futebol. Tais actos são aqueles que contendem com a elaboração do regulamento das competições, com a sua organização, com a direcção de todos os actos necessários para o desenvolvimento da competição e com o exercício do poder disciplinar destinado a fazer respeitar e cumprir os regulamentos aprovados.
Não se trata de actos relacionados com a sua própria organização interna, com a definição da sua estrutura orgânica, porque nesse aspecto a Liga é uma associação de direito privado sem fins lucrativos cuja organização compete, portanto, aos respectivos associados, nos termos definidos pelos respectivos órgãos sociais no exercício das competências puramente provadas decorrentes dos estatutos aprovados pelos associados e da lei. Nesse aspecto particular, a Liga não exerce quaisquer poderes públicos delegados, comporta-se como qualquer pessoa colectiva privada e encontra-se sujeita aos respectivos estatutos e à lei geral que rege as pessoas colectivas e em particular as associações.
O acto cujas consequências jurídicas o autor reclama da ré não é respeitante ao exercício dos poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina da Liga Portuguesa de Futebol Profissional porque não tem qualquer relação com as provas desportivas que esta, no exercício dos poderes públicos que lhe foram delegados pela Federação Portuguesa de Futebol e que esta possui em virtude do estatuto de utilidade pública desportiva, ao nível das competições de natureza profissional.
Tal acto é um acto puramente privado, interno, sem qualquer manifestação de um poder público, como será, por exemplo, a contratação pela Liga de um contrato de empreitada pera execução de obras na sua sede, a celebração de um contrato de trabalho com um motorista para o seu serviço, a compra de material ou equipamento de escritório ou informático para os seus serviços, a celebração de um contrato de prestação de serviços de segurança ou limpeza das suas instalações. Para reclamar da Liga o pagamento do preço destes bens ou serviços, o prestador não carece seguramente de demandar a Liga no TAD, mesmo que esta se defenda invocando a sua estrutura e organização interna para questionar, por exemplo, a legitimidade da pessoa ou órgão que assumiu tal encargo ou despesa.
A isso não obsta a circunstância de na génese desse acto ter estado uma deliberação da Direcção da Liga. Como pessoa colectiva que é, a Liga toma as suas decisões e formula a sua vontade para efeitos jurídicos através dos respectivos órgãos, no exercício das respectivas competências estatutárias e legais. Todavia, uma coisa é na génese do acto haver uma deliberação orgânica (como quase sempre haverá, ainda que por delegação de poderes para outros elementos da sua estrutura interna) e outra coisa é essa deliberação e este acto estarem compreendidos no âmbito dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina das competições profissionais. No caso, estão compreendidos no âmbito da vida interna da Liga enquanto associação, enquanto pura associação de direito privado, a qual em relação aos seu próprio funcionamento enquanto associação se comporta como qualquer outra associação de direito privado, sem excepção.
O autor funda a sua pretensão na defesa de que a sua exoneração, operada sem justa causa, lhe confere o direito a ser indemnizado com uma importância equivalente às remunerações vincendas até ao final do período do mandato para que foram eleitos os órgãos da ré. O autor, portanto, não impugna o acto que foi praticado pela Direcção da Liga, o autor apenas reclama que a esse acto, que aceita e cuja validade não questiona, sejam reconhecidos determinados efeitos jurídicos de natureza privada ao nível da relação contratual que estabeleceu com a Liga para lhe prestar, profissionalmente, os serviços dos quais faz profissão. Por conseguinte, o autor não apenas não interpôs recurso da decisão do órgão da Liga de o exonerar, como não tinha de o fazer, porquanto não imputa a essa deliberação qualquer vício que contenda com a sua validade.
As disposições estatutárias relativas à organização interna da Liga surgem aqui como pano de fundo que consentiu e presidiu à actuação da Liga, mas não como objecto directo ou indirecto da causa de pedir da acção ou do questionamento do autor, o qual, aliás, não apenas não debate se os estatutos da Liga que permitiram a sua exoneração são válidos ou eficazes, como não teria sequer legitimidade para os questionar, atenta a sua relação meramente funcional com a Liga.
Ora, como se viu, nos termos do artigo 4º da Lei do TAD, este só tem competência para conhecer dos litígios emergentes dos actos da Liga Portuguesa de Futebol Profissional desde que estes tenham sido praticados no exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direcção e disciplina das competições profissionais e em via de recurso das decisões finais de órgãos da Liga. Para além disso, o TAD tem competência para essas matérias se os órgãos da Liga não conhecerem desses recursos no prazo de 45 dias ou, com fundamento na complexidade da causa, no prazo de 75 dias, contados a partir da autuação do respectivo processo de recurso. Portanto, mesmo nesse domínio o TAD não tem uma competência necessária própria directa, tem sim uma competência como órgão de recurso ou como órgão de substituição do órgão inicialmente competente mas que não exerceu a sua competência num determinado prazo cuja fixação se prende com a urgência inerente às questões que estão em causa e o desenvolvimento das competições desportivas.
Por conseguinte, ao invés do decidido em 1.ª instância, entendemos que no caso não ocorre preterição do tribunal arbitral necessário (o TAD), pelo que a competência material para julgar a acção cabe aos tribunais judiciais comuns. Procede, por isso, o recurso.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida, julgando improcedente a excepção da incompetência absoluta por preterição do Tribunal Arbitral do Desporto, ordenando o prosseguimento da acção nos tribunais judiciais.
Custas do recurso pela recorrida.
*
Porto, 21 de Fevereiro de 2019.
*
Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
__________________
[1] Outros exemplos de arbitragem necessária no ordenamento jurídico nacional são os conflitos colectivos de trabalho (cf. art. 510.º do Código do Trabalho; art. 7.º, n.os 1 e 4 do Decreto-Lei 259/2009, de 25 de Setembro), os direitos de propriedade industrial sobre medicamentos de referência e medicamentos genéricos (cf. art. 2.º da Lei 62/2011, de 12 de Dezembro), as indemnizações por expropriação (cf. art. 38.º do Código das Expropriações) e os serviços públicos essenciais (cf. art. 15.º, n.º 1 da Lei 23/96, de 26 de Julho com a redacção introduzida pela Lei 6/2011, de 10 de Março).
[2] Consultado nesta data in https://www.plmj.com/xms/files/artigos_e_publicacoes/2016/o_tribunal_arbitral_do_ desporto_subsidios_para_a_compreensao_da_sua_accao.pdf
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]